Psicose nos EUA Inseparável do Racismo e da Desigualdade Estrutural, Argumentam os Pesquisadores

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Uma recente revisão publicada no American Journal of Psychiatry examinou características do ambiente social com resultados ao longo do ‘continuum’ da psicose, desde experiências psicóticas até à esquizofrenia.

Informada pelo quadro de referência dos Determinantes Sociais da Saúde (SDoH), esta revisão narrativa se concentra nos fatores de risco existentes nos bairros, em traumas em nível coletivo e individual, e nas complicações experimentadas durante os períodos perinatais. Esses três fatores refletem as condições sociais e ambientais que se correlacionam com o risco de psicose e são em grande parte moldados pelo racismo estrutural.

Ao descrever como o legado do racismo estrutural tem levado às consequentes desigualdades raciais nas condições ambientais, os autores oferecem um modelo que liga o racismo estrutural ao risco de psicose e recomendam que o campo da psiquiatria dedique mais esforços para abordar essa ligação nas prioridades de financiamento, treinamento e desenvolvimento da intervenção. Os autores, liderados pela professora de psicologia da SUNY, Deidre Anglin, escrevem:

“Nossa revisão da literatura baseada nos Estados Unidos sobre determinantes sociais revela um padrão de disparidades raciais para os fatores de risco estabelecidos para psicose. Que o racismo tenha estruturado historicamente os sistemas sociais dos EUA significa que a vizinhança e o contexto social podem conter uma parcela significativa da contribuição relativa do risco para a psicose.”

O quadro de referência dos Determinantes Sociais da Saúde (SDoH) refere-se às condições nos locais onde as pessoas vivem, aprendem, trabalham e se divertem que afetam uma ampla gama de riscos e resultados de saúde e qualidade de vida. Os modelos teóricos que examinam os determinantes sociais da saúde mental relacionam políticas e normas sociais que criam iniquidades generalizadas com o risco biológico que irão afetar o início, a gravidade e a remissão das psicopatologias.

Os autores salientam que o fato de ser de uma raça particular, em si mesmo, não é o que aumenta o risco de patologia. Ao contrário, são sim as barreiras estruturais e a discriminação enfrentadas por certos grupos que criam o aumento do risco.

O racismo estrutural é definido como uma construção social de estratificação taxonômica do poder baseada em ser branco e influencia muito as políticas sociais. As iniquidades que provoca têm resultados duradouros para grupos minoritários, limitando o acesso aos recursos por meio da segregação da comunidade, por exemplo, e limitando a liberdade individual de controlar as circunstâncias da vida.

Dentro da psiquiatria, tem havido investimento limitado na compreensão de como o SDoH e o racismo estrutural contribuem para a complexa etiologia da doença mental. O foco predominante do campo tem sido colocado na compreensão dos fatores biológicos e individuais, apesar da crescente importância da confluência de fatores biológicos e sociais.

Os Estados Unidos ficaram atrás da Europa no exame da ligação entre o status de minoria e a incidência de psicose. A pesquisa realizada tem sido complicada por fatores-chave, incluindo a falta de um registro de saúde centralizado, questões metodológicas com seleção de amostras e diagnósticos errôneos baseados em grupos raciais percebidos.

Vários estudos americanos mostram que pessoas negras e latinas estão excessivamente representadas na população de pacientes com transtornos psicóticos. Isto levou os clínicos a interpretarem/atribuírem mal a sintomologia e a diagnosticarem esquizofrenia em excesso, particularmente para negros e afro-americanos.

“Embora a incidência e prevalência de psicose entre grupos raciais nos Estados Unidos continue inconclusiva, o papel central que o racismo estrutural desempenha na formação da distribuição dos fatores de risco para a psicose na população americana não desperta controvérsias”, escrevem os autores. “Esta taxonomia social nos Estados Unidos tem raízes em uma história de trauma racial que deu origem a um sistema difundido de racismo estrutural que persiste até hoje.”

Os autores ampliam esta história de trauma racial discutindo o genocídio dos povos originários e a escravidão dos afroamericanos que criou as bases para construir a riqueza e o capital dos brancos americanos. As repercussões destes traumas históricos são evidentes nas acentuadas desigualdades entre as linhas raciais.

Um exemplo notável desta desigualdade é mostrado em Nova Jersey, onde o ingresso líquido médio para as famílias brancas é de US$ 309.396 em comparação com apenas US$ 7.020 e US$ 5.900 para as famílias latinas e negras. Estes exemplos falam das experiências vividas muito diferentes de famílias de grupos minoritários com a educação, assistência médica e experiências de bairro.

Esta revisão narrativa proporciona uma integração do trabalho com base nos EUA sobre os determinantes sociais da psicose. Ela explora como uma herança de racismo estrutural molda o risco da psicose através de determinantes sociais em múltiplos níveis. Os autores incluíram estudos através do ‘continuum’ da psicose e estudos selecionados que conectam os determinantes sociais a possíveis mecanismos biológicos subjacentes, aos hormônios do estresse, à atividade neural e conectividade, e aos mecanismos epigenéticos.

Os resultados se concentraram em fatores de bairro, traumas no contexto dos EUA e disparidades raciais durante os períodos pré e perinatais.

O Bairro

É provável que fatores de nível de bairro interajam com fatores psicológicos que aumentam o estresse crônico através de gerações. Essas condições adversas de bairro, como a exposição a toxinas ambientais e concentrações de crime, estão associadas com o aumento da prevalência e severidade do fenótipo da psicose prolongada. Os autores explicam:

“Os bairros dos EUA evoluíram para perpetuar de forma sistemática e geracional a desvantagem para as comunidades racialmente minoritárias, através da segregação e das discriminações formais e informais transmitidas pelas gerações. Essas forças mantêm a desigualdade sistêmica no acesso de toda a comunidade a recursos, serviços, riqueza e oportunidades, incluindo acesso a alimentos saudáveis, água potável, ar limpo, parques, cuidados infantis acessíveis, assistência médica, educação, oportunidades de emprego e moradia segura.”

Estudos têm mostrado que o medo de ser “empurrado para fora” do seu bairro, a dinâmica racial estressante em uma comunidade urbana, e viver em várias casas no espaço de um ano, tudo isso leva a um aumento do risco de experiências com o espectro da psicose. Além disso, estudos europeus mostraram que a falta de espaço verde e a exposição a toxinas ambientais se correlacionam com a psicose.

Trauma em um contexto americano

Eventos traumáticos agudos ou crônicos e grandes estresses de vida, tais como experiências adversas na infância, também têm sido ligados a sintomas psicóticos. Em um estudo, 86% dos indivíduos diagnosticados com esquizofrenia relataram pelo menos uma experiência adversa na infância.

Esses traumas podem se cruzar com traumas raciais históricos coletivos, levando ao aumento do estresse crônico e a eventos traumáticos. Por exemplo, a vitimização policial e a violência armada são crises de saúde social que afetam de forma desproporcional as comunidades racialmente minoritárias. A morte por violência policial e o homicídio por arma de fogo são as principais causas de morte entre os negros.

“A violência policial, em particular, pode ter um impacto maior na saúde mental porque é exercida por pessoas que são autorizadas pelo Estado a praticar a violência, e há pouco recurso legal contra essa violência. Os negros, especificamente, têm uma chance de 1 em 1.000 de serem vítimas de força letal pela polícia durante sua vida, em contraste com 39 em 100.000 para seus homólogos brancos.”

Isto cria um tipo peculiar de trauma coletivo nos Estados Unidos que difere muito da comunidade global mais ampla. Países similares como Inglaterra e Japão relatam zero a sete assassinatos por policiais em um ano, em comparação com a média de 1.100 incidentes por ano nos EUA. Os autores argumentam que a violência policial e a violência armada deveriam receber mais atenção como um determinante social do risco de psicose nos Estados Unidos relacionado ao estresse e ao trauma.

Disparidades raciais durante os períodos pré e perinatal

A revisão dos autores sobre complicações obstétricas sugere que a discriminação entre as mães negras e latinas provavelmente contribui para essas complicações devido ao aumento das respostas ao estresse. As complicações obstétricas têm sido associadas ao aumento do risco de transtornos psicóticos nos EUA.

O estudo destaca que a maioria das pesquisas focadas nestes fatores de risco foram inicialmente baseadas em coortes de nascimento nos anos 50 e 60 e sofreram efeitos de coorte devido ao clima político e características demográficas, tornando-as, portanto, não generalizáveis às amostras contemporâneas.

Além disso, nenhum desses estudos incorporou adequadamente as conhecidas disparidades raciais e étnicas nas complicações congênitas. Isto é de suma importância porque as mulheres negras nos EUA correm um risco significativo de complicações obstétricas, mesmo quando se controla o status socioeconômico.

Fatores de vizinhança e no indivíduos parecem afetar as disparidades de resultados para as mulheres negras, tais como a exposição a contaminantes ambientais ligados ao nascimento prematuro e ao baixo peso ao nascer, a percepção de discriminação que prediz um menor peso ao nascer, e a probabilidade das mulheres negras terem níveis mais baixos de cortisol durante o segundo trimestre. Esta última descoberta foi observada entre as mulheres diagnosticadas com transtorno de estresse pós-traumático relacionado a uma vida inteira de exposição ao aumento do estresse devido a repetidas experiências discriminatórias.

Cumulativamente, estas descobertas e outras mais revelam um quadro complexo potencialmente levando a maus resultados ao nascimento e ao risco subseqüente de transtornos psicóticos na vida adulta.

“Em geral, estas descobertas sugerem que as desigualdades raciais e étnicas nas taxas de complicações obstétricas nos Estados Unidos poderiam contribuir para uma trajetória de desenvolvimento em direção à psicose e descobertas de maiores taxas de esquizofrenia entre indivíduos negros, populações imigrantes e, potencialmente, outros grupos menos estudados que experimentam altas taxas de discriminação (por exemplo, por causa da religião, sexualidade e outras identidades raciais e étnicas)”.

Dada esta revisão dos impactos do racismo sobre os determinantes sociais da psicose, os autores insistem que a adoção de uma abordagem antiracista dentro da psiquiatria é indispensável para se interromper o ‘status quo’. Não existem atualmente programas conhecidos de intervenção e tratamento que visem diretamente os aspectos perniciosos do racismo que afetam os negros e outros grupos culturalmente minoritários.

Anglin e seus coautores sugerem que é necessário aumentar o financiamento para pesquisas com abordagens multiníveis e intergeracionais, juntamente com estudos qualitativos que aumentem nossa compreensão das experiências vividas de pessoas com psicose. Eles escrevem:

“Dada a história de opressão, discriminação e racismo sistêmico nos Estados Unidos, compreender as conseqüências biológicas do trauma único e dos fatores de estresse das comunidades minoritárias expandirá nossa compreensão do risco de psicose de forma mais geral.”

Os pesquisadores recomendam que a psiquiatria dedique consideravelmente mais esforços para enfrentar o racismo estrutural e os determinantes sociais da psicose nas prioridades de financiamento, treinamento e desenvolvimento da intervenção.

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Anglin, D. M., Ereshefsky, S., Klaunig, M. J., Bridgwater, M. A., Niendam, T. A., Ellman, L. M., DeVylder, J., Thayer, G., Bolden, K., Musket, C. W., Grattan, R. E., Lincoln, S. H., Schiffman, J., Lipner, E., Bachman, P., Corcoran, C. M., Mota, N. B., & van der Ven, E. (2021). From Womb to Neighborhood: A racial analysis of social determinants of psychosis in the United States. American Journal of Psychiatry. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2020.20071091 (Link)

Saúde Mental em Trieste está sob Ameaças

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Em uma carta redigida por Roberto Mezzina (ex-diretor do Departamento de Saúde Mental de Triestre), é feita uma denúncia das ameaças que pairam sobre os serviços de saúde mental de Trieste e um pedido de apoio de todos os que defendem o legado de Franco Basaglia e não querem retrocessos. O próprio conteúdo da carta esclarece o que está ocorrendo.

A SAÚDE MENTAL DESAPARECENDO PERMANENTEMENTE DO RADAR

Roberto Mezzina

Devido à pandemia de Covid 19, a já dramática situação de falta de recursos em serviços de saúde mental piorou ainda mais em toda a Itália. Centros de Saúde Mental inacessíveis, contração e até suspensão das visitas domiciliares, redução do trabalho voluntário e cooperativas sociais.

No entanto, foi graças ao acesso fácil e rápido aos Centros de Saúde Mental, sem listas de espera, que não só os serviços de Trieste, mas também os de toda a Região de Friuli Venezia Giulia, consolidaram um reconhecimento nacional e internacional.

A OMS indicou novamente, nestes dias, o modelo Trieste (que agora se tornou regional) como um exemplo global de rede integrada de serviços comunitários. Este reconhecimento aparecerá em um importante documento da OMS, a ser publicado em breve. As respostas às pessoas “em tempo real”, com uma abordagem que é não apenas psiquiátrica no sentido estrito, mas alargada para responder às necessidades da vida em todos os seus aspectos, respeitando e promovendo os direitos humanos, têm sido os pilares do modelo de Trieste.

Em muitas outras regiões italianas, por outro lado, as estruturas residenciais estão se espalhando, muitas vezes parecendo instituições fechadas tradicionais, muitas vezes privadas, e absorvendo a maior parte dos recursos; as pessoas estão amarradas em enfermarias de hospitais miseráveis; não há visitas domiciliares; drogas psicotrópicas são usadas quase como a intervenção exclusiva (e muitas vezes mal); as necessidades diárias das pessoas pesam sobre as famílias. É esta a situação demonstrada há alguns anos pela Comissão Parlamentar, que em vez disso recompensou os nossos serviços. No entanto, apesar das múltiplas premiações, o atual governo regional desde o início não escondeu o desejo de colocar a mão nos Serviços de Saúde Mental, e o alcance dos objetivos de melhoria estabelecidos pelo Plano Regional de Saúde Mental em 2018 tornou-se imediatamente difícil. A escuta dos pedidos dos cidadãos e associações também foi substancialmente interrompida. Houve redução do quadro de pessoal de todas as categorias profissionais. O desejo de reduzir e fundir os Centros Comunitários de Saúde Mental tornou-se claro, tomando uma direção contrária ao que deveria ser o objetivo final de um Serviço Comunitário de Saúde Mental, bloqueando assim o processo empreendido há anos, incluindo o funcionamento dos serviços por 24 horas, com possibilidade de acolhimento de pessoas em crise num ambiente não alienante. Tudo isso tem sido questionado para voltar ao modelo das antigas enfermarias de hospitais. Isso será alcançado com as medidas administrativas que romperão a continuidade da linha de gestão.

Depois das numerosas aposentadorias, a gestão das instalações, mesmo dos Departamentos, passou a ser confiada a quadros “em exercício”; ou por curtos períodos, com funções de chefia muitas vezes confiadas “para substituir” vários serviços. Ao mesmo tempo, os concursos para as direções dos Centros de Saúde Mental foram suspensas e serão reduzidos. Nestes dias, os concursos para lugares de chefia em Trieste e Pordenone foram reiniciados e saíram classificações bastante bizarras: todos aqueles que foram formados pela escola de Basaglia foram penalizados ou excluídos, apesar de anos de compromisso com serviços muito melhores e excelentes currículos, em benefício de candidatos, muitas vezes desconhecidos, que vêm de fora da região. Nunca pensamos que mesmo nesta região o sistema de despojos chegaria a cargos executivos, nos quais competências e orientação de valores de saúde pública deveriam ser elementos fundamentais.

Estamos confiando nossos serviços a psiquiatras completamente alheios a experiências consolidadas de vanguarda, e que, em vez disso, vêm de situações retrógradas, de enfermarias psiquiátricas que são frequentemente fechadas e que ainda usam contenção física. Por outras palavras, os nossos serviços serão geridos por que oferecem modelos antiquados de ambulatório ou de internação, em vez de programas de tratamento e reintegração que atendem às necessidades das pessoas com transtornos mentais. Essas escolhas autodestrutivas são prejudiciais não só ao sistema atual, mas aos cidadãos em geral, e abrem caminho ao desmantelamento dos melhores serviços criados pela reforma psiquiátrica, resultando no empobrecimento e ineficiência do serviço público que corre o risco de se tornar progressivamente privatizado em toda a Itália.

Os cidadãos devem se envolver e recomeçar a partir de uma forte aliança de usuários, famílias, profissionais, serviços, reunindo as experiências de ontem e hoje antes que as rupturas sejam irreparáveis ​​e o imenso patrimônio acumulado em 50 anos de experiência esteja disperso. A liberdade é terapêutica, tem sido dito e argumentado: é um direito, o maior, para os seres humanos, aquele que Franco Basaglia devolveu a todos os italianos, fechando os manicômios e mudando a lei. Por isso, não deixemos os serviços sozinhos, e evitemos que os serviços de saúde mental da região desapareçam definitivamente do radar, com graves prejuízos para todos.

Mauro Asquini, Renzo Bonn, Angelo Cassin, Peppe Dell’Acqua, Roberto Mezzina, Franco Perazza, Franco Rotelli

(Ex Diretores dos Departamentos de Saúde Mental de Trieste, Gorizia, Udine, Alto Friuli e Pordenone)

e

  • Grazia Cogliati, psiquiatra
  • Giovanna Del Giudice, presidente COPPERSAM “Conferenza Basaglia”
  • John Jenkins, International Mental Health Collaborating Network
  • Mario Novello, psiquiatra
  • Sashi Sashidharan, psiquiatra
  • Benedetto Saraceno, ex-diretor do departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias do OMS

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Primeiro Encontro LatinoAmericano de Estudos Loucos

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Os Estudos dos Loucos [‘Estudios Locos’] são um projeto de investigação, produção de conhecimento e ação política que reconhece a loucura como uma experiência humana válida e significativa para gerar conhecimento crítico face ao discurso psiquiátrico. Esta perspectiva visa reconstruir e sistematizar as lutas das comunidades loucas com base numa relação estreita entre a academia crítica e a militância, articulando o fazer e o pensar enquanto aspectos complementares da transformação social no cenário contemporâneo.

Sob estas orientações, os Estudos Loucos constituem uma proposta contra-hegemônica contra a influência das disciplinas psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise) na sociedade atual, promovendo o protagonismo de pessoas que receberam tratamento de saúde mental, com aliados e colaboradores em torno de pesquisas que resgatam abordagens anti-psiquiátricas, narrativas de sobreviventes da psiquiatria e experiências de militância louca e radical. No nosso continente, esta perspectiva tem um desenvolvimento crescente nos últimos anos, de acordo com uma coletivização de processos de investigação da militância, o impulso criativo de organizações comunitárias em saúde mental e ações coletivas do movimento Orgulho Louco [‘Mad Pride’].

De modo a continuar a reunir e reforçar estes espaços de integração e unidade latino-americana, convidamos todos os interessados nesta iniciativa a participar como participantes, oradores ou facilitadores de ‘workshops’ no 1º Encontro LatinoAmericano de Estudos Loucos, a realizar nos dias 30 e 31 de Julho de 2021, em modo virtual.

Data de encerramento para a recepção de trabalhos e ‘workshops’: 30 de Junho de 2021.

Evento gratuito aberto à comunidade.

Evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/281721886728114

Formulário de inscrição: https://forms.gle/FRARALWyucYyscDw7

[originalmente publicado em Mad in America para hispanohablantes]

 

 

Reforma Psiquiátrica Brasileira e o Diagnóstico Psiquiátrico

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Este é o terceiro de uma série de ‘blogs’ que escrevo propondo uma reflexão crítica sobre a reforma psiquiátrica brasileira. Primeiramente, eu levantei a questão de o porquê em décadas de processo de reforma da assistência não haver movimentos organizados de ex-usuários e sobreviventes da psiquiatria. Na semana passada, analisei os dados disponíveis sobre a internação involuntária. No Brasil, ainda há um contingente de usuários que se encontram involuntariamente hospitalizados. Na verdade, qualquer brasileiro ou brasileira pode ser involuntariamente internado, porque a decisão é do médico/psiquiatra, visto que a lei dá esse direito.

Neste ‘blog’ me proponho a fazer uma reflexão a respeito do papel do diagnóstico psiquiátrico na assistência psiquiátrica brasileira. É para chamar a nossa atenção que décadas de processo de reforma não foram suficientes para se haver construído alternativas práticas ao DSM e ao CID.

Irei inicialmente fazer uma análise crítica do diagnóstico psiquiátrico (I). Não irei me aprofundar nessa crítica, porque não quero fugir dos limites de um ‘blog’. O que direi espero que seja o suficiente para se ter uma visão global do papel do diagnóstico psiquiátrico para o entendimento do sofrimento psíquico no país e como hegemonicamente a sociedade enfrenta os seus problemas (II).

O senso-comum é que problemas emocionais ou de saúde mental são doenças. Essa ideia é um êxito espetacular de ‘marketing’ construído pela aliança entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica, conforme inúmeros estudos (Angel, 2007; Moynihan & Cassels, 2005; Whitaker & Cosgrove, 2015). Desde a primeira versão do DSM, em 1952, vê-se um constante crescimento de várias categorias de diagnóstico, subdividindo as classes da psiquiatria psicodinâmica, tais como psicoses e neuroses, em unidades sintomáticas cada vez menores. Em 1952, com o DSM-I, o manual apresentava 130 categorias de diagnóstico. Com o DSM-II, lançado em 1968, nós passaremos a contar com 180 categorias. No DSM-III, cuja primeira versão é publicada em 1980, com 494 páginas, há 265 categorias de diagnóstico listadas. 7 anos depois, em 1987, 292 diagnósticos estarão distribuídos em 567 páginas. Em 1994, o DSM-IV foi publicado, listando 297 transtornos em 886 páginas. E, finalmente, em 2021, estamos no DSM-5, lançado em maio de 2013, com mais de 300 transtornos mentais classificados. Com novos diagnósticos e com alguns outros renomeados: “transtorno de acumulação”, “transtorno de oscilação disruptiva do humor”, “transtorno de compulsão alimentar periódico”, “transtorno de hipersexualidade”, “transtorno de arrancar pele”, “adicção à internet”, “transtorno de identidade de gênero”, “transtorno alimentar restritivo evitativo”.

Assim, torna-se cada vez mais comum ver todo o tipo de pessoas a reconhecerem-se num grupo de sinais clínicos com algum valor diagnóstico. Essa forma de abordar as diversas formas como o sofrimento psíquico se manifesta é contemporânea do neoliberalismo, que enfatiza a liberdade individual, a autonomia a escolha, a autossuficiência e responsabilidade e promove a ideia de que tudo pode ser convertido em mercadoria em um mercado livre de regras e regulações o máximo quanto for possível.

Este modelo de sistema econômico lucra criando sofrimento e oferecendo meios para entendê-lo e resolvê-lo. As políticas neoliberais criam insegurança em muitas áreas de nossas vidas como trabalho, salário, moradia, laços comunitários, relações, status e bem-estar físico. Encorajadas a se verem competitivas e autossuficientes ao invés de interdependentes e interligadas, as pessoas sentem-se presas a um constante estado de insatisfação a respeito de suas vidas, bens, realizações, corpos e relações, e assim persuadidas a comprar soluções. Estamos sempre nos comparando uns aos outros. E assim, ao não se sentir conforme os ‘standards’ promovidos, a tendência é que passemos a nos culpar, a sentirmo-nos fracassados. A narrativa já se encontra à disposição, ao estilo Macdonald, que é o que a psiquiatria e a psicologia sistematicamente propagam em nossa sociedade: as causas do sofrimento residem nas características da personalidade, em disfunções psicológicas e em “doenças” ou “transtornos mentais”. As soluções estão aí no mercado: drogas psiquiátricas e a maioria das psicoterapias (Barber, 2007; Boyle & Johnstone, 2021; Freitas & Amarante, 2017; Moncrieff, 2008; Verhaeghe, 2014; Wilkinson & Pickett, 2018).).

II.

Para se ter uma visão ampla do impacto das categorias de diagnóstico na sociedade brasileira, irei me limitar aqui neste ‘blog’ a apresentar apenas um trabalho publicado, com um amplo reconhecimento na literatura científica internacional e fortíssima repercussão na nossa grande mídia

Trata-se de uma pesquisa realizada com a população da área metropolitana de São Paulo. Foi um estudo que estimou a prevalência, a gravidade e o tratamento dos transtornos psiquiátricos listados no DSM-IV.

Seus resultados mereceram destaque na grande imprensa, publicado em na revista PLoS One no dia 14 de fevereiro, com o título São Paulo Megacity Mental Health Survey (Andrade et al., 2012). Quase 30% dos habitantes da Região Metropolitana de São Paulo apresentam transtornos mentais, de acordo com um estudo que reuniu dados epidemiológicos de 24 países. O estudo é internacional. A prevalência de transtornos mentais na metrópole paulista foi a mais alta registrada em todas as áreas pesquisadas. O que o estudo está dizendo é que de cada 10 paulistas da grande São Paulo, cerca de 3 apresentaram algum “transtorno psiquiátrico” nos últimos 12 meses anteriores à entrevista para o estudo.

O estudo epidemiológico avaliou uma amostra representativa de residentes da região metropolitana de São Paulo, com 5.037 pessoas avaliadas em seus domicílios, a partir de entrevistas feitas com base no mesmo instrumento diagnóstico. Os questionários incluíram dados sociais.

Os transtornos de ansiedade foram os mais comuns, afetando 19,9% dos entrevistados. Em seguida, aparecem transtornos de comportamento (11%), transtornos de controle de impulso (4,3%) e abuso de substâncias (3,6%).

Segundo os resultados, dois grupos se mostraram especialmente vulneráveis: as mulheres que vivem em regiões consideradas de alta privação, que apresentaram grande vulnerabilidade para transtornos de humor, enquanto os homens migrantes que moram nessas regiões precárias mostraram alta vulnerabilidade ao transtorno de ansiedade.

A prevalência dos transtornos mentais em São Paulo, de quase 30%, é a mais alta entre os países pesquisados. Os Estados Unidos aparecem em segundo lugar, com pouco menos de 25%. A razão da alta prevalência, de acordo com uma das pesquisadoras em entrevista ao portal da FAPESP, pode ser explicada pelo cruzamento de duas variáveis incluídas no estudo: a alta urbanização e a privação social. “Levamos em conta também a variável da privação social, estrutura etária da população, setor censitário, escolaridade do chefe de família, migração e exposição a eventos traumáticos violentos”, disse a pesquisadora que esteve à frente do estudo, a Dra. Laura Helena Andrade, professora do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP).

O problema é do indivíduo não é da sociedade, segundo a visão dominante. As soluções propostas é mais e mais psiquiatria. Senão, vejamos o que diz a  própria Dra. Laura Andrade:

“Não é possível ter um serviço especializado em todas as unidades, por isso é preciso equipar a rede com pacotes de diagnóstico e de conduta a serem utilizados pelos profissionais de cuidados primários. É preciso capacitar não só os médicos, mas também os agentes comunitários, que devem ser orientados para identificar casos não tão comuns como os quadros psicóticos, levando em conta os fatores de risco associados aos transtornos mentais.”

CONCLUSÃO:

O que se pode observar é que o diagnóstico psiquiátrico não é simplesmente um modo de rotular ou descrever emoções e comportamentos perturbadores. A reforma psiquiátrica não conseguiu apresentar à sociedade brasileira uma forma distinta de pensar emoções e comportamentos perturbadores. A reforma tem persistido no “modelo biomédico” da psiquiatria, isso a despeito da falta de suporte das evidências científicas.

No próximo ‘blog’ irei mostrar ser possível haver uma abordagem distinta ao DSM/CID, como é exemplar a proposta elaborada pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia.

REFERÊNCIAS:

Andrade, L. H., Wang, Y.-P., Andreoni, S., & Silveira, C. M. (2012). Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo Megacity Mental Health Survey, Brazil. Plos One, feb. 14.

Angel, M. (2007). A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Record.

Barber, B. R. (2007). How Markets Corrupt Children, Infantalise Adults and Swallow Citizens Whole. Norton.

Boyle, M., & Johnstone, L. (2021). The Power Threat Meaning Framework. PCCS BOOKS.

Freitas, F. & Amarante, P. (2017). Medicalização em Psiquiatria. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.

Moncrieff, J. (2008). Neoliberalism and biopsychiatry: a marriage of convenience. In C. I. Cohen & S. Timimi (Eds.), Liberatory psychiatry, philosophy, politics and mental health (pp. 235–256). Cambridge University Press.

Moynihan, R., & Cassels, A. (2005). Selling Sickness. Nation Books.

Verhaeghe, P. (2014). ’What about Me?’The struggle for identity in a market-based society. Scribe Publications.

Whitaker, R., & Cosgrove, L. (2015). Psychiatry under the Inluence. Institutional corruption, social injury, and prescriptions for reform. Palgrave Macmillan.

Wilkinson, R., & Pickett, K. (2018). The spirit leve: why equality is better for everyone. Allen Lane.

Estudo Confirma o Sobrediagnóstico do TDAH em Crianças e Adolescentes

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Um novo estudo descobriu que o TDAH é sobrediagnosticado em crianças e adolescentes. Diagnósticos crescentes nas pessoas com sintomas ligeiros podem levar a que as crianças sejam expostas aos danos dos medicamentos estimulantes sem qualquer benefício.

 

“Foram encontradas provas convincentes de que o TDAH é sobrediagnosticada em crianças e adolescentes,” concluem os investigadores. “Para indivíduos com sintomas mais leves, em particular, os danos associados a um diagnóstico de TDAH podem muitas vezes superar os benefícios.”

Os investigadores foram liderados por Luise Kazda na Universidade de Sidney, Austrália, e publicados em JAMA Network Open.

Os investigadores reconhecem que há muitas formas em que o diagnóstico de TDAH é problemático. A expansão da categoria de diagnóstico no DSM 5 aumentou o potencial de sobrediagnóstico (para crianças que satisfazem menos critérios, por exemplo). Observam também que os comportamentos que em tempos foram considerados normais para crianças têm sido cada vez mais medicalizados e considerados provas de “doença”.

No entanto, o estudo atual deles centra-se apenas na ideia de sobrediagnóstico, expandindo o diagnóstico a crianças que não retirarão nenhum benefício do tratamento, mas que podem ser prejudicadas.

Os investigadores notam que o sobrediagnóstico do câncer é bem conhecido na literatura da investigação. Disso resultou um quadro para avaliar o sobrediagnóstico noutras condições (tais como condições cardíacas), e os investigadores aplicaram esse quadro ao estudo atual.

Para satisfazer os critérios de sobrediagnóstico com base neste quadro, cinco condições devem ser satisfeitas:

  1. Potencial para aumentar o diagnóstico;
  2. O diagnóstico aumentou;
  3. O recém-diagnosticado tem sintomas ligeiros ou “subclínicos”;
  4. Os recém-diagnosticados recebem tratamento; e
  5. Os danos do diagnóstico e do tratamento podem ser superiores aos benefícios.

Os investigadores examinaram 334 estudos, tendo cada um deles fornecido dados sobre pelo menos uma das cinco condições. Verificaram que as cinco condições eram todas apoiadas por esta pesquisa.

Como não existe teste biológico para o TDAH, e o diagnóstico é aplicado subjetivamente através da idade, sexo, raça e estatuto socioeconômico, há espaço para o diagnóstico se expandir. Além disso, à medida que os critérios de diagnóstico são afrouxados, as taxas de TDAH têm aumentado. Os investigadores confirmaram que uma grande proporção dos novos casos se encontra no extremo do espectro enquanto “suave”. As taxas de tratamento estimulante para TDAH também aumentaram, incluindo os casos de TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

Segundo os investigadores, houve também provas significativas de danos após o diagnóstico. Eles escrevem: “Em 22 estudos, foi demonstrado que uma visão biomédica das dificuldades estava associada ao ‘desempoderamento’.” Além disso, o diagnóstico “pode também desviar-se de outros problemas individuais, sociais ou sistêmicos subjacentes.”

Os investigadores descobriram que receber um diagnóstico de TDAH também aumenta a estigmatização: “O diagnóstico pode criar uma identidade que reforça o preconceito e o julgamento, que estão associados a sentimentos ainda maiores de isolamento, exclusão e vergonha.”

Os investigadores também verificaram que o tratamento, particularmente os medicamentos estimulantes, era ineficaz e potencialmente prejudicial, especialmente para as crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

“Apenas 3 estudos relataram um seguimento a longo prazo para além do tratamento inativo, não encontrando nenhuma diferença nos sintomas entre os jovens que foram tratados e os que não foram tratados na vida posterior. Outro estudo não encontrou nenhuma diferença nos sintomas após um período de 48 horas de washout. Como danos, o tratamento ativo foi geralmente associado a eventos adversos leves e moderados, assim como a altas taxas de descontinuação.”

Os investigadores escrevem que os médicos, pais e professores devem estar atentos ao potencial de sobrediagnóstico. Especialmente para crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”, os danos do diagnóstico e da medicação provavelmente ultrapassam quaisquer benefícios potenciais. Recomendam uma abordagem de vigilância e espera para casos mais suaves – semelhante à recomendada para alguns casos de câncer de baixo risco, que também são atormentados pelo sobrediagnóstico.

Os pesquisadores escrevem:

“As nossas descobertas têm implicações para estes indivíduos, que podem ser prejudicados pelo sobrediagnóstico e pelos efeitos adversos da medicação durante a infância, na adolescência e mesmo na idade adulta. Estas descobertas são também relevantes para o número crescente de adultos que são recentemente diagnosticados com TDAH e podem ser aplicáveis a outras condições, tais como o autismo.”

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Kazda, L., Bell, K., Thomas, R., McGeechan, K., Sims, R., & Barratt, A. (2021). Overdiagnosis of attention-deficit/hyperactivity disorder in children and adolescents: A systematic scoping review. JAMA Network Open, 4(4), e215335. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.5335 (Link)

A “Uberização” do Trabalho no Brasil

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O artigo “Do Sujeito à Sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia do trabalho em contexto de pandemia pela Covid-19”, publicado na revista Laborativa, levantou algumas reflexões críticas acerca do impacto da pandemia para o trabalhador brasileiro. O embasamento do artigo se deu por uma revisão da literatura científica sobre o assunto e pelas publicações de entidades oficiais, tanto nacionais como internacionais.

A precarização do trabalho no Brasil foi acentuado pela atual crise sanitária do Coronavírus, tornando o contexto trabalhista um local relevante para as observações de certos fenômenos sociais. Enquanto o vírus pode contaminar qualquer pessoa, não atinge as pessoas da mesma forma. Certas categorias profissionais estão mais expostas e vulneráveis ao risco de contaminação que outras.

Desde a década de 80/90 há uma ofensiva neoliberal que ultrapassa as práticas político-econômicas e atingem a subjetividade dos sujeitos, ou seja, suas formas de sentir, pensar e agir. Há uma dominância de um certo “sujeito-empresa” que compete com os outros e consigo mesmo, e ao qual é atribuída a responsabilidade integral dos êxitos e fracassos no trabalho. Uma forma de individualizar questões sócio-históricas.

Outros fenômenos atuais é a “uberização” do trabalho. O trabalho informal no Brasil vem crescendo há alguns anos, e como consequência os trabalhadores estão mais vulneráveis. Aqueles que trabalham para aplicativos, por exemplo, são considerados prestadores de serviço e não mais funcionários da empresa. As empresas já não se responsabilizam pelos trabalhadores como antes, mas são os próprios trabalhadores os responsáveis por si mesmos e por seu material de trabalho.

O uso do “empreendedorismo” para se referir ao trabalho informal disfarça a verdadeira natureza desse tipo de trabalho, criando a sensação de liberdade por parte do trabalhador. Esta liberdade é explorada pelo capital e se caracteriza por uma autoexploração do sujeito que busca sempre produtividade e desempenho, mesmo sem a pressão externa de um patrão.

“Isso ocorre porque as diversas instâncias de poder, que outrora
dominavam através da violência, coerção, disciplina e imperativos de
obediência, no modelo neoliberal, se deslocam para espaços invisíveis,
desaparecem, como é o caso de empresas-aplicativos; os sujeitos
deixados a mercê de suas próprias iniciativas, acreditam estar libertos das
ações coercitivas exercidas por essas instâncias de poder; ao se verem
livres, os membros desse modelo de sociedade partem em suas jornadas
individuais, a fim de encontrar maneiras de, eles mesmos, acumularem
seu próprio capital (HAN, 2018; 2015).”

Quando o neoliberalismo desloca as instâncias de poder para espaços invisíveis (já não é mais o chefe, a empresa, instituição…), o sujeito acredita ser o seu próprio chefe, individualizando as questões do âmbito do trabalho, o que acaba dificultando as possibilidades de resistência.

Como consequência da acentuação do processo de precarização do trabalho durante a pandemia, os efeitos negativos na saúde mental dos trabalhadores também serão acentuadas nesse período. Os autores concluem ser necessário resgatar a função social do Estado, reconhecer a importância das Políticas Públicas e recuperar o valor do Sistema Único de Saúde (SUS). Sem o auxílio do Estado as consequências da Pandemia seriam muito maiores.

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GUIMARÃES JUNIOR, S.D.; GONÇALVES,L.R; CARDOSO,A.J.S. Do sujeito à sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia organizacional e do trabalho em contexto de pandemia pela COVID -19. R. Laborativa, v. 10, n.1, p. 40- 67, abr./2021 (Link)

Interrupção de Antipsicóticos Melhora o Funcionamento Cognitivo

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Os investigadores encontraram mais provas de que o efeito anticolinérgico dos medicamentos psiquiátricos pode levar a deficiências cognitivas. Um estudo de pessoas com esquizofrenia avaliou a carga anticolinérgica dos seus medicamentos e comparou-a com o funcionamento cognitivo delas

“A carga dos medicamentos anticolinérgicos associados a drogas psicotrópicas na esquizofrenia é substancial, comum, e presente em múltiplas classes de drogas psiquiátricas, incluindo os antipsicóticos”, escrevem os investigadores.

Esse estudo foi publicado no American Journal of Psychiatry, sob coordenação de Yash B. Joshi na Universidade da Califórnia, San Diego.

Os investigadores incluíram 1.120 pacientes, todos eles com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizo-afetivo. Eles utilizaram o instrumento carga cognitiva do anticolinérgico [Anticholinergic Cognitive Burden] (ACB) para medir a que quantidade de carga anticolinérgica que os participantes foram submetidos. Os medicamentos com um efeito anticolinérgico baixo ou mínimo foram classificados como 1, os com um efeito médio foram classificados como 2, os com efeito forte foram considerados como sendo 3. Todos os medicamentos que uma pessoa estava tomando foram somados para produzir um único número.

A carga média anticolinérgica para os participantes no estudo foi de 3,8. Vinte e cinco por cento dos participantes tiveram uma pontuação de pelo menos 6. Em média, cada participante esteva consumindo dois medicamentos antipsicóticos diferentes.

Os investigadores descobriram que a carga anticolinérgica esteva significativamente associada a um menor desempenho cognitivo em todos os domínios da Bateria Neurocognitiva Computorizada Penn (PCNB), bem como em outras medidas cognitivas. Os investigadores controlaram uma série de outros fatores e descobriram que os seus resultados ainda eram robustos.

Os autores citam dados de um estudo que incluiu adultos saudáveis que descobriram que uma pontuação ACB de 3 estando ligada a uma deficiência cognitiva e a um risco 50% maior para o desenvolvimento de demência.

“Tais pontuações não são difíceis de serem alcançadas nos cuidados psiquiátricos de rotina. Por exemplo, um paciente para quem é prescrita diariamente olanzapina para sintomas de psicose teria uma pontuação ACB de 3; se a hidroxizina também for prescrita para ansiedade ou insônia, a pontuação ACB do paciente subirá para 6,” escrevem eles.

Outros estudos também descobriram que a deficiência cognitiva pode ser causada por medicamentos psiquiátricos, particularmente aqueles com um elevado efeito anticolinérgico. De fato, os estudos descobriram que a cognição melhora efetivamente quando uma pessoa interrompe o tratamento com fármacos.

Os autores sugerem que “os esforços para limitar ou evitar a carga excessiva de medicamentos anticolinérgicos – independentemente da fonte – podem ter um impacto benéfico nos resultados cognitivos na esquizofrenia.”

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Joshi, Y. B., Thomas, M. L., Braff, D. L., Green, M. F., Gur, R. C., Gur,  R. E., . . . & Light, G. A. (2021). Anticholinergic medication burden–associated cognitive impairment in schizophrenia. American Journal of Psychiatry. Published Online 14 May 2021. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2020.20081212 (Link)

Allen Frances assume haver um excesso de prescrição de antidepressivos

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Doctor Handing Pills Through Laptop.

O eminente psiquiatra Allen Frances escreveu recentemente um artigo explorando as razões para a prescrição excessiva de antidepressivos.

Ao escrever no HealthWatch Newsletter, Frances explica que a corrupção na indústria já não é o único fator por detrás do uso de antidepressivos, dado que muitos dos medicamentos estão agora sem patente e, portanto, menos lucrativos para as empresas farmacêuticas. Se os defensores da saúde pública quiserem reduzir os danos causados por receitas médicas inadequadas, outras razões devem ser identificadas.

Doctor Handing Pills Through Laptop.

Apesar da crescente popularidade e utilização de antidepressivos, a investigação científica tem levantado sérias dúvidas quanto à sua eficácia para a depressão. A corrupção na indústria tem sido uma das principais razões por detrás da sua popularidade contínua. A prática da utilização da escrita fantasma [‘ghostwriter’], conclusões enganosas, campanhas de relações-públicas, etc., têm sido utilizadas para empurrar os antidepressivos para o mercado, apesar das preocupações sobre a eficácia e a segurança da sua utilização a longo prazo.

Outros estudos já levantaram preocupações sobre a retirada e os efeitos secundários causados pelos antidepressivos. O reconhecimento dos efeitos da abstinência tem sido visto como uma vitória para os usuários de serviços que, apesar de anos sendo dito que os sintomas de abstinência são suaves e de curta duração, há muito tempo insistem que as suas vozes fossem ouvidas. Tudo isto levou a um foco crescente em ajudar os doentes a retirarem-se destes medicamentos em segurança, com os especialistas a sugerirem meses de lenta interrupção.

Frances escreve este novo artigo em um momento em que a discussão sobre a eficácia e segurança dos antidepressivos recebem a atenção da sociedade, pelo menos em países como o Reino Unido. Após ter sido presidente da força tarefa do DSM IV, Frances tornou-se um crítico feroz do excesso de diagnóstico e da prescrição descontrolada na psiquiatria. Ele escreveu numerosos livros e artigos criticando os critério de diagnóstico e uma inclusão, sem escrúpulos, no DSM-5, de diversas categorias de diagnóstico.

Frances escreve que apesar destas drogas não estarem protegidas por patentes, o seu uso tem crescido exponencialmente nos EUA e no Reino Unido. Ao mesmo tempo, há poucos indícios que sugiram que os transtornos psiquiátricos tenham aumentado para se justificar tal aumento na prescrição. Ele apresenta várias razões para este aumento.

Primeiro, observa que a maioria dos prescritores são médicos da clínica geral, que não conhecem muito bem os seus pacientes e que muitas vezes só os veem em um dia em que o paciente está no meio de um profundo sofrimento. Dada a falta de historial com o paciente, eles podem sentir-se pressionados a prescrever antidepressivos para tratar os sintomas imediatos.

Frances escreve que metade dos pacientes que começam a tomar os medicamentos ficam fazendo uso deles por pelo menos dois anos, e que muitos ficarão com eles durante décadas. Para as pessoas com sintomas ligeiros ou moderados, esta é “a pior prática”, dado que a maioria destes sintomas teriam se dissipado com o passar do tempo, com alguma ajuda para a redução do estresse ou quando o próprio agente de estresse desapareceu.

Ele observa que existem duas razões principais para as pessoas permanecerem em antidepressivos durante anos. A primeira é o efeito de uma má atribuição ao que ocorre. As pessoas que começam a sentir-se melhor, após tomarem os antidepressivos, podem assumir ser devido aos medicamentos é que se sentem melhor. Geralmente, as pessoas com sintomas ligeiros teriam apenas começado a sentir-se melhor com o tempo ou à medida que o evento estressante seja resolvido por si próprio. Assim, visto que acreditam que estes comprimidos funcionam, é difícil para eles parar de consumir os antidepressivos.

A segunda razão importante para o uso continuado são os próprios sintomas de abstinência. Frances observa que os pacientes podem experimentar sintomas debilitantes de abstinência quando param os seus antidepressivos. Ele escreve:

” A abstinência pode ser muito desagradável e assustadora, causando letargia, tristeza, ansiedade, irritabilidade, problemas de concentração, problemas de sono, pesadelos, ‘sintomas de gripe’ náuseas, tonturas, e sensações estranhas.”

Dado que não existe informação suficiente sobre a gravidade da retirada de antidepressivos na comunidade médica e no público leigo, a abstinência é frequentemente confundida com recaída, resultando num círculo vicioso de prescrição da medicação a longo prazo.

Ele problematiza ainda a sua crescente utilização em crianças e adolescentes, apesar das provas de que os antidepressivos podem estar ligados a taxas mais elevadas de suicídio. Frances sustenta que os antidepressivos são benéficos para a depressão grave, onde placebo e psicoterapia podem falhar. Segundo Frances, se pudermos assegurar corretamente que apenas aqueles com sintomas graves recebam antidepressivos, e que os outros sejam tratados com o tempo ou com uma psicoterapia, estaríamos no caminho certo.

Frances escreve que a resposta placebo é poderosa para pessoas com sintomas mais suaves e moderados. Por outras palavras, estas pessoas se beneficiam apenas de pensar que estão tomando antidepressivos; mas que a depressão grave pode exigir o uso real de antidepressivos.

Como solução para este problema crescente de prescrição excessiva, sugere que os médicos dediquem tempo a conhecer e a compreender os seus pacientes, e a assegurar que os sintomas mais suaves sejam tratados com uma espera vigilante, técnicas de redução do estresse e conselhos. A depressão moderada deve ser primeiro tratada com psicoterapia em vez de medicação.

Mas o diagnóstico da depressão também pode ser complicado. Como Frances observou a inflação de diagnósticos e os limiares reduzidos para diagnosticar a depressão fazem com que cada vez mais pessoas se encaixem nas categorias psiquiátricas. A utilização de inventários de auto-relatos, sendo comuns entre os médicos da clínica geral, contribui fortemente para o excesso de diagnósticos, levando à medicalização. A utilização de instrumentos de rastreio deve ser restringida para grupos de alto risco, tais como pessoas com antecedentes de comportamento suicida.

Frances termina o seu artigo observando que, embora a formação de médicos generalistas e o fato de estes levarem tempo para conhecer os seus pacientes seja algo dispendioso e demorado, a longo prazo isso protege os pacientes dos danos de medicamentos desnecessários. Por último, para aqueles que conseguem superar a sua depressão por outros meios, também proporciona uma sensação de força e resistência.

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Frances, A. J. (2021 April 22). Why are antidepressants so overprescribed? And what to do about it? NewsWatch115, 4-5 (Link)

Reforma Psiquiátrica e a Internação Involuntária no Brasil

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No ‘blog’ anterior, propus um conjunto de reflexões que giraram em torno da seguinte pergunta: “Por que não há no Brasil movimentos organizados de ‘ex-usuários’ ou ‘sobreviventes’ da Psiquiatria?”. A pergunta ganha um sentido mais amplo se for lida tendo como plano de fundo as experiências internacionais de movimentos de ‘ex-usuários’ e ‘sobreviventes’ da Psiquiatria. Graças a esses movimentos, demandas organizadas desafiam o ‘mainstream’ da Psiquiatria, e nas brechas abertas pela desconstrução das suas bases sementes de esperança vêm sendo plantadas e os resultados começam a desabrochar.

Nos últimos anos, em eventos organizados pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS), tivemos oportunidade de receber vários “intelectuais orgânicos” de ponta entre os “sobreviventes da Psiquiatria” ao nível internacional. Nomes como Laura Delano, Olga Runciman, Will Hall e Peter Groot, para ficarmos com apenas quatro exemplos. Embora a cada um de esses nomes possamos associar referências bio e bibliográficas diversas, para fins didáticos irei inserir alguns poucos links a cada um.

Laura Delano, estadunidense, que aos 13 anos da sua vida iniciou uma carreira de paciente psiquiátrica que durou 14 anos. Laura Delano se libertou da psiquiatria, por isso se considera uma “sobrevivente” psiquiátrica, e com o seu ‘know-how’ de experiência de vida, ajuda a que milhares de pessoas se libertem da psiquiatria como ela conseguiu. Laura esteve conosco em diversas ocasiões, por exemplo no II Seminário Internacional a Epidemia das Drogas Psiquiátricas, em outubro de 2018, na ENSP (conferir a partir de 3:21:00).

Olga Runciman (dinamarquesa), foi vítima do sistema psiquiátrico durante mais de uma década, com diagnóstico de esquizofrenia, com longos períodos de internação e algumas tentativas de suicídio. Ao se libertar da psiquiatria, Olga é hoje psicoterapeuta, com o seu ‘know-how’ ajuda pessoas com transtornos psicológicos graves a atravessarem sua condição de paciente. Olga criou o movimento de ouvidores de vozes na Dinamarca. Olga participa de várias organizações internacionais, como o International Institute for Psychiatric Drugs Withdrawal (IIPDW) do qual ela é diretora. Olga esteve aqui no Brasil conosco em diversas ocasiões convidada por nós, como em um evento na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em 09/06/15.

Will Hall, estadunidense, diagnosticado com esquizofrenia, que conseguiu se libertar da Psiquiatria. Hoje é um dos maiores especialistas mundiais com a retirada das drogas psiquiátricas.

Finalmente, mais um nome, desta vez Peter Groot (holandês), após haver sido diagnosticado com depressão ele passou a ser dependente químico dos antidepressivos. Peter Groot desenvolveu junto com o psiquiatra Jim van Os, as chamadas “tiras de afunilamento” (‘tapering strips’), uma tecnologia revolucionária que permite que as doses das drogas psiquiátricas possam ser reduzidas de forma lenta, gradual, segura, com o mínimo de efeitos de ‘abstenção’. Peter Groot esteve no nosso 3 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas.

O que há em comum? Primeiramente, que ao contrário do senso-comum, quem tem um diagnóstico psiquiátrico, mesmo que seja de esquizofrenia, ter passado anos internado em um hospital psiquiátrtico, isso não implica que ele/ela terá que passar a sua vida em tratamento psiquiátrico, como “usuário” da psiquiatria. Portanto, não se trata de uma condição irreversível, crônica, uma condenação a ser paciente psiquiátrico. Em segundo lugar, a sociedade tem muito a ganhar quando os “usuários” da Psiquiatria deixam de ser “usuários”, seja do diagnóstico, seja do tratamento psicofarmacológico, ou mesmo da sua condição de beneficiário de algum programa social por incapacidade ou deficiência.

Pensando em termos do Brasil, apesar dos inegáveis avanços alcançados com o processo de reforma psiquiátrica, seus limites são estruturais. Isso apenas ganha visibilidade quando voltamos o nosso olhar para as demandas dos movimentos internacionais de “ex-usuários” e “sobreviventes” da Psiquiatria. Eis algumas das limitações da reforma psiquiátrica brasileira, que chamo de estruturais porque encontram as barreiras do “modelo biomédico” da Psiquiatria.

  • Não há o “Consentimento Informado” enquanto um direito do usuário em ser informado sobre o tratamento que lhe está sendo proposto, os prognósticos, alternativas de tratamento existentes.
  • Não há no Brasil serviços no território que ofereçam à sociedade opções de tratamento sem o uso de drogas psiquiátricas.
  • Não há no Brasil serviços especializados que deem suporte para o processo de retirada das drogas psiquiátricas para os usuários que queiram deixar a dependência química aos medicamentos prescritos.

Começo com este ‘blog’ apresentando o quadro da situação da assistência psiquiátrica no Brasil. Inicialmente (I), irei explicitar o que estou considerando por “modelo biomédico” da Psiquiatria. Em seguida (II), irei analisar a problemática da internação involuntária no país. Por que ainda hoje é um direito do médico/psiquiatra decidir se alguém deve ou não ser internado contra a sua vontade?

  1. O modelo biomédico da Psiquiatria

Para que possamos falar a mesma linguagem, que nos coloquemos de acordo com o que é “modelo biomédico” usado pela Psiquiatria. Entende-se por “modelo biomédico” da Psiquiatria aquela abordagem que considera as perturbações psíquicas como sendo doenças do cérebro e que enfatiza o tratamento psicofarmacológico para atacar as supostas anomalias biológicas (Deacon, 2013).

Este modelo de abordagem dos problemas psíquicos não é apenas o principal quadro de referência para os profissionais de saúde, mas também para os pesquisadores, a Justiça, os gestores dos serviços, os formuladores de políticas de saúde, e muito particularmente para os usuários e a sociedade em geral.

A sua versão mais popular é o modelo “biopsicossocial” ou “vulnerabilidade-estresse” (Read & Sanders, 2010). A sua concepção básica é que as pessoas nascem com algum tipo de vulnerabilidade ou predisposição biológica, e os fatores de estresse psicossocial – como a pobreza, a violência sexual, física ou psicológica, o luto, o desemprego, a discriminação racial, por exemplo – podem desencadear uma doença (transtorno) mental. Justifica-se o tratamento biopsicossocial porque supostamente se estaria trabalhando na articulação entre o biológico e o psicossocial (Chiaverini, 2011; Fortes et al., 2014). O pressuposto para seduzir os corações e as mentes é que a estratégia mais eficaz para tratar pacientes com perturbações psiquiátricas deve ser o tratamento psicofarmacológico + psicoterapia + reabilitação social – (Hyman S, Chisholm D, Kessler R, Patel V, 2006).

Contudo, existe um problema gigantesco que afeta tanto o “modelo biomédico” puro como a sua versão “vulnerabilidade-estresse” ou “biopsicossocial”: não há provas de que as perturbações psiquiátricas sejam uma “doença”, que os fatores biológicos seriam a causa, se não uma causa que contribua para o “transtorno”. O Dr. Steven Hyman, antigo diretor do maior organismo mundial de financiamento da investigação em saúde mental, o National Institute of Mental Health (NIMH), sediado nos Estados Unidos, disse: “Epidemiologia, genética, psicologia e neurociência não foram amáveis para as categorias do DSM-IV, nem estas categorias foram amáveis para a ciência. O DSM-III-R foi um avanço brilhante que deu prioridade à fiabilidade entre os médicos, agora é tempo de seguir em frente” (Hyman, 2010).

É digno de nota o que Allen Frances, que liderou a força-tarefa do DSM-IV, tem criticado duramente o DSM-5. Ele sempre demonstrou a sua preocupação com um estreitamento do conceito de normalidade, falsas epidemias impulsionadas pela indústria psicofarmacêutica, a dependência da Associação Psiquiátrica Americana às receitas do DSM-5 e as consequências generalizadas da revisão para pacientes individuais – na medida em que os holofotes serão desviados para longe dos doentes graves, tanto no que diz respeito ao tratamento como à economia” (Frances, 2012). Foi explícito ao afirmar que “o processo DSM-5 tem sido secreto, fechado e descuidado… não há razão para acreditar que o DSM-5 seja seguro ou cientificamente sólido” (Frances, 2013).

Ainda sobre o DSM-5, Thomas Insel, na época diretor do NIMH declarou “Os pacientes com perturbações mentais merecem melhor … Tornou-se imediatamente claro [para o NIMH] que não podemos conceber um sistema baseado em biomarcadores ou desempenho cognitivo porque nos faltam os dados” (Insel, 2013).

O modelo biomédico para distúrbios psicológicos coloniza o nosso “mundo da vida” no sentido habermasiano (Habermas, 2012).

Ou como o Relator Especial da ONU para a Saúde e Direitos Humanos, Dainius Puras, declarou em sucessivas ocasiões. “Os sistemas de saúde mental em todo o mundo são dominados por um modelo biomédico reducionista que utiliza a medicalização para justificar a coerção como prática sistemática e qualifica as várias respostas humanas aos determinantes sociais e estruturais nocivos (tais como desigualdades, discriminação e violência) como ‘perturbações’ que necessitam de tratamento” (Püras, 2017). A hegemonia do modelo biomédico nos cuidados de saúde mental causa numerosos danos, o que justifica o relatório do Puras em 2017 declarando “A necessidade urgente de uma mudança de abordagem deve dar prioridade à inovação política a nível da população, visando os determinantes sociais e abandonando o modelo médico predominante que procura curar os indivíduos, visando as ‘perturbações’ – a nossa ênfase – (Püras, 2017).

Modelo biomédico e a internação psiquiátrica

É o modelo biomédico que orienta e dá base legal ao poder do psiquiatra para decidir por um internamento. O movimento da Luta Antimanicomial não enfrentou corajosamente esse dispositivo corporativo-legal da Psiquiatria. O que significa que qualquer um de nós, você ou eu, podemos ser involuntariamente internados por decisão do psiquiatra.

A internação involuntária está prevista por lei (Lei n. 10.216/2001. Diário Oficial Da União, 9 Abril 2001, 2001). Ela orienta os psiquiatras sobre os procedimentos legais para a admissão involuntária. Inicialmente, no parágrafo único do seu artigo 6, esta lei trata dos três tipos de internamento psiquiátrico: “voluntário”, “involuntário” e a “obrigatória”. A internação obrigatória é determinada pela autoridade judicial, com base no Código Penal e requer um relatório médico pormenorizado. A hospitalização voluntária, como o seu nome sugere, é caracterizada pelo consentimento do paciente para a sua hospitalização. Por sua vez, a hospitalização psiquiátrica involuntária é aquela “realizada sem o consentimento do paciente e a pedido de um terceiro”. Ainda segundo a lei, término da internação involuntária “dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento”. Nos termos da lei, “a internação involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta”.

A ser sublinhado algo da maior relevância para o que estou propondo discutir aqui. É que o poder de decisão é do médico/psiquiatra. Tanto na internação voluntária quanto na involuntária. Segundo o previsto em lei, “a internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento”.

Quais seriam as razões da hospitalização involuntária? É quando o médico/ psiquiatra considera que o “doente mental” está em alto risco de automutilação ou de causar danos a alguém, se não quando pensa que existe uma perturbação grave que compromete a capacidade dele de reconhecer a necessidade de tratamento e de aceitá-lo. É o médico, devidamente registado no Conselho Regional de Medicina, o único profissional autorizado a solicitar a hospitalização psiquiátrica voluntária ou involuntária, para além de endossar a obrigatoriedade.

É um exemplo de jabuticaba brasileira. A privação de liberdade que ocorre com a hospitalização involuntária viola de forma flagrante o que está previsto na Constituição Federal Brasileira, no capítulo V, caput e II. Também nega o artigo 12 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que textualmente afirma que “o consentimento prévio, livre e informado da pessoa com deficiência é indispensável para o tratamento, procedimento, hospitalização e investigação científica“. A exceção prevista no art. 13 da mesma lei estabelece que o critério do risco de morte de si próprio ou de terceiros deve ser obedecido.

Como eu afirmei em alguns parágrafos acima, a reforma psiquiátrica no Brasil, nessas décadas de processo reformista, não enfrentou essa problemática tão crucial para a dignidade de alguém em sofrimento psíquico e relevante em termos de direitos humanos dos usuários de tratamento psiquiátrico.

Vamos ao primeiro quadro conforme o prometido. A referência é o Relatório de Inspeção Nacional em Hospitais Psiquiátricos no Brasil (Conselho Federal de Psicologia et al., 2020). O documento evidencia graves situações de violação de direitos, tratamento cruel, desumano e degradante, assim como indícios de tortura a pacientes com transtornos mentais nessas instituições.

Foi uma iniciativa conjunta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Regionalmente, as inspeções foram coordenadas pelos Conselhos Regionais de Psicologia, Ministérios Públicos Estaduais e Ministérios Públicos do Trabalho (MPT) estaduais.

Ação articulada inédita foi feita entre os dias 3 e 7 de dezembro de 2018. Foram vistoriadas 40 instituições psiquiátricas, em 17 estados das cinco regiões do Brasil. Como é dito no boletim do CFP, ao dar notícia do evento da apresentação dos resultados da pesquisa, “a publicação consolida um importante trabalho de campo, de imersão à realidade vivida do sistema público de saúde a pacientes psiquiátricos”.

O relatório aponta que pelo menos 1.185 pessoas estão internadas em condição de longa permanência nos hospitais psiquiátricos brasileiros. 82,5% dos hospitais inspecionados mantém pessoas moradoras, havendo uma criança de 10 anos e uma idosa de 106 anos nessa condição, ambas mulheres, num mesmo hospital de São Paulo.

O Relatório mostra-nos que, à exceção de dois hospitais, a hospitalização involuntária é a regra principal. Por insônias, inapetência, desajustamento social, desordens de conduta. O mais comum é que não há comunicação ao Ministério Público no prazo de 72 horas, conforme previsto por lei. As hospitalizações de longa duração são as predominantes. É muito comum que as internações voluntárias se transformem em internações involuntárias, o que viola o direito da pessoa a interrompê-las. Descobriram que as hospitalizações voluntárias não são geralmente assinadas pelos próprios usuários, mas por membros da família. A maioria declarou não se encontrar na instituição voluntariamente. Como o relatório afirma, “o consentimento voluntário é constantemente violado na hospitalização, uma vez que dentro dos hospitais psiquiátricos o contraditório não é bem-vindo e pode ser perigoso. O questionamento da ordem atual e das formas de ‘cuidados’, o desacordo com o tratamento, o nervosismo que ocorre em certos contextos, e até uma simples reclamação pode ser colocada ser por causa da ‘loucura’, cuja correção se distancia da gestão clínica (no sentido terapêutico) e torna-se objeto de repressão, sendo o medicamento uma forma mais sutil de anular qualquer manifestação de vontade“.

De acordo com o Relatório, em 33 dos 40 estabelecimentos visitados as pessoas encontram-se em situações de hospitalização prolongada. Os dados mais atualizados são de 2011, mostrando que 9.947 pessoas se encontram nestas condições há mais de 6 meses. Há pessoas com mais de 10 anos de internação.

Este Relatório que acabámos de analisar diz respeito a internações em Hospitais Psiquiátricos.

Concluindo. Esse quadro “chocante”, reforça sem dúvida alguma a necessidade da “luta antimanicomial”, no sentido que ainda hoje todos podemos nos transformar em “usuários” de algum hospital psiquiátrico, não por opção individual, mas porque um médico/psiquiatra assim decide. A consequência disso é que é inadmissível que o poder médico sobre a “internação” continue praticamente inalterado com relação aos tempos em que a assistência hospitalar-asilar era hegemônica em nosso país.

O que há que se aprender com a experiência de vida e o ‘know-how’ de “sobreviventes” da psiquiatria? Certamente que muito. As vozes de companheiros e companheiras como Laura Delano, Olga Runciman, Will Hall, Peter Groot, assim como centenas e centenas de outras e outros. No próprio site do Mad in America, em particular no nosso site, há um farto material de relatos de experiências de “ex-usuários” e dos “sobreviventes” da Psiquiatria.

Tenho três perguntas que irei nos próximos blogs:

  • Por que reforma psiquiátrica resulta em ser reforma da psiquiatria?
  • Ao invés de reforma psiquiátrica, não seria mais adequado se lutar por reformar a assistência em saúde mental?
  • Ou será que temos de acabar com o conceito de saúde mental (que cria uma inevitável polarização doença/saúde precária)?

REFERÊNCIAS

Chiaverini, D. (2011). Guia Prático de Matriciamento em saúde mental. Ministério da Saúde.

Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Conselho Nacional do Ministério Público, & Ministério Público do Trabalho. (2020). Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relatorio_Inspecao_HospPsiq.pdf

Deacon, B. J. (2013). The biomedical model of mental disorder: a critical review of its validity, utility, and effects on psychotherapy research. Clinical Psychology Review, 33, 846–886.

Fortes, S., Menezes, A., Athié, K., & Chazan, L. F. (2014). Psychiatry in the 21th century: changes from the integration with primary health care through matrix support. Physis, 24(4), 1079–1102.

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Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo. São Paulo: Martins Fontes.

Hyman S, Chisholm D, Kessler R, Patel V, W. H. (2006). Mental Disorders. In Jamison D; Breman J; Measham A; Alleyne G; Claeson M; Evans D; Jha P; Mills A; Musgrove P; (Ed.), Disease control priorities in developing countries (2ndl ed., pp. 605–6025).

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Püras, D. (2017). Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health. https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G17/076/04/PDF/G1707604.pdf?OpenElement

Read, J., & Sanders, P. (2010). A straight talking introduction to the causes of mental health problems. Ross-on-Wye: PCCS Books.

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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para um debate amplo sobre a psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

Lembrando Jay Mahler

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“Passei 58 anos no sistema público de saúde mental – 10 anos sobrevivendo e 48 a tentando mudá-lo.”

Foi assim que Jay Mahler-psíquico sobrevivente, ativista, líder – descreveu as suas experiências.

Jay Mahler in 2012.

Infelizmente, Jay faleceu esta semana, aos 74 anos.

Jay foi a pessoa mais atenciosa e tenaz que já conheci. Era gentil e amoroso, mas forte de uma forma que poucos podem ser. Era uma força inabalável da natureza, que trabalhava sempre para aliviar o sofrimento e para proteger os direitos humanos de todos, tanto dentro como fora do sistema de saúde.

Fomos amigos e camaradas durante mais de 40 anos, e passamos 28 anos juntos nessa luta lá dentro da barriga da besta, no sistema de saúde mental em Bay Area.

Em 1965, Jay era um estudante universitário com 18 anos que se tornou ativista dos direitos civis e da liberdade de expressão na UC Berkeley. Após ficar sem dormir durante seis dias, ele ficou sobrecarregado emocionalmente, o que o levou a ser hospitalizado.

“Nos anos 60, o sistema de saúde mental não acreditava que aqueles de nós com problemas de saúde mental importantes pudessem se recuperar,” disse Jay numa entrevista de 2012. ” Era uma abordagem muito autoritária, uma espécie de modelo médico. Assim, quando fui hospitalizado, eu não tinha nenhum direito a ter amigos, dar telefonemas, ter visitas… Fui submetido a tratamentos de choque contra a minha vontade, recebi medicamentos contra a minha vontade.”

Jay foi torturado no hospital psiquiátrico, como inúmeros foram e continuam a ser até hoje. Ele disse que o horror de ser amarrado e de receber injeções massivas de Haldol foi secundado pelo terror que experimentou quando tentava em vão durante dias recordar o seu próprio nome após ter sido incessantemente ‘eletrochocado’ com a ECT.

“Houve um período no tratamento por choque em que fiquei completamente sem memória,” disse Jay na entrevista. “Não sabia quem eu era, qual era o meu nome, não sabia onde estava, as percepções eram muito ruins… Era muito aterrador não saber, não ter memória.”

Após experimentar esse sistema autoritário que lhe retirava os seus direitos, Jay dedicou-se a assegurar que os direitos humanos básicos dos outros seriam protegidos. Devido às suas próprias experiências, Jay sentiu que a sua missão de vida era uma busca urgente para impedir que qualquer forma de dano psiquiátrico acontecesse aos outros. Em vez disso, tentou o seu melhor para encontrar uma forma humana de ajuda, que acreditava poder ser melhor proporcionada por pares em quem se pudesse ter confiança para contar com a compaixão.

Ele obteve financiamento para um tal projeto na década de 1970: ‘Preocupações com a Saúde Mental dos Consumidores’, que era gerido por pares e com o apoio dos pares.

Conheci o Jay em 1980 quando fui trabalhar para o santuário de I-Ward sem medicamentos para estados extremos. Jay era o defensor dos direitos dos doentes do hospital do condado de lá. Ele acreditava no santuário radical e curativo I-Ward que nós oferecíamos, mas ele tinha de trabalhar constantemente para proteger aqueles presos no tradicional J-Ward, onde todos eram fortemente medicados e ameaçados de ficarem presos a “n” restrições – tal como o próprio Jay esteve preso.

O nosso amigo e companheiro Pat Risser fazia igualmente parte da coligação que constantemente com Jay se opôs ao poder da NAMI e do pessoal psiquiátrico do condado que queria incrementar o tratamento forçado.

Jay poderia sempre prever o próximo passo da organização – o que fazer para avançar a luta pelos direitos humanos no sistema de saúde mental, que se encontra sempre atolado em várias camadas da política administrativa e local. Reuníamos-nos e formamos uma coligação municipal de saúde mental de todas as partes interessadas, incluindo mesmo a NAMI. O nosso credo era procurar sempre um terreno comum onde todos nos pudéssemos manter unidos. Trabalhou durante décadas para influenciar grandemente os supervisores do condado, que eram os decisores e financiadores em última instância.

Jay Mahler in 2017.

Utilizando o peso da coligação unida, Jay liderou o caminho na obtenção de financiamento para vários centros de apoio e de pessoal, e na conquista de toda uma nova classificação de postos de trabalho na função pública dos Trabalhadores de Apoio Comunitário. Esta era uma nova classe de emprego que passou a ser protegida no grupo local de pessoal de saúde mental do Sindicato dos Trabalhadores que eu representava na coligação. Esses trabalhadores sindicalizados obtiveram todos os benefícios e aposentadoria, o que tornou-se o fermento de pessoas com experiência de vida para humanizar todas as clínicas, enfermarias hospitalares e programas do condado.

Jay fez tantas coisas como essa acontecer às pessoas.

Há muitos detalhes da vida e do trabalho de Jay que desconheço, mas lembro-me a certa altura que ele esteve na Casa Branca durante a administração Carter para apoiar iniciativas que ele acreditava serem boas.

Jay era assim – um pragmatista total. Ele nunca deixou que a busca do perfeito se metesse no caminho de obter algo de bom. O seu caminho era daqueles que trabalham em sistemas como os cavalos de Troia, como na “longa marcha através das instituições”.

A certa altura, Jay conseguiu mesmo um emprego na própria administração da saúde mental do condado como mediador, devido à sua sólida base de poder entre a comunidade de pares.

Nunca esquecerei o sorriso irônico no seu rosto quando vim vê-lo no seu novo escritório no último andar da administração da saúde mental. Ele disse algo como “Agora vão ter de lidar comigo a cada hora do dia”! Jay era como o pugilista que nunca pára de vir e desgasta o seu opositor porque ele sabe que ele nunca vai embora.

Após décadas, ele deixou o condado de Contra Costa e foi trabalhar no condado de Alameda para transformar novamente o sistema em Oakland e Berkeley. Aí ele organizou e liderou o que se tornou um enorme movimento de pares de milhares de membros do The Pool of Consumer Champions.

Trabalhei com ele no Projeto Mandala, que mais uma vez, devido à influência de Jay, foi capaz de influenciar o diretor de saúde mental e todos os programas de lá para adotar programas mais humanos e com um ‘staff’ formado por pares.

Jay tinha para ele uma dimensão espiritual tranquila que eu sempre pensei que em parte nascera do incrível sofrimento que ele suportou. Não consigo deixar de pensar em Nelson Mandela quando penso em Jay, porque Jay nunca odiou aqueles que o torturaram durante anos.

Tornou-se um catalisador líder em todo o estado para um enfoque totalmente novo na dimensão espiritual do sofrimento e da cura. Fizemos até um ‘workshop’ conjunto no Instituto Esalen sobre esse tema em 2011, com David Lukoff e Laura Mancuso. Fizemos o seguimento com grandes reuniões no condado de Alameda que atraíram muitos que também reconheceram a vontade de Jay de aprofundar a compreensão.

Em honra da liderança e contribuição de Jay, o condado de Alameda deu o nome de Jay ao seu primeiro centro de descanso de pares.

Sim, que longo caminho ele percorreu desde quando jovem preso, torturado em nome da medicina psiquiátrica, até a se tornar líder de linguagem suave, quem humildemente nos perguntou o que eu acredito ser a sua mensagem básica para todos nós:

” Não podemos fazer mais para acabar com os abusos psiquiátricos e, por conseguinte, ser amorosos e bondosos para com aqueles que sofrem?”

A devota esposa de Jay, Susan, foi uma presença constante de bondade amorosa e apoio durante todos os anos, e especialmente durante os últimos anos, visto que Jay passou a fazer diálise.

Jay disse-me tristemente que acreditava que os horrendos danos infligidos ao seu corpo durante aqueles muitos anos no ‘gulag’ psiquiátrico arruinaram a sua saúde.

No entanto, Jay sempre sentiu que o seu ativismo, o seu trabalho de promoção dos direitos humanos no sistema psiquiátrico, era a contribuição mais significativa que podia dar no mundo. “Estar envolvido no movimento consumidor/sobrevivente deu-me um objetivo na vida”, disse ele na entrevista de 2012.

Lembremo-nos da família de Jay ao lamentarmos a sua morte, e deixemos o seu exemplo de vida fazer o que fez sempre por inúmeras pessoas: Ajude-nos a travar a luta e acreditar no exemplo do seu coração amoroso.

Descanse em paz, servo fiel.

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