O lítio é normalmente prescrito a pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar. O medicamento é freqüentemente mantido indefinidamente como um tratamento de “manutenção” porque é teorizado para ter efeito preventivo enquanto “estabilizador do humor”. Entretanto, requer monitoramento constante porque a toxicidade do lítio pode danificar vários sistemas corporais e até mesmo levar à morte.
Agora, um novo estudo demonstrou que o uso do lítio causa doenças renais crônicas a uma taxa maior, particularmente naqueles que usaram a droga a longo prazo.
“Os pacientes tratados com lítio correm maior risco de doença renal crônica após exposição a longo prazo”, escrevem os pesquisadores.
Os pesquisadores observam que mais da metade daqueles que começam a tomar lítio interrompem o uso da droga por causa de seus efeitos adversos. Os níveis de lítio devem ser medidos a cada três a seis meses porque a droga pode se acumular no cérebro e causar danos permanentes ao cérebro (“toxicidade neural”). Além disso, o dano à tireóide é comum, com aqueles que tomam lítio com cerca de seis vezes mais probabilidade de ter hipotiroidismo do que a população em geral. Outra preocupação de nota é o risco de danos renais graves. Cerca de 20% das pessoas que tomam lítio sofrem de diabetes nefrogênico insípido e, em alguns casos, os danos renais podem ser irreversíveis.
O estudo atual foi publicado na revista psiquiátrica de ponta Lancet Psychiatry, e a pesquisa foi conduzida por Filip Fransson na Universidade de Umeå, na Suécia.
Os pesquisadores mediram a taxa de filtração glomerular estimada (eGFR), que é a quantidade de sangue que os rins são capazes de limpar dentro de um determinado período de tempo. medida que aponta que a função renal piora, a taxa de filtração glomerular diminui (já que os rins trabalham mais e mais lentamente para limpar a mesma quantidade de sangue).
Os dados vieram de duas fontes: Lithium-Study into Effects and Side-effects (LiSIE) e Northern Sweden WHO Monitoring of Trends and Determinants in Cardiovascular Disease (MONICA). LiSIE é um grande estudo de coorte de pacientes com diagnóstico de transtorno bipolar ou esquizoafetivo, projetado para avaliar a eficácia e os efeitos adversos do lítio. MONICA é uma pesquisa destinada a avaliar a saúde do coração de uma amostra representativa da população sueca. No total, o estudo incluiu dados de 2.334 pacientes.
Quando os pesquisadores compararam pessoas com os mesmos diagnósticos (transtorno bipolar e transtorno esquizoafetivo), aqueles que tomaram lítio por mais de dez anos experimentaram um declínio significativamente maior na função renal do que aqueles que não tomaram a droga ou que tomaram a droga por um período mais curto.
Aqueles com diagnóstico de transtorno bipolar ou esquizoafetivo tiveram o mesmo declínio no eGFR que aqueles sem o diagnóstico. Mesmo aqueles que tinham usado lítio por menos de dez anos tiveram aproximadamente o mesmo declínio que o grupo de controle. Todos os grupos experimentaram uma queda de cerca de 0,57 mL/min/1,73 m² por ano (o que é normal já que a função decresce com a idade).
Entretanto, para cada ano no lítio, as pessoas experimentaram, em média, uma queda adicional de 0,54 mL/min/1,73 m² no eGFR. No ponto de 10 anos, esta foi uma diferença estatisticamente significativa.
“Não encontramos nenhuma diferença significativa no declínio da taxa de filtração glomerular entre pacientes com transtorno bipolar ou transtorno esquizoafetivo com nenhum ou apenas curto prazo de uso de lítio e a população de referência”, escrevem os pesquisadores. “O subgrupo que utilizou lítio por mais de 10 anos teve um declínio significativamente mais acentuado em comparação com todos os outros grupos, incluindo a população de referência”.
Dos 24 pacientes com um eGFR de menos de 45 mL/min/1,73 m² (considerado “doença renal crônica”), 20 tinham sido expostos ao lítio. Os pesquisadores concluíram que o lítio foi o “principal fator contribuinte” em 10 casos, mas provavelmente contribuiu (além de outros fatores) para muitos dos outros.
Em conclusão, eles escrevem:
“Todos os pacientes tratados com lítio devem ser considerados com alto risco de complicações renais. Outros possíveis fatores de risco de doença renal crônica, tais como hipertensão, fumo, diabetes ou uso de drogas nefrotóxicas, devem ser minimizados. A pressão arterial deve ser monitorada regularmente e a hipertensão deve ser tratada de forma assertiva. O peso corporal e os parâmetros metabólicos devem tornar-se parte do acompanhamento de rotina dos pacientes tratados com lítio. Pacientes em uma trajetória rápida devem ser encaminhados a um nefrologista cedo para descartar outras causas tratáveis de doenças renais. A tomada de decisão compartilhada entre nefrologistas e psiquiatras é fundamental para alcançar o melhor resultado para o paciente afetado individualmente”.
Este estudo é de especial importância, pois a utilidade do lítio como medicina preventiva foi recentemente posta em questão. Uma meta-análise importante de todos os ensaios modernos da droga não encontrou nenhuma evidência de que o lítio impedisse o suicídio ou comportamentos suicidas não-fatais. Além disso, um grande RCT recente de lítio para prevenção de suicídios em veteranos foi terminado cedo porque a droga não era melhor do que um placebo.
Estas descobertas lançam um balde de água fria sobre a noção, ainda hoje proposta ocasionalmente, de que o lítio deve ser adicionado à bebida.
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Fransson, F., Werneke, U., Harju, V., Öhlund, L., Lapidoth, J., Jonsson, P. A., . . . & Ott, M. (2022). Kidney function in patients with bipolar disorder with and without lithium treatment compared with the general population in northern Sweden: results from the LiSIE and MONICA cohorts. Lancet Psychiatry, 9, 804-814. (Link)
[trad. e editado por Fernando Freitas]