Medicina Insana: Epílogo

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Nota do editor: Ao longo de vários meses, Mad in Brasil publicou uma versão seriada do livro de Sami Timimi, Insane Medicine (disponível para compra aqui). Este é o capítulo final. Todos os capítulos estão arquivados aqui.

Tenho a ideia deste livro há já vários anos. Eu queria escrever algo para um público geral e não acadêmico ou clínico que reunisse todos os pedaços de teoria e prática que me têm preocupado em uma polémica apoiada empiricamente. Afundado com o desgosto da vida privada e laboral diária, e desmoralizado pela rigidez dos pântanos institucionais onde tenho tentado sobreviver profissionalmente, simplesmente eu não conseguia obter qualquer impulso.

As ideias podem ficar adormecidas durante muito tempo enquanto a paisagem sócio-política é estática. As contradições, incoerências e as mentiras absolutas do que passamos a acreditar e a aceitar como o conhecimento “correto” podem mover-se sem obstáculos e sem contestação durante décadas. De vez em quando ocorre uma crise de magnitude suficiente para lançar uma teia de incerteza em toda parte, e ideias anteriormente suprimidas podem encontrar o solo mais fértil para o crescimento. O bom, o mau, o perigoso, o ‘empoderador’, o libertador, o opressor – o potencial para que surjam novas imaginações ou para que renasçam (e a luta contra elas), estando mortas há muito tempo começam a agitar-se à nossa volta.

Não demorou muito até que o Covid-19 se espalhasse por todo o lado, e os bloqueios (‘lockdowns’) se seguiram, e os comentadores e os seus representantes institucionais começaram a falar sobre as outras doenças pandêmicas-mentais que se avizinhavam. Havia algo de revelador neste discurso público. Se se riscar a superfície desta narrativa (que os efeitos de ‘lockdown’ serão uma pandemia de transtornos mentais), surge uma contradição gritante.

Por um lado, fica claro que a pandemia de saúde mental se desenvolverá a partir das consequências sociais da nova paisagem política e cultural que temos de habitar por razões de saúde pública. Foi-nos dito que os impactos na nossa saúde mental seriam produzidos pelo ‘lockdown’, a desconexão, a perda de meios de subsistência, a perda de entretenimento socializado, e assim por diante.

Tendo sido avisados de que a saúde mental é um subproduto de perturbações comuns e compreensíveis nas experiências da vida real, fomos então informados de que isto teria de ser tratado, não abordando estas causas sociais e as adversidades que delas advêm, mas sim através de serviços que possam “diagnosticar” e “tratar” as disfunções individuais resultantes.

Chamando o impacto das perturbações sociais de “transtornos/doenças mentais”, juntamente com a ideia de que os serviços seriam sobrecarregados, colocou-se a resposta para longe desta paisagem social, deslocando-a para o espaço despolitizado que existe entre os ouvidos. Na indústria da saúde mental, os problemas sociais necessitam de soluções individualizadas, fornecidas por especialistas com o ‘know-how’ técnico para identificar e, de alguma forma, corrigir as “anomalias” resultantes.

Enfurecido com esta construção desordenada, e energizado pelo potencial de mudança que as crises trazem, eu finalmente me senti pronto para colocar a caneta no papel (ou mais precisamente o dedo no teclado). O desprendimento do mundo da saúde mental das realidades humanas do quotidiano estava agora no reino do absurdo. A ideologia da saúde mental se encontrava firmemente alicerçada no domínio do sistema neoliberal/capitalismo avançado (ou o que quer que se queira chamar ao nosso desastre de um sistema econômico desigual e da política insípida que promove): individualizar, dividir, e ‘desempoderar’, à medida que se mercantiliza o sofrimento psíquico e a diferença em números cada vez maiores de tipologias humanas.

Estas tipologias coloniais (tanto em termos de impor construções ocidentais às populações não ocidentais como de impor construções da elite ocidental às populações ocidentais) impõem um sistema de castas que inadvertidamente priva grandes faixas da população dos seus direitos de cidadania – condenando-as simultaneamente a sentirem pena e desconfiança. É um sistema que vitimiza e cria vítimas (geralmente sem a intenção dos seus praticantes), mas também que torna você inconsciente (não apenas através dos seus poderosos sedativos) para a consequente escravização que vem por meio de promessas de libertar a sua psique de males invisíveis, em erupções de biologia e psicologia anormais, que de alguma forma se afastaram da sua história e realidade social.

Não queria escrever apenas mais um livro que pudesse ser discretamente escondido em um nicho acadêmico agradável, acrescentando cor às estantes de alguns críticos. Havia alguma forma de ligar isto aos movimentos sociais? Como poderia isto contribuir, ainda que de forma minúscula, para cortar aquela fenda crescente nos edifícios institucionais, para deixar entrar um pouco mais de luz (esclarecimento) sobre um assunto envolto em mito e fantasia?

Decidi, por isso, tentar algo novo para ver se conseguia chegar a um público leitor mais vasto. Fiquei impressionado com a forma como o website Mad in America (MIA) se expandiu para um espaço digital que reúne uma diversidade de vozes críticas internacionais, incluindo blogs, relatórios sobre novas pesquisas, e alguns dos seus próprios excelentes relatórios e análises. Fiquei encantado quando Robert Whitaker concordou em publicar o livro completo num formato semanal seriado no MIA (está agora também disponível em formato de brochura e eBook na Amazon). Quero também agradecer a Peter Simons, que tem sido o meu contato no MIA e ajudou a transformar esta ideia em realidade. E, também, ao Fernando Freitas, do Mad in Brasil (MIB), que traduziu para o português e o editou.

Todos os dez capítulos do livro estão agora publicados e sendo lidos por milhares de pessoas. Espero que alguns dos que leram o livro, ou partes dele, tenham encontrado algo de útil e que os tenha energizado de alguma forma. Além de fornecer mais munições nas críticas em curso, gostaria de imaginar que também inoculou algumas pessoas com algumas sementes de esperança que podem dar mais espaço para novas imagens de um mundo pós- indústria-da-saúde possam crescer.

Gostaria de agradecer particularmente a todos, e quero dizer a todos, que dedicaram tempo a escrever comentários, quer se tratasse nos sites do Mad, quer através de e-mails pessoais ou meios de comunicação social. Eu tento lê-los todos. Lamento nunca participar dando respostas. Tomei uma decisão há muitos anos, depois de colocar o dedo nas redes sociais e outras discussões/debates na internet, para me manter afastado disto. Cheguei à conclusão de que muitas vezes isso pode consumir muito tempo mental e físico sem ir realmente a algo produtivo. Espero que vocês possam compreender e respeitar o meu raciocínio, mas estou muito grato por todos os comentários feitos que me ajudam, e espero que outros apareçam, refletindo sobre o que escrevi, quer seja na crítica ou no apoio ao mesmo.

Compreendo alguns dos comentários que o assunto sobre o qual escrevi já foi tratado por escritores mais pessoalmente afetados e, como alguém que passou a sua vida profissional no sistema, sei que a minha perspectiva não terá a mesma autenticidade que aqueles que estiveram no fim receptor da destituição, crueldade e opressão que os serviços preponderantes são capazes de proporcionar.  Espero que uma crítica de um “infiltrado” que não dá murros tenha, no entanto, algum mérito. Quanto mais vozes críticas houver, quanto maior for a literatura crítica, melhor. Penso que os relatos críticos a partir de uma diversidade de perspectivas, antecedentes e posições contribuem cada um de uma forma para o crescimento de um movimento social em prol da mudança.

Queria neste livro interrogar os pressupostos que permeiam a teoria, a investigação e a prática na saúde mental. Quando são postos a nu os seus fundamentos essenciais, pode-se ver o vazio dos paradigmas empíricos e filosóficos que estão em circulação. Não se pode medir a mente utilizando a mesma metodologia usada para medir o fluxo de urina. Não se pode descobrir significados e intenções olhando para imagens coloridas do cérebro.

É claro que a biologia está envolvida, tal como existem redes biológicas ativas que me permitem escrever estas frases. Mas não podemos ver, sentir, pesar, calibrar e calcular desvios padrão para a forma como eu cheguei a essas frases. Não podemos escapar à subjetividade na compreensão da subjetividade. Não podemos descobrir a “verdade” sobre a razão pela qual escrevi uma determinada frase; só podemos criar um quadro para explicar a partir de um número limitado de sistemas de conhecimento disponíveis a que estivemos expostos. A nossa escolha de quadro explicativo tem consequências profundas.

Quando analisamos a minha urina para várias substâncias, a minha urina não é subsequentemente afetada por essa análise. Não irá mudar em resposta às minhas conclusões. A urina não fica encantada, ansiosa, ofendida, não decide ficar comigo, ou abandonar-me. Não é o caso para as explicações que utilizamos para os fenômenos mentais. Se me disserem que o que me levou a escrever as frases acima foi um “transtorno” mental que me levou a um estado de espírito perigoso e paranoico, os efeitos nas minhas emoções, pensamentos e comportamentos podem ser muito diferentes de se me disserem que estas frases são uma “lufada de ar fresco”. Os efeitos serão mais marcados quanto mais poder a pessoa tem (ou que percebo que tenha) sobre mim.

Quando perdemos o contato com esta ideia básica – que tudo o que temos são quadros de referência que fazem sentido em vez de verdades neutras – tornamo-nos perigosos sem nos apercebermos que nos tornamos perigosos, particularmente se nos encontrarmos em posições de poder e influência potenciais. As ideologias dominantes da saúde mental criaram uma realidade em que substituíram a alma pela psique. Imaginar que se sabe e se pode explicar o que está errado, prende o praticante e o paciente em um paradigma religioso de culto, sem reconhecer que é isto que está a acontecer.

Com o diagnóstico, cria-se objetos abstratos que circulam na mente do profissional e do paciente, como demônios que são imaginados a sair da sua biologia ou da sua psicologia, que os pastores modernos (psiquiatras) irão expurgar com as suas poções mágicas e salas de confessionário. Ao contrário de uma absolvição religiosa, porém, estes demônios estão aí para ficar, emergindo periodicamente, porque não são externos, mas sim genéticos, com fios duros, algures no cérebro, para serem supridos/controlados.

O Royal College of Psychiatrists [Colégio Real de Psiquiatras] no Reino Unido deveria ser renomeado The Royal College of Psychianity [Colégio Real de Psiquiatrinidade].  Nesta, a religião da Psiquiatria, a noção de psiquiatria emerge da fé, não da ciência. A psiquiatria é concebida como um verdadeiro objeto concreto, que revelará as suas “verdades” através de formas confiáveis de as medir e avaliar. A psique passa a ser entendida objetivamente como uma mente sem significados. A espiritualidade foi sugada, deixando uma sopa agitada de neurotransmissores perigosos para ser estudada usando as escrituras do Santo DSM e outros manuais quase-religiosos.

Questionar pressupostos leva os meus argumentos muito para além do conflito entre psicoterapia obsoleta e psicofarmacologia. O que mais importa é o enquadramento em que a prática é formulada. A psicoterapia é tão responsável como a psicofarmacologia pela incorporação da história de doenças/disfunção/transtorno. A terapia, incluindo a utilização ocasional e judiciosa de psicotrópicos, pode também empregar modelos mais ‘empoderadores , através da manutenção de uma postura crítica e de ser capaz de compreender que os nossos modelos não podem refletir “verdades”, mas são, pelo contrário, ferramentas com consequências.

O debate mais importante não é o que temos mais ou menos em nossos serviços de saúde mental, mas sim a ideologia em que eles confiam. Podemos até ter de acabar com o conceito de saúde mental (que cria uma inevitável polarização doença/saúde doentia). Tenho questionado a ideia de “mental” e o enquadramento “saúde”. Talvez o que tenhamos que ter é serviços de bem-estar – seja ele qual for, o que deve implicar algo que não mais fomente divisões tais como nós /eles, estar-bem/doença, normais/anormais.

Nos últimos anos comecei a compreender como a concretude dos modelos que utilizamos nos serviços de saúde mental ajuda a incorporar os próprios problemas que somos empregados para aliviar. A curto prazo, o rápido alívio/satisfação imediata ao estilo McDonald’s, focalizado no consumidor, significa que fornecemos um menu de bens (diagnósticos e os seus supostos remédios) que vendemos com promessas de que a dor e o sofrimento mental podem ser eliminados sem efeitos secundários.

Isto começa então a escrever um novo capítulo importante na vida das pessoas que lutam, principalmente com o que eu chamo experiências comuns e compreensíveis (mesmo que elas ou nós não consigamos inicialmente ver como isso pode ocorrer). Elas passam agora a ser possuídas por forças para além da sua influência consciente ou inconsciente. Tornam-se alienadas das suas vidas emocionais, vendo perigos e abismos intermináveis. O novo capítulo escrito para eles/elas pelos pastores da Psiquiatria molda a forma como eles/elas e os seus entes queridos interpretam o significado de como se sentem, se comportam e pensam. Eu tive que escrever algo sobre esta armadilha viciosa.

Pode parecer que o que eu escrevo é contra os psiquiatras, mas não é. Sim, eu sou um, e sim, isso irá influenciar o meu preconceito. A psiquiatria, como qualquer outro corpo socialmente construído, é feita de indivíduos com vários graus de poder e influência. Foram formados pelos currículos e depois cultivados pelos sistemas profissionais onde têm de trabalhar. O que ouço regularmente dos meus colegas psiquiatras é como é difícil lidar com a procura e exigência dos pacientes por parte de outras pessoas envolvidas que, compreensivelmente, esperam que o psiquiatra apresente uma explicação (diagnóstico) e depois um plano de tratamento, muitas vezes com a esperança de que este inclua medicação.

A maioria gostaria de fazer mais psicoterapia e muitos tentam incorporá-la na sua prática. Negar o que é percebido pelo público, por outros médicos e outros profissionais, sobre qual é o seu papel (ser diagnosticador e prescritor), é quase impossível. É o que tenho tentado fazer há muitos anos, mas isso é realmente nadar contra a maré externa da procura, e não apenas contra as correntes internas da ideologia estabelecida.

É por isso que precisamos de educação pública; uma oportunidade para mudar o discurso. Muitos médicos apoiariam isto, uma vez que experimentam a maré da medicalização às portas das suas clínicas. A psiquiatria deveria ser a profissão que pode ajudar o resto da medicina com a questão da medicalização. Em vez disso, uma colaboração mafiosa entre a indústria farmacêutica e grande parte da psiquiatria acadêmica tem alimentado a minha profissão com os piores criminosos da medicalização – mórbidos, inapropriados e perigosos para a saúde pessoal e pública.

Naturalmente, isto exigiu então que eu também escrevesse sobre política. A McDonaldização só pode emergir em uma economia política que a encoraje. Portanto, uma apreciação do meio político mais amplo, que influencia quem controla a produção de conhecimento, em cujos interesses atuam, que modelo de “humano” isto promove, e o que o público passa então a entender como sendo a posição do “senso comum”, tudo isto necessitava de ser explorado.

Isto levou-me finalmente à globalização. A globalização se acelerou nas últimas décadas, particularmente com o crescimento das tecnologias digitais. Isto ampliou os riscos existentes do neocolonialismo, tanto no concreto (como o comércio e o poder militar) como no abstrato (a exportação e a imposição de ideias). Mas também tem criado novas oportunidades. Colaborações internacionais, comunicações e ativismo são muito mais capazes de atravessar disciplinas, grupos de interesse e fronteiras.

Escrevo isto num computador na minha casa em Lincoln, no Reino Unido, e é publicado num website americano e, depois em websites afiliados (como o Mad in Brasil), em seguida é partilhado nas redes sociais, onde pessoas de praticamente qualquer país podem lê-lo, comentá-lo e debatê-lo. Neste novo internacionalismo, reconhece-se que na nossa batalha contra uma ideologia quebrada e corrompida e os seus produtos, partilhamos tanto os problemas como as potenciais soluções ou caminhos a seguir com muitos, muitos outros em todo o mundo.

Quem sabe quando é que a massa crítica será suficiente para a mudança sistêmica? Quem sabe como, onde, e quando surgirá e acontecerá? Só sei que devemos continuar a acreditar; porque estamos do lado da ciência, da ética e do futuro. Como disse certa vez o político britânico, ex-membro do Parlamento, escritor, e ativista socialista Tony Benn:

“Não há vitória final, pois não há derrota final. Há apenas a mesma batalha a ser travada uma e outra vez. Portanto, endureça, endureça ensaguentando-se.”

 

[trad. e edição Fernando Freitas]

Como as Precauções com o COVID-19 Impactam o Funcionamento da Família

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Os procedimentos generalizados de prevenção e contenção da COVID-19 resultaram em grandes mudanças na dinâmica familiar. As obrigações educativas e profissionais virtuais exigiram a reconfiguração dos lares, novos sistemas de envolvimento com familiares, e, em algumas circunstâncias, novas tensões.

Um estudo recente conduzido por Mark E. Feinberg e colegas, publicado em Family Process, compara várias características do funcionamento familiar antes e durante a pandemia nos Estados Unidos da América, a fim de proporcionar alguma visão sobre como estas famílias foram afetadas.

“Este é o primeiro estudo de que estamos conscientes que examinou a magnitude da mudança na saúde mental dos pais, da criança e da família e o ajustamento de antes e durante o período da pandemia”, escrevem eles. “Ao examinar a mudança intra-individual, a nossa abordagem supera as principais fraquezas metodológicas em outros relatórios. Os nossos resultados fornecem provas de uma grande deterioração da saúde mental e comportamental dos pais e da criança durante os primeiros meses da pandemia.”

Por esta altura, no ano passado, preocupações generalizadas em torno das implicações da pandemia da COVID-19 para a saúde mental começaram a receber uma forte cobertura mediática. Os efeitos das medidas de lockdown e de isolamento variam com base em diversos fatores contextuais (por exemplo, recursos financeiros e sociais). Resultam em consequências particularmente prejudiciais para os jovens e adultos que já se debatiam com a pré-pandemia. Riscos para a saúde, acesso limitado a oportunidades de trabalho, habitação e insegurança alimentar, bem como estresse social, estão entre os desafios relacionados com a pandemia que continuam a ter impacto em muitas famílias à escala global.

No entanto, seria impreciso alegar que as precauções com COVID-19 foram totalmente prejudiciais à saúde mental. Alguns estudos têm captado possibilidades como o acesso aumentado a oportunidades que historicamente são prejudicadas pela proximidade e mobilidade, uma maior flexibilidade para os estudantes trabalharem segundo os seus próprios horários preferidos fora dos limites de um dia escolar normal, e em algumas circunstâncias, um aumento das conexões familiares.

O quadro apresentado pela investigação disponível até à data não é o de um tsunami atingindo a saúde mental, como inicialmente previsto por alguns, mas sim o de uma paisagem de impactos matizados que complicam as generalizações apressadas.

Feinberg e a equipe esforçaram-se por explorar o impacto da pandemia COVID-19 no bem-estar das famílias em uma amostra de famílias que vivem nos Estados Unidos. Segundo os autores, a investigação prévia foi limitada pela falta de instrumentos sensíveis para detectar alterações na saúde mental. Entre as qualidades únicas do estudo atual está o seu enfoque em unidades familiares em vez de áreas de impacto apenas ao nível individual.

“Para quantificar o impacto da pandemia da COVID-19 e das intervenções de saúde pública na saúde mental e nas relações familiares dos pais e das crianças, analisamos a mudança no funcionamento individual e familiar numa amostra de pais inscritos em um ensaio de prevenção; examinamos a mudança antes da pandemia (2017-2019), quando as crianças tinham em média 7 anos até aos primeiros meses após a imposição de intervenções generalizadas de saúde pública nos Estados Unidos”.

208 unidades familiares envolvidas no estudo incluíram díades de mãe e pai coabitantes com apenas um filho cada uma. Todas foram inicialmente recrutadas como parte de uma pesquisa aleatório das Fundações da Família e foram posteriormente contactadas com a oportunidade de participar em questionários relativos ao ajustamento durante a pandemia. De salientar que os pais relataram tanto os resultados deles como os da criança, referidos na análise de Feinberg e dos colegas.

Os itens incluídos no questionário em linha contabilizaram sintomas depressivos parentais, ansiedade parental, qualidade da relação entre os pais, internalização e externalização de preocupações comportamentais, qualidade parental, com relação ao rendimento em educação do filho(a). As tendências pré e pós-pandêmicas foram comparadas utilizando a modelação linear hierárquica (HLM) em três níveis: tempo, dados individuais e dados da unidade familiar.

“Encontramos grandes deteriorações desde antes da pandemia até aos primeiros meses da pandemia na internalização e externalização de problemas infantis e depressão dos pais, e um declínio moderado na qualidade da relação entre os pais”, relatam os investigadores. “Foram encontradas alterações menores para a ansiedade dos pais e a qualidade parental. As mães e as famílias com níveis de rendimento mais baixos estavam de modo particular em risco de deterioração do bem-estar.”

Os resultados indicaram mudanças “impressionantes” nos sintomas depressivos relatados pelos pais e na externalização e internalização das preocupações comportamentais da criança, bem como uma deterioração substancial da ansiedade dos pais e da qualidade geral das relações familiares.

Curiosamente, os pais que relataram menos sintomas depressivos antes da pandemia sofreram aumentos mais substanciais na depressão durante a pandemia. Verificou-se que os rendimentos econômicos das famílias moderaram significativamente a magnitude da deterioração da qualidade parental. O menor rendimento econômico familiar foi associado a declínios mais substanciais na qualidade parental durante a pandemia.

Entre as limitações do estudo de Feinberg e da equipe está na sua amostra ser predominantemente branca de participantes, comprometendo a representatividade dos resultados. Outros estudos indicaram que graves consequências para a saúde e bem-estar foram experimentadas por indivíduos latinos, indígenas americanos e negros nos Estados Unidos, em taxas desproporcionalmente elevadas. A confiança exclusiva nos relatos dos pais e a homogeneidade das famílias representadas no estudo também representam limitações. Os resultados podem também ter sido distorcidos por questões não necessariamente concebidas para destacar áreas de resiliência.

Os autores sugerem que as suas conclusões apontam para a necessidade de intervenções ao nível familiar que promovam a resiliência, a capacidade de lidar com a situação, o gerenciamento do humor e a capacidade de co-participação. Além disso, os moderadores de consequências graves indicam a necessidade de iniciativas de alívio ao nível sistêmico para reduzir os fardos da pandemia desproporcionadamente sofridos por aqueles com recursos econômicos limitados.

“Como os conflitos familiares e os problemas de saúde mental em curso e interligados são difíceis de interrompe-los, um fenômeno ‘’assustador” pode levar a dificuldades psicológicas e familiares enraizadas e a longo prazo. Ajudar as famílias a se recuperarem do período pandêmico pode exigir abordagens multi-componentes e interdisciplinares por parte de escolas, conselheiros, clínicos de saúde mental, pediatras, agências de serviço familiar, igrejas, e organizações recreativas e atléticas de juventude”. 

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Feinberg, M. E., Mogle, J., Lee, J. K., Tornello, S. L., Hostetler, M. L., Cifelli, J. A., Bai, S., & Hotez, E. (2021). Impact of the COVID‐19 pandemic on parent, child, and family functioning. Family Process. https://doi.org/10.1111/famp.12649 (Link)

Desigualdades sociais provocam um aumento do sofrimento mental em meio à pandemia de COVID-19

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Um novo estudo, publicado na Lancet Psychiatry, examina o efeito da pandemia de COVID-19 nas taxas de suicídio. Depois de analisar dados de 21 países, os investigadores não encontraram um aumento significativo do risco de suicídio desde o início da pandemia, apesar das preocupações iniciais de que as taxas aumentariam. Eles exortam à vigilância e atenção aos efeitos a longo prazo da pandemia sobre a saúde mental.

Os investigadores, liderados pela Professora Jane Pirkis da Universidade de Melbourne, escrevem:

“O nosso estudo é o primeiro a examinar os suicídios ocorridos no contexto da COVID-19 em múltiplos países. Oferece um quadro amplamente consistente, embora proveniente de países de elevado rendimento e de rendimento médio-alto, de números de suicídios que permanecem inalterados ou declinam nos primeiros meses da pandemia. Este quadro não é completo nem final, mas serve como a melhor evidência disponível sobre os efeitos da pandemia no suicídio até agora.”

“TSUNAMI IN NEW YORK” BY GOA

A pandemia da COVID-19 teve um impacto significativo na saúde mental, embora os investigadores ainda estejam trabalhando para compreender a extensão do impacto. Em uma tentativa de compreender o efeito da COVID-19 nas taxas de suicídio, os investigadores examinaram estudos atualmente disponíveis sobre as taxas de suicídio ao nível mundial. Contudo, encontraram provas insuficientes para oferecer uma compreensão completa de como a pandemia influencia as taxas de suicídio.

Realçam como o efeito da pandemia nas taxas de suicídio depende de muitos fatores, incluindo: “a extensão da pandemia, as medidas de saúde pública instituídas para a controlar, a capacidade dos serviços de saúde mental existentes e os programas de prevenção do suicídio, e a força da economia e as medidas de alívio para apoiar aqueles cujos meios de subsistência são afetados pela pandemia.”

Além disso, irão provavelmente variar de país para país, outras influências externas sobre o suicídio, tais como instabilidade política ou dificuldades econômicas, que podem ser independentes e agravadas pela pandemia,

No estudo atual, os investigadores utilizaram dados de suicídio em tempo real de 21 países de alta e média-alta renda. 10 destes países forneceram dados relativos a todo o país, enquanto 11 forneceram dados sobre uma área ou áreas específicas no país. Os dados foram analisados para determinar se as taxas mensais de suicídio (que variaram entre 1 de abril e 31 de julho de 2020) se alteraram após o início da pandemia.

Globalmente, os investigadores não encontraram um aumento do risco de suicídio desde o início da pandemia, consistente com os resultados de outros estudos que investigaram as taxas de suicídio em países de rendimento elevado e médio-alto.

Atribuem ao não aumento de aumento das taxas de suicídio a vários fatores, incluindo a preocupação manifestada desde cedo sobre os potenciais impactos negativos na saúde mental das ordens de permanência em casa e dos fechamentos de escolas e empresas. Embora as experiências auto relatadas de depressão, ansiedade e pensamento suicida tenham aumentado durante o período examinado, não parece haver afetado as taxas globais de suicídio nos países incluídos no estudo.

Um fator adicional é a maior ênfase e acessibilidade dos tratamentos e serviços de saúde mental disponibilizados por alguns países durante a pandemia, que podem ter sido protegidos contra alguns dos efeitos nocivos da pandemia.

Os investigadores salientam também o papel da comunidade como potencial fator de proteção. Por exemplo, as comunidades que se esforçaram para apoiar indivíduos em risco para a saúde mental ou outras preocupações, ou onde os lares podem ter desenvolvido relações mais estreitas e fortes através do aumento do tempo em conjunto. Um sentimento geral de união, enquanto comunidades, foi uma proteção à pandemia, o que pode também haver protegido as pessoas contra um aumento do suicídio.

A prestação de apoio financeiro aos cidadãos e empresas por parte dos países pode ser outra salvaguarda potencial. Contudo, como grande parte deste apoio está agora a ser reduzido ou retirado, os potenciais aumentos nas taxas de suicídio, devido ao impacto pandêmico e econômico da pandemia, podem ainda estar por vir, dado que a recessão econômica tem demonstrado ser um fator que contribui para o aumento do suicídio.

Embora não tenha sido encontrado qualquer aumento nas taxas de suicídio durante uma análise primária, os investigadores encontraram aumentos significativos no risco de suicídio em Viena, Japão, e Porto Rico quando o período de observação foi prolongado de 31 de julho a 31 de outubro de 2020. Além disso, foi observado um aumento em Porto Rico quando a data de início foi alterada de 1 de abril para 1 de março de 2020. Potenciais fatores externos podem ter contribuído para estas aberrações, tais como um aumento de suicídios de celebridades no Japão durante a pandemia, bem como a recessão econômica em curso em Porto Rico, que a pandemia pode ter exacerbado ainda mais.

A falta de inclusão dos países de baixo ou médio rendimento, que representam ligeiramente menos de metade dos suicídios do mundo (e podem ter sido especialmente afetados pela pandemia), apresenta uma limitação importante deste estudo.

A falta de dados oficiais destes países constituiu uma barreira. Contudo, os investigadores conseguiram encontrar dados não oficiais da Tunísia, Mianmar (ambos de rendimento médio-baixo), e Malawi (de rendimento baixo). Para o Malawi e a Tunísia, encontraram aumentos perturbadores nas taxas de suicídio – aumentando em 57% no Malawi e 5% na Tunísia. Em Mianmar, foi encontrada uma diminuição de 2% nas taxas de suicídio.

Outras limitações incluem uma potencial diminuição da qualidade dos dados utilizados devido aos possíveis efeitos da COVID-19 na recolha de dados, o que poderia ter resultado em sub-contagens de suicídios, incapacidade de analisar os dados por categoria demográfica e uma confiança em dados centrados em áreas específicas para 11 dos países.

A exploração do impacto da pandemia em determinados grupos demográficos, especialmente indivíduos marginalizados, como a situação de população de rua, é fundamental, considerando que as desigualdades sociais agravaram os efeitos negativos da COVID-19, incluindo o sofrimento mental.

Pirkis e colegas concluem enfatizando a necessidade de se continuar a monitorizar dados em tempo real para que qualquer aumento nas taxas de suicídio possa ser descoberto imediatamente. Sugerem que precisamos de compreender que fatores protetores ajudaram a manter as taxas de suicídio baixas no início da pandemia.

Além disso, as taxas de suicídio capturam apenas um fator de saúde mental, pelo que outros aspectos da saúde mental devem ser explorados e compreendidos para fornecer o apoio adequado. É também crucial um maior esforço para compreender o efeito da pandemia nos países de menor rendimento e encontrar formas de comunicar os resultados da investigação aos governos e comunidades de tal forma que suscita compreensão e mudança de políticas, em vez de ser sensacionalística. A tomada destas medidas poderia permitir uma compreensão e prevenção dos potenciais efeitos a longo prazo da pandemia sobre o risco de suicídio e a saúde mental.

Os autores concluem:

“Os aspectos falhos na sociedade britânica foram fortemente revelados pela pandemia. Para se ‘reconstruir melhor’, no longo rescaldo da COVID-19, nós precisamos de criar os ambientes sociais e materiais que não só abordem as causas da doença mental, mas também aumentem as capacidades de todos os cidadãos para criar vidas de sentido e propósito para si próprios.” 

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Rose, N., Manning, N., Bentall, R., Bhui, K., Burgess, R., Carr, S., … & Faulkner, A. (2020). The social underpinnings of mental distress in the time of COVID-19–time for urgent action. Wellcome Open Research5 (166). (Link)

CAPS ou Ambulatório de Psiquiatria?

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A pesquisa publicada na revista Cereus teve como objetivo analisar as prescrições de psicofármacos em um serviço de atenção psicossocial e sua relação com a adesão ao tratamento psicossocial. Para tal, foi utilizada a observação do ambiente cotidiano do serviço e a análise de prontuários. Foram selecionados 246 prontuários de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais graves ou recorrentes, sendo a colete feita no ano de 2017.

A rede de atenção psicossocial oferece atendimento clínico e multiprofissional, regula a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental e dá suporte à atenção à saúde mental na rede básica, procurando articular ações no território e auxiliar o usuário a retomar seu lugar na sociedade. Além disso, deve ofertar acesso gratuito aos medicamentos psiquiátricos, podendo resultar em consultas médicas sucedidas por  prescrições farmacológicas, fomentando a cultura da medicalização.

Para a pesquisa, foram coletadas informações dos prontuários de usuários de um CAPS II em Palmas, no Tocantins, entre os períodos de 2010 e 2016. Os seguintes indicadores foram avaliados: classe do transtorno mental conforme o CID -10, número médio de medicamentos prescritos e frequência. Para a observação sistemática do ambiente do serviço utilizou-se um diário de campo.

Os principais diagnósticos encontrados foram esquizofrenia e outros transtornos psicóticos (56,9%), e Transtorno bipolar e outros transtornos de humor relacionados (21,3%). Já medicamentos foram prescritos 794 medicamentos para 246 usuários do serviço. As classes mais utilizadas foram os antipsicóticos e neurolépticos (33,1%), seguidas de estabilizantes de humor (18,5%), os mais receitados foram Haloperidol, Clonazepan, Biperideno e Risperidona. Haviam escassas avaliações multiprofissionais quando comparadas as avaliações médicas, sucessivas prescrições farmacológicas e passagens pela farmácia.

Um dos problemas encontrados foi que o CAPS funcionava como um ambulatório de psiquiatria, o que não deveria ocorrer. Para os pesquisadores, isso se deve a dificuldade de entendimento da rede psicossocial ocasiona encaminhamentos equivocados, fragilidades na estrutura organizacional do acesso aos serviços de saúde mental e extensa fila de espera para atendimento.

“Após 50 anos da criação e disseminação do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM) produzido pela American Psychiatric Association dos Estados Unidos (APA), existe a dificuldade entre profissionais do serviço em lidarem com um sistema de classificação de doenças mentais que determina socialmente o que é normal ou patológico, e em que o trabalho psicossocial é realizado com base na doença ‘recém diagnosticada’, e não no sujeito, esquecendo-se do preceito ‘Reforma Psiquiátrica’, ‘reinserção psicossocial’ e ‘cuidado multiprofissional’. Atender em caráter ambulatorial é retornar ao conceito biomédico, onde tudo se é possível resolver através de ‘pílulas compradas em drogarias’ (FREITAS 2015).”

Os pesquisadores propõem que ocorra de maneira efetiva parcerias com dispositivos do território e da comunidade, tornando real a desinstitucionalização e evitando a medicalização da instituição. É necessário aumentar a participação da equipe multiprofissional e da família no CAPS, para assim realizar o que é preconizado pela atenção psicossocial .

“Neste sentido, avalia – se que esta dificuldade na atenção integral parece contribuir para que os usuários do CAPS II sejam acompanhados somente pelo transtorno mental o qual são acometidos, uma vez que ocorre pouca integração da atenção primária com as políticas de saúde mental, implicando ações voltadas para práticas de saúde institucionalizadas.”

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CAVALCANTE, J.A. et al. Medicalização da saúde mental: Análise das prescrições de psicofármacos em um serviço de atenção psicossocial. Revista Cereus 2021 Vol. 13. N.1 (Link)

 

Franca Basaglia, feminismo e medicalização

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Há algumas semanas atrás, em uma aula, uma aluna perguntou-me: “Quem foi Franca Basaglia?” Agradeci muito a pergunta e repito aqui o que disse naquele dia: qualquer oportunidade de recordar Franca Ongaro Basaglia é única. As atuais discussões em saúde mental fazem com que, mais do que nunca, seja urgente o resgate de sua obra e reflexões sobre a relação entre medicalização, feminismo e capitalismo, ainda tão pouco exploradas no Brasil.

Franca nasceu em 1928 e foi uma figura de grande referência para lutas e processos de resistência na Itália, desde a década de 1960. Apesar de suas grandes contribuições, infelizmente, não é incomum que sua referência se esgote a: “foi companheira de Franco Basaglia”. Ora, se é verdade que este relacionamento marcou suas vidas pessoais e os processos que construíram conjuntamente, é também fundamental ir além. Isto, porque Franca precisa ser lembrada também como socióloga e militante que foi, assim como por seus escritos, suas práticas em saúde mental e seu protagonismo em serviços e ações inovadoras que até hoje nos inspiram e fazem ser possível uma atenção psicossocial territorial e um feminismo que se pretende antimanicomial.

Membra do Partido Comunista Italiano, foi uma das fundadoras do movimento que ficou conhecido como Psiquiatria Democrática e que balançou um país e o mundo através do fechamento de leitos psiquiátricos. Participou ativamente do fervilhamento de experiências que transcendiam o espaço biomédico e tomou a luta contra a marginalização e manicomialização de pessoas em sofrimento psíquico enquanto nodal para a luta de classes.

Ainda na juventude, apesar de se destacar enquanto estudante, foi inicialmente proibida de cursar a universidade pela família, sob a justificativa de ser mulher. Seu projeto de ser escritora, porém, não ficou interrompido. Trabalhando como datilógrafa em uma empresa de eletricidade escreveu, nas décadas de 1950 e 60, histórias infantis publicadas pelo Corriere dei Piccoli. Mais tarde, em parceria com Franco Basaglia, assinou obras reconhecidas como La maggioranza deviante [1], Crimini di pace [2] e Morrire di Clase: La condizione manicomiale [3]. Organizou os livros Scritti Basaglia I [4] e II [5], além de outras obras compartilhados com demais companheiros da Reforma Psiquiátrica Italiana, como La nave che affonda [6].

Individualmente, publicou livros como Mario Tommasini. Vida e Feitos de Um Democrata Radical [7] e Salute/malattia. Le parole della medicina [8]. Sobre o tema mulheres e loucura, Franca escreveu Grillo parlante (1970) e Il soldato e la sword (1972), publicados na antologia Una voce Riflessioni sulla donna [9], além de editar e comentar a republicação de um texto Paul Julius Moebius, publicado em 1900, intitulado A inferioridade mental das mulheres [10]. De grande destaque é o seu livro Mujer, Locura y Sociedad” (ONGARO BASAGLIA, 1983), traduzido na década de 1980, pela Universidade de Puebla, no México, país no qual foi reconhecida por sua referência feminista, assim como o prefácio do consagrado livro Woman and Madness [11], de Phyllis Chesler.

Eleita duas vezes como senadora pela esquerda independente se dedicou às pautas vinculadas às drogas, às violências sexuais, às prisões e aos manicômios. Foi uma figura central para a implementação efetiva da lei 180, de 1978, que direcionou o fechamento dos hospitais psiquiátricos italianos. Sua atuação intelectual e política foi reconhecida em 2000 com o prêmio Ives Pelicier, da Academia Internacional de Direito e Saúde Mental, e, em 2001, com o título Doutora Honoris Causa, pela Universidade de Sassari, pela “Proteção dos direitos e conhecimentos disciplinares”.

Em suas últimas falas e ensaios, Franca afirmou a urgência da radicalidade na Reforma Psiquiátrica. Para ela, era preciso retornar à raiz, avaliar seus caminhos e limites e realizar uma mudança radical nas fundações das várias disciplinas que se voltavam para as diversidades e desigualdades. Nesta investida, problemáticas referentes à medicalização e ao feminismo foram alguns dos nortes neste caminho.

Suas contribuições sobre a medicalização ganharam fôlego especial no livro “Salute/malattia. Le parole della medicina”, destinado à Enciclopédia Einaudi. Negando a noção de doença enquanto fenômeno natural, a autora marcava sua relação com a produção social e histórica em constante mudança no interior da organização social capitalista. Voltada para este cenário, lançou luz sobre a padronização neoliberal dos corpos considerados desviantes e improdutivos, tanto a partir da instituição psiquiátrica asilar quanto dos novos serviços. Estes, ainda permeados pela lógica manicomial sob o formato de uma estrutura de políticas públicas e de saúde que mantêm a lógica de isolamento, são problematizados por Franca e apontados como símbolo da permanência de uma lógica. A qual figura social está vinculada o sujeito considerado saudável ou “doente”? é um questionamento que acompanha todo o escrito, apontando para trazendo elementos vinculados à raça, estatuto migratório, renda e gênero (CASTORINA, 2017) [12]

Em sua fala na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, na Fiocruz, em 1996 [13], a autora retornou à problemática da tutela em saúde mental, realizada pela via da medicalização enquanto manutenção da norma. Para tal, Franca a localizou a partir de 3 caminhos: (1) pela via da objetivação do sujeito como premissa à cientificidade de intervenção médica; (2) pela redução de fenômenos vinculados a condições sociais, psicológicos e relacionais a um dado apenas natural e biológico e (3) pela consideração de fenômenos naturais como patológicos (ONGARO BASAGLIA, 2008) [14].

Ao denunciar a construção da doença mental na racionalidade do capitalismo, Franca  sustentou a importância de que a classe trabalhadora fosse entendida de maneiras distintas em suas suas opressões e medicalizações, também a partir das relações de gênero. Em “Mujer, Locura y Sociedad” (1983) [15] problematizou a concepção de sujeito universal, fundada e fundante da medicina psiquiátrica, e apontou para as condições históricas que reduziram as mulheres ao corpo, à natureza e ao irracional. Neste livro, a autora chamou atenção para os efeitos subjetivos da violência contra as mulheres, para os impactos do trabalho doméstico e sua sobrecarga e o para o aprisionamento da sexualidade feminina. Analisou o sofrimento subjetivo de mulheres e seus desdobramentos nas instituições psiquiátricas e seus processos de medicalização, sublinhando que: “as mulheres são consideradas mais loucas que os homens nas culturas ocidentais” (ONGARO BASAGLIA, 1983: p. 56, tradução nossa). Localizando que quanto mais restritos os papéis sociais das mulheres em sua sociedade, mais graves seriam os tipos de infrações sob os rótulos e sanções psiquiátricas sobre estas, propôs: “(…) investigar a “loucura” das mulheres a enfocando como um fenômeno explícita e historicamente determinado (ONGARO BASAGLIA; 1983, pag 56, tradução nossa).

Até o momento de escrita deste artigo, não localizei no Brasil materiais biográficos sobre a vida de Franca, mas em seu país algumas produções marcam a memória desta autora e militante. Entre elas, a ação teatral “A Voz de Franca Basaglia”, de Mattia Berto, exibida na décima edição do Festival dei Matti [16]. Outra produção que não poderíamos deixar de citar é a mais ampla e conhecida biografia de Franca Basaglia que se encontra na Enciclopédia Italiana de Ciências das Letras e das Artes [17], escrita por Maria Grazia Giannichedda, também fundadora da Fundação Franca e Franco Basaglia, em Veneza. Este espaço se constitui hoje como o maior inventário da obra e vida desses dois companheiros de vida, luta e intelectualidade, reunindo fotos, pôsteres, documentos, livros e outros materiais.

REFERÊNCIAS

[1] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. La maggioranza deviante. Baldini & Castoldi:2018.

[2] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. Crimini di pace. Ricerche sugli intellettuali e sui tecnici come addetti all’oppressione. Baldini & Castoldi:2018.

[3] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. Morire di classe. La condizione manicomial. Turim: Einaudi, 1969.

[4] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F(org). Scritti Basaglia I(1953-1968) -dalla psichiatria fenomenologica a all’esperienz di Gorizia. Turim: Einaudi, 1981

[5] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F(org). Scritti Basaglia I(1964-1980) -dall’apertura del manicomio alla nuova legge sul’assistenza psichiatrica. Turim: Einaudi, 1982.

[6] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F.; PIRELLA AG; TAVERNA S.La nave che affonda. Cortina Raffaello: 2008.

[7] ONGARO BASAGLIA F. Mario Tommasini. Vida e Feitos de Um Democrata Radical. São Paulo: Editora Planeta, 1990.

[8] ONGARO BASAGLIA F. Salute/malattia. Le parole della medicina. Alpha & Beta:2012.

[9] ONGARO BASAGLIA, F. Una voce Riflessioni sulla donna. Italia: Il Saggiatore, 1982.

[10] ONGARO BASAGLIA, F. Prólogo. MOEBIUS PJ. La inferioridad mental de la mujer.  Barcelona: Bruguera, 1982.

[11] CHESLER P. Woman and Madness. New York: Avon Books, 1973.

[12] CASTORINA R. Medicalizzazione e normalizzazione nella governance neoliberale. L’atuualità del pensiero di Franca Ongaro Basaglia . Franco Angeli: Sociologia del Diritto, f.1, p. 9-34.

[13] A fala foi proferida no Seminário Comemorativo dos 15 anos do Curso de Especialização em Psiquaitria Social, na Fiocruz (RJ), em 1996 e publicada em formato de texto em Ongaro Basaglia (2008).

[14] ONGARO BASAGLIA, F. Saúde/doença. In: AMARANTE, P. e CRUZ, L. (org.). Saúde mental, formação e crítica. Rio de Janeiro: Laps, 2008. Cap. 1, p. 17-36.

[15] ONGARO, BASAGLIA, F.  Mujer, Locura y Sociedad. Puebla, Universidad Autónoma de Puebla: 1983.

[16] La voce di Franca Ongaro Basaglia, ação teatral de Mattia Berto. Maiores informações em: https://zero.eu/en/eventi/157979-la-voce-di-franca-ongaro-basaglia,venezia/

[17] GIANNICHEDDA MG. La voce di Franca Basaglia. Disponível em:  http://www.alphabetaverlag.it/142/Public/extra/Giannichedda_Salute_e_malattia.pdf

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Novo estudo descobre que a ECT é ineficaz para reduzir o risco de suicídio

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A terapia eletroconvulsiva (ECT) é um procedimento que é frequentemente dado a pessoas que são consideradas em risco de suicídio. No entanto, um novo estudo descobriu que a ECT não é mais eficaz na prevenção do suicídio do que qualquer outro tratamento.

Os investigadores desta pesquisa são Talya Peltzman e Brian Shiner do Veterans Affairs (VA) Medical Center em White River Junction, VT, e Bradley V. Watts do National Center for Patient Safety em Ann Arbor, MI. O estudo foi publicado no Journal of ECT.

O estudo incluiu 14.810 pessoas que receberam ECT e 58.369 que não a receberam. Os participantes foram todas as pessoas que utilizaram a Administração de Saúde dos Veteranos (Veterans Health Administration) entre 2006 e 2015. Os participantes foram comparados em características demográficas e clínicas utilizando escores de propensão ao risco, o que permitiu aos investigadores dar conta de diferentes graus de gravidade dos problemas de saúde mental e diagnósticos psiquiátricos e de fatores tais como idade e sexo. O estudo acompanhou os participantes durante um ano para comparar o número de pessoas que morreram por suicídio. Os investigadores concluíram:

“Após comparar e controlar as diferenças entre grupos em uma regressão logística ajustada, as probabilidades de suicídio no ano após a realização da ECT não foram estatisticamente diferentes das dos pacientes que não receberam o procedimento.”

De acordo com Peltzman, Shiner, e Watts, as pessoas que receberam ECT tinham tendência a ter problemas de saúde mental mais graves, tentativas de suicídio anteriores, e, em muitos casos, tratamentos anteriores não conseguiram melhorá-los.

O ECT é geralmente visto como tendo um efeito protetor rápido e poderoso. Mas este estudo contradiz essa crença, descobrindo que após um ano aqueles que receberam ECT tinham a mesma probabilidade de morrer por suicídio do que aqueles que receberam outras intervenções para níveis de risco semelhantes.

Embora a investigação que realizaram tenha demonstrado que a ECT não reduziu o risco de morte por suicídio, os investigadores escrevem que eles se sentem “tranquilizados” de que os doentes em risco de suicídio receberam ECT.

“É reconfortante que tais pacientes estejam a ser identificados e a receber tratamento recomendado para diagnósticos psiquiátricos complexos e severos”, escrevem eles.

Eles não concluem que a ECT não deve ser utilizada para a prevenção de suicídios. Apesar da conclusão de que não era melhor do que qualquer outra coisa, eles argumentam que o passo seguinte deve ser descobrir como a ECT pode ser utilizada para prevenir o suicídio.

“Compreender os padrões da prática da ECT e as características dos pacientes que proporcionam os maiores efeitos anti-suicidas são os próximos passos importantes para se compreender como a ECT pode ser utilizada com maior eficácia na prevenção do suicídio”, escrevem eles.

A ECT é um procedimento controverso. Embora seja promovido nos centros médicos como “seguro e eficaz”, investigadores e recebedores da ECT têm manifestado preocupações acerca de ambos. Processos judiciais relativos à segurança da ECT ainda estão pendentes.

Mad in America entrevistou [ Mad in Brasil traduziu) recentemente John Read (University of East London) e Irving Kirsch (Harvard Medical School) sobre as suas análises, que descobriram que os estudos sobre a eficácia da ECT eram de qualidade extremamente baixa e que existe um elevado risco de perda permanente de memória após o procedimento.

Read, Kirsch, e a coautora Sherry Julo escreveram:

“Dado o elevado risco de perda permanente de memória e o pequeno risco de mortalidade, esta falha de longa data em determinar se a ECT funciona ou não significa que a sua utilização deve ser imediatamente suspensa.”

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Peltzman, T., Shiner, B., & Watts, B. V. (2020). Effects of electroconvulsive therapy on short-term suicide mortality in a risk-matched patient population. Journal of ECT, 36(3), 187-192. DOI: 10.1097/YCT.0000000000000665 (Link)

Oprah, Dr. Bruce Perry Examina Trauma de Infância no Novo Livro ‘O que lhe Aconteceu?’

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Da CBS This Morning: Tony Dokoupil: Oprah Winfrey está a desafiar-nos a que todos examinemos e reexaminemos como o trauma que todos nós vivemos de uma forma ou de outra como crianças pode moldar a nossa visão do mundo hoje em dia como adultos. Faz parte de um novo livro que ela coescreveu com o psiquiatra Dr. Bruce Perry; Oprah exorta as pessoas a virar a pergunta “O que se passa com você?” para, em vez disso, perguntar “O que lhe aconteceu?”

Desde que mergulhei no livro “What Happened To You?“, tenho olhado para toda a gente na rua como um “ex-recém-nascido”, na sua frase, Oprah. Isso chega realmente ao que o título representa: uma reformulação de como olhamos uns para os outros. É sutil, mas é muito profundo.

Oprah: É sutil, mas profundo e poderoso . . . Cada um de nós cria uma visão única do mundo moldada pelas nossas experiências de vida, e a maior parte disso aparece – essa visão do mundo é moldada quando se é criança.

Dokoupil: A mesma parte do cérebro que está a aprender a linguagem também está a aprender lições sobre trauma . . . Uma vez entendido o script que lhe levou até hoje, o que lhe aconteceu, pode reescrever esse script.

Oprah: Ter alguém que o vê, o vê e o reconhece plenamente e pode conectar-se a isso, muda a forma como se vê e se vê o mundo. E é por isso que “o que lhe aconteceu” é tão importante para todos nós.

Dr. Perry: A cura vem realmente destes momentos em que as pessoas estão presentes, atentas, sintonizadas, e como verdadeiramente são vistas, como diz a Oprah.

Veja o vídeo. É possível vê-lo com legendas. É muito interessante.

Video →

Pode um Programa de Bem-estar com temas de Harry Potter ajudar os estudantes do ensino médio?

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Quer você tenha ou não lido ou apreciado os sete livros Harry Potter, de J. K. Rowling , provavelmente já ouviu falar deles. Num estudo recente que aproveitou a inegável popularidade da série, Paula Klim-Conforti e uma equipe de investigadores do Canadá examinaram o impacto de uma intervenção terapêutica informada por Harry Potter, em escolas. Encontraram progressos no bem-estar e na sintomologia depressiva, ansiosa e suicida entre estudantes do ensino médio.

Klim-Conforti e os seus colegas realizaram um ensaio controlado randomizado (RCT) que compreendeu 46 salas de aula em 15 escolas para avaliar o programa – caracterizado por elementos de terapia cognitivo-comportamental (TCC) e incorporado ao currículo padrão de inglês – dentro de um grande distrito escolar urbano. Os professores de inglês foram formados para implementar o programa e serviram como agentes intervencionistas, e todas as salas de aula participantes foram divididas em grupos de intervenção e controle. Foram observados benefícios promissores num espectro de resultados avaliados neste estudo, especialmente entre as participantes do sexo feminino, embora a propagação da COVID-19 tenha interferido com a linha temporal e o âmbito do projeto.

“Este estudo controlado examinou prospectivamente o professor com intervenção das competências TCC baseada em Harry Potter. Embora existam vários programas escolares que derivam da TCC, esta é a primeira intervenção que incorpora tanto a psicoeducação básica da TCC, a resiliência, como as capacidades de lidar com a situação dentro de uma unidade de literatura que é ensinada dentro do currículo de línguas.”

As taxas de ansiedade e depressão parecem estar aumentando entre os jovens. Um estudo recente identificou um aumento de 52% na experiência de um episódio depressivo importante entre os adolescentes entre 2005 e 2017. Embora a abundante investigação tenha suscitado preocupações quanto à forma como estes dados são obtidos e interpretados, e as estruturas que sobrestimam os fatores individuais de angústia em relação aos determinantes sociais têm sido criticados, tem sido bem documentado que muitos jovens experimentam depressão, ansiedade, e vários graus de ideação suicida.

Para muitos jovens, particularmente aqueles que se encontram em lares e comunidades economicamente vulneráveis, a pandemia da COVID-19 tem um impacto na saúde e exacerbado os sintomas associados às perturbações do humor. O âmbito da angústia fala do potencial de prevenção e programação de intervenção universal oferecido em espaços acessíveis (por exemplo, nas escolas) para apoiar os jovens em geral, e não apenas adaptados a grupos e indivíduos com sintomas clínicos limítrofes. Os adolescentes, em geral, poderiam beneficiar-se de recursos que promovessem conexões e estratégias para facilitar o aumento do bem-estar social e emocional.

“É geralmente aceite que o estresse da vida e os déficits na capacidade de lidar com o sofrimento são antecedentes fundamentais do suicídio (Brent et al. 2011; Seguin et al. 2014). No entanto, os esforços de prevenção do suicídio na juventude muitas vezes não conseguem abordar estes fatores a um nível que seja adequado ao desenvolvimento. Por conseguinte, é urgentemente necessária uma intervenção de prevenção escalonável, viável e eficaz, precoce e universal, que aborde estes fatores.”

Os livros de Harry Potter, explorando temas tais como amizade, ética, comunidade, e como lidar com a adversidade, têm tido quase um quarto de século de apelo multigeracional. O fascínio da série tem sido sustentado através da introdução de filmes, parques temáticos, e outras renovações dentro do “Potterverse“. Informalmente, fora da programação terapêutica organizada, a presença e as lições de Harry Potter ajudam muitos jovens nos desafios da vida.

A intervenção de três meses, baseada em Harry Potter, orientada pela TCC, delineada em Klim-Conforti e o estudo da equipe, integra formalmente muitos dos temas que mais ressoam com os fãs ao longo dos anos. Especificamente, “os jovens de meia-idade aprendem [com o envolvimento com o texto, os seus professores e a discussão sobre] como tanto o protagonista quanto o autor (J.K. Rowling) aprendem a ser resilientes quando eles são confrontados com a depressão e ansiedade. Os retratos de domínio sobre a angústia são enfatizados na intervenção com exemplos diretos retirados do romance, utilizando várias personagens que exemplificam a resiliência e a capacidade de lidar com ela.”

Embora o programa vise a redução das diversas características associadas à internalização e preocupações de humor dos jovens, o objetivo principal é a prevenção do suicídio. A inclusão da população estudantil, em geral, e não apenas de um grupo alvo, foi uma característica única desta RCT.

“Intervenções feitas na escola por meio da TCC e que aumentam a resiliência e a capacidade de lidar com a ansiedade e a depressão, enquanto o fazem através de uma narrativa envolvente e apropriada ao desenvolvimento, podem aumentar os esforços de prevenção do suicídio.”

Antes do estudo de Klim-Conforti e colegas ter sido realizado em 15 escolas, ele foi previamente pilotado para avaliar a viabilidade e teve um bom resultado. Em preparação para o estudo em grande escala, os professores interessados na participação no estudo foram expostos à orientação para o currículo de três meses, incluindo os seguintes ingredientes:

“A formação consistiu numa visão geral da TCC com ênfase específica nos princípios fundamentais, técnicas e modelos de TCC, dado que se relaciona especificamente com a depressão e a ansiedade, uma visão geral da literatura de investigação relativa ao suicídio e à educação em saúde mental, o papel da resiliência, módulos de aprendizagem foram discutidos por capítulo de livro (ver “Intervenção” para mais detalhes), foi fornecida uma visão geral do desenho da investigação, e foi atribuído tempo para a consolidação e discussão das lições de implementação que aprendemos com o estudo-piloto.”

Um total de 200 estudantes do ensino médio com idades compreendidas entre os 11 e os 14 anos receberam autorização dos pais para participar no grupo de intervenção, e um total adicional de 230 constituiu a condição de controle da lista de espera. Os participantes em ambas as condições completaram as mensurações pré e pós-intervenção para avaliar o suicídio (tratado neste estudo como uma medida composta de ideação e tentativas suicidas auto-relatadas), desregulação emocional auto-relatada, caos interpessoal, confusão sobre si próprio, impulsividade, e sintomas de depressão e ansiedade auto-relatados. Foram realizados testes para comparar as mudanças entre salas de aula e entre condições.

“Para aqueles que a receberam, a intervenção diminuiu o suicídio na juventude do ensino médio. A análise mostrou especificamente que a intervenção reduziu significativamente a ideação suicida, sem qualquer efeito nas tentativas de suicídio. Isto apoia a ideia de que a intervenção pode ter efeitos mais acentuados sobre a cognição do que sobre o comportamento. Contudo, o suicídio de jovens é um fenômeno complexo e raro, e a identificação de reduções significativas nas tentativas de suicídio, bem como na automutilação, pode exigir uma observação mais detalhada durante um período mais longo.”

Outros efeitos significativos foram observados na redução do caos interpessoal, na melhoria da regulação emocional, e na redução da confusão sobre o self entre os membros do grupo de intervenção. Apesar do reconhecimento pelos autores de uma amostra menor do que o pretendido, resultando numa redução do poder, os resultados indicam promessa na integração de elementos básicos da TCC para promover o bem-estar social e emocional entre os estudantes num ambiente de sala de aula utilizando literatura com apelo contemporâneo. A natureza universal e integrada desta abordagem torna o trabalho de Klim-Conforti e dos colegas particularmente excitante e maduro para aplicação futura nas escolas.

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Klim-Conforti, P., Zaheer, R., Levitt, A. J., Cheung, A. H., Schachar, R., Schaffer, A., Goldstein, B., Fefergrad, M., Niederkrotenthaler, T., & Sinyor, M. (2021). The Impact of a Harry Potter-Based Cognitive-Behavioral Therapy Skills Curriculum on Suicidality and Well-being in Middle Schoolers: A Randomized Controlled Trial. Journal of Affective Disorders, 286, 134–141. https://doi.org/10.1016/j.jad.2021.02.028 (Link)

A Nutrição é a Base da Resiliência

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Bonnie Kaplan, PhD
Julia Rucklidge, PhD

Uma das mensagens fundamentais do nosso livro THE BETTER BRAIN  é que a nutrição é a base da resiliência. Muito frequentemente ouvimos as pessoas dizerem que vivemos em tempos tão estressantes, e deve ser por isso que 20% da nossa população é agora diagnosticada com um transtorno mental (em contraste com <3% em 1960). Esta explicação perde, na nossa opinião, o alvo. Os nossos antepassados recentes viveram com a Grande Depressão e duas Guerras Mundiais, sem antibióticos, sem anestésicos, e sim – até mesmo durante uma pandemia. A nossa vida é realmente mais estressante … ou … é a nossa resiliência mais baixa?

A nossa alimentação atual. Estudos recentes mostram que não estamos consumindo uma dieta tão saudável como os nossos antepassados consumiam. Por exemplo, nos últimos 50 anos, as pessoas nas sociedades ocidentais reduziram a sua ingestão de minerais e vitaminas (que chamaremos “micronutrientes”) em mais de 50%! Qual a razão de alguém optar por fazer isso?

Não pensamos que seja uma escolha consciente – é que as pessoas habituaram-se a consumir principalmente alimentos ultra-processados (AUP) – coisas que se parecem com alimentos mas que são principalmente uma mistura química de coisas como gorduras, carboidratos simples (açúcar) e sal. O problema é que estes artigos embalados têm muito poucos minerais ou vitaminas. Será isso importante para a saúde do nosso cérebro? SIM! Para que o nosso cérebro trabalhe no seu melhor, precisa de mais de 30 micronutrientes por minuto de cada dia da nossa vida. E os AUPs não os podem fornecer.

Como lidamos com o estresse. Uma das premissas subjacentes do livro é que as pessoas não mudam o seu comportamento apenas porque lhes é dito “vai ser bom para vocês”. Assim, uma grande prioridade dos primeiros capítulos é explicar por que devemos todos evitar AUPs e aumentar a nossa ingestão de alimentos completos, e como fazê-lo de forma pouco dispendiosa. Também fornecemos um resumo das provas que comprovam que a recente tendência para confiar nos AUPs é provavelmente responsável pela redução da resiliência e pelo aumento dos problemas de saúde mental. Apoiamos este argumento de muitas maneiras neste livro, e aqui vamos focar apenas numa: o tratamento nutricional do estresse pós-traumático.

Estresse pós-traumático. Catástrofes, tanto naturais (por exemplo, terremotos, inundações) como de origem humana (por exemplo, terrorismo, tiroteios em massa) afetam comunidades em todo o mundo, causando frequentemente imenso sofrimento e efeitos psicológicos a longo prazo. Julia vive e trabalha em Christchurch, Nova Zelândia, que teve a sua parcela de traumas, mas que também lhe proporcionou a oportunidade de estudar o efeito dos nutrientes na nossa resiliência.

Por exemplo, a 22 de fevereiro de 2011, Christchurch sofreu um devastador terremoto de 6,3 magnitude que matou 185 pessoas e destruiu o centro da cidade. Mas por muito terrível que tenha sido, este trauma deu ao seu Laboratório de Saúde Mental e Nutrição da Universidade de Canterbury a oportunidade de saber se os micronutrientes poderiam ajudar as pessoas a se recuperar, não das lesões físicas, mas das psicológicas.

Eis a lógica para explorar essa questão. Quando estamos sob grande estresse, mesmo aqueles de nós que evitam AUPs frequentemente procuram alimentos de “conforto” (como biscoitos, donuts) que são normalmente ricos em calorias, mas pobres em nutrientes. Mas o que é que o nosso cérebro está fazendo ao mesmo tempo durante esse elevado grau de estresse? Nessas ocasiões, o nosso sistema natural de resposta ao alarme responsável pela luta ou pela fuga é ativado. Produtos químicos como a adrenalina e o cortisol são liberados, permitindo-nos chegar à segurança, desligar funções não essenciais, e garantir que os músculos de que precisamos para voar ou voar são ativados. Infelizmente, durante longos períodos de tempo, o sistema de alarme pode entrar em excesso de velocidade, e este é um fator que pode levar à reexperiência de memórias, tendo flashbacks, sendo hipervigilante e em pânico o tempo todo, sentindo-se ansioso e em pânico quando lembrado do evento traumático. Inevitavelmente, distúrbios do sono e pesadelos tornam-se comuns.

Mas enquanto este elevado estresse está ocorrendo, e os seus sistemas de alarme estão sendo ativados, o seu cérebro e corpo usam um sistema de triagem para desviar nutrientes para as necessidades urgentes e agudas de luta ou fuga. Ou seja, muitas funções em curso podem ser relativamente negligenciadas – tais como regulação do humor, crescimento, reparação do ADN e clareza da cognição.

A produção de neurotransmissores (como a dopamina ou a serotonina) e hormônios (como o cortisol) requer micronutrientes, que são numerosos tipos de vitaminas e minerais, como o zinco, cálcio, magnésio, ferro, e todas as vitaminas B, vitamina C. Este é um fato científico bem estabelecido. Se o seu corpo estiver esgotado destes nutrientes, então ou não terá nutrientes suficientes para produzir estes produtos químicos essenciais, ou redirecionará todos os recursos para a resposta de combate-fuga (pois é tão vital para a sobrevivência) e não restará muito para assegurar uma função cerebral ótima para fazer coisas como concentrar, regular o humor e dormir.

Terremotos e uma inundação. Talvez faça sentido agora que à medida que os micronutrientes se esgotam a um ritmo elevado durante períodos de estresse, precisamos de os repor em maior quantidade a partir dos nossos alimentos (e talvez de outras fontes). Julie estudou isto após os terremotos de Christchurch e com Bonnie durante a cheia do sul de Alberta, e queremos que as pessoas tomem consciência disso durante a pandemia. E a propósito, durante dois dos nossos estudos, descobrimos também que as vitaminas B em particular podem ser úteis na redução do estresse.

Tiroteio em massa. E depois aconteceu outro evento. Em 2019, um pistoleiro entrou em duas mesquitas em Christchurch e matou 51 pessoas enquanto feria outras 40. Mais uma vez essa cidade e o seu povo estavam a lidar com um enorme trauma. Como aplicação da ciência translacional, o laboratório de investigação de Júlia ofereceu nutrientes doados a qualquer pessoa que tenha sobrevivido aos tiroteios e monitorou os seus sintomas como uma ação tanto ética como padrão para um bom tratamento clínico.

Em poucas semanas, estavam acompanhando clinicamente 26 pessoas que se tinham apresentado, e viram exatamente o mesmo efeito de tratamento que ambos tínhamos visto após os terramotos e as inundações. Nem todos, mas muitas pessoas melhoraram. Estas observações clínicas acabam de ser publicadas na revista da APA, International Perspectives in Psychology: Research, Practice, Consultation.

Aqui estão alguns dos detalhes do tratamento do massacre na mesquita. Antes de iniciar o tratamento, 77% dos 26 participantes originais encontraram-se ou excederam uma pontuação de corte que define o provável TEPT. Após uma média de cinco semanas, esta taxa caiu para 23 por cento. Por outras palavras, de todas as pessoas que provavelmente tinham TEPT, quase três quartos apresentaram uma melhoria substancial e clinicamente significativa após cerca de um mês de tratamento com micronutrientes. O estresse foi reduzido para a faixa não-clínica normal, semelhante à investigação controlada após os terremotos e uma inundação:

Gráfico de dados pós-catástrofe: Note-se que os três grupos de pessoas que receberam uma fórmula de largo espectro de minerais e vitaminas reduziram o seu estresse para a faixa normal em apenas 4-6 semanas. Em contraste, nos dois grupos que não receberam os micronutrientes de largo espectro, o referido estresse permaneceu no intervalo elevado.

Resumo dos estudos pós-traumáticos. A conclusão que retiramos desta linha de investigação pós-catástrofe é que o fornecimento de micronutrientes aos sobreviventes parece reduzir o sofrimento psicológico a um grau clinicamente significativo. Estes três exemplos diferentes de eventos traumáticos ilustram o poderoso efeito que os nutrientes podem ter na recuperação e na melhoria da resiliência. Poderiam estes resultados aplicar-se aos desafios associados às alterações climáticas e pandemias? Pensamos que sim. Qualquer coisa que possa melhorar a nossa resiliência para lidar com eventos estressantes em curso tem de ser uma coisa boa de se saber.

Obstáculos. O caminho para convencer os governos a ajudar as pessoas com micronutrientes tem sido um grande desafio. Por exemplo, Julia escreveu uma descrição publicada no New Zealand Medical Journal no ano passado, descrevendo como, após os ataques à mesquita, enfrentaram enormes dificuldades na divulgação dos resultados da investigação sobre o terramoto e as inundações, e as barreiras que em grande parte impediram a sua tradução na prática. Ela observou um sistema de saúde inflexível incapaz de implementar investigação baseada em evidências, e comités de ética incapazes de responder rapidamente a fim de facilitar a investigação na sequência imediata do desastre, quando a angústia e o stress estão no seu auge.

Em Alberta, a experiência de Bonnie foi semelhante. Na sequência da publicação dos resultados do terremoto e das inundações, houve um incêndio florestal maciço no Norte de Alberta em 2016. Mais de 90.000 pessoas tiveram de abandonar as suas casas em Fort McMurray e arredores. Muitas viviam em dormitórios universitários espalhados pela província e não foram autorizadas a regressar às suas casas durante vários meses. Bonnie abordou vários funcionários do governo e do sistema de saúde provincial, pedindo que fossem dados micronutrientes às pessoas para mitigar o impacto psicológico do trauma. Mesmo tendo conseguido basear a sua proposta em dados locais e provinciais, todas as suas sugestões foram rejeitadas – mesmo a ideia de apenas mencionar às pessoas que poderiam querer tomar um complexo B barato após o café da manhã todos os dias.

Implicações futuras mais vastas. É importante compreender que os estudos pós-traumáticos aqui descritos são apoiados por outros estudos do Reino Unido, Bélgica, África do Sul, etc., todos os quais mostraram que a suplementação nutricional pode aumentar a resiliência. Isto não deve surpreender os leitores aqui presentes, pois muitos já sabem a verdade do que dissemos na nossa primeira frase: a nutrição é a base da resiliência.

No BETTER BRAIN concluímos com um capítulo chamado “Uma visão para um amanhã mais feliz e mais saudável”. Enfatizamos primeiro a alimentação como a forma de melhorar a nossa resiliência. Apresentamos uma abordagem em três etapas para melhorar a resiliência da saúde mental que reconhece que não somos todos iguais, que as diferenças individuais influenciarão a eficácia dos diferentes tratamentos, e há um lugar na “caixa de ferramentas de tratamento de saúde mental” para todos os tratamentos baseados em provas: estes incluem dietas alimentares integrais, micronutrientes, aconselhamento, terapia familiar e medicação. E defendemos que a nutrição deve estar em primeiro lugar, porque fornece a base para todos os outros.

O título proposto para o nosso livro era Hidden Brain Hunger (Fome do Cérebro Escondido) antes de ser alterado para The Better Brain (O Cérebro Melhor). Pensamos que isto descreve adequadamente o cérebro moderno dos nossos dias.

Nutrição e Saúde Mental: Bonnie publicou sobre a base biológica da saúde mental – em particular, a contribuição da nutrição para o desenvolvimento e função cerebral, tratamentos com micronutrientes para distúrbios mentais, e o efeito da nutrição intra-uterina no desenvolvimento cerebral e na saúde mental materna.
Nutrição e Saúde Mental: O interesse de Julia em nutrição e doenças mentais cresceu a partir da sua própria investigação mostrando maus resultados para crianças com doenças psiquiátricas, apesar dos tratamentos convencionais. Ela tem investigado o papel dos micronutrientes nas doenças mentais.

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