Uma revisão sistemática da literatura e meta-análise publicada na European Neuropsychopharmacology examina a eficácia dos antipsicóticos para indivíduos que experimentam um primeiro episódio de esquizofrenia – first episode of schizophrenia – (FEP) . Apesar de seus esforços para coletar rigorosos ensaios controlados aleatorizados – randomized controlled trials – (RCTs) sobre antipsicóticos, este estudo não identificou um único ensaio controlado por placebo em indivíduos com FEP. Os investigadores confiaram em estudos que relataram taxas de resposta para pacientes randomizados a diferentes drogas antipsicóticas.
“Como estudos em pacientes crônicos revelaram efeitos placebo substanciais em ensaios recentes, seria útil saber o quanto tais efeitos foram responsáveis pelas altas taxas de resposta em nossos ensaios”, escrevem os autores.
Os pesquisadores conduziram esta meta-análise na esperança de determinar quão bem os pacientes identificados como FEP respondem aos antipsicóticos e que fatores levaram a uma resposta.
Na pesquisa sobre esquizofrenia, a resposta ao tratamento é definida como o cumprimento de uma porcentagem mínima de redução na Escala de Síndrome Positiva e Negativa – Positive and Negative Syndrome Scale – (PANSS) e na Escala de Classificação Psiquiátrica Breve – Brief Psychiatric Rating Scale – (BPRS). Ambas as medidas captam sintomas de psicose experimentados pelo indivíduo que apresenta a doença. Embora tenham sido utilizados cortes variáveis para uma resposta mínima, os autores desta meta-análise caracterizaram uma queda de 50% como “alta resposta” e seu principal corte de interesse.
Os pesquisadores analisaram dados de ensaios controlados aleatórios que compararam drogas antipsicóticas entre si ou com placebo entre pacientes com FEP. Apenas 17 estudos atenderam aos critérios de inclusão e forneceram dados utilizáveis.
Os dezessete estudos incluídos representaram 3156 participantes. Nenhum dos 17 foi controlado com placebo, e apenas 12 foram cegos. As taxas de desistência foram altas (39%). Apenas cinco estudos forneceram explicitamente as taxas de resposta – uma queda de 50% ou 20% na pontuação dos sintomas – os autores estavam procurando avaliar.
Nos cinco estudos que permaneceram, 52% viram uma queda de pelo menos 50% em suas pontuações de sintomas, o que foi considerado “muito melhor”. Outros 19% sofreram uma queda de 20% nos sintomas. Os autores comparam estes resultados com a taxa de resposta muito menor em indivíduos diagnosticados com esquizofrenia crônica (23% relataram uma redução de 50% nos sintomas e 53% viram uma queda de 20%).
Outras análises demonstraram:
A diferença nas taxas de resposta entre estudos cegos e estudos com rótulo aberto não foi significativa.
Houve uma taxa de resposta significativamente maior em estudos em pacientes não-medicados em relação a estudos em que os participantes tiveram exposição prévia a antipsicóticos
Pacientes do sexo feminino podem ter uma taxa de resposta clínica mais alta do que os do sexo masculino
Os pacientes graves na linha de base têm uma taxa de resposta maior do que os pacientes leves
Os pacientes com menor duração da doença tiveram uma taxa de resposta mais alta do que aqueles com maior duração da doença
Os pacientes mais velhos tiveram uma taxa de resposta maior do que os pacientes mais jovens
Não foram encontradas taxas de resposta associadas à duração do estudo
Não foram encontradas taxas de resposta associadas à dosagem antipsicótica
Neste esforço para avaliar as taxas de resposta aos antipsicóticos em pacientes com primeiro episódio, os investigadores não conseguiram identificar nenhum ensaio útil controlado por placebo na literatura da pesquisa. Isto destaca uma lacuna na base de evidências para o uso a curto prazo destes medicamentos na população do primeiro episódio. Pesquisas futuras devem comparar o uso de antipsicóticos com um grupo de placebo a fim de desenvolver uma compreensão abrangente da eficácia do uso de antipsicóticos entre os pacientes do primeiro episódio.
A alta taxa de desistência nos 17 estudos randomizados que foram analisados deixa um quadro incerto da taxa de resposta entre os pacientes do primeiro episódio. Dos que não desistiram, pouco mais da metade experimentou uma queda de pelo menos 50% nos sintomas e, portanto, foram vistos como “muito melhorados”.
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Zhu, Y., Li, C., Huhn, M., Rothe, P., Krause, M., Bighelli, I., … & Leucht, S. (2017). How well do patients with a first episode of schizophrenia respond to antipsychotics: A systematic review and meta-analysis. European Neuropsychopharmacology. (LINK)
A visão convencional sobre o tratamento da psicose sugere que quanto mais tempo a psicose não for tratada, piores resultados as pessoas terão a longo prazo. Esta posição é freqüentemente usada para apoiar o uso de antipsicóticos no início do tratamento. Um novo estudo, publicado no The American Journal of Psychiatry, desafia a evidência para esta posição.
Os pesquisadores, liderados por Katherine Jonas na Universidade Stony Brook, verificam que a pesquisa do passado documentando uma relação entre a duração da psicose não tratada (DUP) e os piores resultados a longo prazo é provavelmente uma ilusão criada pelo tendenciosismo relacionado ao tempo de espera. O estudo deles descobriu que, ao invés de psicose não tratada estar causando resultados adversos, aqueles com uma duração menos longa sem tratamento “estão em um estágio anterior e, portanto, parecem ter melhores resultados do que aqueles com um DUP longo, que estão em um estágio posterior”.
A duração da psicose não tratada (DUP) é o período de tempo entre a apresentação dos sintomas e o tratamento, e muitos a definem como o tempo entre o aparecimento dos sintomas psicóticos e a primeira hospitalização psiquiátrica. Durante décadas, a DUP tem sido relacionada a pior prognóstico, maior gravidade dos sintomas, problemas de remissão e piores resultados de recuperação. Assim, as abordagens de intervenção precoce freqüentemente sugerem uma intervenção psiquiátrica imediata ao primeiro sinal de psicose.
Estes entendimentos têm sido desafiados por inúmeros motivos. Alguns autores criticaram que a intervenção precoce pode levar ao aumento das prescrições antipsicóticas, efeitos colaterais graves e uma maior probabilidade de tratamento involuntário. Outros apontam que o medo em torno da relação entre o DUP e os resultados levou os médicos a reforçar a autoridade e a restringir mais freqüentemente os pacientes ao menor sinal de psicose.
O debate sobre o início imediato dos antipsicóticos é especialmente importante, pois os estudos têm relacionado o fato de estar fora dos antipsicóticos com um melhor funcionamento psicossocial e maiores taxas de emprego. Além disso, relações sociais positivas, formas alternativas de cuidados integrados e até mesmo a simples freqüência de interações sociais com amigos têm sido ligadas a uma melhor recuperação, especialmente para a psicose do primeiro episódio. Estas novas investigações têm posto em questão onde é necessário usar os antipsicóticos como primeira linha de tratamento para a psicose do primeiro episódio.
Além disso, enquanto o tratamento precoce dos sintomas psicóticos pode ser benéfico, o tratamento nem sempre significa medicação. Além disso, a relação entre o DUP mais longo e os resultados do paciente é complicada. A maioria dos especialistas o associa a resultados piores, mas outros descobrem que, a longo prazo, está associado a menos hospitalização e a menores chances de estar com deficiência.
Este novo estudo começa observando que o DUP mais longo tem sido repetidamente ligado a pior prognóstico, gravidade dos sintomas e outros eventos adversos. Eles também observam que o mecanismo por trás disso é desconhecido.
Uma hipótese popular para explicar a relação entre piores resultados e longo DUP sugere que um período mais prolongado de psicose não tratada causa neurotoxicidade degenerativa e, portanto, um declínio no pensamento e deficiências crônicas resultantes. A evidência de degeneração na função cerebral é inconclusiva, com pesquisas recentes mostrando que os próprios antipsicóticos podem causar alterações cerebrais. Outra hipótese popular avança a ideia de que psicose mais prolongada sem tratamento é em si mesma um marcador de uma forma severa de esquizofrenia, que é resistente ao tratamento.
A teoria transmitida pelos autores deste estudo sugere que um DUP mais longo significa simplesmente que a doença progrediu significativamente e, portanto, parece ser mais debilitante. De fato, o DUP mais longo não prevê um resultado pior.
Os autores quiseram testar se o viés de tempo de espera explica a relação entre os piores resultados e o DUP. Este é um tipo de viés onde a detecção precoce de uma doença pode fazer parecer que o paciente sobreviveu mais tempo quando comparado a um paciente que foi diagnosticado mais tarde. Assim, mesmo que os dois pacientes sobrevivam durante o mesmo tempo com uma determinada doença, dá a impressão de que o primeiro sobreviveu mais tempo e teve um prognóstico melhor simplesmente porque foi visto mais cedo por um médico. Como eles foram diagnosticados mais cedo, o tempo desde o diagnóstico até a morte aparecerá mais longo.
Os pesquisadores reuniram dados do Projeto de Saúde Mental do Condado de Suffolk; isto incluiu pessoas com primeira internação por psicose entre os anos de 1989 a 1995. O acompanhamento com entrevistas pessoais foi realizado aos seis meses, 24 meses, 48 meses, dez anos e 20 anos. O funcionamento psicossocial do paciente foi avaliado na linha de base e no período de acompanhamento de 6 meses usando a Premorbid Adjustment Scale and Global Assessment of Functioning Scale [Escala de Ajuste Premorbido e a Escala de Avaliação Global de Funcionamento].
A fase pré-mórbida de uma doença é o período antes dos sintomas se apresentarem. As escalas de funcionamento psicossocial avaliam a sociabilidade e o retraimento, as relações com colegas, o desempenho acadêmico, a adaptação à escola e as relações sócio-sexuais.
Os pesquisadores encontraram algumas associações entre o DUP e o funcionamento psicossocial na primeira admissão, e aos seis e vinte e quatro meses após a admissão. Mas fora desse período, o DUP não estava relacionado ao funcionamento psicossocial, nem em casos pré-mórbidos nem a longo prazo. Com efeito, eles fornecem evidências para sustentar a hipótese de que a muito tímida associação entre psicose prolongada sem tratamento e piores resultados não se deve a uma doença subjacente mais grave ou por causa de neurotoxicidade, mas por causa de um viés de prazos de início do tratamento.
Em outras palavras, as pessoas avaliadas para resposta ao tratamento nos estágios iniciais da doença (DUP mais curto) parecem estar se saindo melhor porque estão em estágios iniciais. Com o tempo, elas progredirão em direção a sintomas mais graves. Como estes pacientes são observados no estágio inicial da doença, eles parecem estar respondendo positivamente ao tratamento. Pacientes com DUP mais longo são vistos mais tarde em seu estágio de doença e, portanto, parecem estar piorando. A ausência de tratamento e diagnóstico precoce é culpada por isto quando é meramente o resultado de ser observado por especialistas em estágios posteriores de uma doença. Eles escrevem:
“Os pacientes com DUP longo estão à frente dos pacientes com DUP curto na progressão da doença em determinado momento do estudo, causando diferenças espúrias entre os grupos, mesmo que estejam na mesma trajetória”.
Os pesquisadores descobriram que nos períodos de acompanhamento, o DUP mais curto estava positivamente relacionado a um pior declínio na função psicossocial após o início dos sintomas. Quando visto contra a época da primeira admissão em uma instituição psiquiátrica, o DUP mais longo parecia mostrar piores resultados. Mas uma vez que o funcionamento psicossocial do indivíduo foi analisado contra o início dos sintomas (não a primeira admissão), qualquer relação com o DUP desapareceu.
Tanto os pacientes com psicose não tratada de longa como de curta duração tiveram funções psicossociais decrescentes, mas os pacientes com DUP de longa duração experimentaram estes declínios antes de serem admitidos pela primeira vez, enquanto os pacientes com DUP de curta duração mostraram estes déficits após sua primeira admissão.
Isto dá aos especialistas uma ilusão de resultado positivo do tratamento – em estágios iniciais, quando os pesquisadores avaliam os resultados de um tratamento que administram, eles observam que o tratamento funciona. Isto é, leva à aparência de que a intervenção precoce para a psicose foi eficaz, apesar do fato de que tanto em pacientes a longo como a curto prazo, a trajetória do transtorno permaneceu a mesma – eles foram apenas avaliados em períodos de tempo diferentes. Os autores escrevem:
“Estas descobertas sugerem um potencial para inferências tendenciosas em estudos de psicose do primeiro episódio. Estudos que avaliam resultados por um curto período após a primeira admissão podem identificar efeitos protetores do diagnóstico ou tratamento precoce que realmente refletem diferenças no estágio da doença em vez de mudanças no curso da doença”.
Essencialmente, os autores descobriram que quando incluíram o prazo de tratamento como um fator a considerar na relação entre o DUP mais longo e a trajetória da doença, o DUP mais longo não conseguiu prever resultados piores.
No geral, este artigo é outra evidência na linha de pesquisa recente que desafia os entendimentos tradicionais e o tratamento da psicose.
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Jonas, K. G., Fochtmann, L. J., Perlman, G., Tian, Y., Kane, J. M., Bromet, E. J., & Kotov, R. (2020). Lead-Time Bias Confounds Association Between Duration of Untreated Psychosis and Illness Course in Schizophrenia. American Journal of Psychiatry. Published online first: 12 Feb 2020. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2019.19030324 (Link)
Em um novo estudo, os pesquisadores descobriram que nenhum teste de imagem cerebral foi capaz de identificar uma diferença cerebral significativa que possa distinguir pessoas com um diagnóstico de transtorno depressivo maior (MDD) de pessoas sem MDD. Os pesquisadores escrevem:
“Participantes saudáveis e depressivos são notavelmente semelhantes em nível de grupo e virtualmente indistinguíveis em nível de sujeito único através de um conjunto abrangente de modalidades de neuroimagem”.
Por causa disso, eles escrevem: “Todas as pesquisas anteriores de neuroimagem falharam em fornecer qualquer resultado clinicamente relevante:
“Concluímos que os estudos fenomenológicos e descritivos de controle de casos que dominaram as duas últimas décadas em neuroimagem e genética psiquiátrica não conseguiram identificar diferenças biológicas substanciais e clinicamente relevantes entre pacientes MDD e controles saudáveis”, eles escrevem.
O estudo atual analisou os estudos de imagem do cérebro existentes comparando pacientes com MDD com sujeitos saudáveis de controle. Eles descrevem seu estudo como uma análise abrangente, analisando todas as várias modalidades de imagem para ver se eles poderiam encontrar alguma diferença cerebral existente. Eles também analisaram o escore de risco poligênico (PRS), uma medida complexa de risco genético.
Eles descobriram que pessoas com e sem MDD se sobrepunham a todas as medidas e que nenhuma delas poderia ser usada para identificar indivíduos com o diagnóstico.
“Neste estudo mostramos que indivíduos saudáveis e deprimidos são surpreendentemente semelhantes com relação a medidas univariadas neurobiológicas e genéticas”, escrevem eles. “Mesmo considerando o limite superior do desvio em cada modalidade, nenhum deles poderia ser considerado informativo de uma perspectiva psiquiátrica personalizada, sendo ambos os grupos quase indistinguíveis em um único assunto”.
Acrescentam: “Em geral, nenhuma modalidade explicou mais de 2% da variação entre sujeitos saudáveis e depressivos”.
Este número é contrastado com fatores como abuso infantil, trauma e falta de apoio social, que – segundo os pesquisadores – explicam até 48 vezes mais da variação do que a neuroimagem e a genética.
Os pesquisadores explicam que os estudos de neuroimagem publicados tendem a ter resultados que são estatisticamente significativos, que são relatados como se isso significasse que existe uma diferença cerebral identificável entre pessoas com MDD e pessoas sem MDD. Mas o foco na significância estatística obscurece o fato de que o tamanho do efeito é minúsculo e clinicamente insignificante – e que estas pequenas diferenças médias entre grupos não fornecem qualquer valor preditivo para os indivíduos.
“Mesmo sob condições estatísticas ideais”, escrevem eles, a sobreposição entre pessoas com MDD e controles saudáveis “corresponde a precisões de classificação entre 53,5% e 55,4%” – o que significa que esta informação permite previsões que mal são melhores do que o acaso (50%).
Os pesquisadores também analisaram se o foco apenas na depressão aguda ou crônica poderia produzir melhores resultados biológicos – mas eles chegaram com as mãos vazias: “Este padrão permanece praticamente inalterado quando se considera apenas pacientes aguda ou cronicamente deprimidos”.
Os pesquisadores não sugerem que os pesquisadores parem de procurar diferenças neurobiológicas, nem que se concentrem nos riscos conhecidos – como maus-tratos infantis, traumas e falta de apoio social – que têm alto valor preditivo. Em vez disso, eles incentivam o financiamento de estudos neurobiológicos ainda maiores e estatísticas orientadas pela inteligência enquanto “fenotipagem digital”.
Eles escrevem:
“Nós incentivamos os pesquisadores e agências financiadoras a irem além das análises univariadas e fomentarem 1) o desenvolvimento de pesquisas quantitativas, orientadas pela teoria, como feitas, por exemplo, em psiquiatria computacional, 2) métodos multivariados preditivos com foco claro no máximo poder preditivo e reprodutibilidade, 3) pesquisa em novas abordagens de medição, e 4) fenotipagem profunda, incluindo avaliação longitudinal e fenotipagem digital. Estudos futuros terão que investigar se isto pode melhorar a utilidade clínica e a relevância teórica dos dados neurobiológicos na saúde mental”.
O estudo foi publicado antes da revisão no site de acesso aberto arXiv e envolveu uma equipe de 31 pesquisadores interdisciplinares, incluindo neurocientistas, geneticistas e cientistas da computação. Eles foram liderados por Nils Winter no Institute for Translational Psychiatry, Universidade de Münster, Alemanha.
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Winter, N. R., Leenings, R., Ernsting, J., Sarink, K., Fisch, L., Emden, D., . . . & Hahn, T. (2021). More alike than different: Quantifying deviations of brain structure and function in major depressive disorder across neuroimaging modalities. Uploaded to arXiv on December 21, 2021. https://arxiv.org/pdf/2112.10730.pdf (Link)
Na página do Conselho Nacional de Saúde, transcrição na íntegra:
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou, nesta segunda-feira (14/12), a Resolução nº 652 que convoca a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental (5ª CNSM), cuja etapa nacional será realizada em Brasília, entre os dias 17 e 20 de maio de 2022, precedida de etapas municipais e estaduais que poderão ser realizadas ainda em 2021. A 5ª CNSM é uma deliberação da 16ª Conferência Nacional de Saúde (8ª + 8), realizada em agosto de 2019, com a participação de mais de cinco mil pessoas.
A Política Nacional de Saúde Mental vem sofrendo ataques constantes desde sua elaboração, aprofundados nos últimos cinco anos. As medidas colocam em risco conquistas históricas, sustentadas por quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental, pela Lei nº 10.216/2001 e pela Lei Brasileira de Inclusão, largamente reconhecidas no cenário internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os impactos atingem a Rede de Atenção Psicossocial, com o incentivo à internação psiquiátrica e à separação da política sobre álcool e outras drogas, que passou a ter ênfase no financiamento de comunidades terapêuticas e uma abordagem proibicionista e punitivista, de acordo com os debatedores.
“As Conferências Nacionais de Saúde Mental contribuem substantivamente para uma política de Estado de saúde mental, álcool e outras drogas e direciona as políticas de governos em todas as esferas da federação, em um sistema descentralizado e integrado de saúde. “São formas de revisar e atualizar as políticas públicas para o campo da saúde mental e atenção psicossocial, álcool e outras drogas”, destaca a resolução.
A 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental foi realizada em 2010 e, por isso, esse é considerado o maior intervalo entre as conferências. De acordo com o relatório final, foram realizadas 359 conferências municipais e 205 regionais, com a participação de cerca de 1200 municípios. O relatório também estima que 46.000 pessoas tenham participado do processo, em suas 3 etapas.
O tema “Saúde Mental direito e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar desafios” permitiu a convocação dos setores envolvidos com as políticas públicas e de todos aqueles que com indagações e propostas sobre a saúde mental. A 4ª CNSM destacou-se por ter sido a primeira intersetorial, com participação de usuários, trabalhadores e gestores do campo da saúde e de outros setores. Isso foi um avanço radical em relação às conferências e atendeu às exigências reais e concretas que a mudança do modelo de atenção trouxe para todos.”
Lynne Layton é psicanalista em Cambridge, Massachusetts, e professora clínica assistente de psicologia em tempo parcial na Faculdade de Medicina de Harvard. Doutora em psicologia clínica, bem como em literatura comparativa, ela ministrou cursos sobre gênero, cultura popular e psicanálise para o Comitê de Estudos da Mulher e Estudos Sociais de Harvard. Atualmente, ela leciona e supervisiona no Instituto de Psicanálise de Massachusetts.
Ela publicou recentemente um livro chamado Towards a Social Psychoanalysis: Culture, Character, and Normative Unconscious Processes [Rumo a uma psicanálise social: Cultura, Caráter e Processos Inconscientes Normativos ], é autora de Who’s That Girl? Who’s That Boy? Clinical Practice Meets Postmodern Gender Theory (2004) [Quem é Aquela Menina? Quem é Aquele Menino? Encontros de Prática Clínica Pós-Moderna]. Ela também foi a co-editora dos livros Narcissism and the Text: Studies in Literature and the Psychology of Self, Bringing the Plague: Toward a Postmodern Psychoanalysis [Narcisismo e o Texto: Estudos de Literatura e a Psicologia do Eu, Trazendo a Peste: Para uma Psicanálise Pós-Moderna, e Psicanálise, Classe e Política: Encontros no cenário clínico]. Seu envolvimento na edição de revistas revisadas por pares inclui ser a editora associada da revista Psychoanalytic Dialogues e a antiga co-editora da revista Psychoanalysis, Culture & Society.
Ela é a ex-presidente da Seção IX, Divisão 39 da Associação Americana de Psicologia, Psicanálise para Responsabilidade Social, e co-fundadora do Grupo de Trabalho Psicossocial de Boston e dos Espaços de Reflexão/Locais Materiais-Boston, um grupo de terapeutas psicodinâmicos comprometidos com a saúde mental comunitária e a justiça social. Ela também faz parte do comitê organizador da Campanha de Reparação de Base, uma organização que trabalha para a construção de uma cultura de reparação.
Nesta entrevista, Layton discute a psicanálise social. Ela explora como sua construção de “processos normativos inconscientes” pode iluminar como os sistemas opressivos são continuamente internalizados e reproduzidos, tanto dentro como fora da clínica.
A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.
Javier Rizo: Você poderia nos contar a sua jornada para a psicanálise e especificamente para a psicanálise social?
Lynne Layton: Fui a primeira estudante de pós-graduação em literatura comparativa no início dos meus 20 anos. Um dos cursos que fiz foi sobre história intelectual, e um dia meu instrutor estava falando sobre [Sigmund] Freud. O instrutor contou uma história de Freud e sua relação com [Wilhelm] Fliess, especificamente a teoria de histeria que a localizava no nariz e nos seios nasais. Durante aquela palestra de hora e meia, eu havia deixado de me sentir absolutamente bem por causa de um resfriado grave que tive ao final da palestra. Nunca tinha pensado em mim como histérica antes, mas isso me fez pensar nos processos inconscientes e na estreita conexão entre o corpo e a mente. Creio que esse foi um dos inícios do meu interesse pela psicanálise. Depois disso, lembro-me de querer ser professora de literatura comparativa e depois receber algum treinamento em psicanálise.
A outra parte realmente importante daquilo que me interessava na psicanálise estava toda enraizada no que eu sabia (e então comecei a perceber que não sabia) a meu respeito. Eu estava muito envolvida no movimento feminista dos anos sessenta quando estava na faculdade e mais além, continuando a ser uma ativista feminista e interessada na teoria feminista.
Mantive um diário do meu primeiro curso de estudos para mulheres quando eu estava na faculdade. Eu falava sobre como eu não iria me casar e queria fazer esta carreira na literatura comparada. Aos vinte e dois anos, eu era casada, precisando fazer vários compromissos no que eu era capaz de fazer. A dicotomia entre a conversa que eu estava falando e a caminhada que eu estava fazendo me fez pensar, “quais são os processos que continuam inconscientemente que estão funcionando contra o que você pensa, conscientemente, que você quer estar fazendo”?
Eu estava na Universidade de Washington quando estava estudando literatura comparada. Uma revista publicada em Washington chamada Telos, liderada por Paul Piccone, trouxe uma teoria crítica vinda da Alemanha para um público americano. Eles incluíam figuras da Escola de Frankfurt como Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer, e um pouco de Erich Fromm. Estes estavam entre as primeiras pessoas que tiveram interesse em unir o marxismo e a psicanálise no início do século 20. Assim, líamos aquelas pessoas que estavam unindo o social e o psiquismo.
Desde o início de minha jornada pessoal e intelectual, a psicanálise era social. Não se tratava apenas da mente individual, mas como ela é moldada pelas correntes sociais, políticas e históricas que estão acontecendo. Acho que uma das outras coisas importantes sobre esses teóricos para mim foi seu foco no que une as pessoas libidinalmente, prende as pessoas às ideologias e exige que elas se conformem, trabalhando contra seus desejos conscientes do que querem estar fazendo e pensando.
Javier: Você mencionou que sua primeira entrada foi através de literatura comparativa, e a psicanálise é freqüentemente encontrada em inglês ou em departamentos de literatura, mas eu sei que você também é uma clínica praticante. Como estes entendimentos se traduziram no âmbito clínico?
Lynne: Acho que isso nos leva a um significativo balanço histórico. Quando comecei o treinamento em psicologia, fui para a Universidade de Boston, e era inteiramente psicanalítico. Eu não estava entrando em um programa que fosse contrário ao que eu queria aprender. Isso foi nos anos 80, quando muitos, se não a maioria, dos departamentos de psicologia eram orientados psicanaliticamente.
Não foi mais do que dez, doze, quinze anos depois que o programa BU e todos os outros programas do país abandonaram a sua orientação psicodinâmica, coincidindo com o início dos atendimentos gerenciados e a elevação da ciência “baseada em evidências”. Não havia praticamente nenhum treinamento psicanalítico a ser feito no nível de estudante de pós-graduação, e era preciso ir a algum lugar fora para poder obtê-lo. Mas, se não se tivesse experiências como a minha, quando se começa a perceber que a sua mente inconsciente está trabalhando contra a sua mente consciente, por que você pensaria, após seus anos de treinamento cognitivo-comportamental, que haveria algo mais?
Lembro-me de uma história de quando eu estava ensinando nesta maravilhosa organização, o Instituto de Psicoterapia de Boston. Era um dos poucos lugares que oferecia tratamento de baixo custo e de longo prazo, e era também um programa de treinamento. Lembro-me de alguém me dizer que ela havia treinado em um programa em Ohio e nunca havia ouvido falar de Freud ou qualquer coisa sobre trabalho psicodinâmico. Então, por acaso, ela foi a uma palestra onde alguém começou a falar sobre isso, e ela ficou tão entusiasmada com isso porque estava ligado a algo em sua vida. Então, ela encontrou o Instituto de Psicoterapia de Boston e ficou entusiasmada com isso.
Em Harvard, dei um curso de estudos sociais sobre psicanálise e cultura, e tive algumas classes na graduação em psicologia. Eles me disseram que um de seus professores havia dito que a psicanálise era uma teoria que começou em 1870 e terminou em 1970. Então era isso que estava sendo ensinado nos anos 90 no departamento de psicologia de Harvard. Esta pessoa disse: “Eu queria fazer um curso que fosse sobre pessoas antes de me formar, então é por isso que estou fazendo o seu curso”.
Javier: Você menciona este movimento de afastamento em psicologia clínica e psiquiatria, distanciando-se de modelos psicodinâmicos para outros que se encaixam dentro de um contexto de cuidados gerenciados. Sei que você fala de neoliberalismo em muito do seu trabalho, por isso estou curioso sobre como isto se encaixa no seu desenvolvimento como psicanalista, mas também como psicanalista social.
Lynne: Neoliberalismo não é uma palavra ou ideologia de que se fala tanto em psicologia. Acho que parte desta mudança do pensamento psicodinâmico e psicanalítico está bem descrita em alguns dos trabalhos de Sam Binkley, um estudioso de Foucault e sociólogo. As pessoas são encorajadas a não olhar para trás em sua história, ensinadas que a relacionalidade não é tão importante quanto o desenvolvimento de seu eu individual soberano, e que se deve olhar para o futuro e ser positivo (o que se conecta com o quão popular era o curso de psicologia positiva em Harvard nos anos 90 e 2000).
Isto sempre foi verdade nos Estados Unidos – não pensamos nos problemas das pessoas como tendo raízes sociais. Porém, com o neoliberalismo, o problema é realmente seu, se você não estiver satisfeito. Isto coloca um peso nos clínicos que se tornam de alguma forma agentes do Estado – em termos de não ver muitos destes problemas que muitos de nossos pacientes sofrem como problemas sociais ao invés de problemas individuais.
O neoliberalismo também cria um sistema de saúde mental de dois níveis. Trabalho de curto prazo em clínicas para pessoas que não podem pagar, e talvez psicodinâmica, quatro ou cinco dias por semana de trabalho analítico para pessoas que podem.
Javier: Portanto, há uma grande influência que o neoliberalismo como ideologia tem tido na prática clínica e na vida social em geral. Você pode falar sobre psicanálise social especificamente dentro do âmbito clínico e seu desenvolvimento da teoria clínica?
Lynne: Devido ao meu treinamento anterior e como eu estava pensando em mim mesma desde a faculdade durante a Guerra do Vietnã e o início do feminismo da segunda onda, estávamos realmente pensando em nós mesmos em termos sociais e não apenas em termos psicológicos.
Quando me tornei uma clínica na casa dos 30 e 40 anos, quando me tornei uma psicanalista, meu interesse era explorar os sistemas em que crescemos, sistemas de sexismo, racismo, heterossexualismo, classismo. Como eles estão nos moldando de uma forma intersetorial? Como eles estão moldando nosso comportamento? Como estamos trabalhando contra nós mesmos e, de certa forma, contra nossos próprios interesses em nossas interações com os outros e em nosso relacionamento com nossos próprios corpos? Para mim, isso sempre teve que ser visto dentro dos diferenciais de poder e das matrizes sociais que operam. Então é isso que quero dizer com psicanálise social, que você não está olhando para o indivíduo como se estivesse fora de qualquer contexto social.
Eles falavam muito sobre o modelo biopsicossocial quando eu estava em treinamento, mas isso não significava muito. Quero dizer, o status socioeconômico também era algo em que se deveria estar pensando, mas não mudou a forma como se falava com o paciente ou como se pensava sobre a relação da experiência deles com outras pessoas em diferentes posições sociais. Certamente não sou a primeira pessoa a pensar em psicanálise social-Fanon com certeza foi uma das pessoas que estiveram na vanguarda da psicanálise.
Uma grande influência sobre mim foi Erich Fromm, um sociólogo que desenvolveu alguns conceitos que foram influentes no que eu estava começando a fazer. O inconsciente social era um de seus conceitos. Ele explorou que tipo de coisas não se pode pensar em uma cultura, e como isso forma um caráter particular dentro de uma ordem socioeconômica particular. Ele não foi influenciado pelo feminismo, então ele inventou este “caráter dominante” que não era diferenciado por gênero, raça, sexo.
Em meu livro, onde falo sobre caráter, cultura e processos inconscientes normativos, estou tentando (por influência do feminismo negro, teoria da interseccionalidade, teoria racial crítica) entender o caráter de uma forma muito mais diferenciada. Onde quer que você esteja socialmente localizado, haverá uma forma ideal de ser encorajado a estar naquele local. Quando você não for assim, muitas vezes terá vergonha de não ser assim, e isso causará conflitos psicológicos que podem acabar por continuar a agir em seu próprio prejuízo. Eu transformei o inconsciente social de Fromm em um processo e não em uma substância. É a operação dessas forças, desses processos inconscientes, que causam danos em primeiro lugar.
Na minha época, crescendo nos anos 50 e início dos anos 60, uma mulher não era para ser assertiva; era para ser relacional. Sua função mais importante era casar-se, o que eu fiz, embora isso não fosse conscientemente o que eu queria fazer. Sentia-se envergonhada por ser assertiva, por isso se tornava conflituosa. Quando se estava sentado com um terapeuta naquela época, muitos acreditavam que era isso que as mulheres deveriam ser. A terapeuta poderia fazer interpretações, acenos de cabeça e afirmações sobre exatamente o que causou a dor induzida pelo sexismo em primeiro lugar – em outras palavras, sustentar o sistema sexista em vez de questioná-lo. O que descobri no decorrer da leitura de muito trabalho clínico, e pensando em meu trabalho clínico, é que isto acontece muito mais do que queremos admitir.
Particularmente quando não estamos pensando nas pessoas no contexto de suas localizações sociais e só pensando nas pessoas. As “pessoas” tendem a ser homens brancos de classe média-alta. Essa norma é encorajada para os homens, uma forma particular de ser masculino. Depois há uma maneira particular de ser feminino, seja branco, preto ou classe trabalhadora, que também pode ser encorajada em detrimento da pessoa com quem se está trabalhando. Eu me sinto como se tivesse levado o trabalho que tinha sido aplicado à cultura fora e tentado trazê-lo para o que acontece no trabalho clínico que apoia o status quo, o que Erich Fromm chamou de “patologia da normalidade”, em vez de contestá-lo.
Javier: Você está tocando neste conceito que parece passar por muito de seu recente trabalho sobre “processos normativos inconscientes”. Você poderia falar sobre como esse conceito foi recebido pela comunidade analítica, psiquiatria e psicologia de modo mais geral?
Lynne: Penso que fora do mundo psicodinâmico e psicanalítico, ele não é recebido de forma alguma.
Mesmo dentro desse mundo, é interessante a forma como as coisas são estabelecidas em termos de disciplinas, sendo esta disciplina separada daquela disciplina, sociologia da psicologia, etc. Encontrei trabalho sobre neoliberalismo de psicólogos que não são clínicos, mas que estão em desenvolvimento ou personalidade, que são tão parecidos com o que eu trabalho. Quando li entrevistas com algumas dessas pessoas, eles falaram sobre como se sentiam marginalizados em seu mundo psicológico. Isso me deixou tão triste porque nem nos conhecíamos.
Eu diria que, no mundo psicanalítico, me pedem para falar, e eu escrevo muito, mas ainda é uma perspectiva marginal. Mais recentemente, ouço repetidamente em muitos lugares pessoas dizerem: “sim, temos que considerar a diversidade”. Eu acho que é realmente importante. Temos que contratar alguns professores negros para ensinar alguns de nossos cursos. Mas realmente não queremos diluir o ouro puro do nosso currículo”. Como se isso fosse um pequeno acréscimo, e não vai desafiar o “ouro puro”.
Enquanto a maioria das pessoas no campo não pensar sistemicamente em coisas como racismo, classismo e sexismo, eu acho que nunca seria uma voz dominante no campo. Mas há muitos de nós, o que me salva a vida – como o pessoal da Psicanálise de Responsabilidade Social na Divisão 39. A partir dos anos noventa, a revista Diálogos Psicanalíticos teve edições sobre temas como o feminismo psicanalítico. Acabei trabalhando com muitas das pessoas que escreveram nessa edição, incluindo Virginia Goldner, Adrienne Harris, Jessica Benjamin, e Nancy Chodorow.
Se você está falando de desigualdades sociais e estruturas de poder, isso não é a corrente dominante da psicologia. Nunca vai ser. Acho que é um campo muito individualista que apenas se torna mais, e é muito elite. Por exemplo, se você trabalha o dia inteiro na sexta-feira porque tem um emprego, não pode treinar no meu instituto porque os cursos são às sextas-feiras.
Javier: Você pode falar sobre o impulso do neoliberalismo em direção ao isolamento da conexão social? Incluindo a ideia de que a solidariedade e a formação de conexões com outras pessoas podem subverter o neoliberalismo como um sistema econômico e ideológico.
Lynne: Uma das primeiras coisas que me vem à mente quando penso em isolamento é a separação entre o psíquico e o social. Em meus escritos anteriores, eu havia entendido que fazer parte de uma sociedade burguesa, individualista, baseada na classe. A norma era esconder o fato de que as relações de poder, as diferentes realidades e os diferentes locais sociais estavam acontecendo.
Houve uma idéia que começou em Freud de que somos mais parecidos do que psicologicamente diferentes, e eu acho que isto é verdade de algumas maneiras. Acho que Freud tinha algumas boas razões para ter uma visão universalista. Ele era judeu em uma cultura muito anti-semita, então ele estava em dificuldades para ser pensado como humano. Infelizmente, o resultado disso na psicanálise é obscurecer a relação entre o psíquico e o social.
Na ideologia da classe média, uma das ferramentas para disfarçar seu poder é tomar a si mesmo como “humano”. Estive neste encontro de Espaços Reflexivos, um grupo de clínicos de pensamento social-justiça, predominantemente formado por brancos. Em uma determinada reunião, deveríamos estar falando de ativismo social e clínico. Nós damos a volta no início da reunião e tentamos não nos apresentar pelo nosso status, mas pelo motivo de estarmos aqui. Essa pergunta era: “Como você conecta seu ativismo social e seu ativismo clínico”? O que aconteceu naquela reunião foi que quase todos os brancos disseram: “Eu não sei como eles se conectaram… é por isso que estou aqui”. As pessoas de cor ficaram chocadas, como se você não pudesse ver a conexão entre sua localização social e o que você faz na clínica? Foi só então que percebi que a separação da psique e do social é um produto do racismo, bem como um problema de classismo.
Você provavelmente também está falando de outra característica do neoliberalismo – a minimização da interdependência e da solidariedade. O que me vem à mente quando eu digo solidariedade é solidariedade de classe. A quebra das uniões é uma das versões não-clínicas destas destruições mais amplas dos laços relacionais. Em um dos ensaios publicados no livro, falo sobre como o neoliberalismo impactou diferentes grandes grupos, e esse capítulo é chamado de “Yale, fracasso, prisão”. Tudo isso veio de um paciente branco, de classe média, que recebeu esta mensagem ao crescer que ou se vai para uma escola da Ivy League, ou se vai para a cadeia. Quando ela disse isso, eu não percebi como isso capturou bem a sociedade neoliberal. Essa desigualdade radical que marca a cultura neoliberal e a desigualdade era precisamente o que seus pais estavam ansiosos – empurrá-la para ser o 1% que tem sucesso, em vez dos 99% descartáveis. Nesse capítulo, falo sobre como uma das características da família de classe média que está empurrando seus filhos para o sucesso é o familiarismo amoral.
A empatia é redefinida nesse contexto. Não se quer olhar para coisas como a empatia que é a mesma ao longo da história; quer-se historicizar estes termos. Como está operando agora? Que tipo de trabalho cultural é realizado? Então, a empatia veio para ser redefinida que é algo oferecido, na classe média e média alta, à sua família e àqueles que são seus intimidados. Talvez você tenha alguns sentimentos tristes e empáticos em relação aos que sofrem distantes, como as pessoas no Afeganistão. Ainda assim, você nunca está olhando para sua cumplicidade, as inter-relações e como estamos envolvidos no sofrimento e nas alegrias um do outro – é parte da negação do sistema.
Javier: Como a psicanálise social e os processos inconscientes normativos se desenrolam na forma como os terapeutas respondem a seus clientes?
Lynne: Há muitas escolas de psicanálise. Estou principalmente ligada à psicanálise relacional, que começou nos EUA no início dos anos 80 com Stephen Mitchell e incluiu muitas das feministas que eu havia mencionado anteriormente. Um princípio dessa escola é que há dois inconscientes na sala em qualquer terapia.
Há muito tempo, um Kleiniano dizia: “não há uma pessoa doente e uma pessoa saudável na sala”, há duas pessoas doentes. Caso você pense que esta cultura o deixa doente, então sim, há duas pessoas doentes na sala. Se você não olhar para sua própria história, seus próprios locais sociais, e entender que, no contexto destes sistemas maiores, você pode muito bem ser capaz de reproduzir a doença cultural. Eu valorizo a perspectiva da escola relacional sobre o processo inconsciente. Elas não são a única escola a falar sobre as interações não-verbais, mas outras escolas não enfatizam o papel dos terapeutas na interação não-verbal insconsciente.
Em seu livro Fallacy of Understanding de 1972, Edgar Levinson disse: “como psicoterapeutas, não posso ter certeza de que o que eu disse seja ouvido como o disse. Não posso ter certeza de que a percepção do paciente, se diferente da minha, seja menos apropriada. Não posso ter certeza de que não disse o que ele pensa que eu disse, ao invés do que eu penso que disse”. Portanto, isso é mais ou menos o coração dos processos normativos inconscientes. Ou você ou o seu paciente podem capturar uma interação não-verbal inconsciente que está ocorrendo onde se está envolvido na reprodução dos sistemas aos quais se deveria estar tentando resistir. Isso requer vulnerabilidade e humildade no terapeuta, estar aberto a ouvir o que seu paciente diz que acabou de ouvir, e não ficar na defensiva sobre isso.
Muita da literatura relacional fala sobre o trabalho através dos impasses, particularmente o trabalho de Jessica Benjamin em reconhecer o mal feito. Ela diz que às vezes o terapeuta tem que ir primeiro; qual foi o papel do terapeuta na criação de um impasse? Estou concentrada em um tipo particular de impasse psicossocial. Pode ser o paciente que percebe, você que percebe, mas desvendá-lo é um passo em direção à saúde.
A outra coisa em que estou pensando é num seminário que Janet Helms deu dentro da APA – “Nós guardamos estas verdades” com pessoas dentro dos grupos de psicologia de minorias étnicas que também são de certa forma marginalizados pela APA. Nesta série, elas foram colocadas na frente e no centro após o assassinato de George Floyd. Ela abriu sua palestra dizendo que falaria sobre o privilégio heterossexual masculino branco, que ela pronunciou como “WIMP”. Ela disse: “todos os nossos sintomas derivam do WIMP, e isso inclui também os sintomas dos homens brancos”. É disso que espero que os clínicos possam estar mais conscientes em seu trabalho.
Javier: Você poderia falar para onde você espera que a psicanálise social possa ir nos próximos anos? O que você vê como potencial?
Lynne: Acho que há algum recuo porque há uma verdadeira proliferação de pessoas escrevendo e olhando para a Branquitude [Whiteness] e como ela está operando em seu trabalho clínico. Os teóricos descoloniais, incluindo o trabalho de Daniel Gaztambide e Lara Sheehi, são apenas exemplos realmente maravilhosos de psicanálise social. Não acho que possa ser colocado de volta no saco.
Também tenho esperanças e medos sobre o rumo que este país está tomando. Estou aterrorizada com isso. Faço muito trabalho de reparação e, embora não goste, faço muito trabalho eleitoral porque sinto que o que quer que tenhamos tido em termos de democracia se encontra sob ataque. Fico muito animado com a quantidade de seminários e webinars que ouvi no último ano e meio em que pessoas de cor falam sobre os danos que sofreram em seus programas de treinamento e instituições. Sinto que a maioria das instituições quer fazer mudanças, mas não tenho certeza de quão capazes as dominadas pelos brancos estão fazendo isso. Pode ser necessário haver instituições BIPOC separadas que precisam se formar, e elas certamente serão sociais e esperançosamente psicodinâmicas, mas isso remonta ao ponto de partida.
O disco experimental “Rádio Lelé”, lançado no dia sete de fevereiro, é uma iniciativa coletiva, criada por pacientes de hospitais psiquiátricos públicos, durante ações de projeto arte-ativista que promoveu intervenções nas instituições. Rabay, idealizador da proposta, inspira-se em Nise da Silveira, uma das principais referências da luta antimanicomial no Brasil, para articular arte, tecnologia, educação e comunicação como maneiras de fomentar o protagonismo e o bem-estar de pessoas portadoras de transtornos mentais.
O projeto nasce de uma área chamada Educomunicação, que pensa estratégias de promoção da solidariedade nas relações humanas, através do diálogo, da criatividade e da autonomia dos indivíduos. Mestrando em Artes, Urbanidades e Sustentabilidade, pela Universidade Federal de São João del-Rei, onde pesquisa a aplicação de práticas educomunicativas no universo da saúde mental, o artista se dedica, há cerca de 7 anos, ao desenvolvimento de ações nesse contexto. No último Congresso Brasileiro de Saúde Mental, promovido pela ABRASME, Rabay apresentou uma prévia do álbum no formato de live, reproduzindo e remixando trechos das gravações durante a programação cultural do evento.
Gravado dentro dos hospitais, o disco documenta indiretamente uma realidade que muitos acreditam já estar superada. Distantes do centro urbano, localizados às margens dos municípios, os manicômios contribuem com o isolamento dos pacientes, dificultando sua reinserção na sociedade. Além disso, moradores das instituições acabam perdendo o vínculo familiar e passam décadas “residindo” em uma situação que os priva de qualquer individualidade, habitando alas hospitalares coletivas, repletas de leitos e uma rotina diária com pouca ou nenhuma autonomia. A proposta do disco Rádio Lelé é permitir o acesso à textura humana, criativa e subjetiva desses indivíduos tão invisibilizados. Ouvir as criações dessas pessoas é reconhecer que elas existem e infelizmente continuam trancadas dentro das instituições.
Em 2019, o Relatório de Inspeção Nacional dos Hospitais Psiquiátricos no Brasil, realizado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, pelo Conselho Federal de Psicologia e outros órgãos, apontou que a situação de violação dos direitos humanos e constantes abusos por parte dos hospitais psiquiátricos, persiste no país. De acordo com o documento, “foram identificadas diversas situações de violação de direitos humanos que apontam para práticas de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, além de denúncias de estupro, violência de gênero, desrespeito à crença, revista vexatória como método institucional e a imposição de religião como método terapêutico”. O relatório afirma que as instituições inspecionadas são “exclusivamente instituições de privação de liberdade”.
Apesar de buscar fomentar o protagonismo dos pacientes, o material esbarra em limitações jurídicas que ilustram o contexto manicomial e, nesse sentido, acaba por denunciá-lo: o trabalho nasce do registro cotidiano das práticas coletivas propostas pelo educador, porém, por se encontrarem em situação de internação, a questão dos direitos de imagem dos autores é intermediada (e muitas vezes tutelada) pela administração dos hospitais, ficando subordinada a sua avaliação. De acordo com Rabay, essas lideranças têm uma percepção majoritariamente conservadora e higienista acerca das obras dos pacientes e não as interpretam como arte, apenas como evidências de um adoecimento, que devem ser omitidas. Essa postura impossibilita a tramitação que facilitaria a divulgação dos vários autores e autoras envolvidos no trabalho.
Em seu livro Imagens do Inconsciente, de 1981, Nise da Silveira já apontava que esse comportamento era típico da psiquiatria manicomial, que se recusava a reconhecer o valor artístico das produções expressivas de pessoas portadoras de transtornos mentais e insistindo em procurar nessas obras apenas “reflexos de sintomas e de ruína psíquica”. Rabay conta que ficou impactado ao se deparar com uma postura criticada pela autora há 60 anos atrás.
“Mesmo não concordando com o modelo das instituições, acredito que devemos pensar nas pessoas que ainda se encontram lá dentro e buscar maneiras de intervir, sem deixar que o hospital se aproprie desse trabalho para tentar legitimar sua existência. Seria algo como uma redução de danos, enquanto o espaço não é desativado. Essa postura é um desafio, pois os hospitais psiquiátricos buscam se maquiar, visando divulgar uma suposta renovação a todo momento. Rádio Lelé é fruto de entender esses processos: nasce de registros das práticas coletivas que realizei, porém de gravações e composições cuja divulgação não foi diretamente autorizada pelos dirigentes dos hospitais, justamente por revelarem esse aspecto mais autônomo e livre dos indivíduos.”, diz Rabay.
Segundo o educomunicador, quando um paciente cantava uma canção religiosa ou fazia algum relato positivo sobre a instituição, não havia problema algum na exposição do material, porém criações mais fluidas e críticas, ou até mesmo ritmos como o funk, eram desencorajados. “O hospital psiquiátrico, no geral, quer divulgar uma imagem “normalizada” de seus pacientes, de preferência algo de teor moralizante ou cristão. Apesar disso, resolvi lançar o material, para que de alguma forma as vozes e criações dessas pessoas possam reverberar. O que eu gostaria mesmo era que os autores e autoras pudessem estar aqui do meu lado, mostrando seu rosto e falando sobre as suas criações”, relata.
Estou me sentindo humilhada. Enquanto nós estamos na Bienal, curtindo a chamada “Arte Incomum”, os autores dessas obras estão dentro de cárceres psiquiátricos, recebendo tratamentos desumanos. (…) Eu os acho infelizes, eles são os verdadeiros pacientes, de paciência mesmo. São infelizes porque lhes é negado o direito de serem livres, de estarem aqui junto conosco na Bienal, discutindo a sua própria arte. Nise da Silveira
O disco foi criado em parceria com Airton, Ulisses, Adriano, Antonio, Wellington, Laudete, Andreza, Teresa, Luciene, Vitória, Lucimara, Rafael, Regina, Mara, Salete, Bruna, Lucinei, Elizabete, Elizangela, Cristiana, Luis Carlos, Francisco, Patrick, Renato, Ítalo, Rodrigo, Cícero, Deivison, Nilson, Valdecir, Noemi, Julia , Daniel, Adair, Márcia, Maria, Afrânio, Verinha, Anderson, Hugo, Julio, Flávio, Cíntia, Anderson, Priscila, Otto, Fagner, Paulo, Daniel, Antonino, Santo Noé, Sidnei, Elza, Renata, Cristina, Donizetti, Fabiano, Zé, Wilson, Pirata, Julio César, João, Clóvis, Suzana, Raila, Maitê, Ercina, Antônio, Natalino, Osmar, Ricardo, José, Cleuza e muitas e muitos mais, direta ou indiretamente.
As imagens que acompanham o material são de autoria do artista Marlon de Paula e foram produzidas durante uma residência artística realizada em 2019, no Museu Bispo do Rosário, na cidade do Rio de Janeiro. As fotografias foram realizadas no interior da Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica que chegou a “abrigar” cerca de 5.000 pessoas na década de 60, sendo palco de práticas terríveis como o eletrochoque e cirurgias como a lobotomia. Um desses internos foi Arthur Bispo do Rosário, artista plástico cuja obra se tornou referência para a reflexão sobre os limites entre arte e loucura. Outra interna do Juliano Moreira e que, de acordo com Rabay, foi uma das principais referências para o projeto é a poetisa Stella do Patrocínio, dona de uma obra visceral e questionadora.
O disco e as imagens podem ser acessados através do youtube e as faixas também se encontram disponíveis nas principais plataformas digitais de streaming. O trabalho conta com a mixagem e masterização de áudio feitas pelo produtor e artista Márcio Dabliueme.
Mental health concept. File with a list of psychiatric disorders. 3D illustration
Em um novo artigo publicado na Cultural Reflections, Chloe Beale explora a linguagem e os sistemas de exclusão difundidos na psiquiatria moderna. A autora argumenta que a linguagem que usamos na psiquiatria, em especial em torno do suicídio, aponta para uma disciplina que se concentra mais no risco do que na recuperação. Ela escreve:
“A escolha de palavras no trabalho clínico e na documentação pode revelar atitudes perturbadoras, valores pessoais e medos. Considerando que a teoria psicanalítica continua sendo um componente central do treinamento psiquiátrico, poderíamos fazer melhor se reconhecemos as nossas próprias defesas”. Desenvolvemos todo um léxico de palavras evasivas e pensamento mágico que transmitimos entre gerações e entre disciplinas. Seria difícil chegar a uma lista exaustiva de mentiras que contamos a nós mesmos na prática psiquiátrica”.
O trabalho em tela também investiga os sistemas de exclusão em vigor dentro da psiquiatria. Por exemplo, os usuários de serviços podem ver negado o acesso aos serviços devido ao código postal, exibindo ‘muita’ ou ‘pouca necessidade’, ‘muito risco’, etc. Para combater estas atitudes e valores que impactam negativamente a cura e a recuperação, a autora argumenta que tanto o treinamento quanto o desenvolvimento de serviços devem ser verdadeiramente co-produzidos e mais atenciosos da história humana por trás dos males que a disciplina visa tratar.
O trabalho em tela examina a linguagem de exclusão tão comumente usada dentro da psiquiatria, analisando as palavras que a disciplina usa em torno do risco de suicídio. De acordo com a autora, a psiquiatria usa listas de controle de suicídios e avaliações de risco profundamente errôneas para determinar quem pode estar em risco de suicídio. A confiança contínua da disciplina nestes instrumentos duvidosos aponta para o risco de ser a principal preocupação dos prestadores de serviços em vez da recuperação.
Por exemplo, um prestador de serviços pode rotular uma pessoa como tendo “nenhum plano ou intenção” de cometer suicídio com base em medidas errôneas. A linguagem de “sem planos ou intenção” exclui essa pessoa de receber serviços psiquiátricos destinados a ajudar pessoas suicidas. Enquanto a linguagem de “sem planos ou intenção” muitas vezes não reflete a realidade e certamente não protege uma pessoa contra o suicídio, ela permite que o prestador de serviços se sinta melhor sobre a natureza imprevisível das tentativas de suicídio.
A autora também chama a atenção para a linguagem que os prestadores de serviços usam para pedir aos possíveis usuários de serviços suicidas para ” garantir a sua segurança”. Segundo a autora, os usuários de serviços não devem ser solicitados a garantir nada aos clínicos. Em vez de se concentrar no risco, a autora argumenta que os clínicos deveriam “sustentar a esperança” e iniciar a terapia a partir de um lugar de reconhecimento da angústia e do desejo de ajudar. Ela escreve:
“É quase como se pegássemos o pior cenário e trabalhássemos para trás a partir daí, começando por ‘esta pessoa pode se matar, seguido por ‘como posso provar que a culpa disso não é minha’? Nosso ponto de partida deveria ser o simples reconhecimento da angústia e do desejo de ajudar. É essa conexão em nível humano que muitas vezes faz a diferença para as pessoas em crise. Ninguém nunca diz que foi salvo por uma avaliação minuciosa dos riscos, e certamente não se trata de uma lista autônoma de perguntas entregues sem empatia. A gente se pergunta se existe outra especialidade médica na qual existe tal devoção obstinada a uma prática não baseada em eventos”.
O trabalho corrente examina então a exclusão sistemática de certas pessoas dos serviços psiquiátricos por vários motivos, incluindo o código postal, diagnóstico, complexidade, comorbidade, demasiada necessidade, necessidade insuficiente, risco, falta de motivação, prontidão para mudanças, etc. O termo utilizado dentro da psiquiatria para estas exclusões é “gatekeeping“. Para o autor, o uso deste tipo de linguagem cria um ambiente no qual os serviços psiquiátricos se tornam uma “fortaleza” e os usuários de serviços são vistos como “intrusos”. O primeiro pensamento dos clínicos neste ambiente torna-se “como podemos proteger estes recursos contra intrusos” em vez de “como posso ajudar esta pessoa na minha frente”.
A fim de corrigir a cultura de exclusão na psiquiatria moderna e assim melhorar significativamente a utilidade destes serviços, os autores sugerem que a disciplina precisa se concentrar na verdadeira co-criação do conhecimento. O treinamento e os serviços psiquiátricos deveriamm basear-se tanto na compreensão especializada da doença mental quanto na experiência vivida por aqueles que utilizam os serviços psiquiátricos. A disciplina também deve reconhecer de forma honesta que os recursos são limitados, em vez de fingir que estamos excluindo pessoas dos serviços por razões clínicas. A autora conclui:
“Décadas de danos exigem tempo para reparar, sem mencionar a participação de todas as partes. O treinamento tem um papel, desde a graduação até o nível superior para todos os grupos profissionais, mas as organizações devem ter a coragem de implementar uma mudança de cultura em vez de uma série de caixas de seleção levemente alteradas. Quanto mais os clínicos trabalham lado a lado com as pessoas que utilizam serviços de saúde mental (e aqueles que foram excluídos deles), mais eficaz será a mensagem. O treinamento significativo e o desenvolvimento de serviços devem ser verdadeiramente co-produzidos”.
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Beale, C. (2021). Magical thinking and moral injury: Exclusion culture in psychiatry. BJPsych Bulletin, 46(1), 16–19. https://doi.org/10.1192/bjb.2021.86 (Link)
Me too social movement. Movement against sexual harassment. Social protest. Woman sad face hold poster hashtag me too. Victim of sexual assault and harassment at workplace. Protection female rights.
Existe uma ligação estatisticamente significativa entre psicose e experiências adversas, incluindo abuso sexual. Novos trabalhos de uma equipe de pesquisadores da University College Dublin School of Medicine procuraram determinar se havia uma janela específica de desenvolvimento de sensibilidade (às vezes referida como um “período crítico”) ao abuso sexual que estaria mais fortemente associado a sintomas psicóticos mais tarde na vida.
Os pesquisadores, liderados pela Professora Kathryn Yates, colocaram a hipótese de que a exposição precoce a traumas sexuais na infância levaria a um risco maior de alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos relativamente aos sobreviventes de traumas sexuais que ocorreram mais tarde na vida. Pelo contrário, eles descobriram que a agressão sexual em qualquer idade estaria associada ao aumento das chances de alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos.
Pesquisas recentes conjecturam que a exposição desproporcional a estressores, adversidades e traumas pode explicar a incidência de psicose em adultos. A violência contra as mulheres e sua normalização dentro da “cultura do estupro” tem mostrado ter impacto na saúde mental das sobreviventes de abuso e agressão sexual, e alguns estudiosos têm até argumentado que a psicose ou audição de voz nas mulheres não é um sintoma de loucura ou doença, mas um resultado inevitável da cultura do estupro.
Os pesquisadores do University College Dublin revisaram quase 15.000 pesquisas de Morbidade Psiquiátrica Adulta realizadas em 2007 e 2014 para calcular a prevalência de abuso sexual, alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos dentro dos entrevistados.
Usando regressão logística, eles examinaram então a relação entre a idade de exposição à agressão sexual e os sintomas decorrentes da psicose. Dividindo os entrevistados agredidos sexualmente em dois grupos, aqueles abusados antes dos 16 anos de idade e aqueles abusados aos 16 anos de idade ou mais, eles foram capazes de testar sua hipótese de que a exposição anterior a traumas sexuais era mais provável de causar sintomas psicóticos, alucinações e crenças ilusórias.
Esta hipótese não foi confirmada. Na verdade, os pesquisadores descobriram que o momento de uma agressão sexual não era relevante para o eventual aparecimento de alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos. Eles escrevem:
“Descobrimos que a agressão sexual estaria associada ao aumento das chances de experimentar [sintomas psicóticos] mas, ao contrário de nossa hipótese, não encontramos uma diferença na força da associação, dependendo se este abuso ocorre antes ou depois dos 16 anos de idade. Nossas descobertas não apoiam a ideia de infância e início da adolescência como uma janela de desenvolvimento de particular sensibilidade ao trauma sexual em termos de risco de transtorno psicótico ou experiências psicóticas”.
Embora os autores concluam pedindo mais pesquisas sobre o impacto de outros fatores de risco, isto é claro: os danos que alteram a vida da agressão sexual transcendem os simples marcadores de desenvolvimento.
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Yates, K., et al. (2022). Sexual assault and psychosis in two large general populations samples: is childhood and adolescence a developmental window of sensitivity? Schizophrenia Research 241: 78-82. (Link)
Um artigo recentemente publicado na revista Therapeutic Advances in Psychopharmacology revela que as Diretrizes de Prática Clínica (CPGs) atualmente disponíveis para antidepressivos afilados falham para os profissionais que desejam ajudar os seus pacientes a descontinuar a medicação.
Os pesquisadores dinamarqueses Anders Sørensen, Karsten Juhl Jørgensen e Klaus Munkholm conduziram uma revisão sistemática das CPGs dos países de língua inglesa de alta renda. Seus resultados destacam graves deficiências nas diretrizes que podem enganar os profissionais e colocar os pacientes em risco. Eles escrevem:
“Cerca da metade dos pacientes que tomam antidepressivos que tentam descontinuar ou reduzir a dose experimentam sintomas de abstinência, incluindo sintomas semelhantes aos da gripe, ansiedade, instabilidade emocional, diminuição do humor, irritabilidade, crises de choro, tonturas, tremores, fadiga e sensações de choque elétrico. Os sintomas geralmente persistem por semanas, mas podem durar meses ou até anos, e metade dos pacientes que os experimentam classificam-nos como graves”.
“Além da abstinência, descontinuar os antidepressivos pode ser difícil por razões psicológicas. Estes incluem a preocupação de recaída, a percepção de uma causa bioquímica de depressão, habilidades insuficientes de regulação emocional e de estratégias de enfrentamento, necessidade de apoio social, dependência psicológica e experiência de tentativas anteriores de descontinuação sem sucesso”.
Descontinuar os antidepressivos é um processo notoriamente desafiador e longo. O processo de baixar uma dosagem, afilar e descontinuar completamente não é fácil sozinho – muitas vezes exigindo um contato próximo e apoio com uma equipe de atendimento e prescritores, para não mencionar uma rede robusta de apoio entre pares e comunidade. Apesar disso, as diretrizes atuais para afilar ou descontinuar são frequentemente vagas e imprecisas, não apenas para os usuários dos serviços, mas também para os profissionais.
A coletânea inicial de diretrizes resultou em 21 Diretrizes de Prática Clínica não-replicáveis (CPGs) propostas pelas principais autoridades de saúde nacionais ou internacionais e organizações profissionais. As CPGs foram publicadas há mais de 20 anos (1998-2020). Das 21 diretrizes: sete eram dos Estados Unidos, cinco do Reino Unido, uma era do Canadá, Nova Zelândia, Escócia, Cingapura e Austrália, respectivamente. Além disso, três CPGs adicionais foram emitidos por organizações internacionais.
Estas diretrizes foram então examinadas de forma independente por Munkholm e Sørensen para extração de dados. Elas foram avaliadas e apreciadas quanto à qualidade, ou seja, se as diretrizes vigentes são suficientemente abrangentes e relevantes para que os profissionais possam ajudar seus pacientes a administrar e descontinuar os seus antidepressivos.
Após uma profunda revisão de seus dados extraídos e uma triagem de avaliação, os autores encontraram o seguinte:
“A descontinuação dos antidepressivos através da redução gradual da dose foi recomendada em 15 (71%) dos CPGs. Nove (43%) dos CPGs recomendaram um certo período de tempo para a afinação, variando de pelo menos quatro semanas a seis meses, seis (29%) dos CPGs não especificaram a duração da afinação, mas recomendaram que os antidepressivos fossem “afilados/descontinuados lentamente durante um longo período de tempo”, ou “afilados durante pelo menos várias semanas”, e os seis CPGs restantes não forneceram nenhuma orientação relacionada à afilação”.
“A descontinuação rápida ou abrupta foi sugerida em dois (10%) dos CPGs, seja quando ocorreram eventos adversos graves ou para pacientes com sintomas de descontinuação, apesar de um tratamento antidepressivo de manutenção lento…o tratamento antidepressivo de manutenção após a remissão sintomática foi recomendado em 17 (81%) dos CPGs…os CPGs restantes não forneceram nenhuma orientação direta sobre o que fazer quando o tratamento de manutenção terminar”.
Os resultados revelaram que a maioria dos CPGs recomendou que os antidepressivos fossem afilados lenta e gradualmente, mas muito poucos CPGs especificaram o que significava “gradual” e “lento”.
Nenhum dos CPGs recomendou explicitamente a descontinuação ou um afilamento, e nenhum discutiu como poderiam ser os sintomas de abstinência durante todo o afilamento/descontinuação.
Os autores sentem que a implicação clínica da pesquisa é importante, em particular:
“… a orientação limitada e vaga sobre a afilação e descontinuação nas CPGs atuais, que era difícil de encontrar em muitos casos, significa que elas fornecem pouco apoio aos clínicos que procuram ajudar os pacientes a parar ou afilar os antidepressivos. Isto pode ter como consequência que os clínicos hesitam em apoiar os pacientes no processo de descontinuidade….”.
“…a sobreposição sintomática entre sintomas potenciais de abstinência e sintomas depressivos foi reconhecida em pouquíssimos CPGs, e não foram fornecidas orientações sobre como discernir entre essas duas situações clínicas fundamentalmente diferentes. A falta de tais orientações pode ter como consequência que o tratamento medicamentoso seja continuado desnecessariamente em alguns pacientes se as reações de abstinência forem mal diagnosticadas como recaídas, levando potencialmente à retomada do tratamento medicamentoso sob a falsa suposição de que o antidepressivo era necessário para evitar recaídas”.
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Sørensen, A., Juhl Jørgensen, K., & Munkholm, K. (2022). Clinical practice guideline recommendations on tapering and discontinuing antidepressants for depression: a systematic review. Therapeutic Advances in Psychopharmacology, 12, 20451253211067656. (Link)
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Se você foi à terapia nos últimos 10 ou 15 anos, é provável que lhe tenham dito para meditar quando você começar a se sentir aflito. Talvez você tenha tentado se concentrar em sua respiração, mas se viu ficando cada vez mais nervoso. Talvez você tenha começado a ficar bravo com o terapeuta – ou amigo, ou membro da família – que jura que essa prática é boa. Você conclui que isso simplesmente não funciona para você. Talvez até o tenha feito sentir-se pior.
Agora, os pesquisadores podem ter descoberto o porquê.
Em um novo estudo, pesquisadores liderados por Eric Tifft na Universidade de Albany descobriram que a razão pela qual as pessoas escolheram meditar – a intenção por trás de sua prática – predizia se elas sentiam alívio de sua angústia ou não.
“As práticas de meditação têm sido amplamente comercializadas para amenizar o sofrimento humano. Como tal, os indivíduos podem buscar e usar a meditação para controlar ou administrar pensamentos e emoções desagradáveis. A pesquisa sobre o controle de emoções e pensamentos sugere que a meditação usada desta forma pode potencializar experiências privadas desagradáveis e contribuir para resultados negativos”, escrevem os pesquisadores.
De acordo com Tifft e seus coautores, há duas intenções principais que as pessoas têm quando decidem meditar. A primeira decorre das origens espirituais da meditação, como o budismo, e envolve uma aceitação consciente – pensamentos e sentimentos, mesmo negativos, sem julgamento e sem tentar controlá-los. A segunda é o oposto: meditar para tentar fazer desaparecer a ansiedade, a depressão, ou outros sentimentos negativos.
Esta é a compreensão popular da meditação no mundo ocidental, que divorciou a prática de suas raízes espirituais e a tratou como uma intervenção adicional à saúde mental – algo que ajudará a melhorar seus “sintomas”. Em muitos casos, métodos de meditação são ensinados às pessoas – como observar sua respiração, por exemplo – mas seu objetivo para fazer isso é reduzir sua ansiedade, depressão, estresse etc.
No estudo presente, Tifft e seus colegas descobriram que este foco na redução dos sintomas prejudica o sucesso da prática. E, ao contrário, estar aberto a esses sentimentos negativos e aceitá-los – como no contexto da prática de meditação budista – acaba por reduzir a angústia.
O estudo incluiu 103 estudantes universitários que tinham experiência anterior com meditação. A amostra foi mais diversificada do que a normalmente encontrada nos estudos psicológicos: menos da metade (45,9%) eram brancos. Um pouco mais da metade (58,2%) tinha usado meditação para tentar controlar suas emoções; os outros 42,8% tinham se envolvido em meditação com uma mentalidade de abertura/aceitação. (Apenas cinco estudantes não se enquadravam nestas categorias, relatando que tinham ambas as intenções; eles não foram incluídos na análise).
Os pesquisadores compararam os dois grupos e descobriram que aqueles que estavam tentando controlar suas emoções tinham maior angústia:
“Os indivíduos que endossaram o uso da meditação para controle da experiência relataram maior ansiedade, preocupação, depressão e afeto negativo, e menor cuidado com a meditação guiada por sua aceitação”.
Os pesquisadores também descobriram que a percepção de angústia – não a gravidade da ansiedade ou depressão em si – previa a intenção de controlar em vez de aceitar.
Os pesquisadores concluíram isso porque os resultados do State-Trait Inventory for Cognitive and Somatic Anxiety e Beck Depression Inventory não previam se as pessoas estavam tentando controlar sua angústia ou aceitá-la – somente porque sua percepção de como era problemático ter emoções desagradáveis foi adicionada à equação.
Devido ao desenho do estudo (transversal), não é possível inferir a causalidade. Os pesquisadores reconhecem esta limitação e são bastante claros sobre as três interpretações possíveis de seus resultados.
Uma explicação é que as pessoas que acreditam que a angústia é um problema se voltam para a meditação baseada no controle, em vez de se concentrarem na aceitação. Não parece funcionar, no entanto, já que estes participantes ainda relataram uma angústia ainda pior.
A segunda explicação é que a meditação focalizada no controle na verdade torna a angústia pior, porque faz com que as pessoas se concentrem no problema e se sintam desesperadas quando a meditação não o resolve.
A terceira explicação combina as duas: as pessoas que percebem experiências negativas como foco problemático no controle desses sentimentos, o que as torna piores.
Os pesquisadores acrescentam que “estas descobertas são consistentes com pesquisas que sugerem que o controle deliberado e eficaz de eventos privados desagradáveis pode ser ineficaz e está associado a um maior sofrimento psicológico”.
Uma implicação: Os terapeutas deveriam se concentrar no ensino da aceitação antes de introduzir técnicas de meditação.
Em um post no blog sobre o estudo, Steven Hayes – psicólogo e criador da Terapia de Aceitação e Compromisso – chama a atenção para a noção superficial de meditação que prevalece e reorienta a atenção para o contexto espiritual da prática:
Observe o maravilhoso mundo da meditação de fast-food: a prática contemplativa NÃO tem a ver com se livrar de suas experiências. Trata-se de se ancorar para que você não seja varrido, e permanecer firme e presente mesmo na presença de chuva, trovões e ondas que se chocam. Como disse recentemente o monge e ativista da paz Thích Nhất Hạnh, “Com a mente atenta, não se está apenas descansado e feliz, mas alerta e desperto. A meditação não é evasão; é um encontro
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Tifft, E. D., Underwood, S. B., Roberts, M. Z., & Forsyth, J. P. (2022). Using meditation in a control vs. acceptance context: A preliminary evaluation of relations with anxiety, depression, and indices of well‐being. Journal of Clinical Psychology, 1-15. https://doi.org/10.1002/jclp.23313 (Link)