Robert Whitaker: resumo da sua apresentação no Seminário Internacional a Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas

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robert-whitakerMais uma vez eu tenho a oportunidade de estar no Brasil. Desta vez para participar do Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas. Ao lado de colegas como Jaakko Seikkula, Laura Delano, convidados argentinos, uruguaios, e de vários atores importantes brasileiros, as minhas expectativas é que todos contribuamos para que mudanças paradigmáticas na assistência em saúde mental venham a ocorrer. Eis aí o resumo da minha apresentação.

Em 1980, a American Psychiatric Association (APA) adotou um “modelo de doença” para categorizar transtornos mentais, e esse modelo foi exportado para o Brasil e para grande parte do mundo. O público passou a ser ensinado que depressão, ansiedade, TDAH e esquizofrenia eram doenças do cérebro, causadas por desequilíbrios químicos, e que uma nova geração de drogas psiquiátricas havia sido desenvolvida que corrigia esses desequilíbrios químicos no cérebro.

Essa história passou a ser contada como um notável avanço científico. As causas dos transtornos mentais finalmente passaram a ser conhecidas, e que vinham sendo descobertas drogas que poderiam resolver esses problemas biológicos. E com o público informado com essa história, a prescrição de drogas psiquiátricas, para todas as idades, aumentou dramaticamente.

No entanto, de país a outro país, o aumento do diagnóstico de distúrbios e o aumento do uso de drogas psiquiátricas não levaram a uma redução do ‘fardo’ da doença mental, mas sim ao seu aumento dramático. O número de pessoas “incapacitadas” por transtornos mentais e, portanto, incapaz de trabalhar, aumentou quatro vezes nos Estados Unidos nos últimos 30 anos, e esse aumento na ‘incapacidade’ tem sido observado em muitos outros países que adotaram esse mesmo paradigma de assistência.

Uma revisão da literatura científica revela o por quê. Embora os medicamentos psiquiátricos possam aliviar os sintomas no curto prazo (melhor que o placebo), a longo prazo aumentam o risco de uma pessoa se tornar cronicamente doente e prejudicada funcionalmente. A literatura de pesquisa argumenta por uma necessidade de se repensar profundamente o uso de drogas psiquiátricas, com o pensamento de que elas precisam ser usadas com muito mais cautela, e que devem ser criados modos alternativos de tratamento.

O papel do Brasil é muito relevante para que esse processo tenha êxito global, levando em consideração as suas conquistas na ‘reforma psiquiátrica’.

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL

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Medicina praticada hoje em dia se parece com ‘fast food’, diz pesquisador

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150854104059ea8270b69d7_1508541040_3x2_mdPublicado 21/10/2017, no Jornal Folha de São Paulo: O médico e pesquisador Marco Bobbio, autor do Livro Troppa Medicina (algo como Medicina Demais) e Secretário Geral do movimento “Slow Medicine”, critica a medicina atual por desperdiçar recursos, excesso de velocidade em vários momentos e a falta de conexão com os pacientes, de maneira semelhante a uma rede de ‘fast food’. Isso significa que muitas vezes, são usadas drogas e tratamentos quando o paciente não precisa.

O movimento da “Slow Medicine” foi fundado em 2002, pelo cardiologista italiano Alberto Dolara. Pretende resgatar o tempo como parte essencial da abordagem médica, enfatizando o raciocínio clínico e o cuidado focado no paciente, salientando os aspectos multidisciplinares da atenção à saúde e o uso adequado da tecnologia.

Leia a matéria na íntegra →

Psicólogos Pressionam por Novas Abordagens para a Psicose – Parte 2

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O relatório, "Compreensão da psicose e da esquizofrenia: por que as pessoas às vezes ouvem vozes, acreditam em coisas que outros acham estranhas ou parecem fora de contato com a realidade, e o que pode ajudar", está disponível gratuitamente através da BPS.

ZenobiaEsta é a segunda parte da cobertura do MIB do relatório recente da Sociedade de Psicologia Britânica que desafia o paradigma atual para o diagnóstico e tratamento da psicose.

Os autores do relatório destacam os fatores traumáticos e sociopolíticos subjacentes às apresentações de psicose e ‘esquizofrenia’ e exigem novas formas de entender essas experiências.

“É vital que os profissionais de saúde mental estejam abertos a diferentes maneiras de entender experiências e não insistam em que as pessoas vejam suas dificuldades em termos de uma doença”, escrevem os autores. “Essa mudança simples terá um efeito profundo e transformador em nossos serviços de saúde mental”.

Time for ChangeOs autores alertam contra a conceitualização de ouvir vozes e outras experiências ‘incomuns’ como sendo indícios de uma indesejada ‘doença cerebral’. Principalmente porque essa visão patologiza uniformemente uma experiência, quando na prática é heterogênea, e que alguns acham ser não-angustiante e favorável ao seu estilo de vida. Além disso, eles argumentam que essas abordagens privilegiam explicações internas de angústia de forma a ocultar os efeitos do trauma e da violência estrutural.

Eles citam evidências convincentes de que os problemas de saúde mental e as experiências angustiantes, muitas vezes rotuladas como ‘psicose’, podem ser reações a eventos estressantes da vida, como pobreza, abuso e diferentes formas de trauma. Sobreviventes de abuso infantil, por exemplo, podem ouvir vozes parecidas com as do seu ex-agressor. Uma revisão descobriu que entre metade e três quartos das pessoas que estão em unidades de internação psiquiátrica foram vítimas de abuso físico ou sexual na infância.

Assim como os flashbacks, imagens intrusivas e a dissociação, a audição de vozes pode surgir como uma resposta natural após o trauma. Os refugiados, por exemplo, podem ouvir vozes ou ter visões relacionadas a experiências pessoais. Os autores escrevem:

“Está ficando claro que há muito mais sobreposição do que se pensava anteriormente entre essas experiências relacionadas ao trauma e aquelas que foram pensadas como psicose”. Eles ainda citam algumas fontes que argumentam que não há distinção e que a ‘psicose’ não precisa existir como um rótulo separado.

Um ouvidor de voz compartilha o seguinte:

“Eu pensei que era ruim porque as vozes me chamavam de todos os tipos de nomes. Mais tarde, percebi que as vozes estavam relacionadas ao abuso físico, porque elas têm as características daqueles que abusaram de mim. Então notei que as vozes se tornaram mais ou menos intrusivas dependendo da situação em que eu estava. Elas se tornaram ruins quando houve conflitos em casa. Então, elas eram um tipo de espelho da minha situação de vida “.

Um indivíduo com experiências de paranoia oferece o seguinte relato de sua história:

“Quando eu era criança, vivíamos em uma estrada totalmente branca. Ninguém era amigável conosco e, por golpe da sorte, o nosso vizinho era um membro da Frente Nacional e ficava a jogar toda a sorte de porcarias por sobre a parede do jardim para nos atingir e sujar a nossa casa … Era realmente horrível, coisas horríveis. E quando você é ainda criança em crescimento, você acha que é assim que o mundo exterior o vê. Você não vai se orgulhar de si mesmo e você realmente teme o mundo ao seu redor. Posso ver como isso teve um efeito fatal na minha experiência de paranoia “.

Os resultados de um estudo, citado no relatório, parecem apoiar a noção de que experimentar múltiplas formas de trauma infantil torna alguém suscetível à ‘psicose’, da mesma maneira que o tabagismo coloca um risco de câncer de pulmão.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou pobreza, sem lar, desemprego e baixa educação como determinantes sociais de problemas de saúde mental. Outros estudos identificaram experiências de discriminação e racismo institucional como fatores que influenciam o desenvolvimento de crenças ‘incomuns’ ou ‘paranoicas’.

Os autores chamam a atenção para uma distinção importante entre indivíduos racistas e racismo sistêmico, observando que o último opera de forma penetrante e insidiosa atravessando uma miríade de aspectos do bem-estar individual. Dr. Suman Fernando conecta a rotulação excessiva de ‘esquizofrenia’ à “excessivas crises, prisão e exclusão escolar”.

Às vezes, o racismo institucional se manifesta em políticas que têm abertamente sido voltadas para as pessoas de cor. O Dr. Johnathan Metzl chama a atenção para o específico diagnóstico “esquizofrenia negra”, que foi usado na década de 1960 para rotular aqueles que participavam do Movimento dos Direitos Civis enquanto “psicose de protesto”. Em alguns casos, membros de certas comunidades que sofreram trauma coletivo relataram ouvir vozes que relembravam a sua perseguição histórica.

“Porque eu ensinava a cultura africana e caribenha, o comércio transatlântico de escravos era grande parte do meu interesse, e passei a ir fundo de mais nessa história. E então, de repente, algo desbloqueou em mim. Comecei a ouvir meus antepassados. Eu podia ouvi-los a chorar e eu podia sentir a sua dor. Todos os meus antepassados femininos, eu podia senti-los e eu podia sentir todos os seus filhos. Eu podia ouvi-los em sua viagem e eu podia sentir todas essas pessoas vindo a mim através de toda a minha leitura. Isso começou a me afetar muito e passou a ser um problema. “

 

Estudos demonstram ainda que os empregados negros têm mais chances de serem estereotipados como violentos, recebem serviços de qualidade mais pobres e são medicados pela força ou trancados. Alguns estudiosos descrevem esse padrão como resultando em um ‘círculo de medo’, em que as pessoas de cor são mais propensas a sofrer angústia devido a políticas racistas, sofrem de serviços precários e então evitam procurar ajuda quando sofrem dificuldades.

Esses diferentes fatores de complicação demonstram a complexidade subjacente que dá origem à experiências que são remodeladas como  ‘esquizofrenia’. O objetivo deste relatório é desafiar como os prestadores de serviços desenvolveram suas crenças e conclusões sobre ‘psicose’, instando-os a reconsiderar sua abordagem.

Alguns indivíduos acham que a audição de voz e as experiências dessa pessoa são angustiantes e incapacitantes. Embora certas formas de apoio profissional possam ser úteis, os autores apontam que a rede de amigos, comunidade e apoio social de alguém é fundamental para seu bem-estar. Formular intervenções com isso em mente é um passo importante para melhorar os serviços.

Existe uma série de opções de suporte entre pares tanto as que são separadas quanto as integradas nos serviços de saúde mental. Algumas são informais e ocorrem de forma natural, outras são executadas por usuários de serviços e outras envolvem pagar provedores para obter suporte de pares mais formal.

O movimento do ‘usuário e sobrevivente do serviço’ serve como uma comunidade de apoio enquanto um fórum concebido para que os indivíduos reflitam suas experiências e compartilhem suas perspectivas. Isso resultou em uma literatura crescente que oferece visões únicas de experiências ‘psicóticas’, abordando a natureza desumanizadora de alguns serviços de saúde mental e retratando um vínculo entre ‘loucura’, criatividade e espiritualidade.

Os métodos de autoajuda e apoio mútuo também estão se tornando cada vez mais populares, particularmente para indivíduos com identidades marginalizadas para que venham a receber suporte culturalmente apropriado. Os usuários negros de serviços têm formado grupos de autoajuda, assim como indivíduos e mulheres LGBT. Abordagens coletivas como essas funcionam para combater o isolamento e reforçam os sentimentos de solidariedade entre os membros.

A Rede de Ouvidores de Vozes é uma rede internacionalmente ativa formada por grupos de autoajuda “com base na ideia de que diferentes pessoas têm ideias diferentes sobre a natureza e as causas de suas experiências”. O relatório continua descrevendo abordagens de desenvolvimento comunitário e “colégios que recuperam: uma abordagem educacional para oferecer ajuda “, como opções adicionais de suporte, e o relatório finalmente conclui com lista de recursos, sites e serviços.

Os autores enfatizam a importância das pessoas receberem cuidados e suporte desejados em tempo hábil. Para alguns, isso pode envolver suporte para necessidades básicas, como habitação, dinheiro e comida. Embora a maioria das pessoas que experimentaram ‘psicose’ queiram trabalhar, elas são severamente subempregadas, o que pode aumentar muito as dificuldades para encontrarem seu valor, suporte e significado em suas vidas de maneira mais geral.

O apoio emocional e as intervenções que podem melhorar a organização e a motivação na vida de alguém podem ser especialmente apreciadas, levando os autores a identificar a necessidade de respostas criativas às necessidades individuais. No entanto, a legislação atual permite que as pessoas sejam mantidas em hospitais contra sua vontade, onde são muitas vezes administrados medicamentos à força. Isso não tem efetivamente resultado na prevenção de admissões.

“Existe um argumento de que, mantendo as pessoas internadas contra a vontade delas, com muita frequência em situações desagradáveis e às vezes assustadoras, onde muitas vezes a única ajuda oferecida é medicação com efeitos colaterais angustiantes, estamos a não respeitar o princípio ético básico de ‘reciprocidade’ , a saber, que “onde a sociedade impõe uma obrigação ao indivíduo de cumprir um programa de tratamento ou cuidados, deve impor uma obrigação paralela às autoridades de saúde e assistência social para fornecer serviços seguros e adequados, incluindo cuidados contínuos após a alta da internação involuntária.'”

As críticas abrangentes e convincentes oferecidas neste relatório fornecem espaço considerável para a reforma em vários níveis de serviços. Em primeiro lugar, elas encorajam a mudança para além do ‘modelo médico’ e oferecem serviços que substituem o paternalismo por uma colaboração radical, envolvendo privilegiar as perspectivas dos usuários de serviços e a aceitação geral de visões fora de um ‘modelo de doença’.

A prescrição automática de medicamentos antipsicóticos precisa ser interrompida, eles escrevem e, em vez disso, os prestadores de serviços precisam começar a apoiar o direito dos indivíduos a serem informados, a escolher e ter um senso de expectativas. Eles pedem um reexame da justificativa que apoie o uso do tratamento involuntário e da medicação forçada, ressaltando que esses serviços são inerentemente discriminatórios.

Finalmente, os esforços de pesquisa devem refletir essas mudanças redirecionando ‘a busca por anormalidades biomédicas’, no sentido de se entender “os eventos e circunstâncias da vida das pessoas” e como afetam as pessoas. Assim, os serviços não fornecerão apenas cuidados padronizados, mas intervenções colaborativas adaptadas às circunstâncias individuais. Para fazer isso, eles argumentam que os prestadores de serviços, particularmente aqueles que lidam com a terapia da palavra, devem estar dispostos a ouvir, aceitar, estarem inteiramente com o cliente para facilitar a cura interpessoal e receber o apoio e o treinamento necessários que lhes permitam fazer isso.

Um ouvidor de voz compartilha o que eles achavam que precisavam, quando aprenderam o significado de suas experiências:

“O que eu finalmente aprendi foi que cada voz estava intimamente relacionada com os aspectos de mim mesmo e que cada um deles carregava emoções esmagadoras que nunca tive a oportunidade de processar e resolver – memórias de trauma e abuso sexual, de vergonha, raiva, perda e autoestima. As vozes tomaram o lugar desta dor e deram palavras a ela. E, possivelmente, uma das maiores revelações foi quando eu percebi que as vozes mais hostis e agressivas realmente representavam as partes de mim que tinham sofrido mais profundamente – e, como tal, eram essas vozes que precisavam que eu lhes mostrasse maior compaixão e cuidado “.

O relatório exige uma mudança fundamental no campo para implementar essas mudanças críticas, particularmente ao reconhecer as formas em que a opressão gera o sofrimento frequentemente categorizado como psicopatologia.

“Não há” nós e eles “, pessoas que são “normais “e pessoas que são diferentes porque estão “doentes mentais ” … “Estamos todos juntos e precisamos cuidar uns dos outros. Se formos sérios sobre a prevenção da ‘psicose’ angustiante, precisamos enfrentar a privação, o abuso e a desigualdade “.

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A Parte 1 da cobertura do MIB pode ser acessada aqui →

Laura Delano, resumo da sua apresentação no Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas

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Laura DelanoÉ com muitas expectativas que estou indo participar do Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas.

Nesta conversa, irei compartilhar a história de como me perdi no sistema de saúde mental ao longo de catorze anos e, por fim, passei a perceber que precisava sair das drogas psiquiátricas, abandonar meus diagnósticos psiquiátricos e deixar o sistema de saúde mental, para assim ter uma chance de recuperar a minha vida.

Eu descreverei como haver sido rotulada de “doente mental” e tomar drogas psiquiátricas moldou fundamentalmente o senso de mim mesma, a minha saúde física, as minhas habilidades cognitivas, o meu senso de sentido e propósito, e minha conexão com o mundo.

Irei reconsconstruir o processo pelo qual eu “desaprendi” a ser um paciente psiquiátrico e me livrar das drogas psiquiátricas. Em seguida, vou compartilhar sobre o trabalho que tenho feito para apoiar os outros que procuram caminhos fora do sistema de saúde mental, e eu vou terminar a conversa compartilhando com vocês os esforços de ativismo militante, defesa de direitos e de educação pública, que estão acontecendo mais amplamente dentro o Movimento de Sobreviventes / Ex-Pacientes Psiquiátricos em rápido crescimento nos Estados Unidos.

Encontro vocês no Seminário.

Psicólogos Pressionam por Novas Abordagens para Psicose: Parte 1

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O relatório, "Compreensão da psicose e da esquizofrenia: por que as pessoas às vezes ouvem vozes, acreditam em coisas que outros acham estranhas ou parecem fora de contato com a realidade, e o que pode ajudar", está disponível gratuitamente através da BPS.

ZenobiaUm relatório, publicado pela British Psychological Society (BPS), critica o estado atual do conhecimento dos sintomas psicóticos e as implicações prejudiciais dos tratamentos padrão e faz sugestões sobre o que precisa ser mudado.

Uma semana após o anúncio do governo britânico de sua revisão da legislação sobre saúde mental, a Divisão de Psicologia Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia (Reino Unido) publicou um relatório de acesso aberto desafiando a estrutura existente que conceitua a “psicose”. Os autores tentam desmantelar a noção de que a esquizofrenia é uma “doença do cérebro”que resulta em comportamentos violentos melhor melhor regulados pela intervenção médica.

“Nós esperamos que este relatório contribua para uma mudança fundamental que já está em andamento sobre como pensamos e oferecemos ajuda à ‘psicose’ e ‘esquizofrenia'”, escrevem os autores. Por exemplo, “esperamos que os futuros serviços não insistam mais que os usuários do serviço aceitem uma visão particular de seu problema, a saber, a visão tradicional de que eles têm uma doença que precisa ser tratada principalmente por medicação”.

O relatório, "Compreensão da psicose e da esquizofrenia: por que as pessoas às vezes ouvem vozes, acreditam em coisas que outros acham estranhas ou parecem fora de contato com a realidade, e o que pode ajudar", está disponível gratuitamente através da BPS.
O relatório, “Compreensão da psicose e da esquizofrenia: por que as pessoas às vezes ouvem vozes, acreditam em coisas que outros acham estranhas ou parecem fora de contato com a realidade, e o que pode ajudar”, está disponível gratuitamente através da BPS.

O relatório, “Compreensão da psicose e da esquizofrenia: por que as pessoas às vezes ouvem vozes, acreditam em coisas que outros acham estranhas ou parecem fora de contato com a realidade, e o que pode ajudar”, está disponível gratuitamente através da BPS.

Com o objetivo de causar impactos junto aos fornecedores de serviços, usuários e formuladores de políticas, o relatório revisa de forma abrangente o paradigma atual que envolve o tratamento de “psicose”, como uma versão atualizada de um relatório anterior, publicado em 2000. Distintos psicólogos estão incluídos entre os autores, representando oito universidades e seis membros do NHS, bem como pessoas que se identificam com os sintomas associados à “psicose”. Mais de um quarto dos contribuintes são do último grupo, denominados “especialistas por experiência”.

Em conjunto, a peça fornece novas ideias, contextualizando manifestações psicóticas em contextos interpessoais e sociopolíticos, e reposicionando o que sabemos sobre psicose na literatura científica atual.

O relatório começa fazendo uma revisão do que comumente se entende como psicose (ouvir vozes, acreditar em coisas que outros acham estranhas, falar de maneiras que outros acham difíceis de entender, e experimentar confusão que pode ser percebida como uma perda de contato com a realidade). Os autores sublinham, no entanto, quão heterogêneas são essas experiências, enfatizando a natureza única dessas experiências em indivíduos e culturas.

A cultura, os autores acrescentam, pode influenciar radicalmente a apresentação de tais experiências (por exemplo, quais tipos de vozes podem ser ouvidas), como alguém entende e faz sentido de suas experiências e como se escolhe descrever ou explicar suas experiências aos outros. As atribuições erradas da psiquiatria ocidental historicamente patologizaram diferentes grupos ou culturas no que alguns chamam de “imperialismo cultural”.

Além disso, os autores citam pesquisas que descobrem que muitas pessoas têm crenças que outros consideram estranhas, e que até 10% da população ouvem vozes pelo menos uma vez em sua vida. Enquanto alguns podem estar assustados ou angustiados por essas experiências, outros nunca procuram ajuda ou entram em contato com os serviços de saúde mental, simplesmente porque não se sentem incomodados com o que experimentam. Algumas pessoas acham que ouvir vozes serve a uma função útil em suas vidas, ou as veem como espiritualmente enriquecedoras.

“O principal aspecto que parece distingui-los daqueles que entram em contato com os serviços de saúde mental é a medida em que eles ou aqueles que os rodeiam acham a experiência angustiante ou assustadora”.

  Um ouvidor de vozes descreveu o seguinte:

 “Quando você não consegue encontrar uma saída ao entrar em uma situação complexa, elas (as vozes) ajudam a nos orientar. Você não precisa ouvir, não precisa seguir seu conselho, mas é bom que elas se manifestem de qualquer jeito”.

Os autores, portanto, sugerem a compreensão de experiências de “esquizofrenia” em um continuum em vez de as conceituar como uma construção única. Uma compreensão matizada e diversificada permite uma maior inclusão das várias frequências e intensidades de experiências. Algumas pessoas experimentam eventos como ouvir vozes ocasionalmente ou em padrões menos angustiantes, enquanto outros podem caracterizá-los como mais duradouros e perturbadores.

Considerando a fenomenologia expansiva e diversificada de experiências, as pesquisas, sem surpresa, demonstram que a confiabilidade entre os clínicos permanece baixa, variando especialmente em diferentes médicos, hospitais e países.

“Mesmo os clínicos experientes que receberam treinamento extra na aplicação dos critérios, apenas 50% são os que concordam com a categoria de diagnóstico todo o tempo. “

No entanto, a visão tradicional de conceituar a psicose é aquela em que as pessoas a possuem ou não. Essa ideia tomou posse no campo, pois diferentes sistemas de diagnóstico, incluindo o DSM, enfatizam a psicose como um estado ou apresentação qualitativamente distinta.

Os autores demonstram como fornecer um nome para um fenômeno é enquanto tal enganador, e talvez perigoso, especialmente quando não é experimentado de forma homogênea. Referem-se ao psiquiatra Jim Van Os, quem escreve:

“O termo grego complicado, em última análise sem sentido, sugere que a esquizofrenia realmente é uma ‘coisa’, ou seja, uma ‘doença cerebral’ que existe como tal na natureza. Esta é uma falsa sugestão”.

Um colaborador que recebeu um diagnóstico de esquizofrenia descreve sua reação ao diagnóstico:

“Eu fui rotulado com todos os tipos de diagnóstico: transtorno alimentar não especificado de outra forma, transtorno depressivo maior, transtorno de personalidade limítrofe, transtorno esquizoafetivo e eventualmente esquizofrenia … esse foi o único que me derrubou completamente. Valeria a pena lutar, estando a sofrer de uma doença cerebral vital para sempre? “

Outro escreve: “Estou rotulado para o resto da minha vida … Penso que a esquizofrenia sempre me tornará um cidadão de segunda classe … Eu não tenho um futuro”.

Enquanto alguns autores descrevem um efeito de incapacitação ao receber um diagnóstico, outros discutem os benefícios decorrentes do rótulo:

“Eu acho que prefiro a minha doença tendo um nome porque me faz sentir menos solitária, e sei que existem outras pessoas que experimentam o meu tipo de miséria. E que as pessoas vivem a despeito da mesma doença que a minha, e que criam um sentido para a sua existência apesar da doença. Mas eu também tenho que ter cuidado para não adotar o papel de doente, pois sei que simplesmente eu desistiria de tudo se fizesse isso “.

O diagnóstico, escreve os autores, não fornece nenhuma informação sobre a etiologia e o contexto interpessoal dessas experiências, privilegiando as explicações internalizantes, ao invés de abordar o impacto de experiências como trauma, pobreza, discriminação e racismo institucionalizado.

Recomendações recentes se afastaram do uso de diagnósticos, por causa do impacto negativo observável que eles podem ter, particularmente no que se refere a gerar estigma, discriminação adicional e uma avaliação medicamente patologizadora das experiências. A British Psychological Society (BPS) é uma dessas organizações que criticou os diagnósticos DSM-5 e CID-10, conclamando para “uma mudança de paradigma em relação às experiências que esses diagnósticos se referem, em direção a um sistema conceitual não baseado em um ‘modelo de doença’”.

Outras organizações, como a Comissão de Esquizofrenia, se juntaram para questionar a utilidade de diagnosticar, lançando uma investigação sobre o impacto da rotulagem das experiências das pessoas.

Além disso, construções diagnósticas que se concentram exclusivamente na apresentação de sintomas obscurecem uma compreensão holística do bem-estar dos indivíduos. As pessoas que ouvem vozes ou que se engajam em crenças incomuns, muitas vezes realizam vidas significativas e funcionais sem terem problemas com tais experiências. Essas experiências desafiam aquelas abordagens que buscam simplesmente reduzi-las a “sintomas”.

Como um indivíduo explica:

“Trabalho quatro dias por semana em um trabalho profissional; eu possuo minha própria casa e vivo feliz com meu parceiro e animais de estimação. Ocasionalmente, ouço vozes – por exemplo, quando fico particularmente estressada ou cansada, ou eu tenho visões depois de um luto. Sabendo que muitas pessoas ouvem vozes e vivem bem, e que algumas culturas veem essas experiências como um presente, me ajudam a nunca me preocupar ou a achar que seja o começo de uma crise ‘psicótica’. Embora eu tenha sorte de que as experiências nunca tenham sido tão perturbadoras quanto as de algumas pessoas, se alguém me dissesse que era uma loucura, eu poderia entrar em um círculo vicioso e ter lutado para sair “.

Alternativamente, os autores destacam os fatores que parecem mais influentes para a recuperação de experiências angustiantes e bem-estar geral: “conectar-se ao mundo fora de si mesmo (por exemplo, relações de apoio, espiritualidade), esperança, uma identidade positiva para além do papel de paciente, encontrar significado na vida e capacitação (aprendendo o que ajuda e assim ganhando controle e tendo as oportunidades certas) “.

Intimamente relacionado a esses fatores está a temática dos ‘relacionamentos’ e do ‘suporte’. Infelizmente, no entanto, as imagens da mídia estão saturadas de estereótipos prejudiciais sobre pessoas que ouvem vozes, experimentam esquizofrenia ou que têm crenças consideradas estranhas. Elas são mais comumente descritas como susceptíveis de cometer crimes violentos. No entanto, os autores são claros ao dissipar esses mitos que cercam uma associação equivocada entre experiências de psicose e violência.

“Na realidade, em contraste com os estereótipos da mídia, poucas pessoas que experimentam paranoia ou ouvem vozes angustiantes machucaram mais alguém do que as outras. É muito pouco mais provável que pessoas com diagnósticos psiquiátricos cometam mais crimes violentos do que aquelas sem tais diagnósticos. No entanto, a diferença das taxas é extremamente pequena: muito menor, por exemplo, do que o risco aumentado associado a qualquer uma de condições como: ser masculino, ser jovem, consumir álcool ou drogas de rua ou ter sido violento no passado “.

Por outro lado, os usuários dos serviços de saúde mental são muito mais propensos a serem vítimas de violência, talvez por causa da perpetuação de estereótipos tão nocivos que servem para incitar o medo em outros.

Em última análise, os autores enfatizam a necessidade de os prestadores de serviços respeitar as opiniões dos clientes, uma vez que a etiologia e a apresentação das experiências associadas à psicose são contextualmente únicas e inadequadas para explicações redutoras, particularmente aquelas que tentam limitar completamente essas experiências a modelos biológicos.

Enquanto décadas de pesquisa insistem na hipótese de estruturas genéticas, neuroquímicas ou outras estruturas cerebrais e funções que sustentam essas experiências, os autores afirmam expressamente que “até os dias atuais, não temos evidências firmes de nenhum mecanismo biológico específico subjacente às experiências psicóticas”.

Não só a explicação “doença cerebral” privilegia o tratamento de drogas em detrimento de terapias com a palavra, tornando estas últimas menos acessíveis, criou-se uma cultura na qual os serviços de saúde mental são desencorajados de tentar entender as experiências do indivíduo ou o contexto delas.

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A parte 2 da cobertura deste relatório (a ser publicada nos próximos dias) expandirá as teorias que compreendem trauma, violência estrutural e fatores sociopolíticos como subjacentes ao desenvolvimento de sintomas psicóticos. O relatório apresenta contribuições adicionais de ouvintes de voz, seguidos de implicações para pesquisa, prática, autoajuda e um apelo para uma mudança de paradigma no campo em direção a uma compreensão mais humanística dessas experiências.

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Cooke, A., Basset, T., Bentall, R., Boyle, M., Cupitt, C., Dillon, J., … & Kinderman, P. (2017). Understanding psychosis and schizophrenia, Revised version. London: British Psychological Society, Division of Clinical Psychology.  (Texto Completo)  (Full Text)

Rivotril e seus semelhantes matam mais do que Cocaína e Heroína

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Publicado na Folha 1: os benzodiazepínicos têm taxas de mortalidade mais altas do que as drogas ilegais, como a heroína ou a cocaína.

Tomando com referência recentes estudos realizados em Vancouver, mais uma vez é confirmado o que já há décadas vem sendo revelado no meio científico e clínico: os gravíssimos danos causados por drogas conhecidas como ‘tranquilizantes’ – os benzodiazepínicos –  comumente prescritas, como Valium, Xanax e Rivotril.

Leia a matéria na íntegra →

Rivotril

Diálogo-Aberto: Jaakko Seikkula no Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas

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Jaakko SeikkulaÉ com prazer que em breve estarei no Rio de Janeiro, participando dessa importante iniciativa que é o Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ).

Estou lhes enviando um Resumo do que eu apresentarei.

Aceitar o Outro sem condições é o caminho de ouro para abrir diálogos nas redes sociais que se encontram em crises severas. No entanto, o sistema de cuidados é construído sobre diretrizes, onde os profissionais são orientados a seguir sua via de tratamento de um caso para outro dentro de categorias de diagnóstico específicas. Dentro deste tipo de prática hoje dominante, respeitar as vozes dos clientes não é o objetivo básico. Infelizmente, a prática hegemônica muitas vezes desrespeita os recursos psicológicos dos clientes e, portanto, enfatiza a prática fortemente centrada no chamado expert. O tratamento é direcionado aos sintomas de clientes individuais para que o tratamento esteja sob controle.

Nas crises graves, outro tipo de abordagens é imprescindível. Em 30 anos, as experiências de desenvolver a prática do diálogo aberto como foco tornaram-se da maior importância: 1) convidar a família e outras redes sociais dos pacientes para aumentar os recursos; e 2) se concentrar na geração de diálogo para fazer ouvir todas as vozes nas reuniões terapêuticas. Os clientes são abordados como seres humanos em sua plenitude e não como sintomas. Se esses dois elementos principais forem realizados, os recursos dos clientes são ampliados para encontrar seu próprio caminho ao longo de suas vidas. Conforme observado nos estudos de psicose em primeiro episódio, 85% dos pacientes podem retornar ao pleno emprego. Ou em estudos de depressão maior, onde a recuperação ocorre mais rápido e mais frequentemente, em comparação com o tratamento habitual. Em ambos os casos, o papel da medicação pode ser reduzido, evitando assim o efeito nocivo das medicações de psicose e de depressão. Por exemplo, na Lapónia Ocidental com pacientes psicóticos em seu primeiro episódio, 65% não usaram medicação de psicose durante cinco anos; e a situação parece ser a mesma após 20 anos após o início do tratamento. Na primeira comparação, a taxa de aposentadoria é mais baixa na Lapônia Ocidental. e pode ser duas vezes maior dos que em tratamentos baseados em medicação.

Para o clínico, adotar a prática dialógica de respeitar o Outro, sem condições, provou ser uma tarefa desafiadora. Diálogo Aberto enfatiza a importância da nossa escuta cuidadosa de aceitar o outro sem condições. Adotar a prática dialógica é uma nova habilidade, onde podemos nos encontrar em diferentes papéis profissionais do que aqueles com os quais estamos acostumados a agir.

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL

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A Família que Construiu um Império de Dor

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The New Yorker. Illustration by Ben Wiseman

Matéria no The New Yorker. Como a família dos Sacklers, conhecida por sua generosidade e filantropia, está por detrás de uma das maiores tragédias contemporâneas produzidas por drogas farmacêuticas: a epidemia dos opioides?

É verdade que os Sacklers estão fortemente presentes na cultura e na ciência. Quem visita o Metropolitam Museum of Art (conhecido informalmente como The Met) percorre certamente a ala Sackler (Sackler wing). O nome Sackler está em Harvard, o Museu Sackler; há o Sackler Center for Arts Education, no Guggenheim; senão a ala Sackler no Louvre. Bem como há institutos e instalações Sackler em Columbia, Oxford e em uma dúzia de outras universidades.

Muito pouco divulgado para o público em geral: os Sacklers são os donos da Purdue Pharma – uma empresa privada, com sede em Stamford, Connecticut, que desenvolveu o analgésico de prescrição OxyContin. Após sua liberação, em 1995, OxyContin foi saudado como um avanço médico, um narcótico duradouro que poderia ajudar os pacientes que sofriam de dor moderada a grave. A droga tornou-se um sucesso de vendas, e teria gerado cerca de trinta e cinco bilhões de dólares em receita para Purdue.

Mas OxyContin é uma droga controversa. Seu único ingrediente ativo é o oxicodona, um primo químico da heroína, que é até duas vezes mais poderoso do que a morfina. No passado, os médicos haviam relutado em prescrever opioides fortes – como se sabe são drogas sintéticas derivadas do ópio – exceto para a dor aguda do câncer e cuidados paliativos de fim de vida, por causa de um medo antigo e bem fundamentado sobre as propriedades aditivas destas drogas. Purdue lançou o OxyContin com uma campanha de marketing que tentou contrariar essa atitude e mudar os hábitos de prescrição dos médicos. A empresa financiou pesquisa e médicos pagos para fazer o caso de que as preocupações com o vício em opioides eram exageradas e que a OxyContin poderia seguramente tratar uma gama cada vez maior de doenças. Os representantes de vendas comercializaram o OxyContin como um produto “para começar e ficar com”. Milhões de pacientes descobriram que a droga era uma pomada vital para uma dor excruciante.

E hoje em dia, milhões de pessoas que passaram a fazer uso desta droga se encontram dependentes químicos e com enormes dificuldades para levar uma vida normal, na medida em que não conseguem se livrar dessa droga. Uma droga com efeitos colaterais gravíssimos. Hoje é um escândalo internacional. Aqui no Brasil Oxycontin é livremente comercializado, com venda inclusive na internet.

Veja a matéria do The New Yorker na íntegra →

A Indústria Farmacêutica Capturou a Psiquiatria

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Gustavo Miranda / Agência O Globo

Matéria de O Globo, ‘A indústria farmacêutica capturou a psiquiatria’, entrevista dada por Robert Whitaker ao jornalista Nelson Gobbi.

“Investigo o fenômeno da medicalização, em particular a influência das drogas utilizadas na psiquiatria. Já publiquei quatro livros. Ganhei o Prêmio George Polk para Escrita Médica, em 1998, por meus artigos sobre a psiquiatria e a indústria farmacêutica, e fui finalista do Prêmio Pulitzer no Serviço Público, em 1999.”

Veja a matéria na íntegra →

Entrevista com Robert Whitaker

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Image 22-10-17 at 18.43Vida Integrada entrevistou Robert Whitaker: jornalista, autor de 5 livros, que recentemente publicou “Anatomia de uma Epidemia” livro premiado e traduzido em diversos idiomas, que aborda a contravertida questão do uso abusivo de drogas nos tratamentos psiquiátricos.

1) Caro Robert, como o Sr. vê a evolução dos tratamentos de Saúde Mental durante as últimas décadas?

Existe pouca evidência de que durante os últimos trinta anos tenha havido qualquer progresso real no tratamento de doenças mentais. As pesquisas não levaram a nenhum avanço real em encontrar causas “biológicas” para as doenças mentais, e mesmo no que tange a tratamentos medicamentosos, há pouca evidência de que as drogas de segunda geração tenham resultados melhores que as de primeira.

Mais assustador ainda é o seguinte: como diversos países do Mundo adotaram o “modelo de doença” e estão utilizando cada vez mais essas drogas, o número de pessoas incapacitadas só vem aumentando ao longo do tempo (índice medido pela porcentagem da população afastada do trabalho por doença mental e que depende de ajuda financeira do governo, nos EUA). Então na prática, há pouquíssima evidência de qualquer progresso em psiquiatria para doenças conhecidas como “doenças ou desequilíbrios químicos do cérebro”. A maior evidência de que a teoria desequilíbrio químico está incorreta, é que os tratamentos propostos para essa teoria fizeram mais mal do que bem durante as últimas décadas.

2) No seu livro recente “Anatomia de uma Epidemia” você se posiciona contra a ideia de que a doença mental seja causada por qualquer “desequilíbrio químico” no cérebro. Você acredita que isto seja um mito? 

anatomia_de_uma_epidemia_imagem_2Não é uma questão pessoal de acreditar ou não, já que a própria ciência revela que a teoria é um mito. A Psiquiatria sabe disso…A melhor referência sobre o assunto vem de um Psiquiatra, o Dr. Ronald Pies que foi o último Editor Chefe da revista “Psychiatric Times”, basicamente um braço da Associação Americana de Psiquiatria (APA). Ele escreveu: “Na verdade, a ideia de um desequilíbrio químico sempre foi uma espécie de lenda urbana, nunca foi uma teoria seriamente proposta por psiquiatras bem-informados”.

Existem muitos comentários similares a esse, feitos por cientistas que investigaram a fundo a hipótese do desequilíbrio químico e que mostraram que essa hipótese não tem fundamento científico algum. Por isso não se tratar de uma questão pessoal minha sobre ser um mito ou não.

Em 1998 Dr. Elliot Vallenstein, professor de neurociências na Universidade de Michigan, escreveu um livro que se chama “Blaming the Brain” ou “Culpando o cérebro” e nele ele diz: “As evidências coletadas não sustentam nenhuma teoria bioquímica como causadora de doenças mentais”. Mais recentemente, em 2005, Kenneth Kendler, co-editor da revista “Psychological Medicine” disse o seguinte: “Por muito tempo nós procuramos explicações neuroquímicas simples, que pudessem ser tidas como causas das doenças mentais, mas simplesmente não as encontramos. Ou seja, as pessoas que pesquisaram o assunto a fundo concluíram que essa teoria não se respalda, o que também é verdade sobre a teoria de que as pessoas deprimidas também têm baixas taxas de serotonina no cérebro.

3) Algo que chama a atenção tanto no livro quanto nos seu vídeos é que você postula que os efeitos das drogas psiquiátricas são nocivos a médio prazo, tanto no sentido cognitivo quanto também comportamental. Você poderia explicar em que se baseia para fazer essas afirmações?

Todos os estudos de longo prazo com drogas psiquiátricas mostram os mesmos resultados: aqueles que tomam as drogas por períodos mais longos se saem pior do que aqueles que não as tomam. Enquanto isso, os pesquisadores que buscam entender esses resultados ruins acharam uma explicação biológica para isso: no longo prazo, as drogas acabam causando anormalidades ao cérebro, o que é exatamente o oposto do que deveria ser o seu efeito inicial previsto.

Por exemplo, tome os casos dos antidepressivos conhecidos como Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS). Eles bloqueiam a recaptação normal de serotonina na fenda sináptica e portanto, aumentam a atividade serotonérgica. Fomos ensinados que isso resolveria o desequilíbrio químico cerebral, mas os pesquisadores nunca encontraram pessoas com depressão que tivessem baixas taxas de serotonina antes de começarem a tomar os remédios.

Ou seja, as drogas aumentam a atividade serotonérgica, mas o cérebro tem mecanismos de biofeedback, feitos para manter um equilíbrio homeostático (mantendo funcionamento normal dentro da sopa química cerebral). Esses mecanismos agora sinalizam ao cérebro para reduzir a atividade serotonérgica, uma vez que há excesso de serotonina em circulação. Então os neurônios pré-sinápticos começam a reduzir a quantidade produzida de serotonina, e os neurônios pós-sinápticos diminuem a densidade de seus receptores de serotonina de forma a tornar o cérebro menos sensível ao excesso circulante. Resumindo, a droga aumenta a atividade de serotonina e o cérebro aciona o freio exatamente nessa mesma atividade, de forma a manter o equilíbrio.

Veja que ironia: antes de começar a medicação, o paciente deprimido não tinha nenhum problema conhecido com seu sistema serotonérgico, mas agora ele tem! Agora ele tem menos receptores de serotonina do que o normal. Ou seja, o uso constante das drogas criou exatamente o problema que imagina-se causar a depressão. E ao se retirar a medicação, há menos receptores e menos serotonina sendo produzida e portanto a pessoa recai.

Os pesquisadores então chegaram à conclusão de que provavelmente é esse o motivo pelo qual as pessoas não melhoram com os remédios a longo prazo. “As drogas induzem a modificações opostas ao previsto” disse um dos pesquisadores.

4) Será que esse mesmo mecanismo de biofeedback explica porque as pessoas têm tanta dificuldade em deixar as medicações psiquiátricas, em geral?

Claro, é essa a razão pela qual deixar a medicação se torna tão difícil. O seu cérebro se adaptou à presença da droga e quando você tenta retirá-la, o cérebro entra em um estado anormal. Se voltarmos ao exemplo dos Inibidores de Recaptação Seletiva de Serotonina, ao deixar o remédio, você agora está equipado com um sistema serotonérgico que está deficiente, ou até comprometido. E isso provavelmente irá levá-lo a uma recaída quase que imediata, além de possíveis complicações, efeitos colaterais e de abstinência, etc.

Eu devo dizer que esta é uma explicação muito simplista de como sistemas de neurotransmissores cerebrais funcionam. Na realidade, um sistema afeta o outro, e tomar medicação psiquiátrica é como atirar uma chave inglesa dentro desse complexo mecanismo que é o cérebro humano. É por isso que tentar parar a medicação pode ser uma tarefa tão difícil para os pacientes.

5) Na sua opinião essa hipótese do feedback cerebral e da homeostase adaptativa é a mesma para outras drogas psiquiátricas, seja para depressão, ansiedade, hiperatividade, etc?

Sim, eu acredito que isso aconteça com todas as drogas psiquiátricas. Foi isso que Stephen Hyman, um ex-diretor do Instituto Nacional de Doenças Mentais dos Estados Unidos (NIMH), escreveu em 1996 num paperintitulado “A paradigm for understanding psychotropic drugs”. Ele descreve que esse é um processo universal que acontece com todos os tipos de medicação psiquiátrica.

6) Aqui no Brasil também seguimos o mesmo modelo de doença preconizado pelos manuais de Psiquiatria e pela Organização Mundial da Saúde – OMS. Mas se essas políticas claramente não têm dado resultados, porque não há ninguém alertando sobre isso, mundialmente falando?

Bom, essa é uma boa pergunta… Na verdade quem escreve as diretrizes para a OMS? São os próprios psiquiatras contratados para fazerem parte dos painéis de desenvolvimento da OMS e que suportam esse “saber convencionado.” Então é uma teoria suportada pelos seus próprios criadores.

Além disso, os psiquiatras são treinados nas universidades exatamente para aprenderem a medicar. Eles são educados dentro de um espectro profissional que indica drogas específicas, recomendadas para doenças bem definidas do cérebro, desequilíbrios químicos, distúrbios neurobiológicos, entre outros. Ou seja,  a “boa medicina”, como eu falo no livro, é aquela que encontra a causa para uma doença e portanto uma medicação adequada para tratá-la. Foi esse modelo que a psiquiatria abraçou e que buscou no cérebro um culpado para a aparente “causa” das doenças mentais.

7) Como você vê o aumento da medicação também em crianças, especialmente nos casos de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, cada vez mais comuns atualmente?

Há “evidência” de que as drogas reduzem os sintomas de TDAH – o tamborilar dos dedos, inquietação, desatenção e outros, a curto prazo. Se fôssemos avaliar nesse sentido, as drogas parecem “funcionar” e portanto com a efetiva redução dos sintomas, medicar as crianças se tornou a norma e também a prática recomendada. Mas ninguém está se perguntando se sufocar esses movimentos das crianças nas salas de aula é realmente bom para elas, e claro, ninguém está preocupado com os efeitos a longo prazo.

Como os estudos para aprovação das drogas duram em média seis semanas, a avaliação fica restrita à diminuição dos sintomas de forma bastante imediatista. Mas ninguém está realmente se questionando se as drogas ajudam as crianças a se saírem melhor no longo prazo. O que se sabe é que as drogas funcionam ao serem mensuradas escalas de sintomas, tais como movimentos excessivos das mãos, pernas inquietas, etc. Os pesquisadores sabem que as drogas até pioram o desempenho das crianças a longo prazo, mas ao serem confrontados com esses resultados, eles voltam a sua atenção para os resultados imediatos e com isso, justificam e validam sua utilização. Então as políticas medicamentosas são muito bem recebidas pelo meio médico e social, e as drogas, aprovadas.

8) Seria possível traçar alguma associação entre este movimento medicamentoso e o financiamento para pesquisas exercido pela indústria farmacêutica?

A pressão exercida pela indústria farmacêutica é um dos problemas. O outro problema, ainda maior do que este, é que organizações ditas “independentes” são povoadas por psiquiatras formadores de opinião, que recebem milhares de dólares via pesquisas ou diretamente das próprias companhias farmacêuticas, para promoverem e disseminarem suas novas drogas. Então esses psiquiatras que são tidos como autoridades e líderes em seus segmentos, acabam “financiados” pelas grandes indústrias que se beneficiam em vendas, a partir da recomendação direta ou indireta do médico.

9) Ainda falando de TDAH, você acredita que o uso massivo de equipamentos eletrônicos tais como Iphones e Ipads possa estar contribuindo para esse aumento nos casos diagnosticados da doença em crianças?

Sim, com certeza. Basta perceber que uma criança que cresce tendo o hábito de ler livros terá um comportamento e uma mente diversa da criança que passa horas na frente de computadores, televisão ou jogos eletrônicos. A primeira aprende a manter o foco por longos períodos de tempo enquanto a segunda aprende a ser responsiva a múltiplos estímulos, de curta duração e de forma rápida, aprendendo a estar alerta a novos impulsos a qualquer segundo. Os cérebros dessas “novas” crianças está sendo treinado para ser hiperativo.

10) Você conhece a iniciativa o método de tratamento conhecido por “Open Dialogue” , criado para tratar episódios de psicose na Finlândia? Eles parecem ter algumas das melhores taxas no Mundo inteiro quando se pensa em readaptação dos pacientes, recidivas e sociabilidade a longo prazo. Será que isso poderia ser uma alternativa para tratar também TDAH, depressão, etc?

Eu viajei para Tornio e conheci o Open Dialogue quando estava escrevendo “Anatomia de uma Epidemia”. Enquanto meu maior interesse era pesquisar como eles utilizavam esse processo para tratar pacientes psicóticos, acabei descobrindo que eles usam o mesmo método para tratar pacientes deprimidos e até mesmo crianças que estão tendo dificuldades na escola, o que poderíamos chamar de TDAH.

É muito interessante perceber que eles veem todos os problemas como sendo oriundos de um contexto social, em vez de uma doença que afeta um indivíduo e não outro. Open Dialogue é um método e uma forma de terapia desenvolvidos para ajudar a curar não apenas os indivíduos mas também toda a sociedade que os envolve.

 11) Então qual seria o caminho a seguir, se queremos desenvolver um novo modelo, capaz de tratar as doenças mentais de uma maneira mais humanizada?

Eu acredito que o Open Dialogue promova um modelo. Trata-se de pensar em dificuldades psiquiátricas como consequência de dificuldades de adaptação a um contexto social. Portanto se tentarmos melhorar esse contexto social e também cuidarmos das pessoas para que possam tolerar melhor essa realidade, talvez tenhamos uma boa chance de sucesso.

Nós podemos utilizar drogas como acessórios temporários neste processo, mas entendendo que elas não estão curando nada e, mais do que isso, a longo prazo elas tendem a piorar os resultados daquilo que elas deveriam tratar. Mas sim, é verdade que elas promovem algum alívio a curto prazo e esta é a armadilha paradoxal do que estamos observando acontecer atualmente.

O ponto mais importante é que precisamos enterrar o paradigma atual de tratamento mental, no qual é dito que existem doenças mentais ou desequilíbrios químicos dentro dos cérebros de alguns indivíduos, e que podem ser consertadas de alguma forma por remédios. Esse paradigma é falso e precisamos substituí-lo por um novo, que seja humilde o suficiente para reconhecer que a mente humana é extraordinariamente complexa, que seu modo de funcionamento ainda é misterioso para nós, e que, portanto, fingir que podemos consertá-la apenas com um remédio é de uma extrema arrogância, sem precedentes. As pessoas existem, vivem e se relacionam dentro de um contexto social e ambiental. Elas respondem a essa sociedade e a esse ambiente. As concepções psiquiátricas dos problemas mentais e de seus tratamentos deveriam começar a partir desse entendimento.

Esta entrevista foi originalmente postada em meu blog →

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