Psicóloga de ‘loucos’ fala da sua experiência

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HelenEstou em meu carro em direção ao meu trabalho como psicóloga clínica, lutando com as vozes em minha cabeça relacionadas ao abuso …

Posso ouvir uma voz que diz algo assim:

“Você é inútil.”

“Você não vale nada.”

“Você merece morrer”.

“Mate-se”.

Quando chego ao trabalho, participo de uma reunião durante a qual uma paciente que ouve semelhantes vozes, porque também se relacionam com abuso que sofreu quando criança, e vejo que ela está sendo informada de que sofre de “esquizofrenia”. O psiquiatra informa que ela deve se manter em medicação antipsicótica para o restante de sua vida, que ela “não tem esperança de voltar a ter uma vida normal”, que ela “nunca funcionará”, “nunca melhorará ou se recuperará”, e que não deve mais dirigir o seu carro. É dito que isso será comunicado à autoridade responsável pela habilitação de motoristas, com o objetivo de remover a sua licença, já que ela não mais pode ser autorizada a dirigir um automóvel.

A paciente protesta que necessita do carro para levar seus filhos à escola. “O que eu irei fazer”, ela pergunta, “Como irei conseguir lidar com isso sem o meu carro? “.  Tento conversar com ela, para lhe dar apoio. Eu explico que as vozes que ela ouve dizem respeito ao abuso que sofreu quando criança. Que há maneiras de ajudá-la a entender o significado das vozes e a gerenciar a audição de vozes, e que isso é possível sob uma perspectiva psicológica.

No entanto, os seus protestos e as minhas explicações são absolutamente em vão. Nossas vozes não são ouvidas. A única voz que conta ali é a do psiquiatra. Ele informa à paciente e à equipe de que eu estou errada – a história do abuso infantil é irrelevante e não está relacionada com as dificuldades apresentadas pela paciente. Em vez disso, ele nos diz enfaticamente, o que se passa é que ela na verdade está sofrendo de “uma doença cerebral incurável chamada esquizofrenia”, e que por isso ela “deve tomar medicamentos antipsicóticos durante toda a sua vida”.

Desta forma começa outro dia na vida do psicólogo de “loucos”.

Pelo menos desta vez, o psiquiatra responde à formulação que acabo de fazer, embora seja descartada completamente. É com muita frequência que eu sou ignorada quando levanto a questão do abuso e do trauma infantil. Ao longo da minha carreira profissional, encontrei muito poucos psiquiatras que compreenderam a importância do trauma, seja ele experimentado na infância ou na idade adulta, e os danos que o trauma pode fazer às pessoas. Os psiquiatras não conseguem levar isso em consideração, porque não foram ensinados a compreender. Em vez disso, eles foram treinados para considerar o sofrimento relacionado ao trauma como evidência de alguma patologia subjacente – processos de doenças biológicas, distúrbios cerebrais e/ou genes defeituosos.

É muito raro se ver um psiquiatra questionar um paciente sobre a natureza das vozes que ouvem. No que diz respeito à maioria dos psiquiatras, assim que um paciente responde “Sim” à pergunta “Você ouve vozes?”, eles começam a diagnosticar a “esquizofrenia”. A experiência de que ouvir vozes seja variada e significativa tem muitas evidências científicas (Romme e Escher, 1993[1]; Romme et al., 2009[2]; McCarthy-Jones, 2012[3], 2017[4]; Longden, 2013[5] e 2016[6]; McCarthy-Jones e Longden, 2013[7]; Corstens et al., 2014[8]). Não obstante, tais evidências são rotineiramente descartadas e ignoradas. Não há uma busca por compreender que ouvir vozes seja um fenômeno que ocorra sempre em um contexto significativo, e que frequentemente seja um fenômeno que se relaciona com as experiências de vida das pessoas, em particular com experiências de abuso e trauma. Os psiquiatras são treinados para trabalhar com uma lista para a verificação de sintomas, que visa diagnosticar as pessoas com “doenças mentais” de acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM). No entanto, esta é uma maneira muito inválida para se compreender e se apoiar pessoas em sofrimento psíquico.

Como eu sei o que está acontecendo com essa pessoa? Como posso entender o link entre o ouvir vozes e o histórico de abuso infantil? Certamente não é porque eu tenha aprendido o link que há entre audição de voz e trauma durante meu treinamento em saúde mental, ou porque é assim que o sistema entende essas experiências. Muito pelo contrário. Eu sei por que essa ou aquela paciente está ouvindo vozes e como elas se relacionam com suas experiências de vida, porque eu sou ouvinte de voz, e também pela minha experiência ao longo dos anos trabalhando e aprendendo com muitos outros ouvintes de voz.

A paciente é severamente repreendida pelo psiquiatra, como se ela fosse uma criança; e ela escuta – em termos inequívocos – que não deve dirigir o seu carro, porque “está sofrendo uma recaída” e que está “muito mal”. Contra a vontade dela, a dose da medicação é novamente aumentada, e fala-se da possibilidade de ECT – se as vozes não desaparecerem. Ela é repreendida e colocada em seu lugar, humilhada na frente da equipe, através da abordagem punitiva e julgadora do psiquiatra.

O psiquiatra não faz ideia de que a colega que tem estado sentada em frente dele todos esses anos, que dirige o seu carro para o trabalho todos os dias, que trabalha em tempo integral e não toma drogas psiquiátricas, que ela também ouve semelhantes vozes angustiantes, e por motivos similares. Não sou capaz de compartilhar essa informação, mesmo em particular, de colega para colega. Não tenho dúvidas de que, se eu fizesse isso, imediatamente o psiquiatra me diria que partisse dali.

Na vez seguinte em que esta paciente foi vista, o psiquiatra lhe perguntou novamente se ela estava ouvindo vozes. Desta vez, ela relatou que não. Quando ela saiu da sala, o psiquiatra felicitou-se, dizendo que a medicação havia tido “um grande sucesso”. Ele desconhecia completamente o fato de que as dificuldades da paciente não melhoraram de forma alguma. Na verdade, as dificuldades pioraram com o aumento das drogas. Ela mentiu sobre as vozes haverem cessado, como ela depois me contou; porque ela queria evitar que as dosagens das drogas fossem mais fortemente aumentadas. Para me dizer tudo isso, é porque ela confiou o suficiente em mim, colocando-me em uma posição difícil, embora eu entenda por que ela escolheu fazer isso. Na verdade, o que ela queria era encontrar em mim um apoio junto ao seu psiquiatra, para evitar novos aumentos nas drogas, bem como a possibilidade de ECT, e ela esperava obter de volta a sua carteira de motorista. Eu entendo as suas preocupações sobre o ECT, tendo eu visto isso haver sido feito ao longo dos anos contra a vontade dos pacientes e haver testemunhado o prejuízo considerável que isso pode provocar neles[9].

Como muitas pessoas ao longo dos anos, essa paciente foi forçada a ficar encurralada, sentindo que o único caminho a seguir nessas circunstâncias seria mentir, jogar o jogo para manter o médico satisfeito. É claro que os psiquiatras não são os mais sábios, porque geralmente eles não têm como saber sobre as dificuldades dos pacientes, além do que os pacientes escolhem o que dizer ou não dizer, como este caso é bastante ilustrativo. Nesse sentido, como de muitas outras maneiras, a prática da psiquiatria não é científica; não há formas objetivas de verificar os relatos de pacientes.

O modelo médico prevalecente significa que a maioria dos psiquiatras atribuem problemas e soluções aos fatores biológicos. Se alguém está angustiado, então ele/ela precisa de mais drogas; se melhora, isso se deve aos efeitos das drogas e / ou ECT, independentemente do que aconteceu ou está acontecendo na vida das pessoas. Este modelo impede que os psiquiatras compreendam os contextos mais amplos da vida das pessoas, incluindo o impacto do abuso, trauma e das adversidades.

Eu mordo meus lábios e sufoco minha raiva e minha dor.  Passo a falar sobre um próximo paciente …  Ela é outra pessoa com história de abuso infantil, com sintomas semelhantes aos meus. Novamente é alguém diagnosticado pelo psiquiatra com “esquizofrenia”. Ela e sua família são informadas de que ela “nunca funcionará”, que ela “estará em medicação para o resto de sua vida” e que ela “nunca melhorará ou se recuperará”. ”

Ao longo dos meses, eu fico sentada ao seu lado e a vejo caindo em um estado de desesperança, desamparo, abandono e institucionalização. Eu fico sentada ao seu lado e observo como ela é cada vez mais afetada pelos efeitos adversos do coquetel de drogas psiquiátricas. A força da vida, a energia, o entusiasmo e o zelo pela vida que ela já teve, são gradualmente eliminados. Esse ser humano, outrora vibrante, cheia de vida, interessada e interessante – uma pessoa que se envolvia ativamente com a vida, que tinha esperanças, sonhos e objetivos, mas que estava com profunda dor e angústia – é hoje uma sombra do seu antigo eu, estando agora sufocada, embaralhada e padecendo de espasmos. E mais uma vez eu posso fazer muito pouco para ajudar.

Confiando nos psiquiatras, ela aceita o que lhe dizem, toma sua medicação obedientemente como “uma boa garota”. Apesar de ser uma mulher adulta em seus trinta anos, o médico até a chama de sua “boa garota”, quando ela segue seus conselhos médicos. Na medida em que ela continue a fazer o que lhe é dito, ela será considerada “boa paciente” e será notada como “tendo uma visão de sua condição”. O médico sabe melhor …  Aparentemente.

Acompanhem-me para a próxima paciente. Esta é alguém que se automutila, que se corta nos braços e nas pernas. Ela também tem uma história de abuso grave quando criança. Ela é trazida para a sala, aonde estão diferentes profissionais de saúde mental, a fim de se discutir os detalhes de sua autoagressão. É novamente uma experiência degradante, humilhante e intimidante. Numerosas questões pessoais intrusivas são disparadas contra ela. No entanto, o psiquiatra não parece notar a sua angústia óbvia. Os demais profissionais de saúde mental estão ali, não sabendo o que falariam se a eles fossem feitas perguntas semelhantes. Como inúmeros outros pacientes ao longo dos anos de minha experiência, essa paciente é repreendida pelo psiquiatra por seus comportamentos automutilantes nos termos mais fortes possíveis, com um discurso feito para que ela se sinta envergonhada e sem valor, tratando-a como uma criança estúpida, travessa e desobediente. Sobre o seu autocontrole, o que lhe é dito é: “Páre logo com isso”, “Páre de se cortar”, “Deixe de ser tão boba”.

É uma experiência extremamente assustadora e humilhante, e me sinto muito preocupada com o bem-estar dessa paciente quando ela sai da sala. Eu me preocupo que ela possa se matar por causa da abordagem cruel e punitiva do psiquiatra, que acredita que o paciente está sendo “manipuladora e buscando a atenção dos outros”; e há a experiência degradante e traumatizante de ser interrogada e repreendida diante de uma sala cheia de profissionais.

Eu decidi arriscar-me a falar porque estava preocupada com o bem-estar imediato desse paciente. Seu bem-estar agora havia se tornado mais importante para mim do que a raiva que sei que meus comentários iriam provocar. Tentei defender uma abordagem mais compassiva, respeitosa e solidária em relação à assistência que estava sendo a ela dada. Estava muito preocupada que, se eu não fizesse isso, a paciente deixaria a sala tão em baixa, sentindo-se tão inútil e sem valor (e ela já se sentia assim normalmente, sentimentos que estão ligados ao abuso e seus comportamentos autodestrutivos), sendo assim julgada, culpabilizada e mal interpretada, que ela se machucaria seriamente até ao ponto da morte, ou que sofreria de uma overdose letal.

Passei a explicar que não há dúvida de que ela não era autodestrutiva porque queria, mas que estava lutando com sentimentos difíceis ligados a experiências de trauma. Disse que poderíamos trabalhar juntas para entender seus sentimentos, dificuldades e necessidades, que eu poderia ajudá-la a considerar a possibilidade de outras estratégias de enfrentamento.

Eu podia sentir o que a paciente estava sentindo nessa situação.

Mas o psiquiatra estava ali alheio de tudo disso e acrditando que o que ele fazia com ela era o certo. Lembro-me da citação de C. Lewis: “De todas as tiranias, uma tirania exercida sinceramente pelo bem de suas vítimas pode ser a mais opressiva”[10]

Também estava ciente do que o Dr. Z iria pensar essa situação e reagir como um desafio, como uma flagrante inversão da sua autoridade absoluta enquanto chefe da equipe.

Mais tarde, inevitavelmente, eu sou levada para um canto e repreendida no escritório do psiquiatra nos termos mais fortes possíveis, por “questionar o parecer do médico em frente ao paciente e à equipe”. Não me arrependo de ter falado e me tornado impopular frente ao médico. Só me arrependeria se a paciente houvesse deixado a sala sem ter se sentido ao menos apoiada e entendida – se ela tivesse se prejudicado ainda mais por causa disso, ou tivesse tirado a própria vida.

Infelizmente, isso é exatamente o que aconteceu com uma outra paciente alguns meses depois, quando eu não estava mais trabalhando no hospital e com esse psiquiatra. O paciente, outro sobrevivente de abuso infantil, saiu da reunião e foi para casa para se matar. Mais tarde, alguns dos pacientes do hospital se aproximaram de mim e disseram que gostariam que eu estivesse presente no momento, pois eles acreditam que eu poderia ter prevenido a morte dessa pessoa.

Estou firmemente posta em meu lugar … O médico sabe melhor e se eu soubesse o que é melhor para mim, então eu deveria manter a minha boca bem e verdadeiramente fechada! E seria o melhor para a equipe multidisciplinar. Depois de todos esses anos, eu deveria já ter aprendido que a Equipe Multidisciplinar (EMD) realmente não representa uma Equipe multidisciplinar, mas sim “Equipe Médica Dominada”. Foi o psiquiatra Ronald Laing, que exclamou: “Estou ainda mais assustado com o poder destemido nos olhos de meus colegas psiquiatras do que pelo medo impotente nos olhos de seus pacientes “[11].

Eu também deveria saber, depois de todos esses anos, que essas reuniões em que os pacientes são supostamente cuidados são muitas vezes experiências degradantes, humilhantes e prejudiciais para as pessoas envolvidas. São também experiências muito dolorosas e difíceis para mim. O abuso regular e implacável dos pacientes pelo sistema é extremamente doloroso de se assistir, especialmente quando há muito pouco o que você pode fazer.

A psicóloga Dorothy Rowe comentou, em conexão com as entrevistas de pacientes para estudos de casos: “O que é tão terrível com relação à crueldade (e por que eu escrevo sobre isso) é que achamos ser muito difícil ver a crueldade que está bem diante de nossos olhos. Enfermeiros e administradores, que ficariam horrorizados com uma imagem de televisão de soldados batendo contra um civil indefeso, não veem nada cruel em um psiquiatra humilhando e castigando um paciente, como acontece todos os dias as entrevistas. Não é por nada que Goffman, em seu estudo de asilo, chamou de cerimônias de degradação as entrevistas dos pacientes feitas em equipe”[12].

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Eu estou sentada em uma reunião de equipe, quando um paciente – cujas dificuldades eu avaliei como relacionadas ao abuso grave que sofreu quando criança – é diagnosticada com “transtorno de personalidade”. Minha opinião é completamente desconsiderada, a história do abuso foi descartada, e essa paciente e a equipe são informadas de que ela está, de fato, “sendo difícil”, que ela está “buscando atenção e que é extremamente manipuladora”.

Esta mulher tem comportamentos graves de autoagressão – em relação ao abuso grave que sofreu nas mãos de seu pai e outros membros de sua família, quando era criança. Ela tem dificuldades em relação ao apego, a autoestima, às fronteiras, aos relacionamentos e de se vitimizar. Ela desenvolveu padrões de comportamento em torno do “permitir-se” ser usada sexualmente pelos homens (em muitos aspectos, sendo uma reedição do abuso que sofreu, durante o qual ela experimentaria a única “proximidade”, “calor” e “carinho”, por ela recebido quando criança). Ela acabou de chegar à seção hospitalar para acidentados, onde trabalho, após uma overdose e se automutilado cortando os braços, já que ela se sentia tão enojada por haver sido usada por esses homens, agora e no passado. Ela mostra ter um sentimento extremamente frágil de si mesma, ela está em um forte estado confusional e dissociada, e narra haver sido abusada das formas mais horríveis que se pode imaginar, de modo que nós nunca poderíamos pensar, e muito menos experimentar.

Como o psiquiatra não perguntou sobre a história dessa paciente, ele não está ciente de que ela tem uma história de grave abuso de criança. Ele não está ciente dos fatores motivadores por trás de suas dificuldades e comportamentos. Como a grande maioria dos psiquiatras, ele nem sequer pensaria em investigar e considerar essas questões como sendo de alguma maneira relevantes para entender as dificuldades presentes na paciente. Eu fiquei ciente. Mas o poder do psiquiatra esteve mais uma vez acima de qualquer outra racionalidade.

Ao longo dos anos, vi muitas pessoas, tanto do sexo feminino como do sexo masculino, rotuladas inadequadamente com “transtorno de personalidade”. Isso pode acontecer quando os psiquiatras não conseguem entender o impacto e os efeitos posteriores de uma história de trauma grave. Também pode ser aplicado como uma “categoria binária” punitiva aos pacientes que eles não gostam, para punir os pacientes que não obedecem às suas orientações, que reclamam, questionam ou desafiam suas autoridades. A aplicação inadequada do diagnóstico a sobreviventes e pessoas em geral já foi discutida (Lewis e Appleby, 1988[13]; Shaw e Proctor, 2005[14]; RITB, 2016[15]), e muitas pessoas descrevem sentir-se profundamente infelizes com o rótulo.

Quando eu escrevo um relatório detalhado e explico ao psiquiatra e à equipe que o paciente tem história de abuso infantil grave, juntamente com a minha formulação psicológica de suas dificuldades e necessidades de tratamento, essa informação e minha contribuição como psicóloga são completamente descartadas, em favor de uma narrativa psiquiátrica das suas dificuldades.

Chamadas telefônicas são feitas e cartas enviadas pelo psiquiatra (chamado de “Diretor Médico Responsável”) ameaçando aqueles que possam cometer “o erro” de oferecer a esses pacientes compreensão, apoio e cuidados no Departamento Hospitalar para Acidentados, se os pacientes continuarem a se envolver em comportamentos automutilastes ou de overdose, e se voltarem ao Hospital pedindo socorro. A equipe do Hospital é instruída pelo psiquiatra que, em nenhuma circunstância, este tipo de paciente deve receber qualquer tipo de apoio ou cuidado. Ela é “um paciente extremamente difícil e manipuladora que está fazendo isso de propósito e para chamar a atenção”. Ela deve, portanto, ser tratada da maneira a mais dura possível, para que ela “saia” dessa “busca ridícula, manipuladora e para chamar a atenção “.

Ridículo do ponto de vista deste psiquiatra, talvez, mas não tão ridículo para aqueles entre nós que estiveram submetidos a graves abusos quando crianças.

Felizmente, apesar do extenso abuso que ela experimentou ao longo do tempo nas mãos do sistema, esta paciente da qual há pouco falava ainda está viva e está fazendo progresso. Infelizmente, muitos outros não foram tão afortunados.

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Mais uma vez, estou eu testemunhando um cenário perigoso, durante o qual o bem-estar de um companheiro de sobrevivência está sendo posto em perigo pela abordagem geral da psiquiatria e do sistema de saúde mental, e, mais uma vez, estou em uma posição na qual eu sou impotente. Naquela noite, não pela primeira vez ou pela última vez, eu vou para casa em profunda aflição. Eu deito no chão e choro. Um amigo tenta me consolar, sugerindo que, mesmo que eu não possa ajudar algumas pessoas o tempo todo, isso valerá a pena. No entanto, permaneço pouco convencida. Ajudar algumas pessoas uma vez ou outra não parece suficientemente bom. Eu tenho me sinto sobrecarregada pela enormidade do problema contra o qual tenho lutado, pela enormidade da crueldade, da desumanidade e do abuso que assisto regularmente, e que está sendo repetida regularmente em instalações de saúde mental, não só no Reino Unido, mas em muitas outras partes do mundo também. Com uma grande angústia, pego meu livro de oração e leio algumas orações. No dia seguinte, volto ao trabalho.

Foi-me pedido que avalie uma paciente que tinha um histórico de abuso e trauma grave de criança e que tinha algumas ideias incomuns, que o psiquiatra descreveu como “delirantes”. No meu relatório de avaliação, com o consentimento da paciente, descrevo a natureza do grave abuso que ela sofreu nas mãos de diferentes membros de sua família quando criança. Eu também descrevo os efeitos secundários do abuso em sua saúde mental. Ela ouve vozes que são relacionadas ao abuso, experimenta visões que são relacionadas ao abuso, e criou um mundo de fantasia para si mesma como uma criança, como forma de lidar com a dolorosa realidade de sua vida. O psiquiatra descartou a história do abuso, descreveu o mundo da fantasia como “delirante” e está usando isso como evidência para o diagnóstico de “esquizofrenia”. Eu, por outro lado, sei a partir de minha própria experiência, bem como da de muitos outros, como e por que esse pensamento incomum pode se desenvolver. Descrevo as crenças da paciente, como uma estratégia de proteção protetora que foi útil e adaptável para ela. Essas crenças ajudaram a levantar seu humor, ajudaram-na a sobreviver ao impensável e a impediram de se matar. Estou ciente de como esse chamado “pensamento delirante” pode ser protetor e até salvador de vidas. Mas o sistema não vê isso dessa forma.

Apesar do meu relatório ser claro, detalhando a extensão do abuso que sofreu e os efeitos secundários associados, incluindo a natureza, desenvolvimento e função do mundo da fantasia, a equipe e o paciente são informados pelo psiquiatra que eu estou errada. A paciente sofre de “esquizofrenia” e “transtorno de personalidade”, e como tal será tratada.

Ela está traumatizada por esses diagnósticos, pela rejeição de suas experiências de abuso infantil, bem como a descrição de seu mundo de fantasia como sendo “delirante”. Tendo passado um bom tempo construindo uma boa relação de trabalho com ela, como de costume eu estou sozinha para combater os danos que lhe estão sendo feitos em nome de “cuidados de saúde mental”.

Multipliquem este exemplo por muitos outros mais – é muito doloroso e desmoralizante trabalhar em um papel que, em grande parte, envolve tentar ajudar as pessoas a curar-se dos danos que o próprio sistema produz nelas em nome de estar lhes dando ajuda.

Reitero o que já afirmei aqui várias vezes. Perdi o número de vezes que testemunhei que os psiquiatras não acreditam e descartam relatos de abuso infantil, dos pacientes, de mim e de outras pessoas, atribuindo como sendo problemas de doenças mentais, não conseguindo entender o vínculo entre traumatismo e problemas de saúde mental. Os perigos inerentes e possíveis danos associados a essa posição não podem ser sobrestimados.

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Estou sentada em uma reunião com um psiquiatra e outros profissionais que estão discutindo o caso de uma paciente que foi diagnosticada pelo psiquiatra com “esquizofrenia paranoica”. Trata-se de uma mulher que ouve vozes e às vezes alucina. Eu sei, porque eu a avaliei antes, que as vozes que ela ouve são as dos membros adultos de sua família que abusaram dela ao longo de sua infância. Eu também sei que as visões, as assim chamadas alucinações que ela experimenta, são flashbacks para o abuso que sofreu. Esses fenômenos tendem a ocorrer mais frequentemente à noite e envolvem figuras sombrias ao redor de sua cama. A discussão da equipe é em torno de aonde esta senhora deve ser alojada, desde que seu casamento foi rompido por violência doméstica. Ela solicitou que não voltasse à sua família de origem, pois membros de sua família estavam envolvidos no abuso original. Quando eu discuto minhas descobertas com a equipe, elas são descartadas pelo psiquiatra como “irrelevantes e pouco confiáveis”, já que “ela sofre de esquizofrenia e não se pode confiar que ela forneça informações confiáveis sobre sua vida”.

A despeito de tudo, eu pedi que ela fosse colocada em um ambiente de moradia que fosse seguro, longe de sua família, até que opções de habitação mais permanentes ficassem disponíveis. No entanto, com a insistência do psiquiatra, ela foi forçada a retornar ao ambiente familiar abusivo, pois ele considerava que isso seria “o mais favorável para o seu bem-estar frente às circunstâncias”. Não é surpreendente que ela rapidamente venha se tornado ainda mais angustiada e que tenha tentado suicídio. Felizmente, ela sobreviveu, e graças à minha insistência ela foi realojada. Como de costume, minha opinião profissional foi descartada e, como sempre, passei por uma situação extremamente dolorosa e angustiante ao testemunhar tudo aquilo.

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Eu estou lendo o prontuário de uma paciente que tem um histórico de abuso infantil e cujas dificuldades eu sei estarem relacionada a isso, apenas para descobrir que ela, como tantas outras pessoas, recebeu inúmeros diagnósticos e coquetéis de drogas nocivas ao longo dos anos. Os diagnósticos incluíram: esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, depressão maníaca / transtorno bipolar, transtorno da personalidade aditiva, paranoia, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de personalidade limítrofe, ansiedade severa, depressão grave, depressão psicótica e transtorno de personalidade masoquista. Todos esses assim chamados de “distúrbios” dizem respeito aos efeitos secundários do abuso.

A leitura do seu prontuário revela que nada de positivo resultou de qualquer um desses diagnósticos e drogas diferentes, ao longo dos anos. Sem surpresa, depois de mais de 15 anos, essa paciente ainda está, como tantos outros, andando e rodeando pelo sistema, não melhor do que era quando entrou pela primeira vez – de fato muito pior do que estava inicialmente. Não se menciona no seu prontuário o fato de que ela teve uma infância extremamente abusiva e traumática, período durante o qual sofreu tortura severa, crueldade e negligência em uma escala que a maioria de nós nem sequer pôde imaginar.

Ao ir para a sala de espera para receber meu próximo paciente, encontro outra paciente, com quem trabalhei há alguns meses, agachada no chão do corredor, extremamente angustiada e chorando incontrolavelmente. Como é de se esperar, estou muito preocupada. Ela é outra sobrevivente de abuso infantil, nas mãos de seu pai. Peço-lhe que entre no quarto de meu consultório. Uma vez dentro, ela me diz que ela acabou de se encontrar com o psiquiatra, e que ele lhe disse que ela tinha “esquizofrenia”, sem chances de ela fazer algum progresso ou recuperação. Ela me pergunta se eu também achava que ela era “louca” (eu digo a ela que não!). Ela então me diz que, como resultado desse encontro com o psiquiatra, ela entrou no banheiro do hospital e se auto agrediu, cortando-se. Eu examino suas feridas. Ela explica que ela já perdeu toda a esperança e está planejando ir diretamente para casa para se matar. Felizmente, depois de passar algum tempo com ela, consegui conversar com ela e continuamos trabalhando juntas.

Mais uma vez, encontro-me na situação dolorosa, ridícula e desconfortável de ter que tentar fazer o meu melhor para reparar o grande dano que está sendo feito pelo sistema para os sobreviventes vulneráveis vítimas de abuso infantil.

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Uma paciente que foi abusado em casa por seu pai e que, na escola, por alguns de seus professores, ela foi diagnosticada com “esquizofrenia paranoica”. Ela está lutando contra os efeitos posteriores do abuso, incluindo ouvir vozes, depressão, ansiedade, ansiedade social, Sentimentos e comportamentos suicidas. Ela fez várias tentativas de suicídio ao longo dos anos, e em nenhuma das quais foi “bem-sucedida”. Surpreendentemente, o psiquiatra conta que é inevitável que eventualmente acabará se matando. Eu me recuso a acreditar ou endossar esta predição ultrajante e inútil. Passei a trabalhar com ela sobre os efeitos secundários de abuso contra os quais ela está lutando (que incluem suicídio e automutilação). Tenho o prazer de informar que sua vida e sua saúde mental melhoraram e que ela agora trabalha na comunidade. Há anos ela não fez nenhuma tentativa de suicídio e promete nunca mais fazê-lo. No entanto, como muitos outros, o seu progresso ocorre, apesar da psiquiatria e o sistema e sem a psiquiatria e o sistema.

Ao longo dos anos, trabalhei com muitas pessoas que passaram tempo em salas psiquiátricas como pacientes internados. Muitos são sobreviventes de trauma na infância e / ou adultez. No entanto, raramente são questionadas sobre histórias de abuso e trauma. Se eles divulgarem, essas experiências são consideradas irrelevantes e / ou delirantes. O reducionismo biológico que permeia o sistema atribui todo o sofrimento às “doenças mentais” biológicas e à patologia endógena. O foco é em pílulas em vez de pessoas, em estigmatizar as vítimas com rótulos de culpa em vez de compaixão e apoio.

Muitas das práticas em salas de atendimento psiquiátrico reproduzem experiências anteriores de abuso, trauma e violência e podem ser profundamente re-traumatizantes para pessoas: falta de compaixão e apoio, coerção, compulsão, controle, restrição, reclusão, privação de liberdade, droga forçada e ECT. Não ter as experiências de abuso consideradas, são experiências que podem replicar o silêncio e a vergonha que muitos experimentaram anteriormente. Não ter tempo para falar sobre seus problemas, não receber bondade, compaixão, compreensão e apoio, são experiências que podem exacerbar sentimentos de desesperança, desamparo, alienação e desespero. Tendo seus desejos de não tomar drogas psiquiátricas sistematicamente negados, sendo mantidas pelo pessoal e injetadas por força, são experiências que podem refletir e replicar experiências anteriores de serem estupradas e abusadas. Ser forçado a tomar drogas por via oral também pode espelhar o abuso anterior. Muitas pessoas relatam sentir-se desumanizadas e abusadas, descrevendo o sentimento de ficarem pior após a admissão do que antes de entrar no hospital. No entanto, o sistema falha consistentemente em entender e responder a tais preocupações.

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Um paciente do sexo masculino, abusado física, sexual e emocionalmente por seus pais, passou mais de trinta anos no sistema sendo tratado por “esquizofrenia paranoica”. Ele recebeu medicamentos antipsicóticos, injetados à força em seu abdômen, durante todos esses anos. Ele nunca viu um psicólogo ou recebeu uma avaliação psicológica. Ao me ver, eu avalizo suas dificuldades como resultado do grave abuso que sofreu quando criança. Como de costume, escrevo relatórios e discuto minhas descobertas com colegas.

Pela primeira vez, sou ouvida por um psiquiatra. Escusado será dizer que estou impressionada! Com sua ajuda, a medicação antipsicótica desse paciente é gradualmente reduzida e, finalmente, eliminada completamente. Ele não sofreu “recaída”, como é normalmente previsto, e, em vez disso, tem feito bons progressos. Ele ainda ouve vozes e experimenta outros efeitos posteriores de abuso. No entanto, estes gradualmente se tornam menos intensos e ele é capaz de encontrar novas maneiras de lidar com eles, com a ajuda de um grupo de sobreviventes, de um grupo de ouvidores de vozes e de terapia psicológica.

À medida que o tempo se move, as principais preocupações deste cavalheiro dizem respeito aos benefícios (dinheiro) que ele deve receber do Estado por esses últimos trinta anos, por ter sido diagnosticado com “esquizofrenia paranoica”, sendo dito que “nunca iria se recuperar, ” nunca sairia da medicação” e que “nunca seria capaz de estudar ou trabalhar “.

Ele se pergunta, “agora que benefícios reivindicar”?  Já é tarde demais para ele pensar em estudar ou ter uma carreira profissional? Ele é um homem inteligente, com muito a oferecer. O que ele pergunta é o que ele vai fazer com o resto de sua vida, já que ele está se aproximando da idade de aposentadoria? Ele se sente irritado com todo o tempo e anos desperdiçados, acreditando, como foi dito, que ele estava sofrendo de “uma doença cerebral incurável e incapacitante chamada esquizofrenia, de onde não há recuperação” e sendo constantemente informado de que ele estava “muito doente”, “para estudar ou trabalhar “.

Muitas vidas desperdiçadas e tanto talento desperdiçado, tantas perdas, tantas mortes evitáveis, tanto dano sendo feito a tantas pessoas vulneráveis de muitas maneiras diferentes!!! Tão pouca compaixão, compreensão e humanidade. Quando e como o sistema vai mudar?

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Os exemplos incluídos aqui referem-se a muitas pessoas com quem trabalhei e aprendi ao longo de diferentes configurações, durante tantos anos. Muitas pessoas deram sua permissão para que eu viesse usar suas experiências para educar e informar a outros. Em alguns casos, pequenos detalhes foram alterados para proteger a identidade das pessoas.

O Dr. Z é um termo composto para muitos psiquiatras, homens, mulheres e de diversas origens, com quem trabalhei ao longo dos anos. A maioria desses médicos, por mais bem-intencionados que tenham sido, fizeram muito mal aos pacientes, embora tenha havido algumas exceções notáveis.

 

Bibliografia:

[1] Romme, M. and Escher, S. (1993) Accepting Voices. London, UK: Mind.

[2] Romme, M., Escher, S., Dillon, J., Corstens, D. and Morris, M. (2009) Living with Voices: 50 Stories of Recovery. Ross, UK: PCCS Books.

[3] McCarthy-Jones, S. (2012) Hearing Voices: The Histories, Causes and Meanings of Auditory Hallucinations. New York: Cambridge University Press.

[4] McCarthy-Jones, S. (2017) Can’t You Hear Them? The Science and Significance of Hearing Voices. London and Philadelphia: Jessica Kingsley Publishers.

[5] Longden, E. (2013) Learning from the Voices in my Head. TED Books. https://www.ted.com/talks/eleanor_longden_the_voices_in_my_head TED Talk

[6] Longden, E. (2016) The Voices in my Head. Mad in America Continuing Education. http://education.madinamerica.com/p/voices-head

[7] McCarthy-Jones, S. and Longden. E. (2013) The voices others cannot hear. The Psychologist, 26, 570-575.

[8] Corstens, D. Longden, E., McCarthy-Jones, S, Waddingham, R and Thomas, N. (2014) Emerging perspectives from the hearing voices movement: implications for research and practice. Schizophrenia Bulletin, 40, 285-94.

[9] Read, J. and Bentall, R. (2010) The effectiveness of electroconvulsive therapy: a literature review. Epidemiologia e Psichiatria Sociale, 19(4), 333-47.

[10] Lewis, C.S. (1970) God in the Dock: Essays on Theology and Ethics. Michigan: Eerdmans Publishing Company, p.292

[11]  Laing, R.D. (1985) Wisdom, Madness and Folly: The Making of a Psychiatrist 1927-1957. London: Macmillan, p.16.

[12] Rowe, D. (1988) In: Masson, J.M. Against Therapy: Emotional Tyranny and the Myth of Psychological Healing. London: Atheneum, p. 12

[13] Lewis, G and Appleby, L. (1988) Personality disorder: the patients psychiatrists dislike. British Journal of Psychiatry153, 44-49.

[14] Shaw, C. and Proctor, G. (2005) Women at the margins: a critique of Borderline Personality Disorder. Feminism and Psychology. 15(4), 483-490.

[15] Recovery in the bin (RITB) (2016) A simple guide to avoid receiving a diagnosis of ‘personality disorder’. https://recoveryinthebin.org/2016/02/20/a-simple-guide-to-avoid-receiving-a-diagnosis-of-personality-disorder/

 

Pode a Psicanálise tratar a Psicose?

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Uma gravação em vídeo da Segunda Conferência Anual da Lambeth e Southwark Mind, realizada em conjunto com BLOCK336, e que está agora disponível. Nessa palestra, Dorothée Bonnigal-Katz, fundadora do Projeto de Terapia de Psicose, faz uma reflexão sobre os últimos quatro anos de vigência desse Projeto, cuja prática é a terapia da palavra, a longo prazo, com a abordagem psicanalítica desenhada para pessoas com psicose.

Uma iniciativa em busca de alternativas ao tratamento hegemônico da Psiquiatria: psicofarmacológico e a longo prazo.

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O vídeo.

 

Como o FDA tem Evitado Admitir Suicídio Induzido por Antidepressivos em Adultos

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pbregginOs médicos costumam dizer aos pacientes que os antidepressivos só podem causar comportamento suicida em crianças e não em adultos. Muitas publicações também fazem a mesma afirmação. A alegação falsa baseia-se na bula dos “tarja preta” aprovado pelo FDA para antidepressivos que adverte sobre um aumento da taxa de suicídio em crianças, jovens e adultos jovens que estão tomando antidepressivos, mas não faz o mesmo com relação aos adultos com mais de 24 anos. A advertência  explicitamente diz: “Em adultos com mais de 24 anos, estudos de longo prazo não mostraram um aumento no risco de suicídio com antidepressivos em comparação com o placebo . ”

Os estudos aos quais o FDA recorreu sobre os efeitos de antidepressivos para adultos com mais de 24 anos de idade são cheios de falhas e não confiáveis em comparação com aqueles utilizados em crianças. De acordo com a FDA nas audiências de 2006:

“Devido ao grande número de sujeitos na análise de adultos, quase 100.000 pacientes, o processo de adjudicação foi deixado como responsabilidade dos patrocinadores e não foi supervisionado ou verificado pelo FDA. Isto está em contraste com a análise de comportamento suicida pediátrico em que o FDA foi ativamente envolvido na adjudicação (p.14). “

Além disso, o FDA também anunciou nas audiências de 2006, sobre suicídio de adultos induzido por antidepressivos, que não exigia um método uniforme de análise por cada empresa farmacêutica e nem um avaliador independente, conforme o exigido com a amostra pediátrica.

Assim, o FDA estava comparando maçãs um pouco boas (os estudos pediátricos) com maçãs podres (os estudos com adultos), ao mesmo tempo em que as faz parecer comparáveis. Os estudos com crianças mostraram que os antidepressivos podem causar comportamento suicida – os estudos do adulto (após a idade 24) não mostraram nada, à exceção da cooperação ilegal do FDA com as companhias farmacêuticas auto-beneficiadas. Como descrevi em meus livros e artigos científicos, as empresas farmacêuticas rotineiramente manipulam seus dados sobre suicídio para evitar qualquer conexão causal à sua droga (veja, por exemplo, meu artigo de 2006 sobre GSK e Paxil).

No caso de Eli Lilly, estão aqui dois memorandos do empregado Claude Bouchey (páginas 2 e 3 do original) enviados à hierarquia da empresa nos quais ele expressa a culpa e a vergonha por haver mudado os relatórios oficiais sobre a tentativa de suicídio induzida pelo Prozac – enganando a investigação fazendo emprego de termos como “overdose” ou “depressão”.

Ironicamente, o FDA controlou e monitorou os estudos pediátricos originais, precisamente porque as empresas farmacêuticas por conta própria não conseguiam encontrar qualquer risco de suicídio induzido por antidepressivos em qualquer faixa etária. Por que a FDA assumiria que essas mesmas empresas farmacêuticas deixadas por conta própria começariam espontaneamente pela primeira vez a realizar estudos honestos sobre a capacidade de seus produtos de causar suicídio em adultos?

Além disso, mesmo nos estudos das maçãs podres em adultos, apesar das manipulações da companhia farmacêutica, o Paxil (paroxetina)  mostrou causalidade associada ao aumento de comportamentos suicidas em adultos deprimidos – em uma revisão interna feita pelo FDA dos dados disponíveis na agência. Como resultado, em 2006, o FDA, em seguida, forçou o fabricante do Paxil, a GlaxoSmithKline (GSK), a escrever uma carta “Caro Doutor (a)” – enviada a todos os prestadores de cuidados de saúde – confirmando a associação entre Paxil e comportamento suicida em adultos.

Em abril de 2006, o FDA também fez a empresa farmacêutica colocar um aviso na bula sobre o risco de Paxil causar comportamentos suicidas em adultos com depressão; mas a GSK convenceu o FDA a abandoná-la nos anos seguintes. O aviso apareceu no Manual de Referência aos Médicos ( Physician’s Desk Reference) apenas uma vez em 2007.

Enquanto isso, há muitos estudos mostrando que os antidepressivos causam impulsos suicidas e suicídio em adultos.

Na próxima vez que você ouvir alguém dizer que os estudos do FDA mostram apenas aumento de comportamentos suicidas em crianças e adultos jovens em oposição aos adultos, lembre-se que os estudos em adultos, ao contrário dos estudos pediátricos, não foram controlados, monitorados ou validados pelo FDA. Este é mais um exemplo dos extremos aos quais o FDA é capaz de ir para proteger as empresas farmacêuticas e seus produtos, o que muitas vezes é letal.

Foi difícil fazê-los aceitar que os antidepressivos causam suicídio em crianças. As companhias farmacêuticas e seus asseclas se queixaram veementemente. O FDA e as empresas farmacêuticas não iriam permitir uma repetição de estudos suficientemente imparciais que pudessem concluir que os adultos também são vulneráveis ao suicídio induzido por antidepressivos.

Como uma Tradição Antiga de Canto Ajuda as Pessoas a Lidar com Trauma

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Na Revista Yes: o canto de lamento, uma tradição antiga, observada para fins espirituais durante funerais, casamentos e tempos de guerra, está agora sendo reavivada na Finlândia. As pessoas estão se dando conta que lamentar cantando é uma forma de terapia musical para ajudar a processar traumas e perdas.

Canto de lamento

Exemplo de canto de lamento:

“Eu tomei comprimidos para minha depressão

Apenas para sufocar minhas emoções.

Os médicos disseram que eu precisaria deles,

Mas aprendi a chorar sem eles.

Então eu parei de tomar os comprimidos,

Então eu deixei meus sentimentos se erguerem

Para minha mãe quando ela se foi,

Para o meu casamento quando ele me abandonou,

Me deixou como mãe solteira

Com um trabalho difícil e sem fins de semana.

Agora eu choro sem tomar pílulas,

Ainda me sinto muito irritada,

E a fúria parece bem fundamentada,

Mas os sentimentos não me machucarão “.

Leia o artigo na íntegra.

 

 

Conferindo Legitimidade ao Contra-Hegemônico

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Aqueles entre nós que são radicais estão comumente lutando para encontrar formas de conferir legitimidade a posições que desafiam substancialmente as construções / autoridades hegemônicas (modos opressivos do status quo de construção / agir).

Neste artigo, por meio de um estudo de caso, estarei explorando como realizar com sucesso tais formas de contrapoder, aproveitando o máximo possível da autoridade das organizações hegemônicas (obviamente, essa não é a única maneira de agir de modo contra-hegemônico). Irei destacar tipos de problemas que acontecem ao longo desse processo, e como você pode lidar com eles.

O “caso” em questão envolveu duas campanhas separadas, mas relacionadas entre si. Trata-se do processo para a criação de um programa de bolsa de estudos em antipsiquiatria e desenvolvido em uma universidade de ponta.

O que torna este caso particularmente instrutivo é que a psiquiatria e tudo o que a rodeia é o auge da hegemonia, as universidades são reconhecidas como guardiãs do que conta como conhecimento, e a psiquiatria acadêmica é fundamental para a hegemonia psiquiátrica. Para uma discussão da psiquiatria acadêmica, ver Burstow, 2015 [1] ).

O caso

A primeira das lutas para lançar essa bolsa de estudos começou no início de 2006. Sabendo, é claro, que contar com alunos com uma bolsa de estudos seria algo crucial para fazer acontecer um curso em antipsiquiatria – pois dificilmente as organizações hegemônicas têm em suas agendas programas contra-hegemônicos – resolvi tomar a seguinte iniciativa. Na Universidade de Toronto onde leciono há um Setor responsável por receber doações.  Enviei a seguinte petição: que de acordo com as previsões que eu estava colocando em meu testamento, a minha herança deveria ser destinada à criação de bolsas em duas áreas diferentes – antipsiquiatria e combate à falta de moradia – e tais bolsas de estudo seriam concedidas anualmente aos estudantes  do instituto de Ontário para Estudos em Educação (OISE).”

As estipulações por mim colocadas foram as seguintes:

  • A prioridade seria dada aos estudantes que fossem sobreviventes psiquiátricos e aos estudantes que haviam experimentado a condição de sem-abrigo;
  • As palavras “sem-abrigo” e “antipsiquiatria” deveriam aparecer explicitamente no título do Prêmio. ”

Para ser clara, por que coloquei essas duas áreas juntas? Além do fato de que muitas vezes são áreas que interagem e eu estar comprometida com ambas, é que eu estava contando com o fato de que a área de “antipsiquiatria” poderia, por assim dizer, ser inseparável da área “sem-abrigo”.

Neste ponto, você pode estar se perguntando por que eu não apenas deixei a minha vontade passar a valer depois da minha morte?

Não o fiz porque isso comprometeria seriamente o sucesso do empreendimento. Depois que eu morresse, o reitor da universidade, o advogado da Universidade, e o diretor do OISE, eles poderiam mudar os termos da bolsa de estudos, e eu não estaria por perto para defender meus argumentos. Levando em consideração que a antipsiquiatria é algo que está fora-da-caixa; levando em consideração, além disso, que tal Programa entraria em conflito com o ensino da psiquiatria, e levando em consideração que a psiquiatria acadêmica é um pilar da maioria das Universidades, tal doação dificilmente seria aprovada. No entanto, se eu pudesse prevalecer sobre o atual Reitor, o atual advogado, e o atual diretor, fazendo-os concordar, se poderia pavimentar o caminho para um acordo futuro.

Houve algum interesse na bolsa? Houve. No entanto, o que se seguiu foi uma luta muito difícil ao longo de nove meses – nessa gestão acadêmica, e tudo isso no OISE. Exemplos de desafios apresentados e como eu respondi são os seguintes: foi-me dito que ter tal bolsa de estudos seria provavelmente colocar o bolsista em um estado de não-iniciante, porque ele estaria fora da área de especialização de todos os outros e que, portanto, nenhum programa no OISE jamais concordaria em administrar essa bolsa. Percebi que este seria provavelmente o primeiro dos muitos obstáculos, e, se eu não lidasse com ele completamente, a iniciativa não iria a lugar nenhum. Fui a perguntar à coordenadora do meu programa (educação de adultos) se o nosso programa poderia supervisionar essa iniciativa. Ela parecia duvidosa. Instantaneamente suspeitei que a minha melhor opção de ação seria ver se eu poderia interessar a um outro programa, pois isso poderia resultar em dois programas concordando em dar supervisão ao Prêmio. Por conseguinte, voltei-me para  o programa “Estudos de Sociologia e Equidade” (SESE), que rapidamente aprovou uma moção concordando em administrá-lo.

Então eu retornei para Educação de Adultos. Como eu havia intuído, em resposta ao SESE, a Educação de Adultos aprovou uma moção semelhante.  Então agora eu tinha declarações oficiais feitas em reuniões departamentais mostrando que dois programas diferentes estavam felizes em supervisionar a bolsa. Com um “ok” tão explícito, seria agora “tudo tranquilo” para a bolsa? Claro que não!

Próximo problema: fui informada de que, embora fosse justo dar prioridade aos alunos que tinham vivido a falta de moradia crônica, havia um problema sério ao dar prioridade aos alunos sobreviventes psiquiátricos, porque isso constituiria uma violação dos direitos humanos, além do que, nenhum estudante “naquela posição” iria querer tal bolsa de estudos. Deixando de lado a questão do possível preconceito manifestado aqui, rapidamente demonstrei que não era uma violação dos direitos humanos, porque temos bolsas de estudos para homossexualidade para as quais estudantes homossexuais recebem prioridade. Resolvi escrever para uma organização de antipsiquiatria e para uma organização de pacientes psiquiátricos (Coalition Against Psychiatric Assault e The Mad Students Society), que imediatamente consultaram seus membros e, em seguida, declararam que seus membros queriam muito tal bolsa. Todas as provas que tal bolsa era do interesse público foram por mim apropriadamente apresentadas. Isso foi o fim das objeções? Nada disso!

Embora naturalmente este tivesse sido o problema desde o início, a palavra “antipsiquiatria” agora era rechaçada explicitamente. Eu continuei a defender com tenacidade o termo / conceito. Foi-me pedido que assinasse uma cláusula restritiva que, em essência, permitiria à universidade fazer tudo o que quisesse com o dinheiro se fosse julgado que a área já não era relevante. Sabendo que nenhuma doação é aceitável para a Universidade sem uma cláusula restritiva, criei imediatamente uma cláusula substitutiva de restrição que limitava seriamente o que eles podiam fazer e garantiria que o dinheiro seria usado para os fins pretendidos. E de fato, eles concordaram com a cláusula.

Agora eu pensei que este certamente seria o fim das dificuldades, porque nove meses tinham se passado e eu havida conseguido lidar com cada objeção. No entanto, nesta mesma gestão acadêmica ainda uma outra objeção surgiu: foi-me dito que seria importante consultar a chefe do meu departamento para ver se antipsiquiatria fazia sentido para ela como uma área (a chefe do meu departamento é uma pessoa muito agradável, mas que, significativamente, não tinha conhecimento da área em seu todo).

Percebendo que a mesma questão estava apenas voltando agora sob uma nova forma, mas que era possível que eles quisessem meu dinheiro mais do que eles odiavam a área de estudo, eu percebi que o momento havia chegado para “jogar duro”; então eu disse ao diretor, “Obrigado pela consideração, mas isso está demorando muito tempo, e se os princípios gerais desta bolsa não tiverem sido aprovados por você, pelo advogado da Universidade e pelo reitor da Universidade até a próxima semana, oferecerei essa doação à Escola de Serviço Social da Universidade Carleton.” Três dias depois, um acordo havia sido alcançado – todos os três atores principais da Universidade haviam consentido. E alguns dias depois, num espírito altamente acadêmico, o reitor, o especialista em doações e eu nos reunimos para uma comemoração.

A partir daí eu passei a me envolver com outros projetos, como se este assunto tivesse sido completamente resolvido. No entanto, cerca de oito anos mais tarde, percebi que a parte antipsiquiatria desta bolsa poderia não estar segura depois que eu estivesse morta, pois aqui estão os ossos da disputa –  e, além disso, ninguém mais lutaria por ela tão habilmente quanto eu. Minha solução? Doar, e doar agora, a bolsa sendo em antipsiquiatria apenas – uma iniciativa que eu assumi em parte porque seria bom para o movimento se tal bolsa de estudos passasse a existir desde agora, e em parte para preparar o caminho para a bolsa de estudos ser mantida mais tarde após a minha morte. Eu nomeei a nova bolsa “A Bolsa Bonnie Burstow em Antipsiquiatria” e eu a criei junto como uma bolsa complementar – em que eu estaria adquirindo US 50 mil dólares de contribuições de outros -;  e decidi que eu faria o trabalho necessário de angariação de fundos

As negociações rapidamente se seguiram. Agora, essa batalha eu a fiz deliberadamente com base na liberdade acadêmica – algo que era transparente, uma questão eminentemente acadêmica, e algo caro para todos nós da academia. E motivos “defensáveis” foram demonstrados, e todos no OISE rapidamente compreenderam a relevância. No entanto, em quatro ocasiões separadas, fui convidada a remover o nome inconveniente de “antipsiquiatria” do título do Prêmio – algo que, é claro, eu me recusei a fazer. Na verdade, fui até mesmo convidada a considerar, em vez disso, uma bolsa de estudo em aconselhamento – obviamente uma tentativa de despolitização.

Em um ponto, por razões não claras para mim, o processo ficou parado por cerca de um ano, embora eu tenha usado este tempo de modo lucrativo para construir listas de possíveis doadores. Então aconteceu algo absolutamente imprevisto – o administrador que tinha feito o contato central para ambas as bolsas de estudo saiu da Universidade, e para o meu desgosto me dei conta que ninguém no OISE tinha qualquer registro do acordo anterior. Felizmente, eu tinha mantido sete anos de e-mails e encontrei o que eu precisava. Novas pessoas se aproximaram e as negociações continuaram, e o apoio no OISE cresceu. Com o novo diretor do Instituto concordando, nos aproximamos da Universidade de Toronto. Onde mais uma vez, encontramos um obstáculo.

É aqui que o fato de ter enfrentado a questão da liberdade acadêmica realmente valeu a pena. Intercedendo em meu nome, retomando minhas palavras, a pessoa que fez a negociação do OISE repetidamente disse ao funcionário relevante da Universidade de Toronto: “Eu tenho duas palavras para você: liberdade acadêmica”. E na plenitude do tempo, a bolsa foi aprovada pela Universidade de Toronto.

E estava tudo bem agora? Com relação à Universidade de Toronto – parte da luta -, sim! Nós felizmente assinamos o contrato, e com a equipe de funcionários do OISE toda a infraestrutura do suporte administrativo passou a estar disponibilizada; o estágio seguinte do trabalho havia começado. No entanto, esse foi também o momento em que se apresentaram os mais desagradáveis dos obstáculos. De onde? A partir dos principais meios de comunicação. Não é exatamente para causar surpresa que os meios de comunicação reagissem de modo fortemente negativo, uma vez que eles ouviam falar do desenvolvimento da psiquiatria há décadas, a eles não restaria algo diferente do que se apoiar na linha padrão da psiquiatria (por exemplo, a psiquiatria é progressista, e qualquer um que diga o contrário é um inimigo do progresso). Mas quem poderia adivinhar a extensão disso?

Tanto a bolsa como eu pessoalmente fomos jogados na lixeira em vários jornais importantes, incluindo o National Post. Também fomos destruídos em um programa de televisão nacional, em aproximadamente uma dúzia de programas de rádio e também em vários blogs de mídia social. Embora eu seja uma estudiosa reconhecida na área – alguém que, entre outras coisas, desafiou a psiquiatria precisamente com base na ciência – eu era retratada repetidamente como não-científica, como a inimiga do progresso e como alguém que estava inadvertidamente colocando as pessoas vulneráveis em risco. Isto dito por pessoas cuja maioria não tinha lido praticamente nada que eu havia escrito, pessoas que nunca se preocuparam em verificar as suas próprias afirmações falsas.

Por conseguinte, a própria bolsa foi descrita como uma “afronta à ciência”. Em cima disso, comecei a receber ameaças de morte. Fui igualmente advertida (ou melhor dito: ameaçada) que vários processos estavam sendo feitos contra mim. Além disso, fui repetidamente instada por um aliado do OISE a não falar nos meios de comunicação.

Agora, em meio a esse ataque, a ignorar completamente os princípios do bom jornalismo, eu “mantive minha calma”. Eu decidi escolher cuidadosamente o que responder e o que não responder. Eu ignorei a ameaça de processo por não ser credível. Apesar de ter sido exortada, nunca cancelei um compromisso – e o público sempre se apresentou aos meus eventos em massa. Solicitei a uma publicação em particular que me fosse concedido um editorial como contraponto ao artigo sensacionalista escrito por seu repórter, o que me foi consentido. Eu dei uma entrevista para um repórter sério (Kevin Richie), que trabalhava para um simpático jornal esquerdista (Now), e ele escreveu um ótimo artigo. Eu igualmente juntei estudantes e outros aliados para responder a alguns dos ataques.

Mais significativamente, juntamente com os alunos eu criei um vídeo sobre a bolsa de estudos, onde, entre outras coisas, os estudantes de antipsiquiatria lançam luz sobre o viés que enfrentam quando se candidatam a bolsas de estudo e como este prémio contrapõe a iniquidade. Além disso, criamos folhas informativas e cartas. Juntamente com aliados como Coalition Against Psychiatric Assault, em conjunto, todos nós criamos captadores de recursos, o que foi particularmente agradável e participativo. Em essência, criamos nossa própria boa imprensa, enquanto fazíamos o que podíamos com a má imprensa. Eu criei uma comunidade. E todos nós assistimos as contribuições irem aparecendo.

O que é especialmente interessante aqui é que, enquanto as peças de publicidade ruim superaram em muito a boa, se alguma coisa isso nos deu foi incentivar mais pessoas a aderir à causa. A questão é que a publicidade ruim ainda é publicidade – na verdade as contribuições para a bolsa encolheram consideravelmente após a má imprensa começar a falar mal, mas hoje mais gente conhece a problemática; e, além disso, muitos ficaram indignados com o jornalismo de má qualidade.

Não obstante, de acordo aos padrões, a nossa angariação de fundos estava a decorrer bem. Contudo, à medida que a campanha começava a chegar ao fim, ainda não havíamos nos aproximado de atingir o objetivo de US 50 mil doados – e lembre-se de que precisávamos disso, porque essa foi uma bolsa de estudos correspondente à minha. Dito isto, perto do final ocorreu algo muito inesperado. Um doador anônimo do Texas se materializou e prometeu o suficiente para completar a quantia de 50 mil dólares. Como ele sabia disso? Em uma palavra, por causa do dilúvio da publicidade negativa.

E se isso não fosse um presente suficiente, o doador anônimo procedeu a criar uma segunda fase de correspondência. Ou seja, ele assinou um contrato com a Universidade de Toronto comprometendo-se a corresponder cada dólar canadense com um dólar americano durante o próximo período.

Em suma, conseguimos prevalecer em nossos sonhos por mais loucos que pareciam!

Como um aparte, gostaria de acrescentar, recebi ao longo desse tempo uma chamada  do executor do meu testamento, que disse: “Bonnie, eu não posso dizer o quanto estou aliviado que você tenha feito tudo isso! Caso contrário, nunca teriam honrado as condições de sua vontade. ”

Lições a serem aprendidas

Embora cada situação seja, naturalmente, única, o que se segue são lições gerais que surgem a partir deste “caso”, e alguma orientação para os outros, qualquer que seja a sua causa, nos seus esforços para envolver uma organização dominante na luta para conferir legitimidade à sua área contra-hegemônica:

  • Peça algo relevante para a sua causa, que se encaixe com as formas normais deles operar, e que eles têm o poder de conceder.
  • Sempre mantenha seus olhos atentos para o que pode dar errado imediatamente ou no longo prazo.
  • Tenha em mente o objetivo instrumental e o objetivo final, bem como vários objetivos de acompanhamento. Nesse caso, o objetivo instrumental foi conseguir a aprovação da bolsa. Um exemplo de um objetivo de acompanhamento foi assegurar que os estudantes que pesquisam nesta área tenham acesso a bolsas de estudo. O objetivo final foi aumentar a credibilidade e melhorar o perfil da antipsiquiatria. Agora, a título de exemplo, se a minha única preocupação fosse o objetivo imediato e o objetivo que o acompanhava, eu poderia simplesmente ter contribuído com os $100 mil e salvado para todos nós literalmente milhares de horas de trabalho. No entanto, criar uma bolsa de estudos correspondente e envolver muitos na campanha foi uma forma de mobilizar a comunidade – que, em última análise, é crítica para o que Foucault [2] chama de “insurreição do conhecimento subjugado”.
  • Conheça a lei ou consulte um aliado que a conheça.
  • Prepare-se para um longo percurso e prepare-se para dedicar um bom tempo para educar.
  • Se você acha que a qualquer momento você estará “com tudo arranjado”, pense novamente.
  • Esteja preparado para o fato de que partes da luta que parecem ter sido ganhas retornarão de novas maneiras, pois tal é a natureza da regra hegemônica. Não fique frustrado. Apenas enfrente qualquer nova forma que apareça.
  • Não aceite o conceito de impossibilidade. A este respeito, tome cada obstáculo em seu caminho como um problema prático para você resolver.
  • Ao trabalhar cooperativamente com as organizações cuja cooperação você está solicitando, esteja sempre preparado para desafiar e manter sua posição. Note que eles provavelmente vão querer que você “jogue água fria” no que você está pedindo – e observe que isso é apenas o modo como as revoluções acontecem.
  • Se há dinheiro que você está dando no processo, saiba que isso lhe dá alavancagem e você deve usá-lo (se não, gaste tempo para descobrir qual é a sua alavancagem ou aquela que pode vir a ser, pois as batalhas deste tipo raramente são ganhas sem alavancagem).
  • Identifique os princípios mantidos em comum por você e aqueles cuja cooperação você está procurando. Em seguida, use isso como alavancagem e, o que é ainda mais significativo, use isso sobre bases de solidariedade (note a enorme importância do princípio da liberdade acadêmica na saga acima).
  • O que se relaciona com o último ponto: ajude as pessoas a compreender exatamente o que elas estão representando para alinhar-se com este projeto. No estudo de caso, defendiam a liberdade acadêmica, defendiam a criação de novos conhecimentos, defendiam o conhecimento libertador; e eles estavam defendendo a equidade.
  • Perceba que a própria lentidão do processo pode funcionar em seu favor. O tempo tomado dá aos colegas com quem você está lidando a experiência necessária para se identificarem verdadeiramente com a causa. Então, quando os desafios inevitáveis surgirem dos altos escalões ou do público em geral, as pessoas que você gastou todo esse tempo educando se tornarão fortemente identificadas com a causa, quando elas percebem que elas não estão simplesmente lutando por você. Elas estão lutando por algo em que elas passaram a acreditar, algo em que elas também investiram seus cuidados e energia.
  • Seja muito claro sobre o que a organização como um todo receberá ao tomar as medidas que você está sugerindo e ajude as pessoas a interiorizar isso. No estudo de caso que acabei de apresentar, observe o seguinte: as pessoas foram atrás do dinheiro, tiveram a oportunidade de agirem moralmente e de serem vistas como morais, e tiveram a oportunidade de ser mais líderes, no sentido de que a Universidade de Toronto seria a primeira Universidade no mundo a ter tal bolsa de estudos.
  • O que se relaciona com o anterior: ajude as pessoas a aceitar que elas têm algo a perder se não se envolverem. Esse senso de ganho e perda pode entrar em uma variedade de maneiras. Às vezes, a questão é o que alguém pode obter com o que você está oferecendo – nesse caso, começará a olhar de forma mais interessada. Observe como o coordenador de Educação de Adultos se tornou mais interessado em uma conexão com “educação de adultos”, uma vez que parecia que o SESE iria acabar associado com o Prêmio; da mesma forma como o diretor da OISE em 2006 tornou-se mais comprometido com a bolsa, uma vez que a perspectiva da bolsa ir para outro lugar surgiu. Outras vezes, é simplesmente a possibilidade de perder a chance de estar associado e de fazer parte de um empreendimento maravilhoso e inovador.
  • Mantenha a evidência dos acordos alcançados, para os jogadores institucionais que vão aparecendo, porque quando saem a memória institucional tipicamente tende a ir com eles.
  • Esteja ciente de que a maioria da imprensa estará alinhada contra você, e assim comece a desenvolver uma estratégia de mídia desde o início.
  • Mesmo que você e o projeto estejam sendo atacados sem piedade, nunca dedique mais de que 2% do seu esforço para responder a ataques. Ao invés de gastar tempo melhorando a sua mensagem; note que eu pessoalmente respondi por escrito a apenas um ataque (no editorial ao qual me referi anteriormente). Na minha intervenção, eu resumi rapidamente o que estava errado com o artigo, para então dedicar a grande maioria da peça para explicar o que tornou esta bolsa vital. Colocando isso de outra maneira: seja ativo, não reativo.
  • Reagrupe seus aliados sempre que puder. Você irá receber uma ajuda considerável, e o que é muito mais significativo, você transformará essa luta no que ela absolutamente tem de se tornar, em um esforço comunitário e em uma causa comum.
  • Construa eventos divertidos, usando arte e celebração da melhor forma possível. Nesse sentido, lembre-se da famosa observação da anarquista Emma Goldman: “Se eu não posso dançar, não quero fazer parte de sua revolução“.
  • Coloque na frente as vozes daqueles que se beneficiarão das medidas tomadas (observe, neste caso, a vanguarda das vozes como a Mad Students’ Society e as vozes dos estudantes atuais que se beneficiaram direta ou indiretamente da bolsa de estudos).
  • Tenha ideia com quem contar e o que deve ser ignorado.
  • Criar / co-criar sua própria mídia positiva.
  • Nunca deixe que ameaças de fora o assustem. Quanto mais ameaçarem você, o mais visível / audível possível você precisará se tornar. Tal é a natureza das revoluções.
  • Opere sobre o princípio de que a “má publicidade” é invariavelmente melhor do que “nenhuma publicidade”.

Finalmente, lembre-se de que há um tipo de dialética por meio da qual as questões deste tipo operam. Ou seja, os mesmos modos com que as forças da hegemonia vão contra você, são elas mesmas as próprias sementes de seu eventual (e coletivo) sucesso. Basta aplicar o jujitsu moral dos princípios do ativismo social.

Observações Finais

Minha esperança é que esses princípios gerais sejam úteis para você em seu trabalho contínuo. Seja qual for sua batalha contra-hegemônica, quer seja antipsiquiatria, ou abolição da prisão, ou lutas de gênero, sinta-se livre para usar esses princípios, adicioná-los, compartilhar com os amigos. Dito isto, eu, juntamente com muitos dos meus leitores tenho um interesse especial em seu uso na guerra contra a psiquiatria. Que eles nos ajudem a alcançar novas alturas! Que eles nos ajudem lentamente, mas com certeza, a transformar a antipsiquiatria / psiquiatria crítica em uma forma aceita de conhecimento.

Em conclusão, para retornar à Bolsa Dr. Bonnie Burstow em Antipsiquiatria, eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para agradecer a todos que se juntaram à causa, incluindo meus sempre confiantes aliados Lauren Tenney, Don Weitz, Peter Breggin e Cheri DiNovo. Obrigado a todos que contribuíram com dinheiro; todas as organizações que dedicam tempo e esforço à iniciativa (por exemplo, Coalition Against Psychiatric Assault); todos os estudantes e outras pessoas que telefonaram para as pessoas, organizaram campanhas de arrecadação de fundos, co-criaram vídeos, responderam aos críticos, espalharam a palavra (por exemplo, Sharry Taylor, Sona Kazemi, Efrat Gold, Lauren Spring, Simon Adam, Rebecca Ballen, Mark Federman e Edward Fox , Nichole Schott e Oriel Vargas). Da mesma forma, um agradecimento especial aos funcionários do OISE pelo seu enorme apoio, por terem feito o “caminho extra” (por exemplo, Mark Riczu, Inna Hupponen, Charles Pascal e Sim Kapoor).

Para fechar, um lembrete oportuno: uma nova fase de bolsa correspondência acaba de começar – por isso, se estiver interessado em contribuir para a causa, confira o site OISE; Consulte também https://donate.utoronto.ca/give/show/271).

[1] Burstow, B. (2015). Psychiatry and the business of madness. New York: Palgrave.

[2] Foucault, M. (1980). Power/Knowledge (C. Gordon et al, Trans.). New York: Pantheon

Nós Necessitamos de Parar de Prescrever Antidepressivos na Atenção Primária

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Neste editorial para Pulse, Des Spence argumenta com ênfase a necessidade de se reduzir drasticamente prescrições antidepressivas, na medida em que os antidepressivos são com muita frequência completamente ineficazes e desnecessários.

“Claramente a dor psicológica, assim como a dor física, tem um propósito – é uma resposta evolutiva. A dor psicológica é o catalisador da mudança, da aceitação e para se ir em frente. Falar sobre isso, abordar os estresses sociais, mudar o estilo de vida e talvez acabar com relacionamentos infelizes, é a solução. Antidepressivos não são a resposta para a grande maioria das pessoas. Devemos procurar normalizar, não medicalizar. ”

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A PSIQUIATRIA DEFENDE SEUS ANTIPSICÓTICOS: UM ESTUDO DE CASO DE CORRUPÇÃO INSTITUCIONAL

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robert-whitakerHá cinco anos, eu passei a trabalhar como membro de um laboratório no Centro Safra para Ética de Harvard, dedicando-me a estudar a “corrupção institucional”. O que eu particularmente apreciei nessa minha passagem pelo laboratório foi que aprendi um método claro para investigar e conceituar o problema. O quadro de referência foi o seguinte: identificar “economias de influência” que podem corromper o comportamento dos indivíduos dentro da instituição, documentar a corrupção e explorar o prejuízo social resultante.

Lisa Cosgrove e eu nos juntamos para estudar a “instituição” da psiquiatria através dessa lente, e nos concentramos em seu comportamento institucional desde 1980, quando a American Psychiatric Association (APA) publicou a terceira edição de seu Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM). Foi quando a APA adotou o seu modelo de doença para a categorização de transtornos mentais, com a profissão assumindo a tarefa de vender ao público esse novo modelo. Este foi o interesse particular que surgiu em 1980, e que tem moldado seu comportamento desde então. Estamos todos familiarizados com a segunda “economia de influência” que exerceu uma influência corruptora sobre a psiquiatria – dinheiro farmacêutico – mas acredito que a influência da corporação psiquiátrica seja realmente o maior problema.

Em nosso livro Psychiatry Under the Influence, nós documentamos o comportamento corrupto, que poderia ser encontrado em todos os cantos da psiquiatria: a falsa história contada ao público sobre drogas que corrigem desequilíbrios químicos no cérebro; a tendenciosidade dos testes clínicos; a manipulação dos resultados; a ocultação dos resultados pobres de longo prazo; a expansão das categorias de diagnóstico para fins comerciais; e a publicação de diretrizes de pesquisas clínicas que inevitavelmente passaram a promover o uso de drogas psiquiátricas.

No final de nossa investigação, eu tinha uma nova maneira de conceituar o prejuízo social causado por essa corrupção: nossa sociedade se organizou em torno de uma narrativa falsa, que nos foi apresentada como uma narrativa da ciência, mas que é desmentida por um exame atento das provas reais.

Agora, com a publicação de um novo estudo no American Journal of Psychiatry, intitulado “Os efeitos a longo prazo da medicação antipsicótica no curso clínico em esquizofrenia”, temos uma nova oportunidade para observar no artigo esta “mente institucional” da psiquiatria. Escrito pelo ex-presidente da APA Jeffrey Lieberman e outros sete psiquiatras, o artigo pretende servir como uma revisão baseada em evidências para a defesa dos protocolos atuais da profissão para a orientação da prescrição de antipsicóticos, o que inclui o seu uso regular a longo prazo. Examinando atentamente essa revisão, podemos avaliar, uma vez mais, se esta é uma profissão que pode ser confiável para avaliar honestamente sua base de evidências e usar essas evidências para orientar seus cuidados.

O contexto

Em 2010, publiquei Anatomia de uma Epidemia e, nesse livro, escrevi sobre os efeitos a longo prazo dos antipsicóticos, e concluí que há uma história da ciência que leva a essa conclusão: no geral, os antipsicóticos pioram a longo prazo os resultados das pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e outros transtornos psicóticos. Joanna Moncrieff escreveu similarmente sobre os perigos dos antipsicóticos em seu livro The Bitterest Pills e em artigos publicados.  Assim também Peter Götzsche em seu livro Deadly Psychiatry and Organized Denial e em vários periódicos.

Todas essas críticas ajudaram a promover uma investigação mais aprofundada sobre essa preocupação, o que colocou a psiquiatria em uma situação muito difícil: será que ela prescreve essas drogas de uma forma que causa mais danos do que benefícios? Será que seus protocolos para as drogas – o seu uso imediato para todos os pacientes psicóticos em primeiro episódio e depois o ‘uso contínuo’ das drogas – precisam ser repensados?

Em seu estudo recentemente publicado, Lieberman e colegas realizam o que eles descrevem como uma revisão “baseada em evidências” dessas perguntas. Eles concluem que não há evidência convincente que apoie essa preocupação. Em um subsequente comunicado de imprensa e em um vídeo para Medscape, Lieberman vendeu a ideia de que há provas de que os antipsicóticos fornecem um grande benefício, que os protocolos da psiquiatria são muito bem elaborados, e que os críticos são indivíduos “nefastos” com a intenção de fazer mal.

Joanna Moncrieff já publicou um blog crítico sobre  isso no Mad in Brasil, e, em particular, ela chama a atenção para a desistência dos autores em levar em conta os estudos relacionados sobre o efeito dos antipsicóticos nos volumes cerebrais. Miriam Larsen-Barr, que fez pesquisas sobre as atitudes dos usuários em relação aos antipsicóticos, também escreveu um blog criticando o estudo e o comunicado à imprensa, enfocando como os autores ignoram os relatos dos usuários sobre como as drogas afetam suas vidas.

Neste relatório para a comunidade do Mad in America, eu simplesmente quero olhar atentamente como Lieberman e seus colaboradores revisaram a literatura e estudos individuais. Podemos então ver se a fizeram de uma maneira que revela a mente de um grupo interessado em investigar verdadeiramente a questão dos efeitos a longo prazo dos antipsicóticos – com o bem-estar dos pacientes em primeiro plano em seus pensamentos -, ou se revela a ‘mente’ de um grupo interessado em proteger os interesses da corporação.

Então, ao final deste exercício, poderemos fazer esta pergunta essencial:

sendo verdadeiro que não podemos confiar na profissão para o desenvolvimento de tratamentos ‘baseados em evidências’ que coloquem os interesses dos pacientes em primeiro lugar – em oposição aos seus próprios interesses corporativos -, o que a nossa sociedade deve fazer?

Os Autores

Os oito autores se descrevem enquanto “um painel internacional de especialistas em farmacologia antipsicótica, neuroimagem e neuropatologia”. A tarefa que eles próprios se deram foi a de “rever as evidências pré-clínicas e clínicas que apoiam os efeitos adversos potenciais dos antipsicóticos sobre os resultados a longo prazo”.

De uma perspectiva de “corrupção institucional”, há informações adicionais que precisam ser acrescentadas a essa descrição: todos os oito são psiquiatras e, portanto, há um interesse “corporativo” presente nessa revisão, dado que eles estão investigando se um de seus tratamentos é prejudicial a longo prazo. Quanto à influência do dinheiro farmacêutico, cinco dos oito relatam laços financeiros com empresas farmacêuticas, com pelo menos três servindo como palestrantes para múltiplas empresas. Lieberman não relata tais conflitos de interesse, mas ele tem um passado cheio de tais conflitos: em 2009, ele revelou ter tido vínculos financeiros com 15 empresas farmacêuticas nos dois anos anteriores.

 As questões

Em sua introdução, os autores citam artigos de Moncrieff, Götzsche e meus que levantam preocupações sobre os efeitos a longo prazo dos antipsicóticos. Em termos de importância clínica, a revisão deve servir como um exame de evidências relevantes para a forma como os antipsicóticos estão sendo prescritos. Estão eles sendo usados de uma maneira que melhor atenda os pacientes, ou de uma maneira que aumenta a probabilidade de que uma pessoa que sofre uma crise psicótica tenha um mau resultado a longo prazo?

O protocolo atual da psiquiatria exige que os medicamentos psiquiátricos sejam prescritos a todos os pacientes psicóticos, bem como a “terapia de manutenção” a longo prazo. Os ensaios controlados com placebo fornecem a evidência para a primeira prática. Estudos de retirada, em que os pacientes estabilizados em medicamentos são randomizados para tratamento continuado ou para retirada (geralmente de forma abrupta), apoiam o segundo (“terapia de manutenção”).

No entanto, os estudos de retirada não mostram como a terapia de manutenção afeta os pacientes a longo prazo. Eles simplesmente revelam que uma vez que uma pessoa tenha sido estabilizada com a medicação, a retirada abrupta da droga é susceptível de levar à recaída. O foco nos resultados de longo prazo, pelo menos como apresentados pelos críticos, fornece evidências de que a psiquiatria deve adotar um protocolo de uso seletivo. Se os pacientes de primeiro episódio não são imediatamente colocados em antipsicóticos, há uma porcentagem significativa que irá se recuperar, e esta “recuperação espontânea” os coloca em um bom processo de longo prazo. Quanto aos pacientes tratados com os medicamentos, o objetivo seria minimizar o uso a longo prazo, pois há evidências de que os antipsicóticos, no seu conjunto, pioram os resultados a longo prazo.

Essa é a relevância clínica dessa “preocupação”. Será que psiquiatria não precisa repensar seus protocolos de uso de drogas para dar aos pacientes a melhor chance para se recuperarem e funcionarem bem a longo prazo?

A boa notícia aqui é que os autores, com esse artigo, estão buscando abordar as principais questões levantadas pelos críticos. Além disso, à medida que realizaram sua revisão, eles revisitaram muitos dos estudos sobre os quais nós “críticos” escrevemos. Em grande medida, eles retraçaram o caminho histórico que eu escrevi em Anatomia de uma Epidemia, que fornece um senso de concordância baseada nas evidências disponíveis e que podem ser revistas.

Desconstruindo sua revisão: Parte um

A primeira parte de sua revisão é dedicada a avaliar a base de evidências para o uso de antipsicóticos para o tratamento de episódios psicóticos, incluindo o seu uso em pacientes de primeiro episódio. Há evidências que deem suporte ao tratamento de todos os pacientes dessa forma? Ou há razão para se desenvolver protocolos, particularmente para pacientes com primeiro episódio, que lhes dariam a oportunidade de se recuperar sem exposição às drogas?

A. Ensaios clínicos controlados com placebo em doentes psicóticos

Em 2009, Leucht publicou uma meta-análise de 38 ensaios clínicos com antipsicóticos de segunda geração, onde ele relata haver uma taxa de resposta de 41% para os pacientes tratados com drogas versus 24% para o grupo placebo. Lieberman e colegas citam esse estudo como fornecendo evidência sólida para a prescrição regular de antipsicóticos a pacientes que experimentam episódios psicóticos. “Esta magnitude do efeito terapêutico é comparável favoravelmente a muitos dos tratamentos eficazes em campos não-psiquiátricos da medicina”, escreveram.

O que está faltando em sua resenha

Embora os estudos controlados com placebo possam mostrar ser um fármaco mais eficaz do que o placebo na redução de um sintoma alvo (durante um curto período de tempo), tais estudos não fornecem evidência do efeito benéfico que o fármaco tem sobre todos os doentes assim tratados. Para fazer essa avaliação, os avaliadores precisam calcular o NNT nos dados do estudo, que é o número de pacientes que precisam ser tratados para obter uma resposta positiva adicional. Isso identifica a porcentagem de pacientes que se beneficiam do tratamento e a porcentagem que pode ser prejudicada pela exposição a um tratamento de que eles não se beneficiam (por exemplo, aqueles que teriam se recuperado de qualquer maneira ou os que não respondem ao tratamento).

Na meta-análise citada por Lieberman, o NNT é 6. Embora 41% dos pacientes tratados com fármaco são respondedores, 24% dos pacientes com placebo também o são, produzindo um aumento líquido nos respondentes de 17%. Isso significa que para cada seis pacientes que você trata com a droga, você receberá uma resposta adicional, e este é o grupo que poderia dizer que se beneficia do tratamento.

Os restantes 83% pertencem à categoria de danos. Há os não-respondedores (59%) que são os que não se beneficiaram com o tratamento, mas que agora estão expostos aos efeitos adversos dos antipsicóticos, e os respondedores ao placebo (24%) que teriam melhorado sem esse tratamento, mas que estão expostos de forma semelhante aos efeitos adversos das drogas.

Se você tiver um tratamento com efeitos colaterais mínimos, então um NNT de seis pode justificar um protocolo de tamanho único. A possibilidade adicional de responder ao tratamento justifica o risco de exposição a um fármaco com efeitos secundários menores. Mas neste caso, uma vez que os antipsicóticos têm tais efeitos colaterais graves, a meta-análise de Leucht de ensaios controlados por placebo fornece um argumento baseado em evidências para evitar antipsicóticos enquanto uma terapia de primeira linha para todos os pacientes, e para se tentar, em vez disso, se outras abordagens – abordagens psicossociais, auxiliares de sono e assim por diante – podem produzir uma taxa de resposta semelhante em curto prazo (41%), sem expor todos aos perigos dos medicamentos. Os fármacos podem então ser tentados como uma terapia de segunda linha para os não-respondedores.

Para os fins deste relatório do Mad in America, a questão é esta: revisores que procuram promover o seu tratamento medicamentoso como efetivo procurarão exclusivamente saber se o tratamento produz uma resposta superior ao placebo. Isso leva a um protocolo totalmente parcial. Por seu turno, os revisores que desejam avaliar o efeito benefício-dano do tratamento em todos os pacientes examinarão os números de NNT. Nesse caso, os cálculos de NNT argumentam para o uso seletivo dos medicamentos, pois o que se busca são protocolos que permitam que “respondedores de placebo” se recuperem sem serem expostos às drogas, e não exijam que os medicamentos sejam prescritos de forma contínua para os “não-respondedores.”

B. Ensaios controlados com placebo em doentes com primeiro episódio

O estudo de Leucht citado por Lieberman implica que 24% dos pacientes psicóticos se recuperarão de um episódio psicótico, ou pelo menos parcialmente, em um período de seis semanas (a duração usual dos ensaios clínicos controlados por placebo). No entanto, os ensaios da meta-análise de Leucht  foram realizados em pacientes que haviam sido expostos a antipsicóticos, comparados com o “grupo placebo” composto em sua maioria de pacientes a quem foram abruptamente retiradas as drogas. Eles não são um verdadeiro grupo placebo, e isso levanta uma questão essencial: qual é a taxa de recuperação para pacientes com primeiro episódio que não são tratados com antipsicóticos comparada em relação com a taxa de recuperação para pacientes com primeiro episódio tratados com as drogas?

Em seu artigo, Lieberman e colegas nos dão a resposta: “Nenhum ensaio controlado por placebo com pacientes em primeiro episódio de psicose foi relatado.”

Esta é uma confissão bastante surpreendente. Desde a introdução dos antipsicóticos em 1955, nunca houve um estudo controlado por placebo em pacientes para ver se os fármacos são eficazes neste grupo. No entanto, este tratamento inicial pela via psicofarmacológica regularmente se transforma em um momento decisivo em suas vidas, porque o protocolo usual da psiquiatria é manter os pacientes em antipsicóticos indefinidamente.

Isso por si só deve dar à psiquiatria razão para reexaminar a sua prática para o tratamento de pacientes em primeiro episódio. Essa prática clínica não se baseia em evidências, e parece que a profissão, que gosta de se apresentar como praticante de medicina baseada em evidências, gostaria de remediar essa deficiência extraordinária.

C. Estudos que relataram taxas de recuperação em pacientes com primeiro episódio, ou uma coorte fortemente composta de pacientes em primeiro episódio, que envolveu tratá-los com atenção psicossocial e sem antipsicóticos

1) Odegard e McWalter

Estes são dois primeiros estudos citados por Lieberman e colegas que compararam as taxas de recuperação imediatamente antes e após a introdução de antipsicóticos. Eles escreveram que estes estudos mostraram “aumento das taxas de alta hospitalar e taxas reduzidas de rehospitalização associadas ao tratamento inicial com antipsicótico”.

Com outras palavras, eles estão afirmando que esses estudos apoiam o uso imediato de antipsicóticos em pacientes em primeiro episódio, e que esse uso leva a resultados superiores a longo prazo. Não se trata de evidência controlada por placebo, mas evidência de um tipo diferente que apoia sua prática atual.

O que está faltando em sua resenha

Eles não forneceram quaisquer dados desses dois estudos, que, se apresentados, defenderiam o uso seletivo de antipsicóticos. Aqui estão os dados:

Odegard :
novo - odegard.001 (1)

McWalter:

NovoMcWalter.001

Em ambos os estudos, mais de 60% dos pacientes com primeiro episódio tratados sem antipsicóticos recuperaram e nunca recaíram em períodos de follow-up de três a cinco anos. Eles tiveram um episódio de psicose, ao invés de ficarem cronicamente doentes (e, portanto, de terem que ficar em tratamento contínuo com drogas).

É também notável que a taxa de recuperação – e a taxa de bem-estar de longo prazo – não mudou realmente com a introdução de antipsicóticos. Neste momento, não havia ainda a prática de manter os pacientes fora dos hospitais em tratamento com antipsicóticos, e assim a boa taxa dos que estão bem nesses estudos é para os pacientes que não estão sendo mantidos em medicamentos a longo prazo.

  1. May

No início da década de 1960, May randomizou 228 pacientes desta forma: os que estavam na primeira admissão para psicoterapia, os que estavam em terapia ambiental (num ambiente de apoio), os que estavam em antipsicóticos, ECT, e os que estavam com drogas mais psicoterapia. Não houve controle de placebo, mas o grupo em terapia ambiental forneceu algo próximo dos que estavam no grupo “os não tratados”. “Pacientes designados para uso de antipsicóticos (sozinhos ou em combinação com outro tratamento) ou ECT passaram menos tempo no hospital nos três anos seguintes e exibiram um funcionamento social superior”, escreveu Lieberman e colegas.

Este estudo está sendo apresentado como a mostrar que o uso inicial do medicamento levou a um melhor resultado no follow-up de três anos para os pacientes assim tratados.

O que está faltando em sua resenha

Eles não conseguiram relatar esse importante resultado: 59% dos pacientes randomizados para a terapia ambiental foram considerados com “sucesso”, e ao longo do folllow-up dos três anos. A respeito May relatou, “os sucessos iniciais do meio funcionaram melhor do que com qualquer outro tratamento, pelo menos no follow-up. ”

De fato, os sucessos com o tratamento em meio psicossocial tiveram as melhores pontuações em qualquer um dos cinco grupos sobre relações sociais e ajuste geral, o que levou May a escrever: “Mesmo que alguns tratamentos psicossociais piorem os resultados em média, seus sucessos podem ser maiores ou sua qualidade mais duradoura.”

Esta é uma descoberta relevante para saber se uma porcentagem significativa de pacientes com primeiro episódio pode ser tratada com sucesso sem medicação e como tais “sucessos” se aplicam a longo prazo. Mais uma vez, mostra que cerca de 60% caíram neste grupo, e que esse grupo de “sucessos” parecia ser de “qualidade mais duradoura”.

  1. Schooler

No início dos anos 1960, o NIMH realizou um estudo de 229 pacientes com esquizofrenia em fase aguda, que foram randomizados para um de três antipsicóticos ou placebo. Cinquenta por cento eram pacientes em primeiro episódio. Ao passo que, os pacientes tratados com fármaco apresentaram taxas de recuperação mais elevadas a curto prazo, Lieberman e colegas observaram que “os indivíduos que receberam placebo durante o ensaio inicial de 6 semanas tinham menos probabilidade de recaída após a alta hospitalar, em comparação com indivíduos que receberam fenotiazina”.

Depois de ter relatado os melhores resultados de um ano para os pacientes com placebo, em seguida Lieberman e colegas descartaram desta forma esse resultado favorável: “Porque as taxas de abandono são taxas devidas à não-resposta durante o ensaio randomizado inicia, elasl diferiram substancialmente entre os grupos de tratamento (2% com fenotiazina em comparação com 29% no grupo placebo), por isso é altamente provável que a amostra para o estudo de follow-up dos pacientes que receberam alta continha um número desproporcional de pacientes com mau prognóstico no grupo da fenotiazina, uma vez que estes indivíduos não teriam conseguido alta hospitalar se tratados com placebo. ”

O que está faltando em sua resenha

Em primeiro lugar, eles não relataram que 67% do grupo placebo receberam alta e que, portanto, estavam neste grupo de “melhores resultados” no final de um ano. Esta é uma descoberta que parece replicar os resultados no estudo de Mayo.

Em segundo lugar, em seu esforço para descartar os melhores resultados para os pacientes em placebo, Lieberman e colegas assumem que foi o “mau prognóstico” dado aos pacientes placebo que os levou a abandonarem o estudo. No entanto, como mostram estudos longitudinais modernos (como o de Harrow), os desistentes podem ser melhor caracterizados como pacientes “não-conformes”, e este é o grupo que apresenta os melhores resultados a longo prazo.

Em terceiro lugar, quando Schooler procurou explicar os melhores resultados de 1 ano para aqueles tratados com placebo, ele descobriu que os pacientes em placebo eram “mais propensos a ter pais que eram mentalmente doentes”, o que seria um fator de risco que “aumentaria a probabilidade de rehospitalização. ” Esta diferença nos grupos de pacientes, escreveu Schooler,” faria uma maior taxa de rehospitalização de pacientes placebo ser maior, e não menor “.

  1. Rappaport

Neste estudo de 1970 “com pacientes agudamente psicóticos, a maioria dos quais sem antes haver tomado medicação psiquiátrica”, 127 foram randomizados para placebo ou para clorpromazina, e foram acompanhados (follow-up) por três anos após a alta. Lieberman e colegas escreveram que Rappaport “relatou resultados mais pobres durante um follow-up de 3 anos” no grupo tratado com clorpromazina, mas que depois descartou os melhores resultados para os pacientes placebo.

O projeto, segundo eles, é “confundido por taxas conflitantes desiguais durante a fase inicial de tratamento – 45% dos pacientes tratados com placebo abandonaram-no, comparados com 26% dos pacientes tratados com clorpromazina. Após a correção para a perda desigual de pacientes com mau prognóstico no grupo placebo, as diferenças no resultado não eram mais significativas entre os grupos “.

O que está faltando / errado com a sua revisão

Em primeiro lugar, no final de três anos, havia 41 no grupo placebo que ainda estavam no estudo versus 39 no grupo de drogas. Portanto, não houve “desvio” desigual no final do estudo (ver gráfico abaixo).

Em segundo lugar, Rappaport escreveu que foi “durante o período de follow-up” onde houve um maior peso de indivíduos do grupo placebo, e não na fase inicial do tratamento, como alegou Lieberman.

Se isto for assim, então deveria ter havido um maior peso dos sujeitos do grupo de fármacos na fase de tratamento inicial (para os números em cada grupo serem iguais no final do estudo).

Em terceiro lugar, dos 80 pacientes ainda no estudo ao final, 14 no grupo placebo foram vistos como pacientes com “mau prognóstico” no início do estudo, e 14 no grupo de drogas  assim foram designados no início. Assim sendo, não houve “perda desigual de pacientes com mau prognóstico” que tenha levado a confundir os resultados de três anos.

Em quarto lugar, as diferenças nos resultados entre os dois grupos foram impressionantes. Dois terços dos randomizados para placebo estavam fora da medicação no final do período de acompanhamento (follow-up), e foi este grupo que, de longe, teve os melhores resultados em três anos. Ao mesmo tempo, 57% daqueles randomizados para a droga permaneceram com um antipsicótico durante os três anos, e foi este grupo complacente com a medicação – seguindo os protocolos prescritos vigentes para uso de antipsicótico – que teve a mais alta taxa de rehospitalização, cerca de nove vezes maior do que para o grupo nunca exposto.

Aqui estão os resultados que Lieberman e colegas não apresentaram:

NovoRappaport.001

Finalmente, em um esforço para investigar a maior taxa de peso para os pacientes placebo na fase de acompanhamento, Rappaport fez esta análise: ele jogou fora os quatro piores resultados no grupo fora de Clorpromazina , e, com este menor tamanho da amostra,  passou agora a não haver diferenças significativas entre o grupo nunca medicado e os pacientes randomizados para droga e que depois parou de tomar a medicação durante a fase do follow-up. Rappaport também descartou os cinco piores resultados no grupo com Clorpromazina , mas mesmo com esta manipulação as diferenças significativas nos resultados entre o grupos em placebo / sem Clorpromazina/ e grupos Clorpromazina desapareceram.

Em resumo, Lieberman e colegas, na sua revisão deste estudo, não relataram os seus resultados reais, e descartaram os resultados muito melhores para os grupos fora da medicação, com uma descrição imprecisa da investigação de Rappaport sobre o efeito das taxas de atrito. Lieberman e colegas, no resumo do estudo, declararam que não havia diferenças significativas em três anos entre os randomizados para placebo e aqueles randomizados para droga, quando, de fato, o estudo disse que pacientes em placebo / ou que pararam de tomar saíram-se bem melhor do que aqueles pacientes complacentes com a medicação.

Rappaport deixou isso claro no resumo do estudo: “Nossos achados sugerem que a medicação antipsicótica não é o tratamento de escolha, pelo menos para certos pacientes, se alguém está interessado na melhora clínica de longo prazo. Muitos pacientes não medicados durante o período hospitalar apresentaram maior melhora a longo prazo, menos patologia no follow-up, menos reinternações, e melhor funcionamento geral na comunidade, do que aqueles pacientes que receberam Clorpromazina no hospital “.

  1. Ran

Lieberman e colegas citaram este estudo chinês em uma seção de seu artigo dedicada a esta pergunta: “Qual é a evidência clínica de que o tratamento inicial afeta resultados a longo prazo?” Nesta seção, eles também citaram Odegard, McWalter, May, Schooler, e os estudos de Rappaport, e assim passam a posicionar o estudo de Ran como um que fornece os achados em pacientes tratados inicialmente com e sem medicamentos, e que são seguidos (follow-up) então por algum tempo.

O estudo de Ran, segundo eles, foi um “follow-up de 14 anos comparando indivíduos medicados com indivíduos nunca medicados”, e descreveram os resultados desta maneira: “Os resultados foram piores no grupo nunca medicado, incluindo as taxas de remissão parcial e completa, falta de moradia e mortalidade. Aproximadamente 10% dos indivíduos que nunca foram tratados obtiveram remissão, e aproximadamente 8% foram parcialmente remitidos, em comparação com 30% e 37%, respectivamente, em indivíduos que regularmente tomaram medicação”.

Dado o contexto, os leitores são induzidos a compreender que esse estudo forneceu a evidência de que o tratamento inicial com medicamento, e o posterior uso “regular” da medicamentação ao longo dos catorze anos, produziram resultados superiores.

O que está faltando / errado com sua revisão

Esse estudo não comparou os resultados a longo prazo de pacientes psicóticos não medicados – com a identificação desses pacientes no início da doença -, com um grupo similar de pacientes medicados. Lieberman e colegas deturparam completamente esse estudo: o seu projeto, a composição das coortes de pacientes, o uso de medicação por eles, e, aparentemente apenas por uma boa medida, os seus resultados.

No estudo, os investigadores de Hong Kong pesquisaram uma comunidade rural da China com 100.000 habitantes, e identificaram 510 pessoas que preenchessem os critérios para um diagnóstico de esquizofrenia. Isso foi em 1994, e em nesse momento do começo da investigação haviam 156 que nunca tinham sido tratados, e 354 que tinham recebido medicação antipsicótica pelo menos uma vez, e que, portanto, foram considerados do grupo “tratado”.

O grupo “não tratado” tinha em média 48 anos de idade e estava doente há 14 anos. Qualquer pessoa desta comunidade rural que, nos anos anteriores a 1994, tivesse sofrido um episódio psicótico e se recuperado sem tratamento, não teria aparecido nesse estudo. Em termos leigos, os pesquisadores identificaram um grupo de pessoas “cronicamente loucas” para comporem o grupo “não tratado” que eles agora seguiriam por 14 anos.

O grupo “tratado” não era, de fato, um grupo “regularmente” medicado, nem mesmo no ponto de partida da pesquisa. Eles eram simplesmente uma coorte de pacientes que haviam recebido medicação antipsicótica pelo menos uma vez antes do início do estudo. Não há informações sobre quantas pessoas neste grupo estavam tomando um medicamento em 1994, quando o estudo começou.

Nesse momento, o grupo crônico, não tratado, estava muito mais doente do que a coorte “tratada”, observaram os pesquisadores. A coorte não tratada era “significativamente de mais velhos, menos propensos a se casar, mais propensos a não ter um cuidador familiar e a viver sozinhos, tinham um nível de escolaridade mais baixo e menos membros da família”. O grupo não tratado também veio de famílias com um nível econômico significativamente com menor status, e com maior probabilidade de haverem sido objeto de violência de suas famílias. Além disso, o grupo nunca tratado teve uma “duração mais longa da doença; maior pontuação média na subescala positiva PANSS; e tinha maior subescala PANSS negativa e de escores mentais em geral. “Oitenta e três por cento tinham sintomas marcantes / ou estavam deteriorados, em comparação com 54% dos do grupo tratado.”  Apenas 17% estavam em remissão parcial ou completa na linha de base  comparados com os 47% daqueles no grupo tratado.

Nos próximos 14 anos, houve muitos na coorte “não tratada” que continuaram sem tratamento e os pesquisadores relataram a taxa de remissão para esta coorte “nunca medicada” no final do estudo. Quanto ao grupo “tratado”, os pesquisadores não relataram o uso de medicação durante os 14 anos. Eles observam que no último ano do estudo, em 2008, apenas 11% deste grupo “tratado” tomou um antipsicótico de segunda geração, mesmo uma vez. Não há informações sobre se alguém neste grupo estava tomando um antipsicótico de primeira geração naquele momento.

Em sua revisão, Lieberman e colegas não mencionaram isso. Eles apresentam como sendo um estudo de longo prazo que compara indivíduos medicados a não medicados, quando na verdade é um estudo que compara um grupo seleto de pacientes crônicos mais velhos com um grupo menos doente que, em algum momento de suas vidas, foi “tratado”. Pacientes nesta segunda coorte que não estavam tomando um antipsicótico no início e não tomaram qualquer medicação nos próximos 14 anos ainda teriam sido contados nos resultados para o grupo” tratado “. No entanto, Lieberman e colegas descrevem-nos como “regularmente medicados” durante os 14 anos.

Além disso, Lieberman e seus coautores também obtiveram os números de remissão errados. Ao final de 14 anos, a taxa de remissão /remissão parcial para o grupo com doença crônica não medicada foi de 30% (não 18%) e 57% para o grupo tratado (não 67%). Eles deflacionaram a taxa de remissão para o grupo que eles descreveram como “não medicado”, e inflaram a taxa para o grupo que erroneamente foi descrito como “medicado”.

E este é um estudo por eles citado como fornecendo provas de que o tratamento inicial com medicação produziu melhores resultados a longo prazo.

  1. Seikkula

Nos últimos 15 anos, Jaakko Seikkula tem relatado sistematicamente os resultados de cinco anos com pacientes psicóticos em primeiro episódio e tratados com a terapia do diálogo aberto na Lapónia Ocidental, um protocolo que evita o uso imediato de antipsicóticos. Dois terços de seus pacientes não foram expostos a antipsicóticos ao final de cinco anos e estão assintomáticos e funcionando bem. No entanto, Lieberman e colegas não citam esse estudo, embora ele forneça evidências consistentes com estudos anteriores, de que 60% dos pacientes do primeiro episódio, quando atendidos com assistência psicossocial, podem se recuperar sem o uso de antipsicóticos.

  1. Estudos de psicose com duração não tratada

Para sustentar seu argumento que o tratamento inicial com antipsicóticos leva a melhores resultados a longo prazo, Lieberman e colegas citaram uma meta-análise de 33 estudos que encontraram “modestas correlações entre uma maior duração da psicose não tratada e sintomas residuais positivos e negativos e prejuízos no funcionamento social.”. Eles também chamaram a atenção para um” estudo quase-experimental “que encontrou uma redução na “diferença entre o início dos sintomas psicóticos e tratamento com antipsicóticos associado com melhores resultados a longo prazo”, com esse estudo durando dois anos.

O que está faltando nessa revisão

Esses estudos sobre a duração de psicose não-tratada não comparam o tratamento inicial de um paciente psicótico em um regime com antipsicóticos com aqueles em um regime sem medicação. Todos os pacientes nesses estudos são tratados com antipsicóticos; a diferença é que um grupo ficou doente por um tempo mais curto do que o segundo grupo antes de entrar em tratamento.

Como Sandy Steingard escreveu em um blog no Mad in America  há vários anos, não há uma imagem clara, a partir desses estudos, que se encurtar o tempo da psicose antes do tratamento com um antipsicótico produza uma diferença significativa ao longo de períodos mais longos de tempo. Os resultados têm sido conflitantes. Mas os pesquisadores descobriram sim que um maior atraso para os pacientes receberem cuidados psicossociais leva a uma maior probabilidade de que os pacientes passem a sofrer de sintomas negativos em seis anos.

O tratamento precoce com atenção psicossocial pode produzir um benefício, e talvez o tratamento precoce seja ainda maior se combinado com a ausência de tratamento com neuroléptico.

Desconstruindo sua revisão, parte dois

Na segunda parte do estudo, Lieberman e seus colegas focalizam os “efeitos a longo prazo da medicação antipsicótica no curso clínico da esquizofrenia”. Eles reviram estudos longitudinais, evidências sobre se os antipsicóticos encolhem o cérebro e as preocupações de que os antipsicóticos induzem uma supersensibilidade à dopamina que tornariam os pacientes mais biologicamente vulneráveis à psicose a longo prazo.

A. Estudos longitudinais

  1. Harrow

Este é o melhor estudo prospectivo, longitudinal, até hoje realizado na era moderna. Com financiamento do NIMH, Harrow acompanhou um grande grupo de pacientes psicóticos, incluindo 64 diagnosticados com esquizofrenia, por mais de 20 anos, e periodicamente foram avaliados os resultados deles, com os pacientes agrupados de acordo com o uso de antipsicóticos. Eis aqui o que Lieberman e colegas escreveram – em sua totalidade – sobre esse estudo, que eles decidiram agrupar, em uma mesma frase, em seu relato sobre um estudo longitudinal finlandês feito por Moilanen.

Os dois estudos, eles escreveram, “encontraram resultados superiores em indivíduos que foram previamente tratados, mas que não tomavam medicação no momento da avaliação, em comparação com indivíduos tomando medicação. No entanto, os pacientes não medicados apresentaram características pré-mórbidas mais favoráveis no estudo de Harrow e colegas, e apresentaram doença menos grave no estudo de Moilanen e colaboradores, sugerindo que em estudos naturalistas não controlados, o status da medicação possa ser em parte o resultado de se os pacientes estão bem ou mal, em vez de ser causa. ”

Em suma, eles reconhecem que os resultados foram “superiores” no estudo de Harrow e também em Moilanen, mas descartaram esses resultados, afirmando que os pacientes não medicados estavam menos gravemente doentes no início.

O que está faltando / errado com a revisão do estudo de Harrow

Não há outro estudo longitudinal na literatura que alcance o nível de Harrow em termos de fornecer dados rigorosos e abrangentes sobre o curso de longo prazo de pacientes psicóticos medicados e não medicados. Ele inscreveu 200 pacientes psicóticos no estudo, provenientes de dois hospitais da área de  Chicago (um público e um privado), e eles formavam um grupo de jovens, com uma idade média de 22,9 anos. Quase metade eram pacientes com o primeiro episódio, e outros 21% tinham apenas uma internação prévia. Todos foram convencionalmente tratados no hospital com medicamentos e, após serem dispensados, Harrow realizou um acompanhamento regular que identificasse o uso de medicamentos, seus sintomas e seu funcionamento. Ele dividiu seus pacientes em diferentes subgrupos: pacientes esquizofrênicos com bom prognóstico e com mau prognóstico, e pacientes com distúrbios mais leves. No final de 15 anos, ele ainda tinha 77% dos 200 pacientes no estudo, o que é uma façanha extraordinária. Em estudos sobre drogas, as taxas de abandono em testes clínicos, mesmo de curto prazo, são muito maiores do que as da pesquisa de Harrow.

No entanto, Lieberman e colegas, em um artigo que se propunha investigar os efeitos a longo prazo dos antipsicóticos, não apresentam detalhes que possam dizer sobre o rigor deste estudo, e eles não apresentam nenhum dos dados de desfecho. Além disso, sua explicação para os pacientes não medicados – que era porque supostamente tinham um melhor prognóstico inicial – é desmentida pelos dados de Harrow, e a razão para que isso possa ser mostrado é precisamente porque Harrow dividiu os pacientes em grupos com prognósticos diferentes.

Para os doentes não medicados, verificou-se uma enorme diferença nos resultados, em todos os domínios, que começaram com o follow-up de 4,5 anos e permaneceram durante todas as avaliações subsequentes. Para aqueles com diagnóstico de esquizofrenia, a taxa de recuperação a longo prazo para o grupo sem medicação foi de 40% contra 5% para o grupo medicado. Os pacientes não medicados estavam muito mais propensos a trabalhar, tinham melhores resultados em testes cognitivos e tinham menos ansiedade em cada avaliação de acompanhamento. Talvez o mais notável de tudo, eles eram muito menos propensos a ter sintomas psicóticos em cada follow-up, começando com a avaliação feita em 4,5 anos. Aqui estão os resultados que Lieberman e colegas não apresentaram e nem discutiram:

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Tendo falhado em apresentar esses dados, Lieberman e colegas, em seguida, descartaram os “resultados superiores” para os pacientes não medicados, afirmando que este grupo tinha mais “características favoráveis premórbidas”. Há uma história interessante por trás desta explicação para a diferença de resultados, que a psiquiatria tem se agarrado – mesmo depois que foi revelado ser falsa.

Harrow, em seu relatório de 2007, levantou a hipótese para os melhores resultados no grupo sem medicação a uma diferença nas características premórbidas, visto que os pacientes com bom prognóstico estariam mais propensos a parar a medicação. No entanto, essa explicação foi desmentida bem em seguida: os pacientes com bom prognóstico de esquizofrenia que deixaram a medicação ficaram melhor do que os pacientes com bom prognóstico de esquizofrenia que permaneceram tomando antipsicóticos, e isso foi verdadeiro para todos os outros subgrupos (pacientes com prognóstico ruim que deixaram de tomar a medicação estavam melhor do que os pacientes com mau prognóstico que permaneceram com a medicação, e que era o mesmo para aqueles com distúrbios psicóticos mais leves). E o mais impactante de tudo: os pacientes esquizofrênicos que pararam de tomar antipsicóticos ficaram melhor do que aqueles com transtornos mais leves que continuaram a tomar os medicamentos.

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Em suas publicações mais recentes, Harrow reconheceu que isso é assim mesmo. Em cada subgrupo, os grupos em medicação apresentaram resultados significativamente piores a longo prazo. Em um artigo de 2013, ele resumiu seus pensamentos desta maneira:

“Como é tão patente que a aparente eficácia dos antipsicóticos possa diminuir ao longo do tempo ou se tornar ineficaz ou prejudicial? Há muitos exemplos de outras medicações de efeitos semelhantes a longo prazo, e isso frequentemente ocorrendo porque o corpo se readapta biologicamente aos medicamentos.”

2. Moilanen

Como mencionado acima, Lieberman e colegas citam este estudo no trabalho de Harrow e descarta-o na mesma frase, afirmando que os pacientes não medicados estavam menos gravemente doentes no início do estudo.

O que está faltando / errado com este comentário

Neste estudo, pesquisadores finlandeses identificaram 70 pacientes nascidos em 1966 que foram diagnosticados com psicoses esquizofrênicas. Eles avaliaram o estado dos pacientes em 2000, quando tinham 34 anos de idade (com uma duração média de doença de 10,4 anos). Naquela época, os 24 pacientes fora da medicação estavam muito melhor do que os 46 pacientes com antipsicóticos: eles tiveram uma maior probabilidade de estar trabalhando, maior probabilidade de estar em remissão, e tendo melhores resultados clínicos. Em suma, não foi que o grupo não medicado neste estudo estivesse “menos gravemente” doente quando inicialmente diagnosticado, mas sim que uma década após o diagnóstico inicial, aqueles fora de medicação estavam indo muito melhor do que aqueles em medicação.

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Os pesquisadores então seguiram os 70 pacientes por mais nove anos, e aqueles que usaram antipsicóticos menos de 50% do tempo estiveram mais propensos a funcionar bem, estar em remissão e ter um bom resultado clínico.

Como foi o caso com a apresentação do estudo de Harrow, Lieberman e colegas não relataram esses dados, e eles explicaram por que os “resultados superiores” não foram levados em consideração com uma alegação de que o grupo não medicado era menos gravemente doente – o  que não é o encontrado no próprio estudo.

3. Wils

Há outro estudo longitudinal que fornece dados de resultados a longo prazo tomando como base pacientes em uso de antipsicóticos. Trata-se de um estudo dinamarquês de 496 pacientes com espectro de esquizofrenia de primeiro episódio e diagnosticados entre 1998 e 2000. Ao final de 10 anos, havia 303 pacientes ainda no estudo, 121 dos quais eram considerados “não-complacentes” e fora da medicação. Não houve diferenças na linha de base entre os grupos não-complacentes e em medicação em 10 anos.

Aqui estão seus resultados de 10 anos:

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Este estudo não foi citado por Lieberman e colegas.

  1. Tiihonen

Em sua revisão de estudos longitudinais, Lieberman e colegas gastaram apenas uma frase para abordar os estudos de Harrow e Moilanen, não citaram o estudo dinamarquês e, em seguida, escreveram que “outros estudos naturalistas encontraram melhores resultados em indivíduos com esquizofrenia em comparação com aqueles que não tiveram esses bons resultados”. Eles não deram detalhes desses outros estudos naturalistas, mas citaram dois relatos de Tiihonen e seus colegas finlandeses.

O que há de errado com este comentário

Os artigos de Tiihonen não são estudos de resultados, e não são estudos de específicos pacientes conhecidos. Ambos são relatórios de um grupo finlandês que vasculhou um registro nacional de prescrições de drogas para relatar as taxas de recaída e mortalidade de pacientes psicóticos, organizadas pelo seu atual uso de antipsicótico.

No primeiro estudo, identificaram 2230 adultos hospitalizados em um primeiro episódio de esquizofrenia de 1995 a 2001 e, em seguida, registraram o uso de medicação por cada período de 30 dias após a alta (com base em uma base de dados nacional para prescrições de antipsicóticos). Qualquer recaída ou morte durante um período de 30 dias foram marcadas como sendo resultados para o antipsicótico particular que estava sendo tomado, ou marcado como “não antipsicóticos” se eles não receberam uma prescrição durante esse mês. Dada esta metodologia, qualquer um que saiu de um medicamento e teve recaída apareceria nos resultados para “nenhum antipsicótico”, e se alguém cometeu suicídio após a interrupção de um medicamento, isso também foi registrado como os resultados de “sem antipsicóticos”. Eles descobriram que havia um maior risco de recidiva durante meses de “sem medicação”, que, tanto quanto qualquer coisa, pode ser devida ao alto risco que vem quando se é colocado em um antipsicótico e, posteriormente, se tenta sair dele.

No segundo estudo deste mesmo grupo, eles relataram taxas de mortalidade de pacientes com esquizofrenia com base no tempo de exposição a antipsicóticos ao longo de um período de 11 anos. Os pesquisadores relataram que “o tratamento de longo prazo com drogas antipsicóticas está associado com menor mortalidade em comparação com nenhum uso de antipsicóticos”. Eles fizeram isso examinando o mesmo banco de dados de prescrições de antipsicóticos nas diversas regiões do país.

Embora não seja um estudo de resultados, este estudo tem sido citado como evidência de que o uso prolongado de antipsicóticos reduz a mortalidade na esquizofrenia. No entanto, como os críticos deste estudo descobriram, as mortes de pacientes hospitalizados não foram contadas, o que levou a uma exclusão de “64% das mortes com antipsicóticos em uso.” Além disso, o grupo com a menor taxa de mortalidade, de longe, foi com aqueles que usaram antipsicóticos pelo período de menos de seis meses ao longo dos 11 anos, em oposição àqueles que usaram antipsicóticos regularmente.

Como tal, os estudos de Tiihonen não podem ser descritos como “estudos naturalistas” que encontraram “melhores resultados” em pacientes medicados. Não foram estudos de pacientes conhecidos; eles não traçaram os resultados durante períodos mais longos de tempo (gravidade dos sintomas, cognição e medidas funcionais); e há razões para se argumentar que as taxas de mortalidade foram mais baixas entre aqueles pacientes que usaram antipsicóticos apenas por um curto período de tempo.

B. Encolhimento cerebral

Lieberman e colegas revisaram uma série de estudos sobre os efeitos dos antipsicóticos sobre os volumes do cérebro, e se essas alterações estão associadas com o agravamento clínico, o declínio cognitivo e danos funcionais. A conclusão a que chegaram pode ser resumida desta maneira:

  • Não está claro se o encolhimento cerebral visto em pacientes com esquizofrenia ao longo do tempo é devido à droga ou à doença.
  • Não está claro se essa perda de substância cinzenta em pacientes com esquizofrenia está associada com piora clínica, comprometimento cognitivo ou comprometimento funcional.
  • O assunto precisa de um estudo mais aprofundado.
O que está faltando em sua resenha

Um esforço para avaliar os efeitos a longo prazo dos antipsicóticos requer, acima de tudo, ver se as evidências de diferentes tipos se encaixam. A questão dos seus efeitos a longo prazo surge dos estudos longitudinais: por que os pacientes “não medicados” em Harrow, Molainen e Wils têm melhores resultados a longo prazo e em cada domínio medido? A crença convencional tem sido que os antipsicóticos são um tratamento essencial, ainda que os dados longitudinais desmintam essa crença. Isso leva a uma busca de pesquisa que possa fornecer uma explicação biológica para os resultados observados nos dados longitudinais.

Os dados de encolhimento cerebral precisam ser vistos sob essa luz. O que a pesquisa mostra? Há evidências de vários pesquisadores, nos EUA e no exterior, de que os antipsicóticos encolhem o cérebro, e que esse encolhimento está relacionado à dose. O mesmo efeito neurotóxico pode ser observado em estudos em ratos e macacos, e nesses estudos em animais o encolhimento não pode ser atribuído à doença. E, como Joanna Moncrieff observou em seu blog em resposta ao artigo de Lieberman, “não há estudos que mostrem alterações progressivas do cérebro em pessoas diagnosticadas com esquizofrenia ou psicose na ausência de tratamento antipsicótico”.

Existem também estudos que descobriram que este encolhimento se correlaciona com aumento dos sintomas positivos, aumento dos sintomas negativos e diminuição da cognição e do funcionamento. Estudos longitudinais relatam piores resultados para pacientes medicados, e os estudos com ressonância magnética relatam drogas que reduzem o volume cerebral, e que esse encolhimento está associado a piores resultados. Os dois conjuntos de dados combinam-se para contar uma história coerente.

Em seu blog, Moncrieff fornece uma crítica detalhada da revisão por Lieberman e colegas da literatura de encolhimento cerebral. Mas o maior fracasso deles na apresentação dessa pesquisa pode-se dizer haver começado na parte inicial do seu artigo, quando não conseguiram apresentar os resultados dos três estudos longitudinais e fingiram que os dois artigos publicados por Tiihonen representavam estudos naturalistas que encontraram melhores resultados a longo prazo para pacientes medicados. Eles nunca apresentaram os dados longitudinais que combinam com a pesquisa de encolhimento cerebral, e que apresentam evidências convincentes de que o uso a longo prazo desses medicamentos piora os resultados agregados.

Ainda assim, apesar de não terem apresentado os dados longitudinais, a revisão que eles fizeram da pesquisa cerebral ainda os levou a um pântano intelectual. Como poderia ser que a redução nos volumes cerebrais observada em pacientes psicóticos estava relacionada inteiramente com a doença e não com os fármacos, quando o encolhimento também se manifestou em animais tratados com as drogas? Eles chegaram a esta explicação: “A relevância” de tais achados “é incerta, devido a diferenças relacionadas às espécies e porque os animais não têm a fisiopatologia da esquizofrenia”.

Com essa explicação, eles estavam criando a noção de que as drogas que encolhem o cérebro normal não afetam o cérebro “psicótico” da mesma maneira, e isso os levou a especular se a redução nos volumes cerebrais observada em pacientes com esquizofrenia, mesmo se devida à droga, é uma coisa ruim. Sim, em pessoas normais a perda de matéria cinzenta correlaciona-se com uma queda no QI, mas talvez tenha o efeito oposto em pessoas com diagnósticos psicóticos. “É possível que os antipsicóticos possam ter efeitos deletérios sobre o cérebro normal, mas efeitos protetores na presença de neuropatologia relacionada à esquizofrenia”.

C. Hipersensibilidade à dopamina

No final da década de 1970, Lieberman e colegas escrevem, surgiu a preocupação nos círculos de pesquisa psiquiátrica de que os antipsicóticos induziam uma hipersensibilidade à dopamina – uma mudança na densidade dos receptores da dopamina – que poderia tornar os pacientes mais vulneráveis às recaídas do que no curso normal de sua doença. Isso poderia explicar por que as taxas de recaída sejam tão altas nos estudos de abstinência e por que tantos pacientes tratados com antipsicóticos se tornam cronicamente doentes.

Lieberman e colegas reconhecem que os antipsicóticos induzem um “rápido aumento na densidade do receptor D2”. Mas, segundo eles, dois estudos de retirada fornecem razões para duvidar de que este é um problema. Em um deles, a velocidade de diminuição das doses  (abrupto versus gradual) não produziu diferentes taxas de recaída para os pacientes retirados, e, em um segundo relatório, uma meta-análise de estudos que haviam mapeado recaída após a retirada, os investigadores descobriram que os pacientes retirados continuaram a ter recaída em uma taxa bastante estável ao longo do primeiro ano, ao mesmo tempo que, entre os pacientes medicados, a diferença nas taxas de recaída, entre os dois grupos, foi sustentada ao longo dos doze meses.

Com tal literatura de retirada havendo sido tomada por eles como guia, Lieberman e colegas concluíram que “os estudos clínicos não forneceram provas convincentes de que o tratamento com antipsicóticos piora o curso da doença, que aumenta o risco de recaída ou que causa déficits cognitivos”.

O que está faltando em sua resenha

Como foi o caso com a questão do encolhimento cerebral, qualquer investigação da hipersensibilidade à dopamina induzida por drogas precisa começar com dados de resultados que tiveram essa preocupação logo no começo. Na década de 1970, os relatos de taxas mais elevadas de recidiva de longo prazo para pacientes medicados, em comparação com pacientes não tratados com antipsicóticos, que foram encontrados nos estudos por Schooler, Bockoven, Rappaport, Mosher e Carpenter, apresentaram o campo com um enigma. Os estudos de retirada que eles realizaram mostraram que os pacientes retirados dos fármacos recaíram a uma taxa muito mais elevada do que os doentes mantidos com fármaco. Isso permitiu concluir que os medicamentos reduziam o risco de recidiva. Mas os dados do resultado contaram maiores taxas de recaída para os pacientes medicados! Como explicar este enigma?

Isso levou Carpenter a formular uma profunda pergunta: E se os pacientes nunca tivessem sido colocados em drogas desde o começo? Talvez as drogas induziram uma mudança biológica que tornou os pacientes mais biologicamente vulneráveis à psicose. Isto poderia conduzir a um risco aumentado da recaída após a retirada da droga, que apareceria nos estudos da retirada. No entanto, se os pacientes permanecessem nos medicamentos, a hipersensibilidade à dopamina que é induzida por drogas poderia levar a um risco aumentado de que eles se tornassem cronicamente doentes. Isso explicaria os maus resultados para os pacientes medicados nos estudos longitudinais. Os estudos de retirada podem não haver mensurado o retorno de uma doença, mas sim mostrado o risco da saída de uma droga após o cérebro do paciente haver sido alterado por ela.

Chouinard e Jones deram uma explicação biológica para o que parecia estar acontecendo. Os fármacos bloqueavam os receptores da dopamina e, em resposta ao bloqueio, havia o aumento da densidade dos receptores da dopamina, tornando os pacientes mais biologicamente vulneráveis à psicose. Eles realizaram estudos em seus pacientes que confirmaram sua teoria, e concluíram que essa mudança induzida por drogas poderia levar a mais “sintomas graves” do que em pacientes que nunca tinham experimentado antes essas drogas.

Essa foi a pesquisa que publicada no início dos anos 80, e os modernos estudos longitudinais, que encontraram taxas de remissão mais altas em pacientes não medicados a longo prazo, fornecem novas evidências para apoiar a conclusão de que a hipersensibilidade à dopamina induzida por drogas aumenta o risco de uma pessoa ficar cronicamente doente (ver Harrow, Moilanen e Wils). Para investigar especificamente esta questão, Harrow relatou sobre sintomas psicóticos durante um período de 20 anos para aqueles que permaneceram tomando antipsicóticos ao longo do estudo, comparando-os com aqueles que nunca tomaram qualquer medicação a partir do segundo ano. Aqui estão os resultados:

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Essa é a história da hipersensibilidade à dopamina. Mas Lieberman e colegas não apresentaram esse contexto histórico, e eles não mencionaram os dados longitudinais modernos, ou a investigação de Harrow sobre isso. Eles não apresentaram as pesquisas que demonstram de forma convincente que a hipersensibilidade à dopamina induzida por drogas pode piorar os resultados a longo prazo.

Tudo está bem na terra da psiquiatria

Liebermancover-1-324x160O que pode ser visto aqui, nesta desconstrução da revisão por Lieberman e colegas, é que eles apresentaram informações, uma vez mais, de uma forma que protege os interesses corporativos da psiquiatria e seus protocolos atuais para a prescrição de antipsicóticos.

  • Eles nunca fornecem dados dos estudos mostrando que cerca de 60% dos pacientes em primeiro episódio podem se recuperar sem o uso de antipsicóticos.
  • Eles sempre descartam os melhores resultados para pacientes não medicados em estudos citados, argumentando que é um artefato de uma comparação desigual por alguma razão ou outra (Schooler, Rappaport, Harrow e Moilanen).
  • Eles não relatam dados de estudos longitudinais modernos que mostram resultados muito melhores a longo prazo para os pacientes não medicados.
  • Em suas discussões sobre o encolhimento do cérebro induzido pela droga e a hipersensibilidade à dopamina, eles falham em discutir informações de um corpo maior da literatura científica essencial para avaliar se esses efeitos podem explicar os pobres resultados a longo prazo observados nos estudos longitudinais.

Depois de revisar a literatura dessa maneira protetora da corporação, Lieberman e colegas tiraram essas conclusões:

  • Há “pouca evidência” de que o uso inicial de antipsicóticos ou o tratamento de manutenção com as drogas tenham um “efeito negativo a longo prazo”.
  • Há apenas um “pequeno número” de pacientes que podem “se recuperar de um primeiro episódio de psicose sem tratamento farmacológico ou que possa interromper a medicação e permanecer estável por longos períodos de tempo”.
  • Estudos clínicos randomizados (Leucht) e estudos de retirada de fármacos “apoiam fortemente a eficácia dos antipsicóticos no tratamento agudo da psicose e na prevenção da recaída”.

Eles compõem um “grupo internacional de especialistas”, e chegaram a uma conclusão reconfortante para a corporação psiquiátrica: Os protocolos de uso de drogas que a profissão vem usando há décadas estão bem.

O Comunicado à Imprensa (e denúncia pública dos críticos)

Em nosso livro Psychiatry Under the Influence, Lisa Cosgrove e eu escrevemos sobre o dever de uma profissão médica para avaliar honestamente e relatar as evidências de seus tratamentos em revistas médicas e para comunicar essas informações de forma precisa ao público. O artigo publicado por Lieberman e colegas no American Journal of Psychiatry serviu como a sua comunicação para a profissão médica; enquanto que um comunicado feito à imprensa em 5 de maio, pela Columbia University Medical, serviu como a sua comunicação para o grande público.

O comunicado à imprensa merece ser desconstruído também, pois ele aumenta o relato de uma narrativa que apoia os interesses corporativos. Os autores são descritos como um grupo internacional de especialistas, que conduziram esta revisão para responder a críticos que estavam levantando preocupações sobre antipsicóticos que tinham o potencial de “enganar alguns pacientes (e suas famílias)”, e, portanto, levá-los a “recusar ou descontinuar o seu tratamento com antipsicótico “. Após a realização de um” exame completo “de todas as provas possíveis, eles fizeram uma conclusão definitiva:” Para pacientes com esquizofrenia e distúrbios psicóticos relacionados, medicamentos antipsicóticos não têm efeitos negativos a longo prazo sobre os resultados dos pacientes ou o cérebro. Além disso, os benefícios destes medicamentos são muito maiores do que seus potenciais efeitos colaterais. ”

Se alguém ousar duvidar dessa descoberta, Lieberman disse no comunicado de imprensa que “deve conversar com pessoas cujos sintomas foram aliviados pelo tratamento e que tiveram literalmente as suas vidas devolvidas”.

As drogas foram mais uma vez lançadas como essenciais e até mesmo como agentes milagrosos (“salva-vidas”), e isso se tornou a narrativa promovida por eles junto ao público, e repetida em histórias publicadas pela Agência Internacional de Notícias (UPI) e em sites como Science Daily e Medical News Today. Enquanto isso, Lieberman também elogiou a importância do artigo em um vídeo no Medscape, descrevendo-o como um “grande desenvolvimento em psiquiatria”. Vestido com um casaco branco, ele disse que o estudo “chegou a uma conclusão muito firme sobre o benefício inquestionavelmente positivo dessas drogas “, e então ele apontou aqueles que ousaram questionar seus méritos em primeiro lugar.

Tais foram as comunicações de Lieberman e do Centro Médico da Universidade de Columbia, e há poucos dias eu recebi um e-mail de um amigo na Islândia, que tem sido um ativista na comunidade de usuários há algum tempo, que perfeitamente resumiu seus efeitos sobre as crenças sociais.

“Eu estava falando com alguns doutores noutro dia,” escreveu. “Eles estavam muito entusiasmados com um artigo recém-publicado. Muitos médicos de muitos países contribuíram para esta pesquisa e a linha de fundo era que os remédios são bons e eles certamente estão ajudando “.

O dano feito

Em seu vídeo, Lieberman fala sobre críticos “semeando sementes de inverdades” e como tais “inverdades” podem causar danos; e eu tenho que concordar que semear sementes de inverdades pode causar danos. Podemos vê-lo tão claramente neste caso de corrupção institucional.

Os estudos que relatam que 60% dos pacientes não medicados em primeiro episódio estão em recuperação e que os melhores resultados a longo prazo são de longe aqueles entre pacientes que não estão medicados, são trabalhos que falam de uma oportunidade para a psiquiatria compreender: que os psiquiatras poderiam mudar seus protocolos e dar uma chance para as pessoas que sofrem de um episódio psicótico para se recuperar e prosseguir bem com suas vidas sem os muitos efeitos adversos dos antipsicóticos. Existe uma “base de evidência” que fala de novas possibilidades para as pessoas assim diagnosticadas.

Mas Lieberman e colegas não apresentaram essa possibilidade nesta revisão. Pelo contrário, eles as esconderam da vista. Essa é uma ação que faz mal a milhões de “pacientes” e suas famílias, e assim a toda a sociedade. Continuaremos a viver numa sociedade organizando seus cuidados – e suas leis em relação aos pacientes psicóticos – em torno de uma narrativa falsa, contada para servir os interesses corporativos da psiquiatria, em vez dos melhores interesses dos pacientes.

O desafio para a nossa sociedade

Em um estudo sobre corrupção institucional, o objetivo final é apresentar ideias para resolver a corrupção. Lisa Cosgrove e eu, reconhecemos, tivemos muitas dificuldades com esta seção do nosso livro.

Embora os problemas em psiquiatria venham se tornando bem conhecidos por nossa sociedade, o foco da sociedade tem sido em restringir a influência farmacêutica sobre a psiquiatria. Mas como pode a influência de seus interesses corporativos ser freada?

Eu realmente não sei. O problema é que o poder reside na corporação psiquiátrica e em seus psiquiatras acadêmicos, que escrevem artigos como este. Eles têm a reputação na sociedade de serem especialistas; seus artigos são publicados em “revistas médicas”; e eles têm acesso à imprensa. O site da comunidade Mad in America (em parceria com Mad in Brasil e Mad in America para hispanohablantes) é destinado a servir de fórum para criticar essa narrativa convencional, e estou esperançoso de que os psiquiatras na Islândia não estarão falando em breve sobre as “inverdades” semeadas pelo artigo de Lieberman no American Journal of Psychiatry.

Mas eu tenho um desejo. Gostaria que todos os residentes psiquiátricos se familiarizassem com essa controvérsia, e lessem os artigos de pesquisa que foram citados, e então perguntem a si mesmos: este relatório publicado, o comunicado de imprensa que se segue e o vídeo de Lieberman são o trabalho de uma profissão médica a qual nós podemos nos orgulhar de estar fazendo parte?

Ou eles são o trabalho de uma profissão médica que precisa ser completamente refeita, e este refazer ir ao encontro das necessidades de saúde mental das pessoas em todos os cantos do mundo? Isso poderia ser um legado para uma nova geração de psiquiatras.

Inatividade Física Associada ao Pior Funcionamento Cognitivo na Psicoses

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bruizA revista Schizophrenia Bulletin publicou recentemente um estudo sugerindo que níveis mais elevados de comportamento sedentário e inatividade física estão associados a pior desempenho cognitivo em pessoas diagnosticadas com esquizofrenia. Aqueles com baixos níveis de comportamento sedentário curiosamente apresentaram melhor tempo de reação motora e processamento cognitivo em níveis significativos.

A evidência para a relação entre atividade física e bem-estar mental está em constante expansão. As pesquisas têm mostrado que as pessoas que recebem um diagnóstico de transtorno psicótico e de depressão têm uma menor atividade física em seu cotidiano e que a atividade física pode ajudar as crianças com TDAH a melhorar a concentração.

Além disso, pesquisas que analisam a atividade física e a cognição dentro da população em geral demonstraram que um nível mais alto de comportamento sedentário está associado a pior desempenho cognitivo ao longo da vida útil. Embora tenha havido uma proliferação de estudos explorando o impacto da atividade física em pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, poucos têm voltado a sua atenção para o comportamento sedentário dentro desta população.

Este novo estudo teve três objetivos. Primeiro, comparar níveis de comportamento sedentário entre indivíduos diagnosticados com esquizofrenia e indivíduos de controle. Em segundo lugar, explorar a relação entre o comportamento sedentário e a cognição em pacientes versus os de grupo de controle. Por fim, os autores procuraram determinar se existe uma associação independente entre comportamento sedentário ou baixa atividade física e desempenho cognitivo entre os participantes diagnosticados com esquizofrenia.

Cento e noventa e nove pacientes identificados como portadores de esquizofrenia foram recrutados nas enfermarias psiquiátricas de longa permanência de um hospital em Taiwan. Os participantes tiveram que ser ‘estabilizados’ e com a mesma medicação nos últimos três meses. Eles foram comparados a 60 participantes de controle pareados por idade, sexo e IMC. O funcionamento cognitivo foi avaliado com o Sistema de Teste de Viena e o Teste de Pegboard Grooved. O comportamento sedentário foi definido como “qualquer atividade de vigília caracterizada por um gasto de energia </ = 1,5 equivalentes metabólicos” (por exemplo, sentado prolongadamente, permanecendo na postura reclinada durante o dia). Ele foi medido usando o ActiGraph, um acelerômetro tri-axial. Outras variáveis coletadas incluem idade, sexo, tabagismo, consumo de álcool, síndrome metabólica e fatores de risco metabólicos, sintomatologia positiva e negativa e medicação.

Os pacientes que foram diagnosticados com esquizofrenia com um comportamento significativamente mais sedentário tiveram pior desempenho em todas as medidas cognitivas do que aqueles indivíduos do grupo de controle. Quer dizer, dentro do grupo de pacientes, aqueles com níveis mais baixos de comportamento sedentário apresentaram melhor tempo de reação motora e processamento cognitivo do que aqueles com altos níveis de comportamento sedentário. Baixos níveis de atividade física foram independentemente associados com pior atenção e concentração, e menor velocidade de processamento e destreza manual.

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Photo Credit: Flickr

Este estudo acrescenta evidências da associação entre os níveis de atividade física e bem-estar mental, especificamente o funcionamento cognitivo em uma amostra de indivíduos com diagnóstico de esquizofrenia. Não são surpreendentes as descobertas de que o comportamento sedentário está associado a um menor tempo de reação motora e à pior velocidade de processamento, mas essas descobertas proporcionam uma nova compreensão.

É importante notar que há um grande número de possíveis fatores que agem como coautores, mediadores e moderadores (por exemplo, sintomas positivos, diagnósticos de comorbidade, sintomas negativos, duração da doença, estigma, apoio social, antipsicóticos, outros medicamentos, etc.) e que podem potencialmente ter um efeito sobre a atividade física e a cognição. Também deve ser observado que os participantes neste estudo estavam estabilizados e em tratamento antipsicótico.

Os autores deste estudo objetivaram analisar o comportamento sedentário objetivo (utilizando o acelerômetro) da atividade física (baixa) e descobriram que os dois estão independentemente associados com o funcionamento cognitivo. Em última análise, este estudo baseia-se na pesquisa existente sobre os mecanismos pelos quais a atividade física produz impactos na neurocognição.

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Stubbs, B., Ku, P. W., Chung, M. S., & Chen, L. J. (2016). Relationship Between Objectively Measured Sedentary Behavior and Cognitive Performance in Patients With Schizophrenia Vs Controls. Schizophrenia Bulletin, sbw126. (clique aqui)

O controverso estudo sobre TDAH publicado em Lancet Psychiatry: Erros, Críticas e Respostas

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Peter SimonsEm 17 de fevereiro de 2017, Lancet Psychiatry publicou um artigo controverso que alegou haver encontrado diferenças cerebrais entre crianças com um diagnóstico de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e crianças sem. Os autores, liderados por Martine Hoogman, do Instituto Donders de Cérebro, Cognição e Comportamento, Holanda, afirmaram que sua evidência apoiou a teoria de que o TDAH é um distúrbio cerebral.

Na verdade, Hoogman e colegas vão tão longe em seu artigo original a ponto de dizerem: “Nós confirmamos, com análise muito rigorosa, que os pacientes com TDAH têm cérebros alterados; portanto TDAH é uma doença do cérebro. ”

Essa conclusão exagerada desencadeou uma tempestade de imediatas controvérsias. Pesquisadores tão proeminentes como Allen Frances, presidente da força tarefa DSM-IV (que escreveu o livro sobre categorias de diagnóstico), se juntou para denunciar o estudo. Um artigo em que Frances é coautor ele declarou explicitamente:

 “O argumento mais importante contra a conclusão dos autores de que ‘pacientes com TDAH têm cérebros alterados’ é que ele não tem suporte em suas próprias descobertas.”

Eles acrescentam que a conclusão de Hoogman e colegas “é extremamente especulativa e perigosamente enganosa num momento em que o TDAH já está superdiagnosticado e ocasião para o sobretratamento com medicação em países de renda média e alta”.

TDAH
Photo Credit: Flickr

Isso fez parte de um esforço maior de pesquisadores em vários países para examinar os dados estranhos e problemáticos apresentados por Hoogman e colegas. O erro mais óbvio no artigo original foi a troca das duas variáveis em uma análise, o que resultou em um gráfico mostrando que os indivíduos com TDAH pareciam ter QIs mais elevados do que os indivíduos saudáveis do grupo de controle – um achado surpreendente que contradiz a pesquisa anterior.

Em resposta à crítica, Hoogman e colegas reexaminaram seus dados e descobriram que isso era, de fato, um erro – seus achados foram consistentes com pesquisas anteriores sugerindo que os sintomas de TDAH estão associados com um desempenho mais pobre em medidas de QI padronizadas.

Os pesquisadores, liderados por Susanne Bejerot, da Universidade de Orebro, Suécia, reanalisaram os dados corrigidos e concluíram que, ao controlar os novos dados de QI, muitas das diferenças cerebrais observadas desaparecem.

“Não encontramos diferença significativa entre os indivíduos com TDAH e aqueles no grupo de controle, em qualquer uma das áreas investigadas do cérebro, quando a diferença de QI é controlada”.

Em sua resposta, Hoogman e colegas reconhecem que “porque um QI ligeiramente mais baixo pode ser uma característica de ADHD, ajustando para o QI removerá efeitos do transtorno em regiões do cérebro associadas com TDAH e QI.” Ou seja, reconhecem que ao controlar as diferenças no QI, suas supostas diferenças cerebrais desaparecem. Eles argumentam que menor QI é causada por TDAH e não deve ser estatisticamente controlado. Esta é uma abordagem controversa para a pesquisa de TDAH, na medida em que a causalidade não foi demonstrada e baixo QI não é um critério para um diagnóstico de TDAH. Assim, quaisquer diferenças cerebrais encontradas são susceptíveis de serem devidas simplesmente a diferenças no QI, não ao diagnóstico de TDAH.

Os críticos do estudo (cf. o relatório do Mad in America)  também vêem este erro como iluminando seu problema fundamental: eles alegam que Hoogman e seus colegas estavam ansiosos demais para provar sua hipótese e não examinaram cuidadosamente quais resultados poderiam ser apoiados por seus dados. Críticos argumentam que esse erro deveria ter sido pego por Hoogman e colegas, pelos revisores que aprovaram o artigo, ou pela equipe editorial da revista que publicou. Que uma descoberta tão incomum e convincente passou completamente despercebida e não reportada indica aos críticos que os autores, revisores e equipe editorial foram tão tendenciosos devido à sua percepção de TDAH como uma desordem cerebral que eles ignoraram provas substanciais mostrando o contrário.

Embora isso tenha levado a uma petição para a retirada do artigo, a equipe editorial da Lancet Psychiatry decidiu publicar uma correção e depois dedicar uma edição inteira a exibir as críticas e uma réplica de Hoogman e colegas.

Entre os artigos críticos do estudo original estava uma análise conduzida por Trudy Dehue da universidade de Groningen, Holanda. Dehue e colegas descobriram que os resultados originais realmente mostram que para adultos não houve diferença no volume cerebral entre aqueles com TDAH e aqueles sem. Mesmo para crianças, Dehue e colegas argumentam que o pequeno tamanho de efeito encontrado indica que havia uma considerável sobreposição no tamanho do cérebro entre os dois grupos (95% das duas populações sobrepostas). Ou seja, mesmo em média havia tanta sobreposição que apenas os extremos eram relevantes. Outra maneira de olhar para esta descoberta é que 95 em cada 100 crianças com diagnóstico de TDAH teve um volume cerebral que corresponde ao de uma criança no grupo de controle de saudáveis.

De acordo com Dehue e colegas, as descobertas originais “não mostraram diferenças significativas no cérebro de adultos com TDAH, o que sugere que as pequenas diferenças nas crianças desaparecem principalmente quando crescem. Esta descoberta poderia ter sido notícia destacada como manchete, dadas as alegações de empresas farmacêuticas comerciais e especialistas patrocinados que TDAH é um transtorno ao longo da vida em necessidade de tratamento durante toda a vida.

Dehue e colegas, de fato, chegam a afirmar explicitamente:

     “Não há nada que nos permita dizer que uma criança com TDAH tem um distúrbio cerebral.”

Outro artigo publicado pela Lancet Psychiatry neste mês abordou a descoberta original de que as áreas de processamento emocional do cérebro estavam implicadas como diferentes entre crianças com diagnóstico de TDAH e crianças sem o diagnóstico. Os autores, Alison Poulton e Ralph Nanan na Universidade de Sydney, Austrália, argumentam que, como antes, Hoogman e colegas deveriam ter destacado esta descoberta inesperada. Poulton e Nanan indicam que não há componente emocional para o diagnóstico de TDAH e questionam por que os pesquisadores encontrariam uma diferença cerebral desse tipo. Seu argumento é que o diagnóstico de TDAH muitas vezes se sobrepõe com outros diagnósticos comumente dados na infância, como transtorno desafiante de oposição (TDO), cuja característica proeminente é a desregulação emocional.

Poulton e Nanan argumentam que muitas das descobertas de Hoogman e colegas são realmente devido à baixa especificidade do diagnóstico de TDAH e sua sobreposição com outros diagnósticos. Se os resultados estão relacionados com TDO ao invés de TDAH, isso põe em questão se os dados podem ser usados para sugerir que o TDAH é um distúrbio cerebral.

Hoogman e colegas simplesmente concordam com esta crítica e afirmam que esperam investigar mais. Eles não abordam as implicações que isso tem para a interpretação de seus resultados.

O diagnóstico de TDAH tem sido controverso. A principal crítica tem sido o afrouxamento das categorias diagnósticas, o que leva ao sobrediagnóstico. Os críticos argumentam que os critérios para o diagnóstico de TDAH são tão frouxos que quase ninguém poderia receber o diagnóstico (um critério é “sentimentos de inquietação”, por exemplo). Outros estudos mostraram que são as crianças mais novas em sala de aula que estão mais propensas a receber um diagnóstico, e são mais de duas vezes mais propensos a receber medicação estimulante do que as crianças mais velhas. Pesquisadores teorizam que as crianças mais jovens brigam mais na escola e estão em estágio de desenvolvimento mais precoce do que as crianças que estão quase um ano mais velhas – o que pode torná-las mais propensas a se encaixar nos critérios comportamentais para o diagnóstico de um transtorno mental.

Um artigo publicado no New York Times em 2013 expôs práticas de publicidade enganosa da indústria farmacêutica (tanto para médicos quanto para consumidores), que resultaram em inúmeras investigações e castigos da agência FDA, ligando tais práticas ao aumento do sobrediagnóstico e sobreprescrição de TDAH.

Dr. Keith Connors, que ajudou a orientar a construção da ideia de TDAH e que conduziu os primeiros estudos sobre metilfenidato (Ritalina), diz que nos últimos anos, ele começou a entender que seu trabalho tem sido desastrosamente mal utilizado. Ele diz que “anunciou aos colegas atordoados que o diagnóstico exagerado do TDAH era ‘uma epidemia de proporções trágicas’ “.

              “Trágico porque muitas crianças recebem o diagnóstico errado e o que realmente têm é algum problema diferente que precisa de um tratamento diferente: ou são jovens normais a quem é dado um tratamento que não precisam; ou as drogas prescritas para eles são dadas ou vendidas a outros estudantes que querem uma solução rápida para estudar ou festejar – uma razão pela qual escolas e faculdades agora têm um grande número de estudantes usando drogas estimulantes e por quê as salas de emergência estão cada vez mais sobrecarregadas com jovens em overdose. “

Hoogman e colegas foram obrigados a responder aos argumentos de pesquisadores proeminentes de que os seus dados apoiam uma ideia de que o TDAH não é um distúrbio cerebral. Eles tiveram a boa vontade para admitir algumas limitações, tais como reconhecer que erraram nos relatos dos escores de QI e que isso afetaria seus resultados. No entanto, apesar de suas descobertas sugerirem exatamente o oposto, eles continuam a argumentar que “TDAH é um transtorno conforme todos os padrões de nosologia psiquiátrica”. Ou seja, mesmo que não seja apoiada por seus dados, eles reivindicam o senso-comum que TDAH é um distúrbio cerebral.

Hoogman e seus colegas resumem bem o argumento de seus críticos:

             “As críticas feitas nessas cartas, cujo efeito é de pequena dimensão, na verdade elas implicam que devemos usar apenas o termo desordem do cérebro quando todo mundo com o transtorno mostra o mesmo padrão de anormalidades cerebrais. Por essa definição, nenhum transtorno psiquiátrico seria uma desordem cerebral. “

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Batstra, L., te Meerman, S. Conners, K., & Frances, A. (2017). Subcortical brain volume differences in participants with attention deficit hyperactivity disorder in children and adults. Lancet Psychiatry. http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(17)30107-4

Bejerot, S., Nilsonne, G., & Humble, M. B. (2017). Subcortical brain volume differences in participants with attention deficit hyperactivity disorder in children and adults. Lancet Psychiatry. http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(17)30160-8

Dehue, T., Bijl, D., de Winter, M., Scheepers, F., Vanheule, S., van Os, J. . . . Verhoeff, B. (2017). Subcortical brain volume differences in participants with attention deficit hyperactivity disorder in children and adults. Lancet Psychiatry. http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(17)30158-X

Hoogman, M., Buitelaar, J. K., Faraone, S. V., Shaw, P., & Franke, B. (2017). Subcortical brain volume differences in participants with attention deficit hyperactivity disorder in children and adults – Authors’ reply. Lancet Psychiatry. http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(17)30200-6

Hoogman, M., Bralten, J., Hibar, D.P., Mennes, M., Zwiers, M. P., Schweren, L. S. J. . . . Franke, B. (2017). Subcortical brain volume differences in participants with attention deficit hyperactivity disorder in children and adults: a cross-sectional mega-analysis. Lancet Psychiatry, 4, 310–19. http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(17)30049-4

Poulton, A., & Nanan, R. (2017). Subcortical brain volume differences in participants with attention deficit hyperactivity disorder in children and adults. Lancet Psychiatry.http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(17)30105-0

 

Dêem um Melhor Apoio para os Dependentes de Antidepressivos, dizem Ativistas

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Em 18 de abril último, o jornal britânico Daily Express and Sunday Express publicou uma matéria com o título “Dêm melhor suporte para os dependentes de antidepressivos, dizem os ativistas”.

Trata-se de uma campanha que demanda que o Parlamento da Escócia aprove uma iniciativa popular para que os serviços de saúde mental busquem melhores condições para o apoio aos que querem deixar de tomar antidepressivos.

Um grupo de autoajuda de pacientes está convencido que os ministros do Parlamento Escocês devem apoiar o plano da Associação Médica Britânica (BMA), que consiste em que  no Reino Unido exista uma oferta de serviços especializados para qualquer pessoa que esteja tomando medicação psicoativa e que está lutando para deixar o tratamento psicofarmacológico.

A petição conta com o apoio do Grupo Parlamentar Interpartidário de Westminster para a Dependência de Medicamentos Prescritos (APPG-PDD), que aceita que os pacientes possam se beneficiar das drogas no curto prazo, mas ao mesmo tempo reconhece que há crescentes evidências mostrando que o uso a longo prazo leva a piores resultados, com as pessoas relatando “que o processo de retirada das drogas psicoativas prescritas é uma experiência devastadora, persistente, além de padecerem dos outros efeitos negativos produzidos pelas drogas”.

Segundo especialistas “Sair dessas drogas pode ser imensamente difícil. Elas são tomadas de boa-fé, com confiança no conhecimento profissional dos médicos; mas, com o tempo, as pessoas passam a descobrir que essas drogas causaram danos inesperados e graves”.

A petição está aqui.

E o artigo na íntegra está disponível aqui.

uma iniciativa como essa aqui no Brasil? Certamente que criaria condições para se dar um salto de qualidade ao nosso processo de reforma psiquiátrica!

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