Estudo Confirma o Sobrediagnóstico do TDAH em Crianças e Adolescentes

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Um novo estudo descobriu que o TDAH é sobrediagnosticado em crianças e adolescentes. Diagnósticos crescentes nas pessoas com sintomas ligeiros podem levar a que as crianças sejam expostas aos danos dos medicamentos estimulantes sem qualquer benefício.

 

“Foram encontradas provas convincentes de que o TDAH é sobrediagnosticada em crianças e adolescentes,” concluem os investigadores. “Para indivíduos com sintomas mais leves, em particular, os danos associados a um diagnóstico de TDAH podem muitas vezes superar os benefícios.”

Os investigadores foram liderados por Luise Kazda na Universidade de Sidney, Austrália, e publicados em JAMA Network Open.

Os investigadores reconhecem que há muitas formas em que o diagnóstico de TDAH é problemático. A expansão da categoria de diagnóstico no DSM 5 aumentou o potencial de sobrediagnóstico (para crianças que satisfazem menos critérios, por exemplo). Observam também que os comportamentos que em tempos foram considerados normais para crianças têm sido cada vez mais medicalizados e considerados provas de “doença”.

No entanto, o estudo atual deles centra-se apenas na ideia de sobrediagnóstico, expandindo o diagnóstico a crianças que não retirarão nenhum benefício do tratamento, mas que podem ser prejudicadas.

Os investigadores notam que o sobrediagnóstico do câncer é bem conhecido na literatura da investigação. Disso resultou um quadro para avaliar o sobrediagnóstico noutras condições (tais como condições cardíacas), e os investigadores aplicaram esse quadro ao estudo atual.

Para satisfazer os critérios de sobrediagnóstico com base neste quadro, cinco condições devem ser satisfeitas:

  1. Potencial para aumentar o diagnóstico;
  2. O diagnóstico aumentou;
  3. O recém-diagnosticado tem sintomas ligeiros ou “subclínicos”;
  4. Os recém-diagnosticados recebem tratamento; e
  5. Os danos do diagnóstico e do tratamento podem ser superiores aos benefícios.

Os investigadores examinaram 334 estudos, tendo cada um deles fornecido dados sobre pelo menos uma das cinco condições. Verificaram que as cinco condições eram todas apoiadas por esta pesquisa.

Como não existe teste biológico para o TDAH, e o diagnóstico é aplicado subjetivamente através da idade, sexo, raça e estatuto socioeconômico, há espaço para o diagnóstico se expandir. Além disso, à medida que os critérios de diagnóstico são afrouxados, as taxas de TDAH têm aumentado. Os investigadores confirmaram que uma grande proporção dos novos casos se encontra no extremo do espectro enquanto “suave”. As taxas de tratamento estimulante para TDAH também aumentaram, incluindo os casos de TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

Segundo os investigadores, houve também provas significativas de danos após o diagnóstico. Eles escrevem: “Em 22 estudos, foi demonstrado que uma visão biomédica das dificuldades estava associada ao ‘desempoderamento’.” Além disso, o diagnóstico “pode também desviar-se de outros problemas individuais, sociais ou sistêmicos subjacentes.”

Os investigadores descobriram que receber um diagnóstico de TDAH também aumenta a estigmatização: “O diagnóstico pode criar uma identidade que reforça o preconceito e o julgamento, que estão associados a sentimentos ainda maiores de isolamento, exclusão e vergonha.”

Os investigadores também verificaram que o tratamento, particularmente os medicamentos estimulantes, era ineficaz e potencialmente prejudicial, especialmente para as crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

“Apenas 3 estudos relataram um seguimento a longo prazo para além do tratamento inativo, não encontrando nenhuma diferença nos sintomas entre os jovens que foram tratados e os que não foram tratados na vida posterior. Outro estudo não encontrou nenhuma diferença nos sintomas após um período de 48 horas de washout. Como danos, o tratamento ativo foi geralmente associado a eventos adversos leves e moderados, assim como a altas taxas de descontinuação.”

Os investigadores escrevem que os médicos, pais e professores devem estar atentos ao potencial de sobrediagnóstico. Especialmente para crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”, os danos do diagnóstico e da medicação provavelmente ultrapassam quaisquer benefícios potenciais. Recomendam uma abordagem de vigilância e espera para casos mais suaves – semelhante à recomendada para alguns casos de câncer de baixo risco, que também são atormentados pelo sobrediagnóstico.

Os pesquisadores escrevem:

“As nossas descobertas têm implicações para estes indivíduos, que podem ser prejudicados pelo sobrediagnóstico e pelos efeitos adversos da medicação durante a infância, na adolescência e mesmo na idade adulta. Estas descobertas são também relevantes para o número crescente de adultos que são recentemente diagnosticados com TDAH e podem ser aplicáveis a outras condições, tais como o autismo.”

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Kazda, L., Bell, K., Thomas, R., McGeechan, K., Sims, R., & Barratt, A. (2021). Overdiagnosis of attention-deficit/hyperactivity disorder in children and adolescents: A systematic scoping review. JAMA Network Open, 4(4), e215335. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.5335 (Link)

A “Uberização” do Trabalho no Brasil

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O artigo “Do Sujeito à Sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia do trabalho em contexto de pandemia pela Covid-19”, publicado na revista Laborativa, levantou algumas reflexões críticas acerca do impacto da pandemia para o trabalhador brasileiro. O embasamento do artigo se deu por uma revisão da literatura científica sobre o assunto e pelas publicações de entidades oficiais, tanto nacionais como internacionais.

A precarização do trabalho no Brasil foi acentuado pela atual crise sanitária do Coronavírus, tornando o contexto trabalhista um local relevante para as observações de certos fenômenos sociais. Enquanto o vírus pode contaminar qualquer pessoa, não atinge as pessoas da mesma forma. Certas categorias profissionais estão mais expostas e vulneráveis ao risco de contaminação que outras.

Desde a década de 80/90 há uma ofensiva neoliberal que ultrapassa as práticas político-econômicas e atingem a subjetividade dos sujeitos, ou seja, suas formas de sentir, pensar e agir. Há uma dominância de um certo “sujeito-empresa” que compete com os outros e consigo mesmo, e ao qual é atribuída a responsabilidade integral dos êxitos e fracassos no trabalho. Uma forma de individualizar questões sócio-históricas.

Outros fenômenos atuais é a “uberização” do trabalho. O trabalho informal no Brasil vem crescendo há alguns anos, e como consequência os trabalhadores estão mais vulneráveis. Aqueles que trabalham para aplicativos, por exemplo, são considerados prestadores de serviço e não mais funcionários da empresa. As empresas já não se responsabilizam pelos trabalhadores como antes, mas são os próprios trabalhadores os responsáveis por si mesmos e por seu material de trabalho.

O uso do “empreendedorismo” para se referir ao trabalho informal disfarça a verdadeira natureza desse tipo de trabalho, criando a sensação de liberdade por parte do trabalhador. Esta liberdade é explorada pelo capital e se caracteriza por uma autoexploração do sujeito que busca sempre produtividade e desempenho, mesmo sem a pressão externa de um patrão.

“Isso ocorre porque as diversas instâncias de poder, que outrora
dominavam através da violência, coerção, disciplina e imperativos de
obediência, no modelo neoliberal, se deslocam para espaços invisíveis,
desaparecem, como é o caso de empresas-aplicativos; os sujeitos
deixados a mercê de suas próprias iniciativas, acreditam estar libertos das
ações coercitivas exercidas por essas instâncias de poder; ao se verem
livres, os membros desse modelo de sociedade partem em suas jornadas
individuais, a fim de encontrar maneiras de, eles mesmos, acumularem
seu próprio capital (HAN, 2018; 2015).”

Quando o neoliberalismo desloca as instâncias de poder para espaços invisíveis (já não é mais o chefe, a empresa, instituição…), o sujeito acredita ser o seu próprio chefe, individualizando as questões do âmbito do trabalho, o que acaba dificultando as possibilidades de resistência.

Como consequência da acentuação do processo de precarização do trabalho durante a pandemia, os efeitos negativos na saúde mental dos trabalhadores também serão acentuadas nesse período. Os autores concluem ser necessário resgatar a função social do Estado, reconhecer a importância das Políticas Públicas e recuperar o valor do Sistema Único de Saúde (SUS). Sem o auxílio do Estado as consequências da Pandemia seriam muito maiores.

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GUIMARÃES JUNIOR, S.D.; GONÇALVES,L.R; CARDOSO,A.J.S. Do sujeito à sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia organizacional e do trabalho em contexto de pandemia pela COVID -19. R. Laborativa, v. 10, n.1, p. 40- 67, abr./2021 (Link)

Interrupção de Antipsicóticos Melhora o Funcionamento Cognitivo

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Os investigadores encontraram mais provas de que o efeito anticolinérgico dos medicamentos psiquiátricos pode levar a deficiências cognitivas. Um estudo de pessoas com esquizofrenia avaliou a carga anticolinérgica dos seus medicamentos e comparou-a com o funcionamento cognitivo delas

“A carga dos medicamentos anticolinérgicos associados a drogas psicotrópicas na esquizofrenia é substancial, comum, e presente em múltiplas classes de drogas psiquiátricas, incluindo os antipsicóticos”, escrevem os investigadores.

Esse estudo foi publicado no American Journal of Psychiatry, sob coordenação de Yash B. Joshi na Universidade da Califórnia, San Diego.

Os investigadores incluíram 1.120 pacientes, todos eles com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizo-afetivo. Eles utilizaram o instrumento carga cognitiva do anticolinérgico [Anticholinergic Cognitive Burden] (ACB) para medir a que quantidade de carga anticolinérgica que os participantes foram submetidos. Os medicamentos com um efeito anticolinérgico baixo ou mínimo foram classificados como 1, os com um efeito médio foram classificados como 2, os com efeito forte foram considerados como sendo 3. Todos os medicamentos que uma pessoa estava tomando foram somados para produzir um único número.

A carga média anticolinérgica para os participantes no estudo foi de 3,8. Vinte e cinco por cento dos participantes tiveram uma pontuação de pelo menos 6. Em média, cada participante esteva consumindo dois medicamentos antipsicóticos diferentes.

Os investigadores descobriram que a carga anticolinérgica esteva significativamente associada a um menor desempenho cognitivo em todos os domínios da Bateria Neurocognitiva Computorizada Penn (PCNB), bem como em outras medidas cognitivas. Os investigadores controlaram uma série de outros fatores e descobriram que os seus resultados ainda eram robustos.

Os autores citam dados de um estudo que incluiu adultos saudáveis que descobriram que uma pontuação ACB de 3 estando ligada a uma deficiência cognitiva e a um risco 50% maior para o desenvolvimento de demência.

“Tais pontuações não são difíceis de serem alcançadas nos cuidados psiquiátricos de rotina. Por exemplo, um paciente para quem é prescrita diariamente olanzapina para sintomas de psicose teria uma pontuação ACB de 3; se a hidroxizina também for prescrita para ansiedade ou insônia, a pontuação ACB do paciente subirá para 6,” escrevem eles.

Outros estudos também descobriram que a deficiência cognitiva pode ser causada por medicamentos psiquiátricos, particularmente aqueles com um elevado efeito anticolinérgico. De fato, os estudos descobriram que a cognição melhora efetivamente quando uma pessoa interrompe o tratamento com fármacos.

Os autores sugerem que “os esforços para limitar ou evitar a carga excessiva de medicamentos anticolinérgicos – independentemente da fonte – podem ter um impacto benéfico nos resultados cognitivos na esquizofrenia.”

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Joshi, Y. B., Thomas, M. L., Braff, D. L., Green, M. F., Gur, R. C., Gur,  R. E., . . . & Light, G. A. (2021). Anticholinergic medication burden–associated cognitive impairment in schizophrenia. American Journal of Psychiatry. Published Online 14 May 2021. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2020.20081212 (Link)

Allen Frances assume haver um excesso de prescrição de antidepressivos

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Doctor Handing Pills Through Laptop.

O eminente psiquiatra Allen Frances escreveu recentemente um artigo explorando as razões para a prescrição excessiva de antidepressivos.

Ao escrever no HealthWatch Newsletter, Frances explica que a corrupção na indústria já não é o único fator por detrás do uso de antidepressivos, dado que muitos dos medicamentos estão agora sem patente e, portanto, menos lucrativos para as empresas farmacêuticas. Se os defensores da saúde pública quiserem reduzir os danos causados por receitas médicas inadequadas, outras razões devem ser identificadas.

Doctor Handing Pills Through Laptop.

Apesar da crescente popularidade e utilização de antidepressivos, a investigação científica tem levantado sérias dúvidas quanto à sua eficácia para a depressão. A corrupção na indústria tem sido uma das principais razões por detrás da sua popularidade contínua. A prática da utilização da escrita fantasma [‘ghostwriter’], conclusões enganosas, campanhas de relações-públicas, etc., têm sido utilizadas para empurrar os antidepressivos para o mercado, apesar das preocupações sobre a eficácia e a segurança da sua utilização a longo prazo.

Outros estudos já levantaram preocupações sobre a retirada e os efeitos secundários causados pelos antidepressivos. O reconhecimento dos efeitos da abstinência tem sido visto como uma vitória para os usuários de serviços que, apesar de anos sendo dito que os sintomas de abstinência são suaves e de curta duração, há muito tempo insistem que as suas vozes fossem ouvidas. Tudo isto levou a um foco crescente em ajudar os doentes a retirarem-se destes medicamentos em segurança, com os especialistas a sugerirem meses de lenta interrupção.

Frances escreve este novo artigo em um momento em que a discussão sobre a eficácia e segurança dos antidepressivos recebem a atenção da sociedade, pelo menos em países como o Reino Unido. Após ter sido presidente da força tarefa do DSM IV, Frances tornou-se um crítico feroz do excesso de diagnóstico e da prescrição descontrolada na psiquiatria. Ele escreveu numerosos livros e artigos criticando os critério de diagnóstico e uma inclusão, sem escrúpulos, no DSM-5, de diversas categorias de diagnóstico.

Frances escreve que apesar destas drogas não estarem protegidas por patentes, o seu uso tem crescido exponencialmente nos EUA e no Reino Unido. Ao mesmo tempo, há poucos indícios que sugiram que os transtornos psiquiátricos tenham aumentado para se justificar tal aumento na prescrição. Ele apresenta várias razões para este aumento.

Primeiro, observa que a maioria dos prescritores são médicos da clínica geral, que não conhecem muito bem os seus pacientes e que muitas vezes só os veem em um dia em que o paciente está no meio de um profundo sofrimento. Dada a falta de historial com o paciente, eles podem sentir-se pressionados a prescrever antidepressivos para tratar os sintomas imediatos.

Frances escreve que metade dos pacientes que começam a tomar os medicamentos ficam fazendo uso deles por pelo menos dois anos, e que muitos ficarão com eles durante décadas. Para as pessoas com sintomas ligeiros ou moderados, esta é “a pior prática”, dado que a maioria destes sintomas teriam se dissipado com o passar do tempo, com alguma ajuda para a redução do estresse ou quando o próprio agente de estresse desapareceu.

Ele observa que existem duas razões principais para as pessoas permanecerem em antidepressivos durante anos. A primeira é o efeito de uma má atribuição ao que ocorre. As pessoas que começam a sentir-se melhor, após tomarem os antidepressivos, podem assumir ser devido aos medicamentos é que se sentem melhor. Geralmente, as pessoas com sintomas ligeiros teriam apenas começado a sentir-se melhor com o tempo ou à medida que o evento estressante seja resolvido por si próprio. Assim, visto que acreditam que estes comprimidos funcionam, é difícil para eles parar de consumir os antidepressivos.

A segunda razão importante para o uso continuado são os próprios sintomas de abstinência. Frances observa que os pacientes podem experimentar sintomas debilitantes de abstinência quando param os seus antidepressivos. Ele escreve:

” A abstinência pode ser muito desagradável e assustadora, causando letargia, tristeza, ansiedade, irritabilidade, problemas de concentração, problemas de sono, pesadelos, ‘sintomas de gripe’ náuseas, tonturas, e sensações estranhas.”

Dado que não existe informação suficiente sobre a gravidade da retirada de antidepressivos na comunidade médica e no público leigo, a abstinência é frequentemente confundida com recaída, resultando num círculo vicioso de prescrição da medicação a longo prazo.

Ele problematiza ainda a sua crescente utilização em crianças e adolescentes, apesar das provas de que os antidepressivos podem estar ligados a taxas mais elevadas de suicídio. Frances sustenta que os antidepressivos são benéficos para a depressão grave, onde placebo e psicoterapia podem falhar. Segundo Frances, se pudermos assegurar corretamente que apenas aqueles com sintomas graves recebam antidepressivos, e que os outros sejam tratados com o tempo ou com uma psicoterapia, estaríamos no caminho certo.

Frances escreve que a resposta placebo é poderosa para pessoas com sintomas mais suaves e moderados. Por outras palavras, estas pessoas se beneficiam apenas de pensar que estão tomando antidepressivos; mas que a depressão grave pode exigir o uso real de antidepressivos.

Como solução para este problema crescente de prescrição excessiva, sugere que os médicos dediquem tempo a conhecer e a compreender os seus pacientes, e a assegurar que os sintomas mais suaves sejam tratados com uma espera vigilante, técnicas de redução do estresse e conselhos. A depressão moderada deve ser primeiro tratada com psicoterapia em vez de medicação.

Mas o diagnóstico da depressão também pode ser complicado. Como Frances observou a inflação de diagnósticos e os limiares reduzidos para diagnosticar a depressão fazem com que cada vez mais pessoas se encaixem nas categorias psiquiátricas. A utilização de inventários de auto-relatos, sendo comuns entre os médicos da clínica geral, contribui fortemente para o excesso de diagnósticos, levando à medicalização. A utilização de instrumentos de rastreio deve ser restringida para grupos de alto risco, tais como pessoas com antecedentes de comportamento suicida.

Frances termina o seu artigo observando que, embora a formação de médicos generalistas e o fato de estes levarem tempo para conhecer os seus pacientes seja algo dispendioso e demorado, a longo prazo isso protege os pacientes dos danos de medicamentos desnecessários. Por último, para aqueles que conseguem superar a sua depressão por outros meios, também proporciona uma sensação de força e resistência.

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Frances, A. J. (2021 April 22). Why are antidepressants so overprescribed? And what to do about it? NewsWatch115, 4-5 (Link)

Reforma Psiquiátrica e a Internação Involuntária no Brasil

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No ‘blog’ anterior, propus um conjunto de reflexões que giraram em torno da seguinte pergunta: “Por que não há no Brasil movimentos organizados de ‘ex-usuários’ ou ‘sobreviventes’ da Psiquiatria?”. A pergunta ganha um sentido mais amplo se for lida tendo como plano de fundo as experiências internacionais de movimentos de ‘ex-usuários’ e ‘sobreviventes’ da Psiquiatria. Graças a esses movimentos, demandas organizadas desafiam o ‘mainstream’ da Psiquiatria, e nas brechas abertas pela desconstrução das suas bases sementes de esperança vêm sendo plantadas e os resultados começam a desabrochar.

Nos últimos anos, em eventos organizados pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS), tivemos oportunidade de receber vários “intelectuais orgânicos” de ponta entre os “sobreviventes da Psiquiatria” ao nível internacional. Nomes como Laura Delano, Olga Runciman, Will Hall e Peter Groot, para ficarmos com apenas quatro exemplos. Embora a cada um de esses nomes possamos associar referências bio e bibliográficas diversas, para fins didáticos irei inserir alguns poucos links a cada um.

Laura Delano, estadunidense, que aos 13 anos da sua vida iniciou uma carreira de paciente psiquiátrica que durou 14 anos. Laura Delano se libertou da psiquiatria, por isso se considera uma “sobrevivente” psiquiátrica, e com o seu ‘know-how’ de experiência de vida, ajuda a que milhares de pessoas se libertem da psiquiatria como ela conseguiu. Laura esteve conosco em diversas ocasiões, por exemplo no II Seminário Internacional a Epidemia das Drogas Psiquiátricas, em outubro de 2018, na ENSP (conferir a partir de 3:21:00).

Olga Runciman (dinamarquesa), foi vítima do sistema psiquiátrico durante mais de uma década, com diagnóstico de esquizofrenia, com longos períodos de internação e algumas tentativas de suicídio. Ao se libertar da psiquiatria, Olga é hoje psicoterapeuta, com o seu ‘know-how’ ajuda pessoas com transtornos psicológicos graves a atravessarem sua condição de paciente. Olga criou o movimento de ouvidores de vozes na Dinamarca. Olga participa de várias organizações internacionais, como o International Institute for Psychiatric Drugs Withdrawal (IIPDW) do qual ela é diretora. Olga esteve aqui no Brasil conosco em diversas ocasiões convidada por nós, como em um evento na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em 09/06/15.

Will Hall, estadunidense, diagnosticado com esquizofrenia, que conseguiu se libertar da Psiquiatria. Hoje é um dos maiores especialistas mundiais com a retirada das drogas psiquiátricas.

Finalmente, mais um nome, desta vez Peter Groot (holandês), após haver sido diagnosticado com depressão ele passou a ser dependente químico dos antidepressivos. Peter Groot desenvolveu junto com o psiquiatra Jim van Os, as chamadas “tiras de afunilamento” (‘tapering strips’), uma tecnologia revolucionária que permite que as doses das drogas psiquiátricas possam ser reduzidas de forma lenta, gradual, segura, com o mínimo de efeitos de ‘abstenção’. Peter Groot esteve no nosso 3 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas.

O que há em comum? Primeiramente, que ao contrário do senso-comum, quem tem um diagnóstico psiquiátrico, mesmo que seja de esquizofrenia, ter passado anos internado em um hospital psiquiátrtico, isso não implica que ele/ela terá que passar a sua vida em tratamento psiquiátrico, como “usuário” da psiquiatria. Portanto, não se trata de uma condição irreversível, crônica, uma condenação a ser paciente psiquiátrico. Em segundo lugar, a sociedade tem muito a ganhar quando os “usuários” da Psiquiatria deixam de ser “usuários”, seja do diagnóstico, seja do tratamento psicofarmacológico, ou mesmo da sua condição de beneficiário de algum programa social por incapacidade ou deficiência.

Pensando em termos do Brasil, apesar dos inegáveis avanços alcançados com o processo de reforma psiquiátrica, seus limites são estruturais. Isso apenas ganha visibilidade quando voltamos o nosso olhar para as demandas dos movimentos internacionais de “ex-usuários” e “sobreviventes” da Psiquiatria. Eis algumas das limitações da reforma psiquiátrica brasileira, que chamo de estruturais porque encontram as barreiras do “modelo biomédico” da Psiquiatria.

  • Não há o “Consentimento Informado” enquanto um direito do usuário em ser informado sobre o tratamento que lhe está sendo proposto, os prognósticos, alternativas de tratamento existentes.
  • Não há no Brasil serviços no território que ofereçam à sociedade opções de tratamento sem o uso de drogas psiquiátricas.
  • Não há no Brasil serviços especializados que deem suporte para o processo de retirada das drogas psiquiátricas para os usuários que queiram deixar a dependência química aos medicamentos prescritos.

Começo com este ‘blog’ apresentando o quadro da situação da assistência psiquiátrica no Brasil. Inicialmente (I), irei explicitar o que estou considerando por “modelo biomédico” da Psiquiatria. Em seguida (II), irei analisar a problemática da internação involuntária no país. Por que ainda hoje é um direito do médico/psiquiatra decidir se alguém deve ou não ser internado contra a sua vontade?

  1. O modelo biomédico da Psiquiatria

Para que possamos falar a mesma linguagem, que nos coloquemos de acordo com o que é “modelo biomédico” usado pela Psiquiatria. Entende-se por “modelo biomédico” da Psiquiatria aquela abordagem que considera as perturbações psíquicas como sendo doenças do cérebro e que enfatiza o tratamento psicofarmacológico para atacar as supostas anomalias biológicas (Deacon, 2013).

Este modelo de abordagem dos problemas psíquicos não é apenas o principal quadro de referência para os profissionais de saúde, mas também para os pesquisadores, a Justiça, os gestores dos serviços, os formuladores de políticas de saúde, e muito particularmente para os usuários e a sociedade em geral.

A sua versão mais popular é o modelo “biopsicossocial” ou “vulnerabilidade-estresse” (Read & Sanders, 2010). A sua concepção básica é que as pessoas nascem com algum tipo de vulnerabilidade ou predisposição biológica, e os fatores de estresse psicossocial – como a pobreza, a violência sexual, física ou psicológica, o luto, o desemprego, a discriminação racial, por exemplo – podem desencadear uma doença (transtorno) mental. Justifica-se o tratamento biopsicossocial porque supostamente se estaria trabalhando na articulação entre o biológico e o psicossocial (Chiaverini, 2011; Fortes et al., 2014). O pressuposto para seduzir os corações e as mentes é que a estratégia mais eficaz para tratar pacientes com perturbações psiquiátricas deve ser o tratamento psicofarmacológico + psicoterapia + reabilitação social – (Hyman S, Chisholm D, Kessler R, Patel V, 2006).

Contudo, existe um problema gigantesco que afeta tanto o “modelo biomédico” puro como a sua versão “vulnerabilidade-estresse” ou “biopsicossocial”: não há provas de que as perturbações psiquiátricas sejam uma “doença”, que os fatores biológicos seriam a causa, se não uma causa que contribua para o “transtorno”. O Dr. Steven Hyman, antigo diretor do maior organismo mundial de financiamento da investigação em saúde mental, o National Institute of Mental Health (NIMH), sediado nos Estados Unidos, disse: “Epidemiologia, genética, psicologia e neurociência não foram amáveis para as categorias do DSM-IV, nem estas categorias foram amáveis para a ciência. O DSM-III-R foi um avanço brilhante que deu prioridade à fiabilidade entre os médicos, agora é tempo de seguir em frente” (Hyman, 2010).

É digno de nota o que Allen Frances, que liderou a força-tarefa do DSM-IV, tem criticado duramente o DSM-5. Ele sempre demonstrou a sua preocupação com um estreitamento do conceito de normalidade, falsas epidemias impulsionadas pela indústria psicofarmacêutica, a dependência da Associação Psiquiátrica Americana às receitas do DSM-5 e as consequências generalizadas da revisão para pacientes individuais – na medida em que os holofotes serão desviados para longe dos doentes graves, tanto no que diz respeito ao tratamento como à economia” (Frances, 2012). Foi explícito ao afirmar que “o processo DSM-5 tem sido secreto, fechado e descuidado… não há razão para acreditar que o DSM-5 seja seguro ou cientificamente sólido” (Frances, 2013).

Ainda sobre o DSM-5, Thomas Insel, na época diretor do NIMH declarou “Os pacientes com perturbações mentais merecem melhor … Tornou-se imediatamente claro [para o NIMH] que não podemos conceber um sistema baseado em biomarcadores ou desempenho cognitivo porque nos faltam os dados” (Insel, 2013).

O modelo biomédico para distúrbios psicológicos coloniza o nosso “mundo da vida” no sentido habermasiano (Habermas, 2012).

Ou como o Relator Especial da ONU para a Saúde e Direitos Humanos, Dainius Puras, declarou em sucessivas ocasiões. “Os sistemas de saúde mental em todo o mundo são dominados por um modelo biomédico reducionista que utiliza a medicalização para justificar a coerção como prática sistemática e qualifica as várias respostas humanas aos determinantes sociais e estruturais nocivos (tais como desigualdades, discriminação e violência) como ‘perturbações’ que necessitam de tratamento” (Püras, 2017). A hegemonia do modelo biomédico nos cuidados de saúde mental causa numerosos danos, o que justifica o relatório do Puras em 2017 declarando “A necessidade urgente de uma mudança de abordagem deve dar prioridade à inovação política a nível da população, visando os determinantes sociais e abandonando o modelo médico predominante que procura curar os indivíduos, visando as ‘perturbações’ – a nossa ênfase – (Püras, 2017).

Modelo biomédico e a internação psiquiátrica

É o modelo biomédico que orienta e dá base legal ao poder do psiquiatra para decidir por um internamento. O movimento da Luta Antimanicomial não enfrentou corajosamente esse dispositivo corporativo-legal da Psiquiatria. O que significa que qualquer um de nós, você ou eu, podemos ser involuntariamente internados por decisão do psiquiatra.

A internação involuntária está prevista por lei (Lei n. 10.216/2001. Diário Oficial Da União, 9 Abril 2001, 2001). Ela orienta os psiquiatras sobre os procedimentos legais para a admissão involuntária. Inicialmente, no parágrafo único do seu artigo 6, esta lei trata dos três tipos de internamento psiquiátrico: “voluntário”, “involuntário” e a “obrigatória”. A internação obrigatória é determinada pela autoridade judicial, com base no Código Penal e requer um relatório médico pormenorizado. A hospitalização voluntária, como o seu nome sugere, é caracterizada pelo consentimento do paciente para a sua hospitalização. Por sua vez, a hospitalização psiquiátrica involuntária é aquela “realizada sem o consentimento do paciente e a pedido de um terceiro”. Ainda segundo a lei, término da internação involuntária “dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento”. Nos termos da lei, “a internação involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta”.

A ser sublinhado algo da maior relevância para o que estou propondo discutir aqui. É que o poder de decisão é do médico/psiquiatra. Tanto na internação voluntária quanto na involuntária. Segundo o previsto em lei, “a internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento”.

Quais seriam as razões da hospitalização involuntária? É quando o médico/ psiquiatra considera que o “doente mental” está em alto risco de automutilação ou de causar danos a alguém, se não quando pensa que existe uma perturbação grave que compromete a capacidade dele de reconhecer a necessidade de tratamento e de aceitá-lo. É o médico, devidamente registado no Conselho Regional de Medicina, o único profissional autorizado a solicitar a hospitalização psiquiátrica voluntária ou involuntária, para além de endossar a obrigatoriedade.

É um exemplo de jabuticaba brasileira. A privação de liberdade que ocorre com a hospitalização involuntária viola de forma flagrante o que está previsto na Constituição Federal Brasileira, no capítulo V, caput e II. Também nega o artigo 12 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que textualmente afirma que “o consentimento prévio, livre e informado da pessoa com deficiência é indispensável para o tratamento, procedimento, hospitalização e investigação científica“. A exceção prevista no art. 13 da mesma lei estabelece que o critério do risco de morte de si próprio ou de terceiros deve ser obedecido.

Como eu afirmei em alguns parágrafos acima, a reforma psiquiátrica no Brasil, nessas décadas de processo reformista, não enfrentou essa problemática tão crucial para a dignidade de alguém em sofrimento psíquico e relevante em termos de direitos humanos dos usuários de tratamento psiquiátrico.

Vamos ao primeiro quadro conforme o prometido. A referência é o Relatório de Inspeção Nacional em Hospitais Psiquiátricos no Brasil (Conselho Federal de Psicologia et al., 2020). O documento evidencia graves situações de violação de direitos, tratamento cruel, desumano e degradante, assim como indícios de tortura a pacientes com transtornos mentais nessas instituições.

Foi uma iniciativa conjunta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Regionalmente, as inspeções foram coordenadas pelos Conselhos Regionais de Psicologia, Ministérios Públicos Estaduais e Ministérios Públicos do Trabalho (MPT) estaduais.

Ação articulada inédita foi feita entre os dias 3 e 7 de dezembro de 2018. Foram vistoriadas 40 instituições psiquiátricas, em 17 estados das cinco regiões do Brasil. Como é dito no boletim do CFP, ao dar notícia do evento da apresentação dos resultados da pesquisa, “a publicação consolida um importante trabalho de campo, de imersão à realidade vivida do sistema público de saúde a pacientes psiquiátricos”.

O relatório aponta que pelo menos 1.185 pessoas estão internadas em condição de longa permanência nos hospitais psiquiátricos brasileiros. 82,5% dos hospitais inspecionados mantém pessoas moradoras, havendo uma criança de 10 anos e uma idosa de 106 anos nessa condição, ambas mulheres, num mesmo hospital de São Paulo.

O Relatório mostra-nos que, à exceção de dois hospitais, a hospitalização involuntária é a regra principal. Por insônias, inapetência, desajustamento social, desordens de conduta. O mais comum é que não há comunicação ao Ministério Público no prazo de 72 horas, conforme previsto por lei. As hospitalizações de longa duração são as predominantes. É muito comum que as internações voluntárias se transformem em internações involuntárias, o que viola o direito da pessoa a interrompê-las. Descobriram que as hospitalizações voluntárias não são geralmente assinadas pelos próprios usuários, mas por membros da família. A maioria declarou não se encontrar na instituição voluntariamente. Como o relatório afirma, “o consentimento voluntário é constantemente violado na hospitalização, uma vez que dentro dos hospitais psiquiátricos o contraditório não é bem-vindo e pode ser perigoso. O questionamento da ordem atual e das formas de ‘cuidados’, o desacordo com o tratamento, o nervosismo que ocorre em certos contextos, e até uma simples reclamação pode ser colocada ser por causa da ‘loucura’, cuja correção se distancia da gestão clínica (no sentido terapêutico) e torna-se objeto de repressão, sendo o medicamento uma forma mais sutil de anular qualquer manifestação de vontade“.

De acordo com o Relatório, em 33 dos 40 estabelecimentos visitados as pessoas encontram-se em situações de hospitalização prolongada. Os dados mais atualizados são de 2011, mostrando que 9.947 pessoas se encontram nestas condições há mais de 6 meses. Há pessoas com mais de 10 anos de internação.

Este Relatório que acabámos de analisar diz respeito a internações em Hospitais Psiquiátricos.

Concluindo. Esse quadro “chocante”, reforça sem dúvida alguma a necessidade da “luta antimanicomial”, no sentido que ainda hoje todos podemos nos transformar em “usuários” de algum hospital psiquiátrico, não por opção individual, mas porque um médico/psiquiatra assim decide. A consequência disso é que é inadmissível que o poder médico sobre a “internação” continue praticamente inalterado com relação aos tempos em que a assistência hospitalar-asilar era hegemônica em nosso país.

O que há que se aprender com a experiência de vida e o ‘know-how’ de “sobreviventes” da psiquiatria? Certamente que muito. As vozes de companheiros e companheiras como Laura Delano, Olga Runciman, Will Hall, Peter Groot, assim como centenas e centenas de outras e outros. No próprio site do Mad in America, em particular no nosso site, há um farto material de relatos de experiências de “ex-usuários” e dos “sobreviventes” da Psiquiatria.

Tenho três perguntas que irei nos próximos blogs:

  • Por que reforma psiquiátrica resulta em ser reforma da psiquiatria?
  • Ao invés de reforma psiquiátrica, não seria mais adequado se lutar por reformar a assistência em saúde mental?
  • Ou será que temos de acabar com o conceito de saúde mental (que cria uma inevitável polarização doença/saúde precária)?

REFERÊNCIAS

Chiaverini, D. (2011). Guia Prático de Matriciamento em saúde mental. Ministério da Saúde.

Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Conselho Nacional do Ministério Público, & Ministério Público do Trabalho. (2020). Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relatorio_Inspecao_HospPsiq.pdf

Deacon, B. J. (2013). The biomedical model of mental disorder: a critical review of its validity, utility, and effects on psychotherapy research. Clinical Psychology Review, 33, 846–886.

Fortes, S., Menezes, A., Athié, K., & Chazan, L. F. (2014). Psychiatry in the 21th century: changes from the integration with primary health care through matrix support. Physis, 24(4), 1079–1102.

Frances, A. (2012). DSM-5 is a guide, not a bible: simply ignore its 10 worst changes. Huffington. . www.huffingtonpost.com/allen-frances/dsm-5_b_2227626.html

Frances, A. (2013). One manual shouldn´t dictate mental health research. New Scientist. https://www.newscientist.com/article/mg21829163-000-one-manual-shouldnt-dictate-us-mental-health-research/

Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo. São Paulo: Martins Fontes.

Hyman S, Chisholm D, Kessler R, Patel V, W. H. (2006). Mental Disorders. In Jamison D; Breman J; Measham A; Alleyne G; Claeson M; Evans D; Jha P; Mills A; Musgrove P; (Ed.), Disease control priorities in developing countries (2ndl ed., pp. 605–6025).

Hyman, S. (2010). The diagnosis of mental disorders: the problem of reification. Annu Rev Clin Psychol, 6, 155–178.

Insel, T. (2013). Director´s Blog:Transforming diagnosis. https://www.nimh.nih.gov/about/directors/thomas-insel/blog/2013/transforming-diagnosis.shtml

Lei n. 10.216/2001. Diário Oficial da União, 9 abril 2001, (2001).

Püras, D. (2017). Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health. https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G17/076/04/PDF/G1707604.pdf?OpenElement

Read, J., & Sanders, P. (2010). A straight talking introduction to the causes of mental health problems. Ross-on-Wye: PCCS Books.

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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para um debate amplo sobre a psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

Lembrando Jay Mahler

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“Passei 58 anos no sistema público de saúde mental – 10 anos sobrevivendo e 48 a tentando mudá-lo.”

Foi assim que Jay Mahler-psíquico sobrevivente, ativista, líder – descreveu as suas experiências.

Jay Mahler in 2012.

Infelizmente, Jay faleceu esta semana, aos 74 anos.

Jay foi a pessoa mais atenciosa e tenaz que já conheci. Era gentil e amoroso, mas forte de uma forma que poucos podem ser. Era uma força inabalável da natureza, que trabalhava sempre para aliviar o sofrimento e para proteger os direitos humanos de todos, tanto dentro como fora do sistema de saúde.

Fomos amigos e camaradas durante mais de 40 anos, e passamos 28 anos juntos nessa luta lá dentro da barriga da besta, no sistema de saúde mental em Bay Area.

Em 1965, Jay era um estudante universitário com 18 anos que se tornou ativista dos direitos civis e da liberdade de expressão na UC Berkeley. Após ficar sem dormir durante seis dias, ele ficou sobrecarregado emocionalmente, o que o levou a ser hospitalizado.

“Nos anos 60, o sistema de saúde mental não acreditava que aqueles de nós com problemas de saúde mental importantes pudessem se recuperar,” disse Jay numa entrevista de 2012. ” Era uma abordagem muito autoritária, uma espécie de modelo médico. Assim, quando fui hospitalizado, eu não tinha nenhum direito a ter amigos, dar telefonemas, ter visitas… Fui submetido a tratamentos de choque contra a minha vontade, recebi medicamentos contra a minha vontade.”

Jay foi torturado no hospital psiquiátrico, como inúmeros foram e continuam a ser até hoje. Ele disse que o horror de ser amarrado e de receber injeções massivas de Haldol foi secundado pelo terror que experimentou quando tentava em vão durante dias recordar o seu próprio nome após ter sido incessantemente ‘eletrochocado’ com a ECT.

“Houve um período no tratamento por choque em que fiquei completamente sem memória,” disse Jay na entrevista. “Não sabia quem eu era, qual era o meu nome, não sabia onde estava, as percepções eram muito ruins… Era muito aterrador não saber, não ter memória.”

Após experimentar esse sistema autoritário que lhe retirava os seus direitos, Jay dedicou-se a assegurar que os direitos humanos básicos dos outros seriam protegidos. Devido às suas próprias experiências, Jay sentiu que a sua missão de vida era uma busca urgente para impedir que qualquer forma de dano psiquiátrico acontecesse aos outros. Em vez disso, tentou o seu melhor para encontrar uma forma humana de ajuda, que acreditava poder ser melhor proporcionada por pares em quem se pudesse ter confiança para contar com a compaixão.

Ele obteve financiamento para um tal projeto na década de 1970: ‘Preocupações com a Saúde Mental dos Consumidores’, que era gerido por pares e com o apoio dos pares.

Conheci o Jay em 1980 quando fui trabalhar para o santuário de I-Ward sem medicamentos para estados extremos. Jay era o defensor dos direitos dos doentes do hospital do condado de lá. Ele acreditava no santuário radical e curativo I-Ward que nós oferecíamos, mas ele tinha de trabalhar constantemente para proteger aqueles presos no tradicional J-Ward, onde todos eram fortemente medicados e ameaçados de ficarem presos a “n” restrições – tal como o próprio Jay esteve preso.

O nosso amigo e companheiro Pat Risser fazia igualmente parte da coligação que constantemente com Jay se opôs ao poder da NAMI e do pessoal psiquiátrico do condado que queria incrementar o tratamento forçado.

Jay poderia sempre prever o próximo passo da organização – o que fazer para avançar a luta pelos direitos humanos no sistema de saúde mental, que se encontra sempre atolado em várias camadas da política administrativa e local. Reuníamos-nos e formamos uma coligação municipal de saúde mental de todas as partes interessadas, incluindo mesmo a NAMI. O nosso credo era procurar sempre um terreno comum onde todos nos pudéssemos manter unidos. Trabalhou durante décadas para influenciar grandemente os supervisores do condado, que eram os decisores e financiadores em última instância.

Jay Mahler in 2017.

Utilizando o peso da coligação unida, Jay liderou o caminho na obtenção de financiamento para vários centros de apoio e de pessoal, e na conquista de toda uma nova classificação de postos de trabalho na função pública dos Trabalhadores de Apoio Comunitário. Esta era uma nova classe de emprego que passou a ser protegida no grupo local de pessoal de saúde mental do Sindicato dos Trabalhadores que eu representava na coligação. Esses trabalhadores sindicalizados obtiveram todos os benefícios e aposentadoria, o que tornou-se o fermento de pessoas com experiência de vida para humanizar todas as clínicas, enfermarias hospitalares e programas do condado.

Jay fez tantas coisas como essa acontecer às pessoas.

Há muitos detalhes da vida e do trabalho de Jay que desconheço, mas lembro-me a certa altura que ele esteve na Casa Branca durante a administração Carter para apoiar iniciativas que ele acreditava serem boas.

Jay era assim – um pragmatista total. Ele nunca deixou que a busca do perfeito se metesse no caminho de obter algo de bom. O seu caminho era daqueles que trabalham em sistemas como os cavalos de Troia, como na “longa marcha através das instituições”.

A certa altura, Jay conseguiu mesmo um emprego na própria administração da saúde mental do condado como mediador, devido à sua sólida base de poder entre a comunidade de pares.

Nunca esquecerei o sorriso irônico no seu rosto quando vim vê-lo no seu novo escritório no último andar da administração da saúde mental. Ele disse algo como “Agora vão ter de lidar comigo a cada hora do dia”! Jay era como o pugilista que nunca pára de vir e desgasta o seu opositor porque ele sabe que ele nunca vai embora.

Após décadas, ele deixou o condado de Contra Costa e foi trabalhar no condado de Alameda para transformar novamente o sistema em Oakland e Berkeley. Aí ele organizou e liderou o que se tornou um enorme movimento de pares de milhares de membros do The Pool of Consumer Champions.

Trabalhei com ele no Projeto Mandala, que mais uma vez, devido à influência de Jay, foi capaz de influenciar o diretor de saúde mental e todos os programas de lá para adotar programas mais humanos e com um ‘staff’ formado por pares.

Jay tinha para ele uma dimensão espiritual tranquila que eu sempre pensei que em parte nascera do incrível sofrimento que ele suportou. Não consigo deixar de pensar em Nelson Mandela quando penso em Jay, porque Jay nunca odiou aqueles que o torturaram durante anos.

Tornou-se um catalisador líder em todo o estado para um enfoque totalmente novo na dimensão espiritual do sofrimento e da cura. Fizemos até um ‘workshop’ conjunto no Instituto Esalen sobre esse tema em 2011, com David Lukoff e Laura Mancuso. Fizemos o seguimento com grandes reuniões no condado de Alameda que atraíram muitos que também reconheceram a vontade de Jay de aprofundar a compreensão.

Em honra da liderança e contribuição de Jay, o condado de Alameda deu o nome de Jay ao seu primeiro centro de descanso de pares.

Sim, que longo caminho ele percorreu desde quando jovem preso, torturado em nome da medicina psiquiátrica, até a se tornar líder de linguagem suave, quem humildemente nos perguntou o que eu acredito ser a sua mensagem básica para todos nós:

” Não podemos fazer mais para acabar com os abusos psiquiátricos e, por conseguinte, ser amorosos e bondosos para com aqueles que sofrem?”

A devota esposa de Jay, Susan, foi uma presença constante de bondade amorosa e apoio durante todos os anos, e especialmente durante os últimos anos, visto que Jay passou a fazer diálise.

Jay disse-me tristemente que acreditava que os horrendos danos infligidos ao seu corpo durante aqueles muitos anos no ‘gulag’ psiquiátrico arruinaram a sua saúde.

No entanto, Jay sempre sentiu que o seu ativismo, o seu trabalho de promoção dos direitos humanos no sistema psiquiátrico, era a contribuição mais significativa que podia dar no mundo. “Estar envolvido no movimento consumidor/sobrevivente deu-me um objetivo na vida”, disse ele na entrevista de 2012.

Lembremo-nos da família de Jay ao lamentarmos a sua morte, e deixemos o seu exemplo de vida fazer o que fez sempre por inúmeras pessoas: Ajude-nos a travar a luta e acreditar no exemplo do seu coração amoroso.

Descanse em paz, servo fiel.

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Trauma e a pandemia de covid-19

No Brasil, fomos atropelados pela conjunção bombástica do advento da Covid-19 juntamente com a barbárie na condução da pandemia. Neste cenário global de uma crise mundial sem precedentes, que se mostrou uma catástrofe multidimensional e cuja mitigação dos seus efeitos demandariam ações coordenadas de diferentes áreas, no Brasil, crimes contra a saúde pública são cometidos descaradamente e noticiados como se fossem algo corriqueiro, banal.

Presenciamos ataques à pesquisa, aos pesquisadores, aos institutos de pesquisa e às universidades públicas. Além da disseminação de mentiras, chegamos ao cúmulo de um corte brutal nas verbas de pesquisa no momento em que mais precisamos dela. Universidades públicas renomadas e com alto desempenho tem declarado a inviabilidade de funcionamento a partir dos próximos meses. Todavia, cada vez mais tem vindo à tona escândalos de desvio de verba pública, superfaturamento, gastos de 3 bilhões supostamente em tratores (escândalo já conhecido como “tratoraço”), descoberta de orçamentos secretos etc.

Chegamos a um lamentável patamar de mais de 420 mil mortos. Entre os meses de janeiro a abril de 2021 foi ultrapassado o número de mortos do ano de 2020 inteiro. Nos últimos dias, foi noticiada a rejeição por parte do governo federal de 70 milhões de doses de vacina da Pfizer que teriam evitado muitas mil mortes em território nacional. Em um país cujos índices de mortes chocam o mundo, se tornando uma preocupação global e ameaça sanitária, estamos discutindo a implementação do voto impresso (mais uma tentativa de ataque a nossa frágil democracia) enquanto fakenews são amplamente disseminadas e, ainda, campanhas anti-vacina. Acreditem, contra a vacina, nossa arma mais preciosa no combate à pandemia, foi recusada, ignorada, atacada e colocada em xeque com afirmativas presidenciais como “se você virar um jacaré, é problema seu”.

A todo momento as ações não farmacológicas para a contenção da disseminação do vírus são rechaçadas, tratadas sob forma de piada ou chacota pelo próprio presidente da república. As recomendações das autoridades internacionais e nacionais de saúde são postas em dúvida. Os gravíssimos impactos da pandemia são minimizados, negados. A doença é negada. Até mesmo morte é negada. Ora, negar a morte está para além de um desafio possível. Apenas dela não podemos escapar.

E estas mortes, as mortes por Covid-19 que poderiam ter sido evitadas com planos de governo e medidas para contenção da pandemia, são aquelas que deixarão sob os escombros a gestão Bolsonaro. A contagem de mortos escancara a política de destruição que se implementou, sobretudo durante a pandemia: a necropolítica brasileira.

Instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar crimes durante a pandemia, em especial, ações criminosas advindas do próprio governo federal e do ministério da saúde.  Estes deveriam ter tido o compromisso de proteger a população do nosso país e propiciar condições de enfrentamento da pandemia. A catástrofe que vivemos enlaça o individual e o coletivo com seríssimas repercussões traumáticas.

Vivemos o tempo do traumático.

Como não estar apavorado diante do horror? Como não estar traumatizado? Como não sucumbir diante de tanto descalabro? A incerteza sobre o futuro próximo e longínquo nos atravessa.

Assim como nos casos de sobreviventes de guerra, da covid-19 e seus percalços somos sobreviventes. Conforme Braunstein (2006), na experiência traumática como a que vivemos atualmente, o sujeito atravessa uma situação na qual poderia ter morrido, mas não o fez. Do trauma, ele é um sobrevivente. Portanto, o traumatizado é um ser que, de modo metafórico, tomou o lugar de outro que vivia anteriormente. Há uma espécie de troca de identidade apesar da conservação do nome. Ainda segundo o autor, os outros (família, amigos) demandam do traumatizado que ele continue sendo aquele que era antes, porém, sua resposta é: Já não sou mais quem eu era. A Covid-19 marca um antes e depois na vida de todos nós.

Deparamo-nos na clínica com indivíduos vivendo os efeitos do trauma, que passaram perdas, por situações traumáticas, de medo, de excesso e tentam dar sentido à angústia.

Por estar mais vivo do que nunca, não podemos abrir mão de uma leitura freudiana para pensarmos os impasses atuais.  Por ocasião da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) o debate sobre a origem traumática da neurose ganhou destaque com a troca de correspondência entre Freud e Einstein, publicada em 1933, na qual o primeiro indaga diante das atrocidades e da falta de sentido promovida pela guerra: “Por que a guerra?”. Na ocasião, os psiquiatras de toda parte tiveram seus serviços solicitados pelas hierarquias militares que procuravam desmascarar “simuladores”, alvos da suspeita, como outrora acontecera com os histéricos, acusados de serem falsos doentes e, portanto, sendo aqueles mentirosos, desertores e maus patriotas. Foi nesse contexto que se deu em Viena, em 1920, o primeiro debate sobre o estatuto da neurose de guerra. Nessa ocasião, Freud criticou o uso do método elétrico para o tratamento das neuroses de guerra, lembrando que o dever do médico é se colocar a serviço do doente, e não do poder estatal ou bélico; ademais, questionou a ideia de simulação, inadequada a qualquer definição de neurose.

A ideia de um acontecimento traumático na origem da neurose voltou a ganhar destaque na teoria freudiana, permanecendo nas suas elaborações diante dos sintomas apresentados por sobreviventes de guerra severamente traumatizados, com a ressalva de que, para Freud (1918), tais neuroses são, em última instância, neuroses traumáticas e, portanto, também ocorrem nos dias de paz. Freud observou que os pesadelos descritos pelos traumatizados repetiam as vivências dolorosas. No caso das denominadas neuroses de guerra, os sonhos pareciam ser mais uma tentativa de elaboração do conteúdo traumático do que meras tentativas de realização de desejos.

As investigações sobre neurose traumática certamente não se resumem as situações de guerra, contudo elas ilustram de modo contundente os efeitos da neurose traumática. De fato, podemos afirmar que o momento traumático marca uma cisão, um antes e depois estabelecido na vida do sujeito. Então, como pensar a respeito dessas subjetividades que estão sendo construídas a partir da experiência traumática? Novo normal ou um novo mundo que requer novas lentes de leitura?

Na neurose traumática, o sujeito é assombrado por um encontro que não pode esquecer, que o assalta de noite mesmo tendo dele escapado durante o dia. Isso absorve a totalidade da sua libido e dos interesses do sujeito, em proveito de um pavor e de uma angústia que não cessam de se inscrever. Quando nos referimos ao passado, ou seja, ao acontecimento que deu origem ao trauma, consideramos uma força atuante cuja testemunha é a lembrança. O traumatizado não se lembra apenas, na realidade, ele é invadido por imagens, barulhos e sensações. Também, não podemos esquecer, que o trauma deixa herdeiros.

Joel Birman (2020) em sua análise sobre os impactos da pandemia de Covid-19, explica que a noção de catástrofe remete às linhas de força e de fuga que delineiam a constituição real do mundo. Por outro lado, o trauma reenvia para as coordenadas constitutivas do sujeito que se inscreve neste espaço real do mundo que foi colocado literalmente pelo avesso, pela dor e sofrimento, que como dobras ruidosas, modulam efetivamente os interstícios da experiência traumática.

Vivemos os dois. Simultaneamente.

Se para a medicina o trauma designa lesões no organismo causadas por fatores externos, no plano da psicopatologia os traumas são compreendidos como acontecimentos que rompem radicalmente com um estado de coisas no psiquismo, provocando um desarranjo em nossas formas habituais de funcionar e compreender as coisas e impondo o árduo trabalho psíquico da construção de uma nova ordenação do mundo. Dito de outro modo, o trauma é uma vivência que, no espaço de pouco tempo, aumenta demasiadamente a excitação da vida psíquica de tal modo que a sua liquidação ou a sua elaboração pelos meios habituais fracassa, acarretando em perturbações duradouras no funcionamento psíquico.

Entre os acontecimentos e esses efeitos, insere-se a tela da memória e da fantasia que transforma os fatalismos. Se, no âmbito da clínica, nesse momento pandêmico, pandemônico, cabe pensar que o trabalho de análise também incluiria a tentativa de tessitura da fantasia que foi desvelada posto que o real tem se reproduzido sem véu. No campo coletivo, nos resta acreditar que a justiça realize este trabalho reparador para que vidas possam ser salvas.

Impeachment urgente.

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Reforma Psiquiátrica e o Movimento Organizado de Usuários. Por que não há Movimentos de Ex-Usuários ou de Sobreviventes da Psiquiatria no Brasil?

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Em uma série de ‘blogs’, pretendo apresentar um conjunto de reflexões acerca da reforma psiquiátrica brasileira.

 

Primeiramente, é muito importante lembrar que no próximo dia 18 de maio iremos celebrar o DIA NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL. Somos milhares e milhares de brasileiros que não aceitam nenhuma categoria de assistência de características asilares. Portanto, somos “antimanicomiais”.

Estamos agora em um período para se parabenizar a todas e todos que durante essas últimas décadas têm demonstrado, na prática, os inúmeros e indiscutíveis ganhos para a saúde mental conquistados graças ao deslocamento da assistência hospital-asilar para o território. E sabemos todos quantos são os retrocessos que estão sendo politicamente planejados e executados nos últimos anos.

Ao escrever essa sequência de ‘blogs’, a minha intenção é reforçar a luta antimanicomial e de pensar junto aos leitores como é necessário haver uma “radicalização” do próprio processo de reforma psiquiátrica em nosso país (no sentido etimológico de “radicalizar”). Confesso que não estou seguro se o horizonte seria uma “assistência do bem-estar social” ou “assistência em saúde mental”, senão “psicossocial”. Essa dúvida ficará melhor entendida ao longo dos ‘blogs’. Garantidamente, o que tenho claro é que não é uma “psiquiatria pós-asilar” o que vislumbro.

Neste primeiro ‘blog’ irei fazer apenas uma consideração preliminar. A partir da seguinte pergunta:

Por que no Brasil não existe algum movimento organizado de ex-usuários da Psiquiatria? Senão de “sobreviventes” da Psiquiatria?

Estou falando de “ex-usuários” da Psiquiatria, e não de “ex-usuários” do Sistema Único de Saúde (S.U.S.). Uma distinção que considero ser muito relevante. Segundo o que é definido pelo S.U.S., é um direito constitucional de todos os cidadãos brasileiros o acesso universal aos serviços de saúde. Portanto, com relação ao S.U.S., não faria sentido algum se defender algo como ser “ex-usuário” do S.U.S.; salvo para aqueles que passaram desta vida para outra!

O que é muito distinto quando se diz: “eu sou um ex-usuário da Psiquiatria.”

O que se espera de alguém que sendo usuário da pediatria ao chegar à adolescência? Que passe a ser um ex-usuário da pediatria, não é mesmo? Senão, seria algo como tratar um adulto como se ele ainda fosse uma criança. Assim como quem já foi usuário das clínicas de “gastro”, “cardiologia”, por exemplo, o que se espera é que seja um “ex”. Nestes casos, o esperado é que o “usuário” do S.U.S., graças ao êxito do seu tratamento, ele (a) não mais necessite de ser usuário do tratamento. E com relação à Psiquiatria? Por que temos que continuar a ser um “usuário” da Psiquiatria? O que justifica isso?

É verdade que há diversas condições que levam alguém a continuar sendo um usuário do S.U.S. durante muitos anos, senão a vida inteira. São as chamadas doenças crônicas. Não são poucas as doenças crônicas, infelizmente. E com a Psiquiatria, é isso o que ocorre? Seriam os “transtornos psiquiátricos” doenças crônicas, infelizmente?

Há aqueles que tiveram uma experiência da assistência asilar-hospitalar. E que passaram a ser tratados no “território”. Por conseguinte, não seria mais adequado que eles/elas estivessem fazendo parte de movimentos organizados de “ex-usuários” – do sistema manicomial-hospitalar?

Eu imagino que você leitor esteja agora a pensar: “Fernando, mas não é isso o que o movimento dos usuários no Brasil tem feito, denunciando à sociedade o quanto sofreram, e que por isso mesmo defendem hoje uma assistência pós-asilar?

Sim, eu sei; mas a minha pergunta é outra: “Por que não “ex-usuários?“? Senão, por que não “sobreviventes da psiquiatria”? Neste último caso, o que estaria explicitamente sendo afirmado para a sociedade é que apesar de haverem sido vítimas da psiquiatria, apesar dos danos pessoais e intersubjetivos, conseguiram “sobreviver” à Psiquiatria. Quantas coisas importantes esses movimentos estariam ensinando a sociedade brasileira, não é mesmo? Senão, o quanto os profissionais de saúde estariam aprendendo com essas experiências de vida? Onde há movimentos organizados de “ex-usuários” e “sobreviventes” da psiquiatria, o ‘discurso do mainstream’ da psiquiatria ganha fissuras onde sementes do “novo” podem ser germinadas.

Voltemos para a realidade brasileira. Alguém que foi diagnosticado com esquizofrenia e entrou em tratamento, estará ele/ela condenado a ser usuário para o restante da sua vida? Ou alguém que foi diagnosticado com um transtorno depressivo, terá ele/ela que ser usuário para o restante da sua vida? Senão, alguém com um diagnóstico de transtorno de ansiedade. E assim por diante.

Sabemos que hoje em dia, no Brasil, o número de usuários da psiquiatria é muito maior do que aquele dos tempos onde os asilos psiquiátricos dominavam o cenário. Fora dos asilos psiquiátricos, os “usuários” psiquiátricos convivem conosco, se confundem com cada um de nós, estão ao nosso lado. Os “usuários” estão integrados, em uma forma ou outra. Porque, afinal de contas, o senso-comum criado com a reforma psiquiátrica no Brasil é que “de perto ninguém é normal”. Em nome de um combate ao estigma, não faltaram campanhas para nos sentirmos, todos, de bem em ser um paciente psiquiátrico. Afinal de contas, um “transtorno mental” seria não mais que uma doença como qualquer outra! E como doença, ela deve ser tratada pelo sistema de saúde.

Por que LUTA ANTIMANICOMIAL? Será por que tememos que nossos filhos tratados por TDAH passem a ser tratados em um asilo psiquiátrico? Ou que eu, você, por que somos pacientes por depressão, estamos sob ameaça de ir parar em um manicômio? E assim por diante.

Se a maioria de nós pode ser usuário da psiquiatria, conforme o ‘mainstream’ da psiquiatria, por que não LUTA ANTIPSIQUIATRiA?

Será que em psiquiatria, quem passou a ser usuário da psiquiatria, terá que ser para o restante da sua vida um “usuário”? Não digo do S.U.S., mas da psiquiatria? É isso uma fatalidade?

O que as evidências científicas dizem a respeito? Desmentem esse ”senso-comum”. O que a Ciência mostra é que, em geral, alguém é “usuário”, pelo restante da sua vida, graças à própria psiquiatria. É intrínseco ao modelo biomédico da psiquiatria adoecer as pessoas e mantê-las doentes. Em próximos ‘blogs’ terei oportunidade de mostrar isso com evidências científicas.

Retorno à questão inicial. E a refaço da seguinte forma: “Por que no Dia Nacional de Luta Antimanicomial, não há movimentos de ex-usuários ou sobreviventes da psiquiatria manifestando as suas pautas de demandas?” Certamente, o debate hoje estaria tendo uma qualidade bem distinta. Os retrocessos que estamos ultimamente sendo vítimas seriam melhor entendidos. E as reações seriam outras. Porque foram décadas de reforma psiquiátrica no Brasil, sem haver dado à sociedade alternativas viáveis e confiáveis ao modelo biomédico da Psiquiatria (diagnóstico e tratamento com drogas).

Quem viveu em algum asilo psiquiátrico e dele saiu, é um ex-usuário do sistema asilar. De Barbacena, de Juqueri, da Colonia Juliano Moreira, etc. Por que ex-usuários dos manicômios continuam sendo usuários da Psiquiatria, hoje, e provavelmente amanhã?

Seria por que passaram a ser “dependentes” da Psiquiatria? Dependentes do diagnóstico psiquiátrico. Dependentes das drogas psiquiátricas. De algum benefício social? Não enquanto indenização pelos danos que sofreram do tratamento, mas para poder sobreviver socioeconomicamente? Seria por que se deixarem de ser usuários da psiquiatria não poderão mais gozar de migalhas de uma vida decente? É isso?

Por que?

Um olhar aos movimentos organizados no exterior, em particular nos Estados Unidos, no Canadá, Europa, Austrália ou na Nova Zelândia, para dar alguns exemplos, há movimentos organizados, historicamente, de ex-usuários. Mas também de “sobreviventes da psiquiatria”. Não irei, agora, entrar em detalhes sobre o que caracteriza esse ou aquele outro movimento.

Mesmo correndo o risco de estar sendo repetitivo, o que é importante é nos perguntarmos o que faz com que nós brasileiros nos mantenhamos na narrativa da assistência manicomial? Por que no Brasil, não há um movimento de ex-usuários para defender publicamente, não apenas que deixaram de ser pacientes em asilos psiquiátricos. Mas para afirmar que graças a um ou ao outro tratamento, ficaram recuperados? Por que na literatura científica não há provas, evidências científicas, de que no Brasil, devido à essas ou àquelas outras práticas “psicossociais”, nós conseguimos obter melhores resultados quando comparados aos tratados pelo modelo biomédico da psiquiatria?

Porque o tratamento que está sendo dado não lhes garante uma vida independente da condição de paciente psiquiátrico?

A minha hipótese é que a reforma psiquiátrica brasileira tem dado ênfase ao deslocamento da assistência prestada em asilo psiquiátrico para aquela do território. E que no território o que mudou foi uma ampliação do mercado para o exercício do próprio poder psiquiátrico. Mesmo sabendo que não faltam boas intenções dos profissionais.

Para concluir, duas perguntas:

  • Será que, para que as “diversas formas” como o sofrimento psíquico se manifesta, para elas serem reconhecidas pela sociedade, necessitam de se adequar, necessariamente, à hegemonia do “modelo biomédico” da Psiquiatria?
  • No Brasil – para uma parcela significativa da nossa sociedade – ser “usuário” da Psiquiatria não é a condição para receber alguma categoria de reconhecimento social? Como ter um lugar na sociedade com um mínimo de dignidade? Seja em termos pecuniários, sabemos. Mas, não menos importante, para poder contar com uma escuta, afeto, esperança; até mesmo um prato de comida?
  • É isso? É a reforma da assistência em saúde mental aquela que queremos?

No próximo ‘blog’ irei analisar um conjunto dados da assistência psiquiátrica no Brasil, dos anos 90 aos tempos contemporâneos. Um quadro chocante!

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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para um debate amplo sobre a psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

Medicina Insana: Epílogo

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Nota do editor: Ao longo de vários meses, Mad in Brasil publicou uma versão seriada do livro de Sami Timimi, Insane Medicine (disponível para compra aqui). Este é o capítulo final. Todos os capítulos estão arquivados aqui.

Tenho a ideia deste livro há já vários anos. Eu queria escrever algo para um público geral e não acadêmico ou clínico que reunisse todos os pedaços de teoria e prática que me têm preocupado em uma polémica apoiada empiricamente. Afundado com o desgosto da vida privada e laboral diária, e desmoralizado pela rigidez dos pântanos institucionais onde tenho tentado sobreviver profissionalmente, simplesmente eu não conseguia obter qualquer impulso.

As ideias podem ficar adormecidas durante muito tempo enquanto a paisagem sócio-política é estática. As contradições, incoerências e as mentiras absolutas do que passamos a acreditar e a aceitar como o conhecimento “correto” podem mover-se sem obstáculos e sem contestação durante décadas. De vez em quando ocorre uma crise de magnitude suficiente para lançar uma teia de incerteza em toda parte, e ideias anteriormente suprimidas podem encontrar o solo mais fértil para o crescimento. O bom, o mau, o perigoso, o ‘empoderador’, o libertador, o opressor – o potencial para que surjam novas imaginações ou para que renasçam (e a luta contra elas), estando mortas há muito tempo começam a agitar-se à nossa volta.

Não demorou muito até que o Covid-19 se espalhasse por todo o lado, e os bloqueios (‘lockdowns’) se seguiram, e os comentadores e os seus representantes institucionais começaram a falar sobre as outras doenças pandêmicas-mentais que se avizinhavam. Havia algo de revelador neste discurso público. Se se riscar a superfície desta narrativa (que os efeitos de ‘lockdown’ serão uma pandemia de transtornos mentais), surge uma contradição gritante.

Por um lado, fica claro que a pandemia de saúde mental se desenvolverá a partir das consequências sociais da nova paisagem política e cultural que temos de habitar por razões de saúde pública. Foi-nos dito que os impactos na nossa saúde mental seriam produzidos pelo ‘lockdown’, a desconexão, a perda de meios de subsistência, a perda de entretenimento socializado, e assim por diante.

Tendo sido avisados de que a saúde mental é um subproduto de perturbações comuns e compreensíveis nas experiências da vida real, fomos então informados de que isto teria de ser tratado, não abordando estas causas sociais e as adversidades que delas advêm, mas sim através de serviços que possam “diagnosticar” e “tratar” as disfunções individuais resultantes.

Chamando o impacto das perturbações sociais de “transtornos/doenças mentais”, juntamente com a ideia de que os serviços seriam sobrecarregados, colocou-se a resposta para longe desta paisagem social, deslocando-a para o espaço despolitizado que existe entre os ouvidos. Na indústria da saúde mental, os problemas sociais necessitam de soluções individualizadas, fornecidas por especialistas com o ‘know-how’ técnico para identificar e, de alguma forma, corrigir as “anomalias” resultantes.

Enfurecido com esta construção desordenada, e energizado pelo potencial de mudança que as crises trazem, eu finalmente me senti pronto para colocar a caneta no papel (ou mais precisamente o dedo no teclado). O desprendimento do mundo da saúde mental das realidades humanas do quotidiano estava agora no reino do absurdo. A ideologia da saúde mental se encontrava firmemente alicerçada no domínio do sistema neoliberal/capitalismo avançado (ou o que quer que se queira chamar ao nosso desastre de um sistema econômico desigual e da política insípida que promove): individualizar, dividir, e ‘desempoderar’, à medida que se mercantiliza o sofrimento psíquico e a diferença em números cada vez maiores de tipologias humanas.

Estas tipologias coloniais (tanto em termos de impor construções ocidentais às populações não ocidentais como de impor construções da elite ocidental às populações ocidentais) impõem um sistema de castas que inadvertidamente priva grandes faixas da população dos seus direitos de cidadania – condenando-as simultaneamente a sentirem pena e desconfiança. É um sistema que vitimiza e cria vítimas (geralmente sem a intenção dos seus praticantes), mas também que torna você inconsciente (não apenas através dos seus poderosos sedativos) para a consequente escravização que vem por meio de promessas de libertar a sua psique de males invisíveis, em erupções de biologia e psicologia anormais, que de alguma forma se afastaram da sua história e realidade social.

Não queria escrever apenas mais um livro que pudesse ser discretamente escondido em um nicho acadêmico agradável, acrescentando cor às estantes de alguns críticos. Havia alguma forma de ligar isto aos movimentos sociais? Como poderia isto contribuir, ainda que de forma minúscula, para cortar aquela fenda crescente nos edifícios institucionais, para deixar entrar um pouco mais de luz (esclarecimento) sobre um assunto envolto em mito e fantasia?

Decidi, por isso, tentar algo novo para ver se conseguia chegar a um público leitor mais vasto. Fiquei impressionado com a forma como o website Mad in America (MIA) se expandiu para um espaço digital que reúne uma diversidade de vozes críticas internacionais, incluindo blogs, relatórios sobre novas pesquisas, e alguns dos seus próprios excelentes relatórios e análises. Fiquei encantado quando Robert Whitaker concordou em publicar o livro completo num formato semanal seriado no MIA (está agora também disponível em formato de brochura e eBook na Amazon). Quero também agradecer a Peter Simons, que tem sido o meu contato no MIA e ajudou a transformar esta ideia em realidade. E, também, ao Fernando Freitas, do Mad in Brasil (MIB), que traduziu para o português e o editou.

Todos os dez capítulos do livro estão agora publicados e sendo lidos por milhares de pessoas. Espero que alguns dos que leram o livro, ou partes dele, tenham encontrado algo de útil e que os tenha energizado de alguma forma. Além de fornecer mais munições nas críticas em curso, gostaria de imaginar que também inoculou algumas pessoas com algumas sementes de esperança que podem dar mais espaço para novas imagens de um mundo pós- indústria-da-saúde possam crescer.

Gostaria de agradecer particularmente a todos, e quero dizer a todos, que dedicaram tempo a escrever comentários, quer se tratasse nos sites do Mad, quer através de e-mails pessoais ou meios de comunicação social. Eu tento lê-los todos. Lamento nunca participar dando respostas. Tomei uma decisão há muitos anos, depois de colocar o dedo nas redes sociais e outras discussões/debates na internet, para me manter afastado disto. Cheguei à conclusão de que muitas vezes isso pode consumir muito tempo mental e físico sem ir realmente a algo produtivo. Espero que vocês possam compreender e respeitar o meu raciocínio, mas estou muito grato por todos os comentários feitos que me ajudam, e espero que outros apareçam, refletindo sobre o que escrevi, quer seja na crítica ou no apoio ao mesmo.

Compreendo alguns dos comentários que o assunto sobre o qual escrevi já foi tratado por escritores mais pessoalmente afetados e, como alguém que passou a sua vida profissional no sistema, sei que a minha perspectiva não terá a mesma autenticidade que aqueles que estiveram no fim receptor da destituição, crueldade e opressão que os serviços preponderantes são capazes de proporcionar.  Espero que uma crítica de um “infiltrado” que não dá murros tenha, no entanto, algum mérito. Quanto mais vozes críticas houver, quanto maior for a literatura crítica, melhor. Penso que os relatos críticos a partir de uma diversidade de perspectivas, antecedentes e posições contribuem cada um de uma forma para o crescimento de um movimento social em prol da mudança.

Queria neste livro interrogar os pressupostos que permeiam a teoria, a investigação e a prática na saúde mental. Quando são postos a nu os seus fundamentos essenciais, pode-se ver o vazio dos paradigmas empíricos e filosóficos que estão em circulação. Não se pode medir a mente utilizando a mesma metodologia usada para medir o fluxo de urina. Não se pode descobrir significados e intenções olhando para imagens coloridas do cérebro.

É claro que a biologia está envolvida, tal como existem redes biológicas ativas que me permitem escrever estas frases. Mas não podemos ver, sentir, pesar, calibrar e calcular desvios padrão para a forma como eu cheguei a essas frases. Não podemos escapar à subjetividade na compreensão da subjetividade. Não podemos descobrir a “verdade” sobre a razão pela qual escrevi uma determinada frase; só podemos criar um quadro para explicar a partir de um número limitado de sistemas de conhecimento disponíveis a que estivemos expostos. A nossa escolha de quadro explicativo tem consequências profundas.

Quando analisamos a minha urina para várias substâncias, a minha urina não é subsequentemente afetada por essa análise. Não irá mudar em resposta às minhas conclusões. A urina não fica encantada, ansiosa, ofendida, não decide ficar comigo, ou abandonar-me. Não é o caso para as explicações que utilizamos para os fenômenos mentais. Se me disserem que o que me levou a escrever as frases acima foi um “transtorno” mental que me levou a um estado de espírito perigoso e paranoico, os efeitos nas minhas emoções, pensamentos e comportamentos podem ser muito diferentes de se me disserem que estas frases são uma “lufada de ar fresco”. Os efeitos serão mais marcados quanto mais poder a pessoa tem (ou que percebo que tenha) sobre mim.

Quando perdemos o contato com esta ideia básica – que tudo o que temos são quadros de referência que fazem sentido em vez de verdades neutras – tornamo-nos perigosos sem nos apercebermos que nos tornamos perigosos, particularmente se nos encontrarmos em posições de poder e influência potenciais. As ideologias dominantes da saúde mental criaram uma realidade em que substituíram a alma pela psique. Imaginar que se sabe e se pode explicar o que está errado, prende o praticante e o paciente em um paradigma religioso de culto, sem reconhecer que é isto que está a acontecer.

Com o diagnóstico, cria-se objetos abstratos que circulam na mente do profissional e do paciente, como demônios que são imaginados a sair da sua biologia ou da sua psicologia, que os pastores modernos (psiquiatras) irão expurgar com as suas poções mágicas e salas de confessionário. Ao contrário de uma absolvição religiosa, porém, estes demônios estão aí para ficar, emergindo periodicamente, porque não são externos, mas sim genéticos, com fios duros, algures no cérebro, para serem supridos/controlados.

O Royal College of Psychiatrists [Colégio Real de Psiquiatras] no Reino Unido deveria ser renomeado The Royal College of Psychianity [Colégio Real de Psiquiatrinidade].  Nesta, a religião da Psiquiatria, a noção de psiquiatria emerge da fé, não da ciência. A psiquiatria é concebida como um verdadeiro objeto concreto, que revelará as suas “verdades” através de formas confiáveis de as medir e avaliar. A psique passa a ser entendida objetivamente como uma mente sem significados. A espiritualidade foi sugada, deixando uma sopa agitada de neurotransmissores perigosos para ser estudada usando as escrituras do Santo DSM e outros manuais quase-religiosos.

Questionar pressupostos leva os meus argumentos muito para além do conflito entre psicoterapia obsoleta e psicofarmacologia. O que mais importa é o enquadramento em que a prática é formulada. A psicoterapia é tão responsável como a psicofarmacologia pela incorporação da história de doenças/disfunção/transtorno. A terapia, incluindo a utilização ocasional e judiciosa de psicotrópicos, pode também empregar modelos mais ‘empoderadores , através da manutenção de uma postura crítica e de ser capaz de compreender que os nossos modelos não podem refletir “verdades”, mas são, pelo contrário, ferramentas com consequências.

O debate mais importante não é o que temos mais ou menos em nossos serviços de saúde mental, mas sim a ideologia em que eles confiam. Podemos até ter de acabar com o conceito de saúde mental (que cria uma inevitável polarização doença/saúde doentia). Tenho questionado a ideia de “mental” e o enquadramento “saúde”. Talvez o que tenhamos que ter é serviços de bem-estar – seja ele qual for, o que deve implicar algo que não mais fomente divisões tais como nós /eles, estar-bem/doença, normais/anormais.

Nos últimos anos comecei a compreender como a concretude dos modelos que utilizamos nos serviços de saúde mental ajuda a incorporar os próprios problemas que somos empregados para aliviar. A curto prazo, o rápido alívio/satisfação imediata ao estilo McDonald’s, focalizado no consumidor, significa que fornecemos um menu de bens (diagnósticos e os seus supostos remédios) que vendemos com promessas de que a dor e o sofrimento mental podem ser eliminados sem efeitos secundários.

Isto começa então a escrever um novo capítulo importante na vida das pessoas que lutam, principalmente com o que eu chamo experiências comuns e compreensíveis (mesmo que elas ou nós não consigamos inicialmente ver como isso pode ocorrer). Elas passam agora a ser possuídas por forças para além da sua influência consciente ou inconsciente. Tornam-se alienadas das suas vidas emocionais, vendo perigos e abismos intermináveis. O novo capítulo escrito para eles/elas pelos pastores da Psiquiatria molda a forma como eles/elas e os seus entes queridos interpretam o significado de como se sentem, se comportam e pensam. Eu tive que escrever algo sobre esta armadilha viciosa.

Pode parecer que o que eu escrevo é contra os psiquiatras, mas não é. Sim, eu sou um, e sim, isso irá influenciar o meu preconceito. A psiquiatria, como qualquer outro corpo socialmente construído, é feita de indivíduos com vários graus de poder e influência. Foram formados pelos currículos e depois cultivados pelos sistemas profissionais onde têm de trabalhar. O que ouço regularmente dos meus colegas psiquiatras é como é difícil lidar com a procura e exigência dos pacientes por parte de outras pessoas envolvidas que, compreensivelmente, esperam que o psiquiatra apresente uma explicação (diagnóstico) e depois um plano de tratamento, muitas vezes com a esperança de que este inclua medicação.

A maioria gostaria de fazer mais psicoterapia e muitos tentam incorporá-la na sua prática. Negar o que é percebido pelo público, por outros médicos e outros profissionais, sobre qual é o seu papel (ser diagnosticador e prescritor), é quase impossível. É o que tenho tentado fazer há muitos anos, mas isso é realmente nadar contra a maré externa da procura, e não apenas contra as correntes internas da ideologia estabelecida.

É por isso que precisamos de educação pública; uma oportunidade para mudar o discurso. Muitos médicos apoiariam isto, uma vez que experimentam a maré da medicalização às portas das suas clínicas. A psiquiatria deveria ser a profissão que pode ajudar o resto da medicina com a questão da medicalização. Em vez disso, uma colaboração mafiosa entre a indústria farmacêutica e grande parte da psiquiatria acadêmica tem alimentado a minha profissão com os piores criminosos da medicalização – mórbidos, inapropriados e perigosos para a saúde pessoal e pública.

Naturalmente, isto exigiu então que eu também escrevesse sobre política. A McDonaldização só pode emergir em uma economia política que a encoraje. Portanto, uma apreciação do meio político mais amplo, que influencia quem controla a produção de conhecimento, em cujos interesses atuam, que modelo de “humano” isto promove, e o que o público passa então a entender como sendo a posição do “senso comum”, tudo isto necessitava de ser explorado.

Isto levou-me finalmente à globalização. A globalização se acelerou nas últimas décadas, particularmente com o crescimento das tecnologias digitais. Isto ampliou os riscos existentes do neocolonialismo, tanto no concreto (como o comércio e o poder militar) como no abstrato (a exportação e a imposição de ideias). Mas também tem criado novas oportunidades. Colaborações internacionais, comunicações e ativismo são muito mais capazes de atravessar disciplinas, grupos de interesse e fronteiras.

Escrevo isto num computador na minha casa em Lincoln, no Reino Unido, e é publicado num website americano e, depois em websites afiliados (como o Mad in Brasil), em seguida é partilhado nas redes sociais, onde pessoas de praticamente qualquer país podem lê-lo, comentá-lo e debatê-lo. Neste novo internacionalismo, reconhece-se que na nossa batalha contra uma ideologia quebrada e corrompida e os seus produtos, partilhamos tanto os problemas como as potenciais soluções ou caminhos a seguir com muitos, muitos outros em todo o mundo.

Quem sabe quando é que a massa crítica será suficiente para a mudança sistêmica? Quem sabe como, onde, e quando surgirá e acontecerá? Só sei que devemos continuar a acreditar; porque estamos do lado da ciência, da ética e do futuro. Como disse certa vez o político britânico, ex-membro do Parlamento, escritor, e ativista socialista Tony Benn:

“Não há vitória final, pois não há derrota final. Há apenas a mesma batalha a ser travada uma e outra vez. Portanto, endureça, endureça ensaguentando-se.”

 

[trad. e edição Fernando Freitas]

Como as Precauções com o COVID-19 Impactam o Funcionamento da Família

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Os procedimentos generalizados de prevenção e contenção da COVID-19 resultaram em grandes mudanças na dinâmica familiar. As obrigações educativas e profissionais virtuais exigiram a reconfiguração dos lares, novos sistemas de envolvimento com familiares, e, em algumas circunstâncias, novas tensões.

Um estudo recente conduzido por Mark E. Feinberg e colegas, publicado em Family Process, compara várias características do funcionamento familiar antes e durante a pandemia nos Estados Unidos da América, a fim de proporcionar alguma visão sobre como estas famílias foram afetadas.

“Este é o primeiro estudo de que estamos conscientes que examinou a magnitude da mudança na saúde mental dos pais, da criança e da família e o ajustamento de antes e durante o período da pandemia”, escrevem eles. “Ao examinar a mudança intra-individual, a nossa abordagem supera as principais fraquezas metodológicas em outros relatórios. Os nossos resultados fornecem provas de uma grande deterioração da saúde mental e comportamental dos pais e da criança durante os primeiros meses da pandemia.”

Por esta altura, no ano passado, preocupações generalizadas em torno das implicações da pandemia da COVID-19 para a saúde mental começaram a receber uma forte cobertura mediática. Os efeitos das medidas de lockdown e de isolamento variam com base em diversos fatores contextuais (por exemplo, recursos financeiros e sociais). Resultam em consequências particularmente prejudiciais para os jovens e adultos que já se debatiam com a pré-pandemia. Riscos para a saúde, acesso limitado a oportunidades de trabalho, habitação e insegurança alimentar, bem como estresse social, estão entre os desafios relacionados com a pandemia que continuam a ter impacto em muitas famílias à escala global.

No entanto, seria impreciso alegar que as precauções com COVID-19 foram totalmente prejudiciais à saúde mental. Alguns estudos têm captado possibilidades como o acesso aumentado a oportunidades que historicamente são prejudicadas pela proximidade e mobilidade, uma maior flexibilidade para os estudantes trabalharem segundo os seus próprios horários preferidos fora dos limites de um dia escolar normal, e em algumas circunstâncias, um aumento das conexões familiares.

O quadro apresentado pela investigação disponível até à data não é o de um tsunami atingindo a saúde mental, como inicialmente previsto por alguns, mas sim o de uma paisagem de impactos matizados que complicam as generalizações apressadas.

Feinberg e a equipe esforçaram-se por explorar o impacto da pandemia COVID-19 no bem-estar das famílias em uma amostra de famílias que vivem nos Estados Unidos. Segundo os autores, a investigação prévia foi limitada pela falta de instrumentos sensíveis para detectar alterações na saúde mental. Entre as qualidades únicas do estudo atual está o seu enfoque em unidades familiares em vez de áreas de impacto apenas ao nível individual.

“Para quantificar o impacto da pandemia da COVID-19 e das intervenções de saúde pública na saúde mental e nas relações familiares dos pais e das crianças, analisamos a mudança no funcionamento individual e familiar numa amostra de pais inscritos em um ensaio de prevenção; examinamos a mudança antes da pandemia (2017-2019), quando as crianças tinham em média 7 anos até aos primeiros meses após a imposição de intervenções generalizadas de saúde pública nos Estados Unidos”.

208 unidades familiares envolvidas no estudo incluíram díades de mãe e pai coabitantes com apenas um filho cada uma. Todas foram inicialmente recrutadas como parte de uma pesquisa aleatório das Fundações da Família e foram posteriormente contactadas com a oportunidade de participar em questionários relativos ao ajustamento durante a pandemia. De salientar que os pais relataram tanto os resultados deles como os da criança, referidos na análise de Feinberg e dos colegas.

Os itens incluídos no questionário em linha contabilizaram sintomas depressivos parentais, ansiedade parental, qualidade da relação entre os pais, internalização e externalização de preocupações comportamentais, qualidade parental, com relação ao rendimento em educação do filho(a). As tendências pré e pós-pandêmicas foram comparadas utilizando a modelação linear hierárquica (HLM) em três níveis: tempo, dados individuais e dados da unidade familiar.

“Encontramos grandes deteriorações desde antes da pandemia até aos primeiros meses da pandemia na internalização e externalização de problemas infantis e depressão dos pais, e um declínio moderado na qualidade da relação entre os pais”, relatam os investigadores. “Foram encontradas alterações menores para a ansiedade dos pais e a qualidade parental. As mães e as famílias com níveis de rendimento mais baixos estavam de modo particular em risco de deterioração do bem-estar.”

Os resultados indicaram mudanças “impressionantes” nos sintomas depressivos relatados pelos pais e na externalização e internalização das preocupações comportamentais da criança, bem como uma deterioração substancial da ansiedade dos pais e da qualidade geral das relações familiares.

Curiosamente, os pais que relataram menos sintomas depressivos antes da pandemia sofreram aumentos mais substanciais na depressão durante a pandemia. Verificou-se que os rendimentos econômicos das famílias moderaram significativamente a magnitude da deterioração da qualidade parental. O menor rendimento econômico familiar foi associado a declínios mais substanciais na qualidade parental durante a pandemia.

Entre as limitações do estudo de Feinberg e da equipe está na sua amostra ser predominantemente branca de participantes, comprometendo a representatividade dos resultados. Outros estudos indicaram que graves consequências para a saúde e bem-estar foram experimentadas por indivíduos latinos, indígenas americanos e negros nos Estados Unidos, em taxas desproporcionalmente elevadas. A confiança exclusiva nos relatos dos pais e a homogeneidade das famílias representadas no estudo também representam limitações. Os resultados podem também ter sido distorcidos por questões não necessariamente concebidas para destacar áreas de resiliência.

Os autores sugerem que as suas conclusões apontam para a necessidade de intervenções ao nível familiar que promovam a resiliência, a capacidade de lidar com a situação, o gerenciamento do humor e a capacidade de co-participação. Além disso, os moderadores de consequências graves indicam a necessidade de iniciativas de alívio ao nível sistêmico para reduzir os fardos da pandemia desproporcionadamente sofridos por aqueles com recursos econômicos limitados.

“Como os conflitos familiares e os problemas de saúde mental em curso e interligados são difíceis de interrompe-los, um fenômeno ‘’assustador” pode levar a dificuldades psicológicas e familiares enraizadas e a longo prazo. Ajudar as famílias a se recuperarem do período pandêmico pode exigir abordagens multi-componentes e interdisciplinares por parte de escolas, conselheiros, clínicos de saúde mental, pediatras, agências de serviço familiar, igrejas, e organizações recreativas e atléticas de juventude”. 

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Feinberg, M. E., Mogle, J., Lee, J. K., Tornello, S. L., Hostetler, M. L., Cifelli, J. A., Bai, S., & Hotez, E. (2021). Impact of the COVID‐19 pandemic on parent, child, and family functioning. Family Process. https://doi.org/10.1111/famp.12649 (Link)

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