As Pílulas para a Depressão podem Transformar Alguém em um Assassino?

0

fernando_foto_definitivaEm uma entrevista chocante, um homem que se considera um pai amoroso conta como ele matou seu filho durante um episódio psicótico, causado, segundo ele, por medicação psiquiátrica.

Ele se chama David Carmichael, 59 anos de idade. Matou seu filho Ian, 11, durante um episódio psicótico cujas evidências sugerem haver sido provocado por uso de antidepressivo.

David Carmichael
David Carmichael

Um juiz determinou não ser ele “criminalmente responsável por sofrer de um transtorno mental”

David sempre acreditou que sua psicose foi causada por um tipo de antidepressivo conhecido como ‘inibidor seletivo de reabsorção de serotonina’ (ISRS).

Seu filho Ian tinha epilepsia e uma leve dislexia, mas não tinha outros problemas além de ficar um pouco atrasado com a sua leitura. David era um pai entusiasmado e dedicado, um treinador de esportes de Toronto, Canadá, que passava a sua vida profissional trabalhando com crianças. Quando David tirou a vida de Ian durante um episódio psicótico, ele estava convencido de que sua esposa, Beth e sua filha Gillian, iriam agradecê-lo por se livrar do “intolerável” fardo que Ian havia se tornado para eles.

Ian Carmichael.jpg
Ian Carmichael.jpg

David foi julgado por homicídio em primeiro grau, mas o juiz determinou que ele não era “criminalmente responsável, por sofrer de um transtorno mental”. Dois psiquiatras forenses o diagnosticaram com uma “grande depressão com episódios psicóticos” quando matou Ian. David foi enviado para um hospital psiquiátrico onde passou quatro anos. Em 4 de dezembro de 2009, ele recebeu liberdade absoluta, e uma constatação de culpa, sem antecedentes criminais.

É uma história verdadeiramente chocante e amargamente trágica. David sempre acreditou que sua psicose tenha sido causada pela paroxetina (vendida no Brasil como Pondera, Aropax ou Cebrilin).

Embora os antidepressivos pareçam funcionar para algumas pessoas, seus efeitos colaterais são bem conhecidos: sonolência, náusea, insônia e perda de libido são alguns dos mais frequentes. No entanto, a literatura científica também relata outros efeitos colaterais bem mais graves, como ansiedade, agitação; e ainda alucinações e delírios paranoicos, que, embora mais raros, podem ter um impacto devastador.

A cineasta Katinka Blackford Newman, descreveu aqui no Mad in Brasil suas experiências terríveis. Horas depois de tomar sua primeira dose de antidepressivo Katinka se tornou psicótica.

A experiência de Katinka B. Newman e de David Carmichael faz parte de um documentário da BBC “Panorama”, que será exibido amanhã, dia 26 de julho, no Reino Unido.

The Murder

http://www.bbc.co.uk/programmes/b08zjyp1

Mais de 60 milhões de prescrições para antidepressivos foram escritas apenas no Reino Unido em 2015.

No Brasil, nós não temos os números; mas é muito provável que igualmente seja elevadíssimo o número de brasileiros tomando antidepressivos.

É bem verdade que muito poucas pessoas se tornam suicidas ou homicidas, mas de acordo com David Healy, professor de psiquiatria na Universidade de Bangor e crítico líder dos antidepressivos, uma em cada 1.000 pessoas que tomam a medicação antidepressiva é gravemente afetada.

“Provavelmente há até 2.500 suicídios adicionais na Europa desencadeados por algum antidepressivo ISRS”, afirma o professor Healy, que fundou um site que ajuda a identificar potenciais riscos de drogas, que você pode acessar a partir de um link postado na primeira página do Mad in Brasil.

Em março de 2012, 28 estudantes e professores belgas e holandeses foram mortos quando o treinador jogou o ônibus contra a parede de um túnel. Os investigadores contratados pelos pais descobriram que o motorista estava em processo de descontinuação da Paroxetina. Eles acreditam que ele se matou enquanto sofria de delírio causado por níveis flutuantes da droga.

No mesmo ano, na estreia de um filme de Batman em Aurora, Colorado, James Holmes, um estudante de doutorado de 24 anos, sem registro de violência, matou 12 pessoas e feriu 70. Perguntas têm sido levantadas sobre se o antidepressivo que ele tomava desempenhou um papel relevante.

Andreas Lubitz, o piloto alemão que, em 24 de março de 2015, jogou deliberadamente o avião da Lufthansa nos Alpes franceses, matando todas as 150 pessoas a bordo, estava tomando antidepressivos, incluindo a mirtazapina.

O professor Healy acredita que David Carmichael estava “muito provavelmente” sob o controle da psicose induzida pelo antidepressivo quando ele matou Ian.

****

Mail On lineSe você quer ler na íntegra a matéria da edição de hoje (25 de julho) do Mail clique aqui.

****

Katinka NewmanA respeito da experiência de Katinka Blakeford Newman com antidepressivos e o drama que ela teve que enfrentar, confira a recente matéria do The Times (23 de julho de 2017).

 

 

Meu Traficante de Drogas era um Médico: uma História de Retirada

5

Neste trecho retirado da Medium, Michael E. Lee conta sua história de experimentar os terríveis efeitos de retirada de Effexor (Velanfaxina) e como ele curou a sua depressão através da prática da ‘atenção plena’ (mindfulness) e da espiritualidade.

“Que droga é essa? Seu nome Effexor (Velanfaxina). Ela o colocará de joelhos. Literalmente. Aquele viciado em heroína que você vê na televisão, encurralado no chão do banheiro, suando, vomitando e paralisado. Sim, era eu. Tudo por causa de uma droga que nosso governo diz ser segura. Ninguém me disse que isso aconteceria quando eu segui esses medicamentos. Ninguém me disse merda alguma sobre o fato de que retirar ou “diminuir”, como a comunidade médica gosta de chamar, seria igual a sair da heroína ou desintoxicar do álcool “.

Drug Dealer

Os pacientes que ouvem vozes têm o direito de recusar remédio psiquiátrico? Um movimento crescente diz que sim

13

fernando_foto_definitiva

No final do ano passado, tive a oportunidade de conhecer de perto o movimento do ‘hearing voices’ (‘ouvidores de vozes’), em minha curta temporada em Massachusetts, a convite de Robert Whitaker. A experiência que tive com o Hearing Voices Network – USA -. se soma a algumas outras  que conheci de práticas em saúde mental, coordenadas e feitas por usuários e ex-usuários psiquiátricos. São experiências cujos protagonistas são usuários e ex-usuários da psiquiatria, que compartilham suas vidas de modo a sobreviver à própria psiquiatria.

Destaco os companheiros do Hearing Voices com quem tive a oportunidade de conhecer um pouco como trabalham: Marty Madge e Caroline Mazel-Carlton. Como não ouço vozes como eles, não pude participar da reunião dos ‘ouvidores de vozes’. Marty e Carol são os coordenadores. IMG_3006

O The New York Times fez uma matéria com a Caroline, onde se pode ter uma ideia do que ela e seus companheiros vem fazendo. Veja aqui.

Como introdução que contribua para que melhor conheçamos o que representa o movimento internacional dos ‘ouvidores de vozes’, tomemos como referência um artigo de que acaba de sair publicado no site da STAT, assinado por SHIRLEY S. WANG ([email protected]). 

O que deve ser sublinhado, como é sugerido no próprio artigo de Shirley, é que o movimento dos ‘ouvidores de vozes’ não pretende que a sua experiência seja transformada em uma entre outras práticas psiquiátricas dominadas pelo paradigma bio-médico. A meta dos ‘ouvidores de vozes’ é buscar des-psiquiatrizar a sua experiência de ‘ouvir vozes’.

Vejamos como isso funciona.

Ela ouvia vozes com frequência: três homens zombando, dizendo ser ela estúpida, exortando-a que se matasse.  Os psiquiatras diagnosticaram esquizofrenia. E passou a ser tratada como esquizofrênica. Hoje em dia, Rachel Waddinghan rejeita esse diagnóstico.

 

Rachel Waddington_1

Após décadas tomando medicamentos e saindo e voltando aos hospitais psiquiátricos, Rachel passou a se relacionar com as suas vozes de uma nova maneira. E que nova maneira é essa? Ela simplesmente não mais tenta banir as vozes usando as drogas, mas as aceita como fazendo parte dela própria. Ela agora considera as vozes como uma reflexão de seus sentimentos e experiências, sinais que a ajudam a entender quando e por quê ela se sente esmagada, oprimida – ao invés de as tomar como autoridades que a comandam a seguir algo.

Pois bem, essa abordagem dos ‘ouvidores de vozes’ integra um movimento internacional que levanta questões fundamentais sobre o que significa ser doente mental. A questão que está no centro do debate é a seguinte: os pacientes que ouvem vozes – e sofrem outros sintomas que os psiquiatras consideram graves – têm o direito de direcionar o seu tratamento, mesmo que isso implique na rejeição das terapias convencionais, tais como a medicação psiquiátrica?

Alguns psiquiatras tradicionais têm preocupações de que as pessoas que estão fora de contato com a realidade e que desprezam o tratamento possam representar um perigo para si ou para os outros.

Mas o movimento, que começou na Holanda, se espalhou rapidamente nas últimas três décadas; agora há grupos de apoio “ouvidores de vozes” nos cinco continentes, e mais de 180 grupos apenas no Reino Unido, ancorados na Rede de Ouvidores de Vozes. A ideia tem sido mais lenta em ganhar corpo nos EUA, onde é fortíssimo o modelo médico para o tratamento de doenças mentais, mas também lá o movimento vem ganhando força.

Atualmente, existem cerca de 90 grupos de apoio em todo os Estados Unidos, de acordo com a Rede de Ouvidores de Vozes dos EUA. Apenas no mês passado, os defensores da abordagem realizaram cinco sessões de treinamento para líderes de grupos de apoio. E em agosto próximo, o Congresso Mundial de Ouvidores de Vozes será realizado na Universidade de Boston, a primeira vez que a reunião acontecerá nos EUA. Os organizadores esperam cerca de 500 participantes; embora alguns tenham se preocupado em ter que solicitar vistos para os EUA, porque há a pergunta sobre o estado de saúde mental do solicitante.

Muitos no movimento dizem que não estão mentalmente doentes, porque suas alucinações não causam angústia ou interferem significativamente com a sua capacidade de se mover de forma produtiva através da vida. Eles dizem que os diagnósticos são muitas vezes subjetivos e não confiáveis. De fato, alguns dizem que ser rotulado como mentalmente doente – ou ser empurrado para seguir em medicação – causou mais problemas do que as vozes que ouvem.

Os líderes do movimento têm o cuidado de reconhecer que antipsicóticos e outros medicamentos podem funcionar para alguns pacientes. Mas eles também observam que há uma inversão de valores entre esses benefícios, que podem ser substanciais, como são os efeitos colaterais graves e muitas vezes desagradáveis, sendo exemplar o ganho de peso significativo que pode levar à diabetes. E há perguntas sobre a eficácia a longo prazo dos medicamentos psiquiátricos.

Em oficinas e grupos de apoio, os defensores do movimento tentam tranquilizar as pessoas que ficam assustadas com a experiência de ouvir vozes, porque não é incomum ouvir vozes, e que não necessariamente isso pressupõe uma espiral na psicose. Eles oferecem estratégias concretas para lidar, incluindo buscar firmar compromissos para conversar com as vozes em intervalos periódicos – e fazer uso de fones de ouvido quando estiverem conversando com as vozes, e então ir olhando para o mundo exterior como se o sujeito estivesse simplesmente falando pelo telefone. Um workshop que ocorrerá no Congresso Mundial de Ouvidores de Vozes promete dar dicas sobre como negociar realidades alternativas.

“Para nós, as vozes são um sinal, elas dizem algo a você. algo sobre a sua vida.”

Dr. Dirk Corstens

“Para nós, as vozes são um sinal, elas são algo dizendo a você coisas significativas sobre a sua vida”, disse Dr. Dirk Corstens, um psiquiatra e psicoterapeuta em Maastrich (Holanda) e um líder do movimento. “Você tem que as ouvir (as vozes).  Não obedecer, mas ouvir.” Muitos ouvidores de vozes recuperados dizem que uma vez que passaram a se engajar com as vozes, a sua saúde mental melhorou – e que também as vozes se tornaram mais agradáveis.

Desde que abandonou os seus medicamentos, por exemplo, Waddingham passou a ser capaz de ter empregos em tempo integral, como servir como gerente de projeto em uma organização de defesa de saúde mental sem fins lucrativos. E casou-se.

Agora, com 39 anos, ela mora em Faversham, Inglaterra, a cerca de 50 milhas a leste de Londres, trabalha como terapeuta e dá discursos percorrendo todo o país sobre estratégias de ouvir vozes e de recuperação. Ela também está escrevendo um livro e se candidatando a programas de PHD.

Ela ouve mais vozes do que nunca – cerca de 13 no momento, ela estima. E elas continuam a dizer-lhe para se machucar ou para machucar os outros. Waddingham reconhece que ouvir as vozes “pode ser difícil”. Ela ainda tem dias em que sente ser difícil lidar com elas e que precisa se sentar sozinha e puxar um cobertor para se agasalhar e se sentir segura. Ainda assim, ela escolhe não usar medicação – mesmo que as drogas possam reduzir o número de vozes que ouve.

“Eu não sou um caso trágico”, disse ela.

“Insólito, mas não patológico”

Muitos psiquiatras entendem que perder o contato com a realidade – por exemplo, ouvindo vozes – é um sintoma por excelência de doenças mentais graves e que as drogas são o tratamento mais eficaz para evitar que os pacientes prejudiquem a si próprios ou aos outros.

Há algumas pesquisas que apoiam essa preocupação: em um estudo seminal dos EUA, com 1.410 pessoas com esquizofrenia, aqueles que experimentaram alucinações, incluindo ouvir vozes que outros não ouvem, eram mais propensos a cometer violência grave, embora a probabilidade geral de violência fosse ainda baixa, de acordo com Jeffrey Swanson, professor de psiquiatria e ciências comportamentais na Duke University. Ele foi um coautor desse artigo, publicado em 2006 no Archives of General Psychiatry.

“Os psiquiatras são os especialistas em tratamento que podem ser úteis, então eles devem estar envolvidos … e tentar garantir que os pacientes não percam a percepção e que venham a ter sérios problemas”.

JEFFREY SWANSON, PROFESSOR DE PSIQUIATRIA

É essa a opinião dominante.

Mas Swanson também diz que há “uma grande diferença” entre pacientes que sabem que as vozes apenas estão sendo ouvidas por elas próprias e aqueles outros pacientes que não sabem.

A maioria dos psiquiatras hoje em dia quer que os pacientes “compartilhem na tomada de decisões” e elaborem um plano de tratamento personalizado, disse Swanson. “Ao mesmo tempo”, acrescentou, “os psiquiatras são os especialistas em tratamento que podem ser úteis, então eles devem ser envolvidos, monitorar o que está acontecendo e tentar garantir que os pacientes não percam a percepção e tenham problemas sérios. ”

Quão comum é ouvir vozes? Os números variam muito, mas uma revisão de 17 estudos existentes em nove países encontrou que, em média, cerca de 1 em cada 8 pessoas entrevistadas relataram uma experiência de ouvir uma voz que não era real.

“Os resultados apoiam o atual movimento que busca estar longe de modelos patológicos de experiências incomuns e para a compreensão da audição de vozes como ocorrendo em um continuum na população em geral”, escreveram os pesquisadores no estudo, publicado em 2011 no Mental Health Journal.

Charles Fernyhough, professor de psicologia da Universidade de Durham no Reino Unido, que estuda o tema, disse que uma teoria afirma que o fenômeno parece ser semelhante à auto-fala que todos fazemos. Parece que uma certa porcentagem de pessoas não experimenta seus monólogos internos como sendo algo que elas próprios produziram, levando-as a experimentar as vozes como provenientes de outra pessoa.

Ouvir vozes “é incomum, mas não é em si patológico”, disse Fernyhough.

Encontrando conforto com os amigos invisíveis

Lisa Forestell, de Somerville, Mass., sempre ouviu vozes durante o tempo que ela pode lembrar. Quando ela era muito jovem, ela pensou que todos faziam o mesmo, e falava em voz alta para ela, eram duas garotas e um menino. “Não parecia notar qualquer tipo de feedback negativo do resto do meu mundo”, disse ela.

Mas quando ela começou a escola, uma professora disse a ela que as vozes não podiam vir para a escola. Forestell “fez um pacto” com suas vozes: que elas só conversariam com ela em particular. E funcionou.

Ela ainda foi provocada. Percebeu que na mídia as pessoas que ouviam vozes eram muitas vezes retratadas como loucas ou criminosas. “O que [essas experiências] me ressaltou é que eu era “outro”. Fiquei estranha”, disse Forestell, que agora tem 51 anos. “Considerava que era uma superpotência ou uma coisa muito legal, mas realmente a mensagem que estava recebendo era que eu não era uma coisa boa. ”

Embora ela achasse suas vozes significativas e reconfortantes – um pequeno grupo de melhores amigos que ficaram na cabeça dela – ela por décadas não contou a ninguém novamente.

Somente em 2009, enquanto trabalhava para o Western Massachusetts Recovery Learning Community, querendo iniciar um grupo de ouvidores de vozes, é que ela finalmente confiou em seu supervisor. “Foi terrível”, disse Forestell.

Uma das vozes cresceu com ela –  as outras duas optaram por permanecer crianças – e todas as vezes são sons. Quando ela decidiu publicar como ouvidora de vozes, por exemplo, as vozes foram cautelosas e disseram que não queriam ser citadas. Agora elas estão incentivando-a a falar, disse Forestell.

Para Rachel Waddingham, que começou primeiramente a ouvir vozes quando tinha 18 anos, aprender a lidar com elas sem medicação mudou sua vida.

Depois que começou a frequentar a Rede de Ouvidores de Vozes há cerca de 15 anos, ela tomou uma decisão consciente de não querer se identificar como mentalmente doente. Quando ela disse a seu psiquiatra de longo prazo que queria diminuir a medicação, ela obteve resistência. “Por que você não me deixa ajudar você?”, perguntou o psiquiatra.

Mas Waddingham disse que se ela tivesse uma escolha, ela não gostaria de se livrar de suas vozes. Elas a ajudaram de várias maneiras: ela aprendeu a se concentrar, a bloquear as vozes, e é habilidosa no gerenciamento do conflito – porque as vozes podem ser “bastante duras”. Ela também acha que ela passou a ser mais generosa como pessoa, mais aberta para perspectivas dos outros e a estar mais em contato com as suas próprias ansiedades. As vozes servem como um tipo de sistema de alerta precoce para o estresse interno.

“Se eu presto atenção, eu sei antes de que algo se torne um problema”, disse ela.

Dia Internacional da Consciência sobre os Benzodiazepínicos

2

11 de julho é o Dia Mundial de Conscientização sobre os Benzodiazepínicos. Conhecidas como ‘benzos’, são drogas psiquiátricas que supostamente tratam a tensão e a ansiedade do dia a dia.

Foram amplamente prescritas durante os anos 60 e 70 nos Estados Unidos, e no Brasil nos anos 80 e 90. Os mais conhecidos: Milton, Librium, Valium, Diazepam, Ritalina, entre outros. São drogas psicoativas que prometem um falso bem-estar. Tudo em nome da ‘felicidade’. Quer dizer, estar livre das vicissitudes da própria existência humana. Como é o tédio, ou o incômodo da sua condição de vida, senão a busca de um ‘gozo’ impossível de ser ‘gozado’ no cotidiano.

As mulheres são as principais consumidoras, de cada três prescrições duas são feitas para as mulheres.  O que foi chamado pelos Rolling Stones como “o ajudante da mamãe” (Mother’s little helper).

 

Mother’s Little Helper Pequeno Ajudante da Mamãe
What a drag it is getting old Que saco é ficar velho.
Kids are different today Crianças são diferentes hoje.
I hear ev’ry mother say Eu ouço sempre a mãe dizer
Mother needs something today to calm her down Mães precisam de alguma coisa, hoje em dia, pra se acalmar
And though she’s not really ill E embora ela não esteja realmete doente
There’s a little yellow pill Há uma pequena pílula amarela
She goes running for the shelter Ela corre para o armário
Of a mother’s little helper Em que está o pequeno ajudante da mamãe
And it helps her on her way E isso a ajuda
Gets her through her busy day A enfrentar o seu cansativo dia.
Things are different today As coisas são diferentes hoje
I hear ev’ry mother say Eu ouço toda mãe dizer
Cooking fresh food for a husband’s just a drag Preparar comida fresca para o marido é um saco
So she buys an instant cake Então ela compra um bolo instantâneo
And she burns her frozen steak E ela queima o seu bife o seu bife congelado
And goes running for the shelter Ela corre para o armário
Of a mother’s little helper Em que está o pequeno ajudante da mamãe
And two help her on her way E dois a ajudam a enfrentar as coisas
Get her through her busy day A dar conta do dia atribulado
Doctor, please Doutor, por favor
Some more of these Mais alguns desses
Outside the door Na saída
She took four more Ela tomou mais quatro
What a drag it is getting old Que saco é ficar velho.
Men just aren’t the same today Os homens não são os mesmos hoje em dia
I hear ev’ry mother say Eu ouço sempre a mãe dizer
They just don’t appreciate that you get tired Eles simplesmente não gostam que você esteja cansada
They’re so hard to satisfy Eles são difíceis de satisfazer
You can tranquilise your mind Você pode tranquilizar a sua mente
So go running for the shelter Então vá correndo para o armário
Of a mother’s little helper Do ajudante da mamãe
And for help you through the night E para ajudar a passar a noite
Help to minimise your plight Ajudar a minimizar o tédio
Doctor please Doutor, por favor
Some more of these Mais alguns desses
Outside the door Na saída
She took four more Ela tomou mais quatro
What a drag it is getting old Que saco é ficar velho
ife’s just much too hard today A vida é muito difícil hoje em dia
I hear ev’ry mother say Ouço sempre a mãe dizer
The pursuit of happiness just seems a bore A perseguição da felicidade parece apenas um aborrecimento
And if you take more of those E se você tomar mais desses
You will get an overdose Você terá uma overdose
No more running to the shelter Sem mais corridas ao armário
Of a mother’s little helper Do pequeno ajudante da mamãe
They just helped you on your way Eles só te ajudaram em seu caminho
Through your busy dying day Até o ocupado dia da sua morte

 

A exemplo do que ocorre com os antipsicóticos e antidepressivos, os benzodiazepínicos criam uma forte dependência química.  É o caso do popular Diazepam, que produz tolerância e síndrome de abstinência, isto é, após um período de uso, as pessoas sofrem de grave ansiedade quando deixam de tomar esse medicamento. As reações físicas e emocionais dos usuários de ansiolíticos quando deixam de tomar o medicamento são semelhantes às daquelas pessoas viciadas em drogas psicoativas em geral, como ansiedade de rebote, insônia, convulsões, tremores, dores de cabeça, visão turva, zumbido nos ouvidos, extrema sensibilidade ao barulho, sensações que insetos estão atacando, pesadelos, alucinações, extrema depressão e desrealização.

No Dia Internacional de Consciência sobre os Diazepínicos, a arte nos ajuda a denunciar a opressão da Psiquiatria em nosso cotidiano.

Esse blue de Richard Lewis é uma canção de protesto contra a violência dos Benzos na vida cotidiana dos seus usuários.

“Benzo Blue” (by Richard D. Lewis 2017)

She’s climbing mountains / Nobody knows how high
Such a lonely journey / A ladder to an endless sky
There’s millions climbing by her side  
Unknown to each other /Just tryin’ to survive

Life can have its problems / Anxious days and sleepless nights
A simple pill and a label / To soothe her fight or flight
Oh so safe / So easy / the doctors say
Just trust and believe / all your worries away
With one pill / Big Pharma / and the FDA
---

Chorus:
Now, some people think she’s crazy / And she doubts her sanity too
But if they only knew / What it’s like to be ‘benzo blue’
It’s a blue so deep it’s almost black / And she doesn’t know if she’ll ever make it back
For if they only knew / What it’s like to be ‘benzo blue’ 
---

It’s an all too common story / So many people must tell
All taken “as prescribed” / Good intentions on a road paved to Hell 
Oh so safe / So easy / the doctors say
Just trust and believe / all your worries away
With one pill / Big Pharma / and the FDA

She lives her life in one color / So many shades of grey
With nights that linger so long / They’ll darken the brightest day
Oh so sad / So sorry / the doctors say
Still trust and believe / all your worries away
With another pill / Big Pharma / and the FDA

Repeat Chorus:

Don’t send her to those meetings / They’re not her people, places, or things
Cuz she’s never known addiction / It’s your drugs pulling the puppet strings
Oh so sad / So sorry / the doctors say
Still trust and believe / all your worries away
With another pill / Big Pharma / and the FDA

No more condescending saviors / With Bibles and prescription pads
No more drugs and labels / For they will surely drive her mad
Now she questions / everything her doctors say
Can’t trust or believe / all her worries away
She has her ‘Benzo Buddies’ / and her friends at MIA
Damn all their drugs / Big Pharma / and the FDA
And there’ll be no mercy / When Psychiatry finally has its day

Repeat Chorus: (last phrase 2x)

Ou a música de Hamilton Assumpcion, Sufoco da Vida, tocada pelo grupo Harmonia Enloquece.

 

 

Como deixar de ser Dependente Químico de Droga Psiquiátrica?

0

Um dos mais graves problemas que as pessoas enfrentam com o tratamento psicofarmacológico é que as drogas psiquiátricas em médio e longo prazo criam uma dependência química que é eliminada com dramáticas dificuldades. Movimentos liderados por pacientes e ex-pacientes buscam encontrar soluções seguras e eficazes.

Recentemente, a revista New Scientist publicou um artigo relatando uma experiência que pode ser uma referência para nós aqui no Brasil. Trata-se de um ‘site’ holandês que vende kits para ajudar as pessoas em seu processo de ‘desmame’ das drogas psiquiátricas, e que está prestes a ser lançado na língua inglesa. (E como era o de se esperar, tal iniciativa está despertando preocupações entre os reguladores de venda de medicamentos e os médicos do Reino Unido.)

O problema que os usuários de drogas psiquiátricas enfrentam para poder deixar de ser dependentes é que esses medicamentos não são vendidos em dosagens pequenas o suficiente para permitir a diminuição gradativa do tratamento (psicofarmacológico). Isso tem levado algumas pessoas a criticar o modo como os médicos em geral as prescrevem e a buscar métodos alternativos para reduzir suas doses, como moer os comprimidos e dissolvê-los em água, ou quebrar as cápsulas e contar os grânulos. No Reino Unido, a ONG Mind aconselha as pessoas que querem parar de tomar antidepressivos com algumas técnicas, mas recomenda que os usuários recebam primeiramente conselhos de seu médico ou farmacêutico.

New Scientist

Para ajudar as pessoas a diminuir sua dose com mais facilidade, uma ONG médica holandesa, chamada Cinderella Therapeutics, cria “kits” personalizados, com comprimidos precisamente pesados, disponíveis em pacotes rotulados, em dosagens que possam ser reduzidas gradualmente ao longo de vários meses. O ‘site’ recomenda que as pessoas façam isso sob supervisão médica e que devem primeiro receber receita médica.

O artigo da New Scientist aborda alguns dos sintomas comuns que as pessoas sofrem ao buscar interromper o uso de antidepressivos, por exemplo.  Há quem se sinta como se “houvesse sido atropelado por um ônibus”, como é dito por um entrevistado. Ele teve tonturas, náuseas e dores de cabeça quando parou de tomar o antidepressivo mirtazapina. Outros que param de tomar antidepressivos relatam efeitos colaterais, como ataques de pânico ou problemas de memória e concentração.

Há que se observar que os folhetos informativos que os fabricantes de medicamentos fornecem na caixa do medicamento alertam sobre os efeitos de retirada de curto prazo, e os médicos geralmente recomendam que as pessoas reduzam sua dose lentamente. Mas mesmo que as pessoas façam isso, uma vez que elas param de tomar a menor dose de comprimidos disponíveis, algumas ainda enfrentam graves problemas. Algumas pessoas são informadas por seus médicos de que se trata de uma recaída, mesmo que isso não seja verdadeiro, o artigo nos lembra.

Uma solução, muitas vezes proposta, é tomar uma pílula a cada dois dias, mas alguns antidepressivos comuns, como a venlafaxina e a paroxetina, são quebrados pelo organismo em algumas horas, de modo que esse método não interfere que os níveis dessas drogas no sangue fiquem flutuando de um dia para o outro no organismo. Em vez desse método tradicional, as pessoas começaram a trocar ‘on line’ dicas de como diminuir a medicação.

Há quem tente cortar suas pílulas em pedaços menores, mas que descobre que a dosagem passa a ser muito variável e seus sintomas de abstinência retornam.

David Healy, um psiquiatra da Universidade Bangor (Reino Unido), diz que as experiências das pessoas com a retirada de antidepressivos podem variar muito. Ele ajuda aqueles com sintomas graves, prescrevendo formulações líquidas dos remédios, que podem ser medidas em pequenas quantidades.

O farmacêutico Paul Harder, que faz os kits para Cinderella Therapeutics, diz que uma pesquisa não publicada da instituição descobriu que cerca de 80% dos usuários conseguem parar completamente de tomar seus remédios. Outros 10% reduzem, porém o resto retorna à sua dose original. O tempo médio em que as pessoas usam o atendimento do serviço é de dois meses, ele diz, mas algumas pessoas demoram até sete meses.

Tony Kendrick da Universidade de Southampton no Reino Unido diz que outra opção para algumas pessoas é mudar os antidepressivos para fluoxetina (Prozac), que está amplamente disponível em uma formulação líquida. Mas algumas pessoas sentem que não podem mudar.

Eis aí um desafio para nós aqui no Brasil. Um desafio que clama pela colaboração dos médicos e farmacêuticos. Mas que igualmente depende da colaboração de usuários e ex-usuários. Alternativas existem, mas há a força do querer.

Leia o artigo da New Scientist, na íntegra.

Quando substitui-se antipsicóticos, não há diferença entre a interrupção imediata e a gradual

1

bruizUma revisão sistemática de uma meta-análise que acabou de ser publicada na revista Schizophrenia Bulletin não encontra diferenças significativas nos eventos adversos entre descontinuação imediata e gradual de um antipsicótico ao mudar de um antipsicótico para outro. Este resultado contradiz pesquisas anteriores, que sugerem uma redução progressiva como sendo um método mais seguro.

Os pesquisadores escrevem: “as avaliações anteriores das estratégias de comutação antipsicótica recomendam a descontinuação gradual dos antipsicóticos como um método mais seguro em geral; porém, esse endosso é baseado em evidências empíricas, mas não em dados reais de ensaios clínicos “.

Estudo com antipsicóticos

A imediata descontinuação de antipsicóticos tem sido associada com numerosos riscos, incluindo síndromes de hipersensibilidade dopamínica, síndromes de rebote relacionadas com atividade colinérgica, histaminérgica e serotonérgica, e a emergência/exacerbação de sintomas. A descontinuação gradual também vem acompanhada com consequências negativas que incluem o aumento de riscos de efeitos colaterais, que podem ser aditivos ou sinérgicos, quando utilizados em uma abordagem cruzada. Embora esta revisão feita forneça uma visão sobre a descontinuação, os participantes não permaneceram fora dos antipsicóticos, portanto, fornece apenas uma janela curta demonstrando os efeitos da descontinuação. Um estudo anterior que relatou os resultados a longo prazo da descontinuação descobriu que dos 51% dos participantes que interrompiam todas as medicações antipsicóticas, 35,3% não apresentavam recaída e apresentaram redução nos sintomas. Além disso, a descontinuação bem-sucedida foi prevista quando há melhor integração social, uma maior qualidade de vida, mais anos de educação e um melhor prognóstico no ponto de partida.

Além disso, foi anunciado uma nova pesquisa (RADAR), pesquisa essa que está sendo feita utilizando o método randomizado: entre os que recebem tratamento antipsicótico de manutenção e os que participam do grupo de redução antipsicótica. Os principais resultados que motivam essa pesquisa RADAR são: o funcionamento social, juntamente com a recaída, os efeitos colaterais, a vida laboral, e custos. No momento da redação deste artigo, ainda não foram publicados nenhum dos resultados da pesquisa RADAR.

Os autores do estudo que estamos apresentando explicam que os clínicos são mais propensos a usar estratégias de mudanças abruptas, embora a interrupção gradual dos antipsicóticos seja recomendada como sendo um método mais seguro. A presente revisão sistemática e meta-análise analisaram 9 ensaios clínicos de controle randomizados (ECAs) que comparam a descontinuação antipsicótica imediata versus a gradual, em pacientes diagnosticados com esquizofrenia. Foram incluídos nove estudos, incluindo um total de 1416 pacientes (n = 714, descontinuação imediata, e n = 702, descontinuação gradual). A duração do estudo variou de 3 a 12 semanas. Os participantes do estudo estavam em risperidona, olanzapina ou haloperidol no início dos estudos, e foram transferidos para outro antipsicótico (risperidona, olanzapina, ziprasidona, aripiprazol, iloperidona ou clozapina) na conclusão dos estudos. O afunilamento foi completado em 1 (n = 3), 2 (n = 4), 3 (n = 2) e 4 (n = 1) semanas. Os estudos também variaram em suas estratégias para iniciar o novo antipsicótico, alguns usando iniciação imediata (n = 8) e outros usando abordagens graduais ou de espera e gradual. Os resultados da análise não mostram diferenças significativas entre os grupos imediatos e graduais; quando se compara o número de pacientes que descontinuaram, a psicopatologia, os sintomas extrapiramidais, e o número de pacientes que sofreram algum Evento Adverso (TEAEs, acatisia, ansiedade, diarreia, dor de cabeça, insônia, náusea e sonolência). No entanto, o grupo imediato tendeu a ter um resultado menos favorável na insônia.

Mais especificamente, ao mudar para a olanzapina, foram encontradas diferenças significativas na insônia a favor da descontinuação gradual. Quando os participantes foram transferidos para ziprasidona, houve diferenças significativas nos escores de sintomas extrapiramidais na Escala Simpson-Angus (SAS) em favor da descontinuação gradual. Por outro lado, houve diferenças significativas na sonolência em favor da descontinuação imediata. Por último, embora não estatisticamente significativo, os escores de sintomas extrapiramidais na Escala de Movimento Involuntário Anormal (AIMS) favoreceram a descontinuação gradual. No geral, embora houvesse uma tendência para melhores resultados com descontinuação gradual, as diferenças não foram fortemente significativas entre as duas estratégias.

Depois de examinar os nove ensaios clínicos randomizados incluídos neste estudo, não foi encontrada pelos pesquisadores diferença significativa entre as estratégias de descontinuação antipsicótica nos resultados clínicos. Os autores chamam a atenção para o fato de que os achados estão em desacordo com inúmeras revisões de pesquisas a respeito de estratégias de interromper o uso de tratamento com antipsicóticos recomendando a descontinuação gradual.

A evidência significativa e bem conhecida dos efeitos colaterais negativos que acompanham os medicamentos antipsicóticos, combinada com a falta de achados significativos nesta revisão, chama a atenção para a importância e os próximos resultados do estudo RADAR.

****

Takeuchi, H., Kantor, N., Uchida, H., Suzuki, T., & Remington, G. (2017). Immediate vs gradual discontinuation in antipsychotic switching: a systematic review and meta-analysis. Schizophrenia bulletin43(4), 862-871.  Clique aqui para ler o artigo na íntegra.

O POSICIONAMENTO CRÍTICO DA ONU SOBRE A PSIQUIATRIA: ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O MAIS RECENTE RELATÓRIO

0

paulo-amarantefernando_foto_definitiva

Após extensivas consultas feitas no campo da saúde mental, incluindo representantes de usuários e de ex-usuários dos serviços de saúde mental, o Relator Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Saúde, Dainius Pūras produziu um importantíssimo relatório sobre o tema. Essencialmente, o documento aborda a questão de como os direitos têm sido reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nos serviços de saúde mental, com vistas à promoção e proteção dos sujeitos em nossas sociedades.

Estamos apresentando o Relatório para quem tiver interesse em ler na íntegra, o que é fortemente recomendado. O que iremos fazer aqui é destacar alguns aspectos importantes, e assim utilizamos aspas. Acreditamos que desta forma estamos respeitando o conteúdo do Relatório e deixando ao leitor tempo para uma reflexão autônoma.

O Relator Especial considera que as situações de crise não devem ser tratadas como condição das pessoas individualmente, mas como uma crise produzida por obstáculos sociais que ameaçam os direitos das pessoas. O Relator Especial considera ainda que são três os obstáculos maiores aos direitos à saúde mental das pessoas: o domínio do modelo biomédico, as assimetrias de poder e o uso tendencioso das evidências.

O domínio do modelo biomédico

No que diz respeito a este tópico, o Relatório reconhece “que os serviços de saúde mental têm sido governados há décadas por um paradigma reducionista biomédico”.  Tal paradigma tem contribuído para a sistemática violação dos direitos, através da exclusão, da negligência, da coerção e do abuso das pessoas com dificuldades “intelectuais, cognitivas, psicossociais, bem como para aquelas com autismo e as que se desviam das normas culturais, sociais e políticas prevalecentes”.

Ao estarem dominadas pelo paradigma reducionista biomédico no campo da saúde mental, as políticas públicas negligenciam o contexto social, dando pouca importância para as precondições que levam ao empobrecimento da saúde mental de suas nações, tais como a violência, a falta de poder de parcelas significativas da sociedade, a exclusão social e o isolamento, a ruptura das comunidades, as sistêmicas desigualdades socioeconômicas e as péssimas condições no trabalho e nas escolas.  Dá-se muita atenção às perdas econômicas que os chamados transtornos mentais acarretam para a sociedade, e muito pouca atenção para os contextos sociais em que tais transtornos aparecem.

A esse respeito, o Relatório afirma que “embora seja incontestável que milhões de pessoas em todo o mundo estejam mal atendidas, a abordagem atual do ‘fardo da doença’ enraíza firmemente a crise global da saúde mental no modelo biomédico, muito estreito para ser proativo e responsivo ao tratamento de problemas de saúde mental em nível nacional e global. O foco no tratamento de condições individuais conduz inevitavelmente a arranjos de políticas, sistemas e serviços que criam resultados estreitos, ineficazes e potencialmente prejudiciais. Ele prepara o caminho para uma maior medicalização da saúde mental global, evitando que os formuladores de políticas abordem os principais fatores de risco e proteção que afetam a saúde mental para todos. ”

O Relatório deixa claro que o que nos tem sido vendido é o mito de que as melhores soluções para enfrentar os desafios de saúde mental são os medicamentos além de outras intervenções biomédicas. Textualmente o Relatório afirma: “o modelo biomédico considera aspectos e processos neurobiológicos como a explicação para as condições mentais e a base das intervenções. Acredita-se que as explicações biomédicas, como o ‘desequilíbrio químico’, aproximariam a saúde mental da saúde física e da medicina geral, eliminando gradualmente o estigma. No entanto, isso não aconteceu, e muitos dos conceitos que sustentam o modelo biomédico em saúde mental não têm sido confirmados por pesquisas. As ferramentas de diagnóstico, como a Classificação Internacional de Doenças (CID) e o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM), continuam a expandir os parâmetros do diagnóstico individual, muitas vezes sem uma base científica sólida. Críticos advertem que a hiperinflação de categorias de diagnóstico invade a experiência humana em uma maneira que pode levar a uma estreita aceitação da diversidade humana”.

A partir do acúmulo de evidências científicas que demonstram a ausência de suporte do modelo de doença da Psiquiatria, o Relatório reconhece que campo da saúde mental continua a ser excessivamente medicalizado e dominado pelo modelo biomédico reducionista, com o apoio da psiquiatria e da indústria farmacêutica. “A maioria dos investimentos em saúde mental em países de baixa, média e alta renda financiam desproporcionalmente os serviços com base no modelo biomédico da psiquiatria”.  Também existe uma tendência para o tratamento de primeira linha com medicamentos psicotrópicos, “apesar de acumular evidências de que eles não são tão eficazes como se pensava anteriormente, que produzem efeitos colaterais nocivos e, no caso dos antidepressivos, especificamente para depressão leve e moderada, o benefício experimentado pode ser atribuído a um efeito placebo. Apesar desses riscos, os medicamentos psicotrópicos são cada vez mais usados em países de alta, média e baixa renda em todo o mundo”.

Assimetrias de Poder

No que diz respeito às assimetrias de poder, o relatório continua a observar que “os defensores do paradigma biomédico, em particular a psiquiatria biológica apoiada pela indústria farmacêutica, são a influência dominante. As estratégias nacionais de saúde mental tendem a refletir agendas biomédicas e a obscurecer os pontos de vista e a participação significativa da sociedade civil”. Esse viés biomédico leva à desconfiança de muitos usuários e ameaça e prejudica a reputação da profissão psiquiátrica e dos serviços. O modelo biomédico não conta com suporte científico. Em suma, o poder biomédico mina os princípios de cuidados holísticos, a regulamentação para a saúde mental, a pesquisa interdisciplinar inovadora e independente, e a formulação de prioridades baseadas em direitos em políticas de saúde mental.

A relação individual entre profissional psiquiátrico e usuário também pode ser utilizada para reforçar o modelo biomédico. “O desequilíbrio do poder reforça o paternalismo e até abordagens patriarcais”. A assimetria entre profissionais e usuários retira o poder dos usuários e prejudica seu direito de tomar decisões sobre sua saúde, criando um ambiente onde as violações dos direitos humanos podem ocorrer. Este uso sistemático de assimetrias de poder prospera, em parte, porque os estatutos jurídicos muitas vezes compelem a profissão e obrigam o Estado a tomar medidas coercitivas.

 O uso tendencioso das evidências

No que diz respeito ao uso tendencioso das evidências, o Relatório observa que “a base de evidências para a eficácia de certos medicamentos psicotrópicos é cada vez mais desafiada, tanto da perspectiva científica quanto a da experiência”. Ao mesmo tempo, a pesquisa vem acumulando suporte de evidências que mostram o papel fundamental dos serviços psicossociais, orientados para a recuperação e alternativas não coercitivas. Há preocupações crescentes sobre a prescrição excessiva e o uso excessivo de medicamentos psicotrópicos nos casos em que não são necessários. Devido ao viés biomédico em saúde mental, existe um atraso preocupante entre evidências emergentes e como são usadas para informar a prática. ”

Existem vários motivos para esse viés de pesquisa, alguns dos quais são mencionados no relatório. “Há uma longa história de empresas farmacêuticas que não revelam resultados negativos de testes de drogas, o que tem obscurecido a base de evidências. “ A pesquisa científica em saúde mental continua a sofrer com a falta de financiamento diversificado e continua focada no modelo neurobiológico. A psiquiatria acadêmica tem influência extraordinária, informando os formuladores de políticas sobre a alocação de recursos e princípios orientadores para os serviços de saúde mental. Tem limitado sua agenda de pesquisa aos determinantes biológicos da saúde mental. Também há implicações para o ensino, na medida em que “o viés biomédico em saúde mental domina o ensino nas escolas de medicina, restringindo a transferência de conhecimento para a próxima geração de profissionais. “

Como essa realidade pode ser mudada?

Como tudo isso pode ser alterado? Deve haver um forte enfoque ético. “Os serviços de saúde mental devem respeitar a ética e os direitos (incluindo “primeiro, não prejudicar”), a escolha, o controle, a autonomia, a vontade, a preferência e a dignidade. O excesso de segurança na farmacologia, as abordagens coercitivas e o tratamento hospitalar são incompatíveis com “o não fazer mal”, bem como os direitos humanos. O abuso de intervenções biomédicas compromete o direito a cuidados de qualidade em serviços de saúde mental”.

O Relatório faz alguns comentários específicos sobre o tratamento. “As intervenções e o apoio psicossocial, e o não aos medicamentos, devem ser a opção de tratamento de primeira linha para a maioria das pessoas que sofrem problemas de saúde mental. Infelizmente, tais intervenções tendem a ser vistas como luxo, em vez de essenciais, e, portanto, não possuem investimentos sustentáveis.  Na maioria dos casos de depressão leve e moderada, a ‘espera vigilante’, o suporte psicossocial e a psicoterapia devem ser os tratamentos de linha de frente. Não é um direito à saúde prescrever medicamentos psicotrópicos apenas porque intervenções efetivas de saúde pública e psicossocial não estão disponíveis. Existem argumentos convincentes de que o tratamento forçado, inclusive com medicamentos psicotrópicos, não é eficaz, apesar do uso generalizado. O suporte dos pares, quando não comprometido, é parte integrante dos serviços baseados em recuperação. O direito à saúde exige que os cuidados de saúde mental se aproximem dos cuidados primários e da medicina geral, integrando a saúde mental com a saúde física”.

Obrigações

O Relatório lembra que já há um quadro jurídico vinculativo para o direito ao mais alto padrão de saúde mental. Como é o previsto no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. E já há um conjunto de normas legais já estabelecidas em tratados internacionais, entre outros, pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Criança.  Isso implica que os Estados têm a obrigação de respeitar, proteger e cumprir o direito à saúde mental nas leis, regulamentos, políticas, medidas orçamentárias, programas e outras iniciativas nacionais.

Entre as recomendações de como implementar tais direitos tornando-os uma realidade, o Relatório afirma que “os Estados devem usar indicadores e pontos de referência adequados para monitorar o progresso, inclusive no que se refere à redução e eliminação da coerção médica. Os indicadores devem ser desagregados, entre outros, por sexo, idade, raça e etnia, deficiência e status socioeconômico. “

O Relatório denuncia que menos do que 10% dos gastos com a saúde física são destinados à saúde mental, o que representa um enorme descompasso frente à realidade. Algumas obrigações podem e devem ser implementadas imediatamente, incluindo certas liberdades e obrigações básicas. “As obrigações básicas incluem a elaboração de uma estratégia nacional de saúde pública e acesso não discriminatório aos serviços (…) o fim do tratamento coercitivo e o acesso igualitário aos serviços de saúde mental baseados em direitos, incluindo a distribuição equitativa de serviços na comunidade. ”

Cooperação Internacional

Trata-se de um assunto que é de grande interesse para sociedades como a brasileira.  O Relatório afirma com todas as letras que “os Estados de renda superior têm o dever particular de prestar assistência para o direito à Saúde, incluindo saúde mental, em países de baixa renda”.  Mas não é qualquer tipo de ajuda, na medida em que a cooperação para o desenvolvimento baseada em direitos deve “apoiar a promoção equilibrada da saúde e intervenções psicossociais e outras alternativas de tratamento, entregues na comunidade para proteger eficazmente os indivíduos de cuidados clínicos discriminatórios, arbitrários, excessivos, inadequados e / ou ineficazes”.  Isso quer dizer que a cooperação internacional não deve reforçar o modelo biomédico hoje dominante, quer dizer, não deve “priorizar a melhoria dos hospitais psiquiátricos existentes e das instalações para cuidados prolongados que são inerentemente incompatíveis com os direitos humanos”.

Vem se tornando senso-comum que a agenda global para a saúde mental deva se concentrar na ansiedade e depressão. É muito comum se ouvir que frente ao grande número de pessoas diagnosticáveis com algum “transtorno mental”, os serviços carecem de recursos adequados, desde a capacidade para diagnosticar à disponibilização de leitos hospitalares e medicamentos psiquiátricos. O que não é o recomendável, deixa bem claro o Relatório. Porque tal agenda “pode refletir a incapacidade de incluir as pessoas que mais precisam de mudanças baseadas em direitos humanos nos serviços de saúde mental. Tais agendas seletivas podem reforçar práticas baseadas na medicalização de respostas humanas e abordar de forma inadequada questões estruturais, como pobreza, desigualdade, estereótipos de gênero e violência. “

E quanto ao setor privado? O Relatório deixa bem claro a sua posição, ao afirmar que “os Estados têm a obrigação de proteger contra danos por parte de terceiros, incluindo o setor privado, e devem trabalhar para assegurar que os atores privados apoiem a realização do direito à saúde mental, ao mesmo tempo em que compreendam plenamente seu papel e deveres a esse respeito. “

Participação

Frente às assimetrias de poder, a realização dos direitos humanos em saúde apenas será possível na medida em que houver a participação de todos, “particularmente aqueles que vivem na pobreza e em situações de vulnerabilidade”. Participação nas tomadas de decisões no nível legal, das políticas públicas, na comunidade e nos serviços de saúde.  Quanto aos serviços de saúde, eles devem garantir aos usuários os direitos de “exercício à autonomia e à participação de forma significativa e ativa em todos os assuntos que lhes concernem, o direito a tomar as suas próprias escolhas a respeito da saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, ao tratamento, com o suporte apropriado onde é necessário. ”

Ao contrário de se pensar em direitos humanos em saúde mental como iniciativas vindas de cima para baixo, o Relatório enfatiza as diversas iniciativas dos movimentos de usuários e de ex-usuários e sobreviventes da psiquiatria nas últimas décadas. O que implica que se deve dar “apoio às iniciativas de autodefesa, às redes de apoio compostas por pares, e outras iniciativas de defesa de direitos lideradas por usuários, bem como novos métodos de trabalho, como a coprodução, que asseguram a participação representativa e significativa no desenvolvimento e fornecimento de serviços de saúde. ” Merecem destaques as experiências de gestão das prestações de serviços em saúde mental realizadas por ex-usuários e sobreviventes da psiquiatria, por sua experiência inestimável no lidar com os problemas.

A não-discriminação

“O direito internacional dos direitos humanos garante o direito à não discriminação no acesso e prestação de serviços de saúde mental e os determinantes subjacentes à saúde. O direito à saúde mental também depende da igualdade e da não discriminação no gozo de todos outros direitos humanos que podem ser considerados um determinante subjacente”.

O Relatório aponta as diversas formas de discriminação. Como as de gênero, racial e étnica. “A discriminação e a desigualdade são uma causa e uma consequência de uma má saúde mental, com implicações a longo prazo para a morbidade, mortalidade e bem-estar social. Discriminação, estereótipos prejudiciais (incluindo gênero) e estigma na comunidade, família, escolas e local de trabalho desativam relacionamentos saudáveis, conexões sociais e os ambientes de apoio e inclusivos que são necessários para a boa saúde mental e o bem-estar de todos. Do mesmo modo, atitudes discriminatórias que influenciam políticas, leis e práticas constituem barreiras para aqueles que necessitam de apoio e / ou tratamento emocional e social”.

O papel da Psiquiatria é incontornável.  “Os diagnósticos mentais têm sido usados para patologizar identidades e outras diversidades, incluindo tendências para medicalizar a miséria humana, como a patologização das pessoas lésbicas, gay, bissexual, transgênero e pessoas intersexuais, reduzindo suas identidades a doenças”.

O Relatório deixa bem claro como entender a diversidade. “A diversidade deve ser amplamente compreendida, reconhecendo a diversidade da experiência humana e a variedade de maneiras pelas quais as pessoas processam e experimentam a vida. Respeitar essa diversidade é crucial para acabar com a discriminação. Movimentos dirigidos por pares e grupos de autoajuda, que ajudam a normalizar experiências humanas que são consideradas não convencionais, contribuem para sociedades mais tolerantes, pacíficas e justas”.

Prestação de contas

O Relatório reconhece que a responsabilização pelo gozo do direito à saúde mental depende de três elementos: (a) monitoramento; (B) revisão independente e não independente, como por órgãos judiciais, quase judiciais, políticos e administrativos, bem como por mecanismos de responsabilidade social; e (C) e reparações.  Quem presta serviços de saúde mental não pode estar isento de deveres e responsabilizados por violações de direitos.  O Relatório adverte a especial preocupação se dirige “à crescente prevalência de tribunais de saúde mental, que, ao invés de fornecer um mecanismo de responsabilização, legitimam a coerção e isolam mais ainda as pessoas dentro dos sistemas de saúde mental para o acesso à justiça (…) Os indivíduos geralmente têm acesso limitado, incluindo mecanismos de responsabilidade que sejam independentes. Isso pode surgir porque são considerados com falta de capacidade legal e com conhecimento limitado de seus direitos”.

A questão do consentimento esclarecido merece destaque, e a apresentamos na íntegra tal como está no documento:

  • “O consentimento informado é um elemento central do direito à saúde, tanto como uma liberdade e uma salvaguarda integral para o seu gozo. O direito de consentimento para tratamento e hospitalização inclui o direito de recusar o tratamento. A proliferação da legislação paternalista em saúde mental e a falta de alternativas tornaram a coerção médica comum. “
  • A justificação para o uso da coerção baseia-se geralmente em “necessidade médica” e “periculosidade”. Esses princípios subjetivos não são suportados pela pesquisa e sua aplicação está aberta a ampla interpretação, levantando questões de arbitrariedade (…) O ‘Perigo’ é muitas vezes baseado em preconceitos inapropriados, e não em evidências científicas. Existem também argumentos convincentes de que o tratamento forçado, inclusive com medicamentos psicotrópicos, não é efetivo, apesar do uso generalizado. “
  • As decisões de usar coerção são exclusivas aos psiquiatras, que trabalham em sistemas que não possuem ferramentas clínicas para tentar opções não coercitivas. A realidade em muitos países é que as alternativas não existem e a dependência do uso da coerção é o resultado de uma falha sistêmica para proteger os direitos dos indivíduos.”
  • A coerção na psiquiatria perpetua desequilíbrios de poder nos relacionamentos de cuidados, provoca desconfiança, exacerba o estigma e a discriminação e faz com que muitos se afastem, com medo de procurar ajuda nos principais serviços de saúde mental. ”
  • Considerando que o direito à saúde agora é compreendido no âmbito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, é necessária uma ação imediata para reduzir radicalmente a coerção médica e facilitar a mudança para o fim de todo tratamento psiquiátrico forçado e confinamento. A este respeito, os Estados não devem permitir que terceiros forneçam consentimento em nome de pessoas com deficiência em decisões que digam respeito à sua integridade física ou mental; em vez disso, o apoio deve ser providenciado em todos os momentos para tomar decisões, inclusive em situações de emergência e de crise. “
  • O Relator Especial toma nota das preocupações de várias partes interessadas, em particular nas comunidades médicas, em relação à proibição absoluta de todas as formas de medidas não consensuais. “
  • Ele reconhece que sua redução radical e eventual eliminação é um processo desafiador que levará tempo. No entanto, existe um consenso compartilhado sobre a prevalência inaceitavelmente alta de violações dos direitos humanos dentro de configurações de saúde mental e essa mudança é necessária. Em vez de usar argumentos legais ou éticos para justificar o status quo, são necessários esforços concertados para abandoná-lo. A falta de medidas imediatas para tal mudança não é mais aceitável e o Relator Especial propõe cinco ações deliberadas, direcionadas e concretas da seguinte forma:
    • Principais alternativas à coerção na política com vista à reforma legal;
    • Desenvolver uma cesta bem abastecida de alternativas não coercivas na prática;
    • Desenvolver uma política para reduzir radicalmente as práticas médicas coercivas, com vista à sua eliminação, com a participação de diversas partes interessadas, incluindo titulares de direitos;
    • Estabelecer um intercâmbio de boas práticas entre e dentro dos países. “

Conclusões

 – A área da saúde mental tem sido negada com frequência, e quando recebe recursos em geral estes são direcionados para modelos ineficazes e daninhos.

– A sistemática violação dos direitos humanos é algo inaceitável.

– Os obstáculos maiores para a péssima situação da saúde mental não são os “transtornos mentais”, mas são aqueles apresentados pelo sistema assistencial hoje dominante.

– É urgente que se abandone o modelo médico que visa curar indivíduos, ao tomar como alvo os “transtornos”.

– E que se apoie o desenvolvimento de alternativas de natureza psicossocial.

O Relatório na íntegra você pode acessar clicando aqui.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antipsiquiatria – Diz O Que ?

0

bburstowAo longo dos últimos dois anos, escrevi vários artigos destinados a esclarecer o termo / fenômeno “antipsiquiatria”. Para citar apenas alguns desses meus artigos, “Sobre a Antipsiquiatria“, “Antipsiquiatria Revisada” e “Lutando contra a Psiquiatria Institucional com o ‘Modelo de Desgaste ‘ ”). Este artigo é o próximo dessa série.

As questões aqui abordadas incluem: o que exatamente significa “antipsiquiatria”? E havendo mais de um significado ou referência, como você escolhe entre eles? O termo é útil ou irremediavelmente ambíguo? Pode haver antipsiquiatria sem ser abolicionista? A antipsiquiatria participa de graus, como alguém ser “muito antipsiquiatra” ou “um pouco antipsiquiatra”? E se alguém quiser acabar  com a coerção psiquiátrica apenas, isso o qualifica como antipsiquiatra?

No processo de oferecer o esclarecimento que está ao meu alcance , farei uma imersão dentro e fora da história, pois não podemos chegar a um acordo sobre este fenômeno ou se desembaraçar do emaranhado de confusões que o cercam sem investigar os desenvolvimentos históricos. Gostaria apenas de acrescentar que estou escrevendo este artigo não apenas como um teórico da antipsiquiatria, mas como alguém envolvida ativamente no ativismo antipsiquiátrico há quarenta anos.

Mais uma consideração prévia quero fazer: ao longo do texto irei escrever “antipsiquiatria” exatamente como até hoje tenho feito. Para saber mais sobre a questão do termo, veja o final deste artigo.

Para começar, o termo “antipsiquiatria” (expresso inicialmente como “anti-psiquiatria”) é uma expressão que foi inventada por um colega de Ronald Laing, Dr. David Cooper, em 1967[1] . Esse termo foi rapidamente recuperado pelas várias pessoas que conviviam com o Laing. Com o termo o que o grupo laingiano pretendia era uma abordagem diferente para “ajudar” as pessoas com os chamados problemas psiquiátricos, reformatando-os como sendo intrinsecamente problemas sociais, políticos e psicológicos, ao em vez de médicos. A filosofia existencial de Jean-Paul Sartre foi fortemente apropriada por eles [2]. Laing e Cooper também exploravam na época (e em diferentes graus) como é viver em uma comunidade terapêutica, onde as pessoas recebiam, pelo menos hipoteticamente, ajuda na sua viagem pela loucura. E é nessa mesma época que Cooper introduziu o conceito “anti-hospitalar”, assim como o conceito de “antipsiquiatria”.

Cooper era muito mais ativista do que Laing e pensava muito em termos de movimentos sociais. No entanto, o que é evidente é que mesmo com Cooper, apesar de sua legendária crítica  aos “especialistas”, o movimento que ele discutia era o movimento profissional – não um movimento vindo dos próprios oprimidos. O que também é relevante é que, apesar de quão profundamente ele se sentisse antipsiquiatra, a sua oposição à psiquiatria era à sua maneira uma oposição muda; e mais ainda, ela foi se silenciando ao longo do tempo (embora, reconhecidamente, Cooper avançasse e recuasse); e ele acabou se tornando tão “moderado” que até mesmo abandonou o termo antipsiquiatria (como pode ser visto nas memórias informativas de Stephen Ticktin “Brother Beast-A Personal Memoir of David Cooper “), quando ele voltou ao termo” não-psiquiatria ” e, alternativamente,” psiquiatria não médica “.

Agora, no que diz respeito a este último termo, tive uma conversa interessante com Ticktin sobre isso, há menos de um mês atrás, que ocorreu aproximadamente da seguinte maneira:

Ticktin: Mais tarde, David abandonou a palavra “antipsiquiatria”, usando, em vez disso, o termo mais político: “psiquiatria não médica”.

Burstow: Isso não soa para mim como mais político. Parece menos político.

Ticktin: Você acha que é menos político?

Burstow: Veja o termo. Não está anunciando oposição à psiquiatria ou mesmo à psiquiatria biológica, é simplesmente levar em conta uma forma diferente de prática. (Conversa pessoal, reunião CAPA, 3 de junho de 2017).

Irei comentar essa curiosa mudança mais tarde. Por enquanto, deixo os próprios leitores refletirem sobre como podemos entender isso.

Então, em uma sequência bastante curta, a “antipsiquiatria” (e sim, ainda soletrada por Cooper como “anti-psiquiatria”) tornou-se o léxico aceito pelos acadêmicos. No entanto, em vez de ter um significado claro, tornou-se algo como categoria de “um saco onde cabem todos”, com o termo sendo aplicado às posições de um grande número de estudiosos que criticavam substancialmente a psiquiatria, embora sob perspectivas muito diferentes. Exemplos são os teóricos tão variados como Thomas Szasz, nos EUA, e Michel Foucault, na França. O primeiro, um psiquiatra libertário de direita, que demonstrou que o próprio conceito de “doença mental” era um mito, o segundo, um filósofo francês que abordou a profissão / prática como um exemplo paradigmático do que ele chamava de “conhecimento-poder”[3]. Significativamente, enquanto que quase todos os teóricos – cujas críticas à psiquiatria impactavam fortemente nos anos 1960, 1970 e 1980, por exemplo, Szasz, Foucault, Goffman, Becker – eram agrupados sob o termo “antipsiquiatria”, e enquanto todos eles influenciaram muito outros que assim se identificavam, nenhum desses teóricos  assumiu pessoalmente o termo antipsiquiatria. Na verdade, foi o contrário: em um dos últimos livros de Thomas Szasz (2009 [4]), ele atacou especificamente o que ele via como antipsiquiatria, não apenas simplesmente se afastando dela, mas descartando-a como sendo profundamente um “charlatanismo ao quadrado”.

Dito isto, há ainda um outro público – que eu sugiro ser o mais importante – associado à palavra “antipsiquiatria”. Ele é composto por sobreviventes psiquiátricos e seus aliados, pessoas que se veem como parte de um movimento social, cujo objetivo primordial é abolir a psiquiatria. O que distingue esses ativistas (e para ser claro, eu me considero entre eles) dos indivíduos e grupos discutidos até o momento são os seguintes princípios:

  1. Eles invariavelmente combinam uma posição médica (uma posição sobre o que a ciência mostra e não mostra sobre o que está errado com as reivindicações alegadamente médicas que estão sendo apresentadas) com uma posição epistemológica (uma posição sobre como conhecemos e sobre a própria natureza do conhecimento) e uma posição ética (o que, à luz do que é revelado como conhecimento, a sociedade é chamada a fazer).
  2. Eles se identificam como parte de um movimento social libertário.
  3. A experiência e o ponto de vista dos sobreviventes – e não dos profissionais – são considerados como sendo o fundamental.
  4. A psiquiatria é teorizada como um falso e opressor campo da medicina.
  5. O compromisso geral é livrar o mundo desta opressão – isto é, livrar o mundo da psiquiatria – assim como as feministas estão empenhadas em livrar o mundo do sexismo.
  6. A antipsiquiatria não é simplesmente um rótulo dado aos membros deste movimento para os distinguir dos outros. É ao mesmo tempo uma forma de auto-identidade e um chamado para que todos abracem ativamente esse modo de ser.

Esta posição e essa identidade vem se expressando em várias publicações do movimento, desde o início dos anos 80  (veja, por exemplo, as várias questões da revista totalmente antipsiquiátrica com sede em Toronto, a Phoenix Rising, com o subtítulo  “a voz dos psiquiatrizados”), que apresentou, entre outras coisas, as vozes de sobreviventes icônicos como a voz de Don Weitz. Enquanto se baseiam fortemente nos fundamentos teóricos fornecidos por escritores como Szasz – e orientados significativamente sobre a experiência vivida, bem como a teorização de sobreviventes psiquiátricos em todos os lugares, sob a bandeira da antipsiquiatria – o que todos esses ativistas fizeram e continuam a fazer ao longo dos anos é fundamentalmente criticar a psiquiatria e lutar por sua abolição. Isso tem sido também um componente importante em revistas de sobreviventes que combinam antipsiquiatria e outras vozes críticas, por exemplo, Madness Network News.

Alguns pontos que sobressaem e distinções importantes: embora dificilmente seja idêntica ao movimento do sobrevivente psiquiátrico, a antipsiquiatria praticada pelas pessoas discutidas acima se conecta profundamente com o movimento dos sobreviventes. Ao mesmo tempo, também é distinta. Conforme discutido por Shaindl Lin Diamond em sua tese inovadora[5], alguns membros do movimento dos sobreviventes são antipsiquiátricos, enquanto outros não o são. Do mesmo modo, embora os sobreviventes psiquiátricos constituam a maioria do movimento da antipsiquiatria, o movimento não se restringe a eles.

O que diz respeito àquela que é de longe a maior e a mais antiga organização antipsiquiátrica e rede social do mundo a respeito, Coalition Against Psychiatric Assault (CAPA), é instrutivo se notar. Comprometidos com a abolição da psiquiatria e orientados por um ponto de vista dos sobreviventes, a organização está aberta a todos que assumam uma posição abolicionista, independentemente da sua posição social. A este respeito, peço que se dê atenção a estas palavras de inclusão que está na declaração da sua missão institucional: “A CAPA é uma coalizão de pessoas comprometidas com o desmantelamento do sistema psiquiátrico e a construção de um mundo melhor. Radical e visionária, somos formados por ativistas, sobreviventes psiquiátricos, dramaturgos, acadêmicos e profissionais “. Como lá, as organizações de antipsiquiatria refletem as operações de grupos de movimentos sociais, como as organizações marxistas, por exemplo, em que a base da unidade é o conjunto de princípios e compromissos comuns, e não a posição social das pessoas. E aqui este movimento difere tanto do movimento dos sobrevivente quanto do movimento dos loucos (ao qual, mais uma vez, está intrinsecamente conectado).

Mais um pouco de contexto: contrastando com outros graus interagindo com os vários grupos discutidos até agora – quer dizer, tanto aqueles que se auto-identificam como antipsiquiátricos como aqueles que são chamados por terceiros de antipsiquiátricos -, há ainda outros que ninguém vê como antipsiquiatras, mas que, no entanto, argumentam / lutam por algo melhor do que o que existe, que se veem como parte de um movimento social. Não localizo o movimento de sobreviventes nesta categoria, pois o movimento de sobreviventes tem sua própria entidade especial e abrange a maioria dos outros movimentos. Pivô aqui são movimentos de profissionais, com os quais os sobreviventes geralmente sentem que têm algo em comum e trabalham juntos. Um exemplo é “o movimento para uma Psiquiatria Democrática”, que se originou com Basaglia na Itália e é exemplificado atualmente pelo trabalho da Asylum Magazine na Inglaterra. Um exemplo ainda mais formidável é a rede muito maior de teóricos, sobreviventes e ativistas que se identificam como “psiquiatria crítica”, com o pessoal da “psiquiatria democrática”  em grande parte agora sendo subsumido sob o termo “psiquiatria crítica”. O mandato principal desses grupos pode ser descrito como “reforma da saúde mental” ou “reforma psiquiátrica”.

O contexto agora estando claro, retornemos às perguntas com as quais este artigo começou: então o que significa “antipsiquiatria”? Esse termo é útil?

De uma perspectiva muito limitada, certamente parece ambíguo, pois o termo tem sido usado de diferentes maneiras por diferentes atores sociais. Dito isto, gostaria de seguir uma linha de raciocínio diferente aqui. Por um lado, a palavra evoluiu, e quando uma palavra evolui não a comparamos ao significado original e, com base na diferença entre eles, reivindicamos a sua ambiguidade. Fazer isso aqui seria um pouco como dizer que o significado da palavra “datilógrafo” é ambíguo, porque inicialmente o termo se referia à pessoa que fazia uso de uma máquina de escrever. O que também é significativo, o inventor original e o promulgador da palavra não dão conta do que ‘datilógrafo’ significa hoje em dia.

Para irmos mais além, as palavras podem ter significado e relevância sob várias bases diferentes. Uma – e uma importante – é a base prática. As perguntas a serem feitas, a este respeito, incluem: um determinado uso da palavra distingue claramente o fenômeno em questão de fenômenos separados, embora relacionados? E estabelece uma direção? O que é claro é que os ativistas que se proclamam antipsiquiatras estão usando o termo de uma forma que estabelece uma direção- abolição – e no processo, criamos um nicho que distingue muito bem  a antipsiquiatria da ‘psiquiatria crítica’. Como tal, a antipsiquiatria tem um “significado evoluído” que é ambivalente e útil. O que é igualmente relevante, de todos os usos do termo que surgiram ao longo dos anos, esse é o único – e apenas o único – e que se afirma como “linguisticamente correto”. Como assim?

Examinemos de perto a palavra “antipsiquiatria”. É um termo complexo composto de duas partes, a primeira das quais define a orientação a ser levada pela segunda. Então há “anti”, o que significa “contra”, e há “psiquiatria”, cujo significado, infelizmente, todos sabemos muito bem qual é. “Anti” identifica a orientação para a psiquiatria. Por conseguinte, ser antipsiquiatra, pela própria lógica de como funciona a linguagem, significa ser contra a psiquiatria. Ser “contra”, notem, é manifestamente diferente de “reformar a psiquiatria”, ou “modificá-la” ou “inventar uma nova versão”; o que, em essência, é o que a ‘psiquiatria crítica’ representa. Seguem-se duas conclusões. A primeira é que os ativistas que estão usando o termo “antipsiquiatria” o usam para designar uma posição abolicionista, que é o que a grande maioria dos ativistas da antipsiquiatria estão fazendo hoje, portanto estão usando o termo corretamente. O segundo, e já abordamos isso, é que não é uma palavra ambígua, mas uma palavra com um significado claro e preciso. Ser antipsiquiatra, em poucas palavras, deve ser estar “contra a psiquiatria” – é estar empenhado em se livrar dela.

Como enquadrar esta realidade com o início do uso histórico do termo? Reconhecendo que as palavras mudam de significado. Além disso, no entanto, ao aceitar que, quando Cooper inventou o termo “antipsiquiatria”, o que ele fez, com efeito, foi criar um termo “inapropriado” – pois, enquanto ele tinha problemas com a psiquiatria, estritamente falando ele não era “contra a psiquiatria”. O termo foi rapidamente aceito sem que ninguém comentasse ou parecesse notar o nome inapropriado. O que resultou dessa aceitação do termo é que, durante muito tempo, todos com uma crítica substancial da psiquiatria foram reunidos sob esta palavra. Vieram os ativistas modernos – e os sobreviventes sendo absolutamente fundamentais para essa mudança – e pouco a pouco foram certeza produzindo uma enorme reviravolta. Pela primeira vez, o significado linguístico da palavra e para o que ela está sendo usada para designar realmente se uniram! O resultado? Embora o termo “antipsiquiatria” tenha entrado no nosso vocabulário político como um nome equivocado, o que se materializa na plenitude do tempo é uma palavra útil, uma palavra associada a uma posição clara e a uma agenda muito importante. Consequentemente, não há dúvida sobre sobre a precisão do significado da palavra.

Aqui estão as respostas para a maioria das questões colocadas no início deste artigo. Sim, o termo é útil. Não, ele não é ambíguo. Sim, é claro qual o uso a seguir. Não, não está sujeito a graus. Com respeito a este último aspecto, para ser clara, é óbvio que se pode ter uma forte crítica à psiquiatria sem querer livrar-se dela – e nesse caso se é da “psiquiatria crítica” e não da “antipsiquiatria”. O mesmo é verdade para as pessoas que se chamam de antipsiquiatras, quando, por exemplo, na prática tomam a posição de que eles só querem se livrar da psiquiatria não consensual, e que como tal isso já seria um avanço importante. Para entender por que estou dizendo isso, considere termos políticos comparáveis em outras áreas – termos como “antirracismo” e “anti-sexismo”. Ninguém, por exemplo, diria que eles não sejam antirracistas, mas isso não implica que eles queiram parar todo o racismo, apenas “racismo não consensual”. Nem alguém diria que são contra as discriminações, mesmo sendo a favor quando ocorrem privadamente – que são apenas contra a discriminação socialmente organizada, porém que não têm objeção a outros tipos de discriminação.

Agora, se as pessoas optam por assumir uma posição crítica à psiquiatria, elas são, é claro, livres para fazê-lo. O que seria útil, no entanto, é que elas não confundam a sua própria posição com a antipsiquiatria, que elas não transformem um termo inequívoco em um termo vago, que elas não combinem a antipsiquiatria com a ‘psiquiatria crítica’ – que, por assim dizer, não nos enviem – recuando no tempo – de volta à era da categoria “onde tudo cabe”.

Estou ciente, evidentemente, de que existem pessoas que estão em cima do muro entre a antipsiquiatría e a ‘psiquiatria crítica’, ou para colocar isso de outra forma, entre abolição e reforma. E, é claro, respeito o direito das pessoas de usar as palavras que escolherem. No interesse da clareza, no entanto, o que eu incentivaria as pessoas que se encaixam nessas posições é que procurem articular sua posição sem chamá-la de antipsiquiatria, pois apesar das melhores intenções – e eu de modo algum duvido que as intenções das pessoas sejam honradas – agindo dessa forma elas “turvam as águas”. E como estou ciente de que estou aqui “indo fundo na questão”, gostaria de encorajá-los de forma mais geral a se perguntarem: o que os impede de assumir uma posição de abolição? Não há talvez melhores maneiras de lidar com o que os preocupa sem tomar uma posição que, para todos os efeitos, envolva sustentar um sistema falso e destrutivo, emprestando tanto poder quanto legitimidade a ele? (Para um artigo que ilustra que, apesar das melhores intenções, a história mostra uma e outra vez que aonde a reforma não abolicionista nos leva, veja ” Liberal ‘Mental Health’ Reform: A ‘Fail-Proof’ Way to Fail”.

A título de exemplo, se eles estão preocupados com o fato de as pessoas precisarem de ajuda – e quem entre nós nega isso? – então, sobre como trabalhar para estabelecer redes de ajuda participativa que sejam voluntárias e que não empoderem a psiquiatria? O mesmo  dito com outras palavras, se você está preocupado com o fato de as pessoas passarem a ficar privadas de sua maneira de lidar com seus problemas se a psiquiatria for eliminada – seriam deixadas sem as drogas que as ajudam a viver o dia-a-dia, por exemplo (obviamente, uma preocupação totalmente legítima) – por favor observe que há nada na agenda abolicionista que implique “deixar as pessoas abandonadas à sua própria sorte”. Aqui, permitam-me sugerir, reside a diferença entre trabalho abolicionista pensativo e aquele que é irrefletido.

Não irei aqui montar uma argumentação em defesa da antipsiquiatria neste artigo, pois muitas vezes já fiz isso e esse não é o objetivo deste artigo. Sobre isso basta dizer que já foi demonstrado repetidamente por centenas de teóricos sólidos (tanto da antipsiquiatria quanto da variedade dos que defendem a psiquiatria crítica) que a psiquiatria carece de fundamentos, que é um ramo falso da medicina, e isso prejudica esmagadoramente as pessoas (ver, por exemplo, Breggin 1991[6], Whitaker 2010[7], Burstow, 2015[8] e Gøtzsche, 2013[9]). Como tal, das diversas formas como isso está acontecendo, não faz sentido que a psiquiatria acabe? Nem a questão de respeitar as escolhas das pessoas é relevante, embora compreensivelmente, essa questão quase sempre apareça quando as pessoas explicam por que elas não são antipsiquiátricas. É claro que os desejos das pessoas precisam ser respeitados! Isso é absolutamente não negociável. E, claro, as pessoas precisam de escolhas! Como discuti em detalhes em outro lugar, é uma questão totalmente distinta daquela de impedir que os medicamentos falsos passem como remédio real, ou de interromper o financiamento público da psiquiatria e as indústrias que a cercam, parando de dar-lhes poder e legitimidade – o que, não é por coincidência, é uma boa parte do que a maioria de nós quer dizer com a abolição da psiquiatria. Além disso, como também se mostra no artigo mencionado acima, a psiquiatria elimina impreterivelmente a escolha; isto é, ela realmente aborta a multiplicidade de serviços que muitos querem, na medida em que cooptamos com o que está aí

Quanto àqueles que se sentem incomodados com a noção de abolição, na medida em que a abolição pode parecer extrema para as pessoas, eu entendo totalmente o impulso para a “moderação”, embora comumente uma posição sábia, a “moderação” nem sempre é uma resposta para tudo. Se uma prática ou instituição é fundamentalmente inaceitável (assassinar, escravizar), não devemos nos livrar dela ao invés de apenas procurar desenvolver uma versão menos horrível?

Da mesma forma, enquanto alguns temem o conceito, porque ele parece confuso, notem que não há nada no compromisso dos abolicionistas que de alguma forma envolva derrubar instantaneamente o sistema psiquiátrico. Gostaria de lembrar aos leitores o modelo de  ‘desgaste da psiquiatria’, onde pouco a pouco, a gente desencaminha a psiquiatria, apoiando apenas as reformas que levem na direção da abolição (para obter detalhes sobre como implementar uma estratégia como essa, veja Burstow , 2013[10]). Em termos mais gerais, trata-se de perseguir a abolição de forma inteligente, gentil, sensível e de modo a levar a sério a situação e os direitos de todos; é precisamente isso o que é o bom trabalho abolicionista.

Para resumir, em suma, o termo “antipsiquiatria” tem um significado muito claro, um objetivo muito claro. Estabelece um espaço totalmente distinto. E a sua agenda é defensável, pode-se até dizer necessária. Mais ainda, os argumentos contra os antipsiquiatras não são válidos. No máximo, eles se aplicam ao trabalho de abolição descuidada, o que não está de modo algum implicado no compromisso autêntico de abolição.

Dito isto, para retornar rapidamente à história inicial com a qual este artigo começou – sabendo que eu estava escrevendo um artigo desta história, há vários dias atrás um dos meus amigos me perguntou isso: se Cooper tivesse vivido o suficiente para ver em que a psiquiatria e a antipsiquiatria se tornariam, o que ele diria? Pensaria eu que ele mesmo teria endossado uma visão de antipsiquiatria honesta aos olhos de Deus? Embora seja difícil saber com certeza, meu palpite provavelmente não é que ele estaria hoje negando de imediato o termo. Meu palpite é que, em parte, Cooper abandonou o termo precisamente porque começou a perceber o quanto estava fora da caixa. Por outro lado, quem pode dizer onde ele teria ido, se ele tivesse ficado no campo e se encontrado a lutar contra o mega crescimento da psiquiatria biológica?

Permitam-me sugerir, no entanto, que, mesmo que ele não viesse apoiar a antipsiquiatria, além do fato de que seu endosso não seria necessário, isso não tornaria o termo menos importante ou a agenda da antipsiquiatria fora de lugar. O que seria, em vez disso, é um outro indicador das limitações das iniciativas de movimento social que se originam de profissionais em oposição ao que vem dos oprimidos. A este respeito, os profissionais podem ser importantes, mesmo aliados inestimáveis, e além disso, irmãos e irmãs em luta – e, felizmente, todos sabemos quem são. Não obstante, exceto em certas circunstâncias, o que ocorre é que os profissionais simplesmente não são os oprimidos de fato. Apesar disso, a tirar o chapéu para David Cooper, por ele haver chegado a um termo que era mais corajoso e até mais sábio do que ele sabia.

Finalmente, em conclusão, e para retornar ao enigma que rodeia a ortografia, o que eu sugeri acima: independentemente de como você soletra “antipsiquiatria”, linguisticamente falando, isso significa o mesmo. Ou seja, como Shakespeare, que escreveu a palavra “lança” de três formas diferentes ao longo de sua obra, sempre considerei a preocupação da sociedade com a “ortografia padrão” como algo pedante. No entanto, uma diferença curiosa aparece na ortografia do termo “antipsiquiatria”. Enquanto a palavra inventada por Cooper era hifenizada, e enquanto a grande maioria dos outros que passaram a empregá-la ou a fazer referência seguiu o exemplo, há gerações de ativistas que repetidamente, escreveram a palavra de forma diferente, em alguns casos, mesmo conscientemente pretendendo ruptura com o Cooper. A este respeito, as trinta e duas questões da histórica revista antipsiquiatria Phoenix Rising usando consistentemente a versão não-hifenizada, assim como as legiões de ativistas antipsiquiatras e suas organizações (por exemplo, Resistance Against Psychiatry e Coalition Against Psychiatric Assault). Eu, pessoalmente, publiquei sete livros consistentemente empregando a versão não hiefinizada e, literalmente, centenas de artigos. E todos os escritos do icônico autor de sobrevivência, Don Weitz (e seus escritos nesta área datam dos anos 1970) sustentam de forma similar a forma ortográfica “antipsiquiatria”.

Claro, a ortografia é “apenas uma ortografia” e a grande maioria das pessoas que se deparam com sua escrita provavelmente não perceberá a diferença. Então, “sem grilos” se você optar por reter qualquer ortografia que você tenha empregado (“antipsiquiatria” ou “anti-psiquiatria”). Não obstante, se você quiser permanecer em uma tradição de quase quarenta anos de pessoas que usaram a “antipsiquiatria” consistentemente para significar “abolição” (nota, “antipsiquiatria” sem o hífen nunca foi usado de outra maneira), se você quer se alinhar com os ativistas e os radicais, distinto dos profissionais, se você deseja manter sua posição como visionário abolicionista, considere se juntar a nós e oferecendo o hífen “adieu”.

Referências:

[1] Cooper, D. (1967). (Ed.). Psychiatry and antipsychiatry. London: Paladin. Em português, Psiquiatria e Antipsiquiatria. Editora Perspectiva.

[2] Laing, R. D. (1965). The divided self. London: Pelican Books

[3] Foucault, M. (1980). Power/Knowledge (C. Gordon, Trans.). New York: Pantheon.

[4] Szasz, T. (2009). Antipsychiatry: Quackery squared. Syracuse, New York: Syracuse University Press.

[5] Diamond. S. (2012). Against the medicalization of humanity. Doctoral Thesis. Toronto: University of Toronto.

[6] Breggin, P. (1991). Toxic psychiatry. New York: St. Martins Press.

[7] Whitaker, R. (2010). Anatomy of an epidemic. New York: Broadway Paperbacks.

[8] Burstow, B. (2015). Psychiatry and the business of madness. New York: Palgrave

[9] Gøtzsche, P. (2013). Deadly medicine and organized crime. New York: Radcliffe.

[10] Burstow, B. (2013). The withering of psychiatry: An attrition model for antipsychiatry. In B. Burstow, B. LeFrançois, and S. Diamond (Eds.). Psychiatry disrupted (pp. 34-51). Montreal: McGill-Queen’s University Press.

 

Tratamento Simples Melhor que Antidepressivos

0

Caminhar rápidoDe PsyBlog: pesquisas sugerem que fazer uma caminhada rápida três vezes por semana pode ser mais efetivo no alívio da depressão do que os antidepressivos. Quase dois terços dos participantes do estudo já não estavam deprimidos após 16 semanas de exercício regular.

Artigo.

Jovem sob Efeito de Antidepressivo Incita o Suicídio do seu Namorado

2

Uma jovem julgada por exortar seu namorado a se matar, estava em estado delirante por se tornar involuntariamente “intoxicada” por antidepressivos, disse o psiquiatra Dr. Peter Breggin, na segunda-feira, como testemunha de defesa, em um tribunal de Massachusets.

Segundo Breggin, a jovem Michelle Carter “não pode ser acusada de intenção”, após haver mudado a sua prescrição de antidepressivo, apenas semanas antes de seu namorado se suicidar em julho de 2014, o Dr. Peter Breggin testemunhou.

Ela até mesmo continuou a enviar mensagens em seu telefone semanas depois que o seu namorado cometeu suicídio, foi lembrado por Breggin.

Michelle Carter, de 20 anos, está sendo julgada por homicídio involuntário na morte de Conrad Roy III, com 18 anos quando se envenenou inalando monóxido de carbono em sua caminhonete.

Os promotores argumentam que, enquanto Michelle Carter desempenhava o papel de namorada amorosa e perturbada, ela empurrou secretamente o seu namorado Roy para o suicídio, enviando inúmeras mensagens de texto encorajando-o a tirar sua própria vida. Algo como “Romeu e Julieta” de Shakespeare foi reproduzido.

Breggin_Massachusets

O que o Dr. Peter Breggin afirmou frente ao júri é que a jovem Michelle Carter agiu dessa maneira por estar sob os efeitos da mudança de antidepressivos, ao passar a tomar Celexa (Citalopram, no Brasil).

Breggin é bem conhecido por seus inúmeros livros, artigos científicos, e por várias vezes ter sido convocado para denunciar a indústria farmacêutica em tribunais, tendo imposto pesadas indenizações às empresas farmacêuticas pelos danos causados em usuários de drogas psiquiátricas.

O Mad in Brasil tem tido a oportunidade de disponibilizar para o público brasileiro vários artigos de Peter Breggin. Ele formulou o conceito “anosognosia por intoxicação”, para se referir aos fenômenos comuns aos que são usuários de drogas psiquiátricas, em particular os antidepressivos: a perda da consciência de que está sob “embotamento emocional” induzido pelos efeitos psicoativos da droga. “Tais drogas podem prejudicar o julgamento, a sensatez, o discernimento, o entendimento, o amor e a empatia”, diz Breggin.

Confira a matéria na íntegra que acaba de ser publicada (13 de junho de 2017) por CNN.

Noticias

Blogues