Kit de Sobrevivência em Saúde Mental, capítulo 3: “Psicoterapia”

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KIT DE SOBREVIVÊNCIA EM SAÚDE MENTAL E RETIRADA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS

 

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Nota do Editor: Por permissão do autor, o Mad in Brasil (MIB) estÁ publicando o recente livro do Dr. Peter Gotzsche, Kit de Sobrevivência em Saúde Mental . Os capítulos estão ficando disponíveis em um arquivo aqui.

 

CAPÍTULO 3

Psicoterapia

Conheço psiquiatras em vários países que não usam drogas psiquiátricas ou eletrochoques. Eles tratam até mesmo os pacientes mais gravemente perturbados com empatia, psicoterapia e paciência.1

O objetivo dos tratamentos psicológicos é mudar um cérebro que não está funcionando bem de volta para um estado mais normal. Os medicamentos psiquiátricos também mudam o cérebro, mas criam um terceiro estado artificial – um território desconhecido – que não é nem o normal nem o estado de mau funcionamento de onde o paciente veio. 2

Isto é problemático porque você não pode voltar do terceiro estado quimicamente induzido ao normal, a menos que você afunile as drogas, e mesmo assim, nem sempre será possível, pois o paciente pode ter desenvolvido danos cerebrais irreversíveis.

Uma abordagem humana da dor emocional é muito importante, e os resultados do tratamento dependem mais das alianças terapêuticas do que do uso de psicoterapia ou farmacoterapia.3 Além disso, quanto mais de acordo os médicos e os pacientes estiverem sobre o que é importante quando se está curado da depressão, melhores serão os resultados para o efeito positivo, ansiedade e relações sociais. 4

A maioria dos problemas que os pacientes enfrentam é causada pela regulamentação inadequada das emoções, e os medicamentos psiquiátricos pioram a situação, já que os seus efeitos constituem uma regulamentação inadequada das emoções.5 Em contraste, a psicoterapia visa ensinar aos pacientes a lidar melhor com os seus sentimentos, pensamentos e comportamentos. Isto é chamado de regulação adequada das emoções. Ela pode mudar permanentemente os pacientes para melhor e torná-los mais fortes quando enfrentam os desafios da vida. De acordo com isto, as metanálises descobriram que a eficácia da psicoterapia em comparação com as pílulas da depressão depende da duração do estudo, e a psicoterapia tem um efeito duradouro que supera claramente a farmacoterapia a longo prazo.6,7

Há questões substanciais a serem consideradas ao se ler relatórios sobre ensaios que têm comparado a psicoterapia com drogas. Os ensaios não são efetivamente cegos, nem para a psicoterapia nem para as drogas, e a crença predominante no modelo biomédico deveria influenciar o comportamento dos psiquiatras durante o ensaio e influenciar as suas avaliações dos resultados em favor das drogas em detrimento da psicoterapia. Os ensaios que mostram que os efeitos de uma droga e da psicoterapia combinados são melhores do que qualquer um dos tratamentos isoladamente também devem ser interpretados com cautela, e os resultados a curto prazo são enganosos.

Devemos levar em consideração apenas os resultados de longo prazo, por exemplo, resultados obtidos após um ano ou mais.

Não vou defender a terapia de combinação. Fazer psicoterapia eficaz pode ser difícil quando o cérebro dos pacientes está entorpecido por substâncias psicoativas, o que pode torná-los incapazes de pensar claramente ou de avaliar a si próprios. Como foi observado anteriormente, a falta de discernimento sobre sentimentos, pensamentos e comportamentos é chamada de enfeitiçamento medicamentoso.8,9 O principal efeitodo enfeitiçamento pelos medicamentos é que os pacientes subestimam os danos dos medicamentos psiquiátricos.

Não entrarei em detalhes sobre psicoterapia. Há muitas escolas e métodos concorrentes, e não é tão importante qual método se usa. É muito mais importante que se seja um bom ouvinte e que se conheça o seu semelhante onde ele se encontra, como o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard nos aconselhou a fazer há dois séculos. Como há muitas tentativas com a terapia cognitivo-comportamental, este tende a ser o método preferido, mas se usado indiscriminadamente demais pode se degenerar em uma espécie de abordagem de livro de receitas que presta muito pouca atenção às circunstâncias especiais, aos desejos e à história do paciente concreto.

Quando quisemos estudar o efeito da psicoterapia sobre o risco de suicídio, a minha filha mais velha e eu nos concentramos na terapia cognitivo-comportamental, pela simples razão de que a maioria dos experimentos havia usado este método. Como observado anteriormente, descobrimos que a psicoterapia reduz pela metade o risco de uma nova tentativa de suicídio em pessoas agudamente admitidas após uma tentativa de suicídio.10 Este é um resultado muito importante que não se limita à terapia cognitivo comportamental. A psicoterapia de regulação das emoções e a psicoterapia comportamental dialética também são eficazes para as pessoas que fazem danos a si próprias.11

A psicoterapia parece ser útil para toda a gama de transtornos psiquiátricos, também as psicoses.1,12 Uma comparação entre Lapônia e Estocolmo ilustra a diferença entre uma abordagem empática e a imposição imediata de drogas sobre os pacientes com uma psicose em primeiro episódio.13,14 A abordagem da família e da rede com o Diálogo Aberto desenvolvida na Lapônia visa tratar pacientes psicóticos em suas casas, e o tratamento envolve a rede social do paciente e começa dentro de 24 horas após o contato.13 Os pacientes eram comparáveis aos de Estocolmo, mas em Estocolmo, 93% foram tratados com neurolépticos contra apenas 33% na Lapônia, e cinco anos depois, o uso contínuo foi de 75% contra 17%. Após cinco anos, 62% em Estocolmo contra 19% na Lapônia estavam em licença por invalidez ou doença, e o uso de leitos hospitalares também tinha sido muito maior em Estocolmo, 110 contra apenas 31 dias, em média. Não foi uma comparação randomizada, mas os resultados são tão marcadamente diferentes que seríamos irresponsáveis descartá-los. Há muitos outros resultados que apoiam a abordagem sem drogas1 e o modelo do Diálogo Aberto está agora ganhando impulso em vários países.

A psicoterapia não funciona para todos. Temos que aceitar que algumas pessoas não podem ser ajudadas, não importa o que façamos, o que é verdade também em outras áreas da saúde. Alguns terapeutas não são tão competentes ou não trabalham bem com alguns pacientes; pode ser necessário, portanto, tentar mais de um terapeuta. Como todas as intervenções, a psicoterapia também pode ser prejudicial.

Em Uganda, as crianças soldadas que foram forçadas a cometer as atrocidades mais horríveis sobreviveram notavelmente bem ao trauma psicológico, evitando enfrentar o problema. 15 Se um terapeuta tivesse insistido em confrontar essas pessoas com o seu trauma encapsulado, poderia ter dado um tiro pela culatra. Na medicina somática, na maioria das vezes, uma ferida cicatrizante deve ser deixada em paz e os seres humanos têm uma notável capacidade de autocura, tanto física quanto psicologicamente. Obviamente, se a cura corre mal, por exemplo, porque um osso quebrado não foi devidamente engessado, ou um trauma continua impedindo o paciente de viver uma vida plena, pode ser necessário abrir a ferida.

As dores físicas e emocionais têm semelhanças. Assim como precisamos da dor física para evitar perigos, precisamos da dor emocional para nos orientar na vida.16 Condições agudas como psicoses e depressões estão frequentemente relacionadas a traumas e tendem a se curar se formos um pouco pacientes. Através do processo de cura – seja assistida por psicoterapia ou não – aprendemos algo importante que pode ser útil se nos depararmos novamente com problemas. Tais experiências também podem aumentar a nossa autoconfiança, enquanto os comprimidos podem nos impedir de aprender qualquer coisa porque entorpecem os nossos sentimentos e às vezes também os nossos pensamentos. Os comprimidos também podem fornecer uma falsa sensação de segurança e privar o paciente da verdadeira terapia e das outras interações humanas curativas – os médicos podem pensar que não precisam se envolver tanto quando um paciente está tomando drogas.16

Ser tratado humanamente é difícil na psiquiatria de hoje. Se você entrar em pânico e for para uma enfermaria de emergência psiquiátrica, provavelmente lhe será dito que precisa de uma droga, e se você declinar e disser que só precisa descansar para se recolher, talvez lhe digam que a enfermaria não é um hotel.16

Referências bibliográficas:

Capítulo 3. Psicoterapia
1 Gøtzsche PC. Deadly psychiatry and organised denial. Copenhagen: People’s Press;
2015.
2 Gøtzsche PC. Chemical or psychological psychotherapy? Mad in America 2017;
Jan 29. https://www.madinamerica.com/2017/01/chemical-psychologicalpsychotherapy/.
3 Krupnick JL, Sotsky SM, Simmens S, et al. The role of the therapeutic alliance in
psychotherapy and pharmacotherapy outcome: Findings in the National Institute
of Mental Health Treatment of Depression Collaborative Research Program. J
Consult Clin Psychol 1996;64:532–9.
4 Demyttenaere K, Donneau A-F, Albert A, et al. What is important in being cured
from: Does discordance between physicians and patients matter? (2). J Affect
Disord 2015;174:372–7.
5 Sørensen A, Gøtzsche. Antidepressant drugs are a type of maladaptive emotion
regulation (submitted).
6 Spielmans GI, Berman MI, Usitalo AN. Psychotherapy versus second-generation
antidepressants in the treatment of depression: a meta-analysis. J Nerv Ment Dis
2011;199:142–9.
7 Cuijpers P, Hollon SD, van Straten A, et al. Does cognitive behaviour therapy have
an enduring effect that is superior to keeping patients on continuation pharmacotherapy?
A meta-analysis. BMJ Open 2013;26;3(4).
8 Breggin PR. Intoxication anosognosia: the spellbinding effect of psychiatric drugs.
Ethical Hum Psychol Psychiatry 2006;8:201–15.
9 Breggin PR. Brain-disabling treatments in psychiatry: drugs, electroshock, and the
psychopharmaceutical complex. New York: Springer; 2008.
10 Gøtzsche PC, Gøtzsche PK. Cognitive behavioural therapy halves the risk of
repeated suicide attempts: systematic review. J R Soc Med 2017;110:404-10.
11 Hawton K, Witt KG, Taylor Salisbury TL, et al. Psychosocial interventions for
self-harm in adults. Cochrane Database Syst Rev 2016;5:CD012189.
12 Morrison AP, Turkington D, Pyle M, et al. Cognitive therapy for people with
schizophrenia spectrum disorders not taking antipsychotic drugs: a single-blind
randomised controlled trial. Lancet 2014;383:1395-403.
13 Seikkula J, AaltonenJ, Alakare B, et al. Five-year experience of first-episode
nonaffective psychosis in open-dialogue approach: Treatment principles, followup
outcomes, and two case studies. Psychotherapy Research 2006;16:214-28.
14 Svedberg B, Mesterton A, Cullberg J. First-episode non-affective psychosis in a
total urban population: a 5-year follow-up. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol
2001;36:332-7.
228
15 Harnisch H, Montgomery E. “What kept me going”: A qualitative study of
avoidant responses to war-related adversity and perpetration of violence by
former forcibly recruited children and youth in the Acholi region of northern
Uganda. Soc Sci Med 2017;188:100-8.
16 Nilsonne Å. Processen: möten, mediciner, beslut. Stockholm: Natur & Kultur;
2017.

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[trad. e edição Fernando Freitas]

Prevalência do Uso de Psicofármacos em Familiares Cuidadores

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Recentemente, a revista Ciência e Saúde Coletiva publicou um artigo sobre o uso de psicofármacos por parte dos cuidadores de pessoas diagnosticadas com transtorno mental, associando-os ao sentimento de sobrecarga. Trata-se de um estudo transversal, realizado com cerca de 537 familiares de usuários de Centros de Atenção Psicossocial de uma região do estado do Rio Grande do Sul.

Dos entrevistados, 63,3% eram mulheres, com média de 51 anos de idade; 38,5% possui apenas até 4 anos de estudo; quanto à renda, 41,2% referiu renda per capita de até 1
salário mínimo. A prevalência do uso de psicotrópicos na população estudada foi de 30%.  Entre aqueles que faziam uso de algum psicotrópico, a classe mais utilizada foi a dos antidepressivos (47,20%), seguida pelos ansiolíticos (33,54%), antiepiléticos (24,22%), antipsicóticos (6,21%) e por último, hipnóticos e sedativos (1,86%).

Percebeu-se que houve maior prevalência de uso de psicotrópicos entre os familiares
que não compartilhavam as ações do cuidado (35,53%). Sentimento de sobrecarga esteve fortemente associado ao uso de psicotrópicos, foi observado que quanto maior o grau de sobrecarga, maior a prevalência do uso de psicotrópicos, chegando a 60,1% entre aqueles com sobrecarga intensa.

Existem poucos estudos brasileiros sobre a prevalência de uso dos psicofármacos na população alvo. Os pesquisadores não acharam estudos anteriores sobre o tema, e consideram que esse pode ser um campo importante de investigação para futuros estudos. O estudo é considerado importante pelos pesquisadores, pela alta prevalência de familiares que fazem uso de psicofármacos. Assim, o serviço tem um papel importante em promover o cuidado desses familiares para não serem prejudicados pelos efeitos adversos ou dependência dos psicofármacos.

Como sugestão para estudos futuros, os pesquisadores sugerem a adoção de um recorte longitudinal que possibilite acompanhar a evolução dos casos ou mesmos testar a influência de outras ações terapêuticas no padrão de uso de psicotrópicos pelos familiares assistidos.

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REICHEL, Carlos Alberto dos Santos et al . Uso de psicotrópicos e sua associação com sobrecarga em familiares cuidadores de usuários de centros de atenção psicossocial. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 26, n. 1, p. 329-337,  Jan.  2021. (Link)

Saúde mental, democracia e neoliberalismo

A saúde mental precisa da democracia para existir. Os ares democráticos são vitais para a saúde mental. Há uma relação intrínseca tão fundamental entre ambas que se uma é ameaçada, a outra manifesta sintomas de sufocamento e possível perecimento.

Uma época pode ser descrita a partir das patologias que ela faz circular e das patologias que ela invalida. O fato de reconhecer tais patologias no plano social tem como consequência reconduzir o sofrimento à condição de matriz produtora de singularidades. Esta reflexão permitiria o desenvolvimento de uma articulação entre a clínica e a crítica no interior da qual a crítica social parece indissociável da crítica ao diagnóstico. Mais especificamente, na transformação reiterada do sofrimento em patologias específicas (Safatle, 2018).

De acordo com Dunker (2017), o sofrimento é uma espécie de ponte ou caminho pelo qual particularizamos o mal-estar na forma de sintoma. “Todo sofrimento é transitivista” (p. 243), diz Dunker, pois, quando sofremos, criamos identificações nas quais o agente e o paciente da ação se indeterminam mutuamente. Um ciclo se instala: se uma pessoa querida adoece, ela sofre porque perde sua saúde, você sofre porque ela sofre, ela sofre porque você sofre e assim por diante, envolvendo todos aqueles que amam quem sofre.

O sofrimento depende ainda de relações de reconhecimento. A experiência de sofrimento que é reconhecido, seja por aqueles que nos cercam, seja pelo Estado, é diferente do sofrimento sobre o qual paira o silêncio, a invisibilidade ou a indiferença. Portanto, há uma política do sofrimento, uma política que rege o sofrimento e estabelece para cada comunidade qual demanda deve ser sancionada como legítima e qual deve ser reduzida ao que Freud chamava de sofrimento ordinário (Dunker, 2017).

O sofrimento psíquico é produzido e gerido pelo neoliberalismo, através de políticas neoliberais. O neoliberalismo é um modo de intervenção social profundo nas dimensões produtoras de conflito. Ora, para que a “liberdade” como empreendedorismo e livre-iniciativa possa reinar, o Estado precisa despolitizar a sociedade, sendo a única maneira de impedir a autonomia necessária de ação na economia (Safatle, 2020).

Teoricamente, o neoliberalismo adota uma posição “dessocializada” e “des-historicizada”, “apolítica”, que supõe a livre eleição de um homo economicus sem vínculos de classe e sem história. De acordo com Bourdieu (1998), o neoliberalismo cria uma ficção matemática que beneficia certos agentes econômicos, como os grandes acionistas, operadores financeiros e políticos conservadores, capazes de dotar essa teoria de um poder simbólico que legitima a supressão das clássicas regulações de mercado. Assistimos, assim, à desaparição das regulações do mercado de trabalho, à privatização dos serviços públicos, à retração de recursos aplicados em educação e saúde, ao mesmo tempo que se reduzem ou desaparecem os recursos destinados à assistência, previdência e proteção social.

O sujeito empresarial, autoengendrado, essencialmente individual e isolado, na medida em que é alheio ao espaço político do comum, do coletivo, possibilita a corrosão dos direitos e a aceitação generalizada de um mundo de precariedade e provisoriedade laboral, baseado na ideia de que todos devem correr seus próprios riscos. Nesse sentido, o insucesso será visto como falta de investimento no próprio capital humano e cada ação passará a ser avaliada em termos de custo-benefício. Esse “neosujeito” deverá ser um especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo (Safatle, 2020).

Uma espécie de economia moral se instala assim como a produção dos seus descontentes e ressentidos que não conseguem atingir a performance exigida. Para Cyntthia Fleury (2019), vivemos uma nova crise da subjetividade no sentido em que ela é  atravessada por diversas pressões: a pressão da racionalização econômica, a pressão tecnológica e digital que tende a reduzir o sujeito aos dados, a pressão pelo aperfeiçoamento neural, a pressão política  que desubstancializa o Estado de bem-estar social pensando em proteger o Estado de direito que, no entanto, porta princípios cada vez mais liberticidas.

A ameaça hoje é tão grande na saúde como também na educação.  A educação é compreendida como um processo que ocupa toda a vida do sujeito, porém, é na primeira infância que os valores de empreendedorismo, competição, alta performance e conquista de metas e objetivos são ensinados, mantendo-se ao longo da vida da pessoa como “empresário de si”.

O neoliberalismo comanda um espaço de produção de subjetividade cujo eixo é a noção de capital humano. A ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidário de uma sociedade com menos intervenção do Estado (ideia tão presente nos dias de hoje) é falsa! O neoliberalismo é um modo de intervenção social profundo, por vezes (como agora) associado ao fascismo.

O neoliberalismo é espaço de produção de subjetividades, pois esse sistema não produz apenas bens e serviços, mas também um modo particular de ser sujeito que é o “capital humano”, ou “empresário de si”. O sujeito neoliberal é construído a partir de relações orientadas por princípios, como a aceitação de um tipo de trabalho flexível que exige perda de autonomia, o dever de permanente adaptação a circunstâncias novas, o espírito de competição e de alta performance, assim como a autorresponsabilização pelos próprios êxitos e fracassos.

Numa sociedade de sujeitos empreendedores, considerados inteiramente livres e responsáveis por seus atos, as situações de desamparo, desemprego, insucesso, serão vistas como fracasso pessoal. O sujeito fracassa por não ter sabido gerenciar adequadamente a própria vida, por não ter sabido antecipar adequadamente os riscos de seus empreendimentos ou por não ter investido suficientemente em si mesmo, mas nunca como resultado das transformações coletivas e sociais impostas pela lógica neoliberal que espalha a desproteção social e debilita os laços de solidariedade.

Certos saberes como a psiquiatria e a neuropsiquiatria contribuem reforçando essa lógica, segundo a qual os contextos sociais e coletivos que provocaram o sofrimento desaparecem, fazendo com que cada padecimento seja visto como uma questão exclusivamente individual. Dardot e Laval (2010) caracterizam como “diagnósticos clínicos” do neosujeito, do capital humano, os padecimentos psíquicos do sujeito neoliberal. Padecimentos que, ainda quando não configuram doenças, muitas vezes podem levar à atribuição de diagnósticos psiquiátricos ambíguos, centrados em sintomas, que desconsideram os contextos sociais, relacionais, históricos nos quais os sofrimentos emergiram.

Referências

Dardot, P., & Laval, C. (2010). La nouvelle raison du monde: essai sur la société neoliberal. Paris: La Découverte.

Dunker, C. (2017). Reinvenção da intimidade: políticas de sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu Editora.

Fleury, Cynthia. (2005). Les pathologies de la démocratie. Paris: Fayard.

Fleury, Cynthia. (2019). Le soin est um humanisme. Paris: Gallimard.

Safatle, V. (2018). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autentica.

Safatle, V. (2020). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autentica.

A BBC, Harrow, e um público abandonado na escuridão

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Em 18 de Fevereiro, a BBC World transmitiu uma emissão de 26 minutos sobre “tratamento sem drogas” na Noruega, e embora tenha sido encorajador ver essa iniciativa atrair essa atenção, a emissão, na forma como tratou a história, foi também motivo de desapontamento: não poderiam os meios de comunicação social, pergunto-me, alguma vez desafiar a ideia convencional sobre os méritos dos antipsicóticos? Apenas uma vez?

Então, dois dias depois, li a última publicação de Martin Harrow e Thomas Jobe sobre as suas conclusões do seu estudo a longo prazo de pacientes psicóticos, que uma vez mais falou vigorosamente do impacto negativo a longo prazo dos antipsicóticos, e pensei, não poderiam os principais meios de comunicação social, apenas uma vez, relatar o seu estudo? Será isso pedir demasiado?

Em primeiro lugar, a reportagem da BBC.

Os oito minutos de abertura da emissão exploraram as origens políticas do esforço norueguês e falaram da unidade assistencial sem drogas em Tromsø, liderada por Magnus Hald. Os cinco minutos finais foram dedicados à ‘terapia de exposição basal’, uma prática em um hospital perto de Oslo que vem se revelando ser bem-sucedida em ajudar pacientes crônicos a reduzir o uso de medicamentos psiquiátricos, ou a retirá-los completamente. Estas duas partes da emissão foram ótimas e bem-feitas.

Contudo, entre estes dois segmentos, a BBC dedicou 13 minutos aos críticos da iniciativa sem drogas, e foi aqui que a emissão, em termos de servir o público, falhou lamentavelmente. A BBC deu tempo de antena aos críticos no espírito de “vamos dar a ambos os lados o mesmo tempo”, mas no processo eles deixaram que os críticos reformulassem a iniciativa para os ouvintes como sendo uma iniciativa susceptível de prejudicar os pacientes, sem forçar os críticos a recuar nas suas afirmações.

Eis o que os ouvintes escutaram durante este interlúdio de 13 minutos:

  1. Não se pode tratar doentes psicóticos sem medicamentos e Kingsley Hall é a prova disso.

Primeiro, o psiquiatra norueguês Jan Ivar Rossberg disse que não havia registro na literatura de investigação de qualquer terapia não medicamentosa que alguma vez tivesse provado ser eficaz para doentes psicóticos. Ele apontou a experiência de Kingsley Hall liderada por R.D. Laing na década de 1960 como um exemplo desse fracasso. Nesse caso, a BBC explicou, “os antipsicóticos estavam fora, o LSD estava dentro”. Os pacientes eram encorajados a regressarem à infância. Chamavam a esta metodologia antipsiquiátrica”.

O repórter da BBC concluiu então que “outras tentativas de combater a psicose utilizando apenas terapias da fala falharam de forma semelhante”. Para Rossberg, a BBC acrescentou, este “movimento para um tratamento sem drogas baseia-se mais numa ideologia do que em provas”.

2) Os antipsicóticos são um salva-vidas para muitas pessoas.

Depois de informar os ouvintes de que as terapias sem drogas para doentes psicóticos tinham sempre falhado, a BBC lembrou então aos telespectadores que os antipsicóticos eram um salva-vidas para muitos. A emissão apresentou então uma entrevista com uma paciente que, depois de tentar ficar bem sem os medicamentos, tinha voltado a tomar antipsicóticos e agora estava a viver uma vida muito melhor.

(3) As pessoas diagnosticadas com um distúrbio psicótico que não tomam antipsicóticos são frequentemente sem-abrigo.

O psiquiatra norueguês Tor Larsen falou então dos horrores da “psicose não tratada”. Cinquenta por cento da população sem-abrigo que vive debaixo de pontes foi dita estar sofrendo desta forma porque não tomou a sua medicação antipsicótica. Os sem-abrigo “na realidade não têm comida nem tratamento para infecções”, e assim por vezes morrem, disse Larsen.

4) E aqueles que não tomam antipsicóticos cometem frequentemente crimes, incluindo homicídios.

Larsen disse à BBC que talvez 30% das pessoas com “psicose não tratada” cometem crimes, e em raras ocasiões, isto leva a homicídios. A emissão discutiu então porque é que esta ameaça à segurança pública era uma razão pela qual alguns pacientes precisavam de ser tratados à força, e gastou tempo detalhando a história de um homem psicótico que tinha deixado a sua medicação e matado um homem com um machado.

Tal foi a crítica à iniciativa norueguesa sem drogas. Rossberg e Larsen contaram uma história que a psiquiatria, como instituição, repete com regularidade aos meios de comunicação social. Os antipsicóticos são um tratamento eficaz para as perturbações psicóticas, e as pessoas assim diagnosticadas que não tomam estes medicamentos não se dão bem e são uma ameaça para a segurança pública. Com esse enquadramento dos críticos, a BBC apresentou esta iniciativa, por muito bem intencionada que fosse, como uma iniciativa que carece de apoio científico, que poderia falhar (se o passado fosse um guia), e poderia levar a pacientes “não tratados” que se tornassem sem abrigo e cometessem crimes.

E aqui estava a parte frustrante para mim: Tinha falado com a repórter da BBC meses antes, e exortei-a a falar da ciência que apoiava esta iniciativa.

A Reação Ausente

A jornalista da BBC que narrou a emissão, Lucy Proctor, tinha-me contactado em novembro. Ela disse que tinha lido o Relatório do MIA que eu tinha escrito sobre a iniciativa norueguesa de não-droga em 2017, e que a BBC procurava agora fazer uma reportagem sobre o assunto. Falámos via Skype, e nessa chamada, entre outras coisas, salientei que o esforço sem drogas era uma iniciativa baseada em evidências. Tinha apresentado este mesmo argumento no Relatório da MIA que a Proctor havia lido.

Embora Rossberg possa ter dito à BBC que não havia registro de uma abordagem terapêutica que tivesse tido sucesso no tratamento de doentes psicóticos sem o uso de antipsicóticos, o sucesso do Diálogo Aberto, tal como praticado em Tornio, na Finlândia, durante mais de 20 anos, proporciona um tal historial. Como Jaakko Seikkula e colegas têm relatado, os doentes psicóticos recém-diagnosticados não são imediatamente colocados em antipsicóticos na sua prática do Diálogo Aberto, e tal medicação só é fornecida se os doentes não melhorarem durante as semanas seguintes. No final de cinco anos, 71% dos seus pacientes nunca tinham sido expostos aos medicamentos, e apenas 20% os utilizavam regularmente. E aqui estavam os seus resultados: 82% dos pacientes estavam assintomáticos, e 86% estavam a trabalhar ou na escola. Apenas 14% estavam em situação de incapacidade por parte do governo. Os seus resultados são muito superiores aos dos pacientes do primeiro episódio tratados convencionalmente com antipsicóticos.

Em segundo lugar, como disse à Proctor, há a investigação de Martin Harrow e Thomas Jobe a considerar. Eles seguiram os resultados dos doentes diagnosticados com esquizofrenia e outras perturbações psicóticas durante mais de duas décadas, e descobriram que as taxas de recuperação para os que não tomaram medicação foram significativamente mais elevadas. Os pacientes ” complacentes com a medicação” que permaneceram com os medicamentos tinham muito mais probabilidades de se manterem psicóticos e de se manterem funcionalmente incapacitados. (Veja aqui para uma revisão aprofundada da investigação feita por eles).

A Terapia de Exposição Basal fornece uma terceira razão para apoiar os esforços de afilamento do medicamento antipsicótico (redução da dose), que faz parte da iniciativa norueguesa. A investigação publicada conta como ajudou os doentes crônicos a reduzir a dose dos medicamentos, ou a sair completamente dos medicamentos, e como isto levou a uma melhoria de vida dramática para muitos.

Agora – e foi isto que tentei enfatizar quando falei com Lucy Proctor em novembro – quando se considera este corpo de investigação, a iniciativa norueguesa deve ser descrita como um esforço muito mais amplo para “repensar” o uso de antipsicóticos. Há evidências de que minimizar a exposição inicial aos antipsicóticos e limitar a sua utilização a longo prazo irá aumentar a probabilidade de os doentes psicóticos se recuperarem e se saírem bastante bem a longo prazo.

A minha esperança era que, munida desta informação, a Proctor tivesse uma outra postura em relação a Rossberg e Larsen quando os entrevistasse. Tinha-me envolvido com Rossberg num debate em Oslo, e sabia quais seriam as críticas deles.

No entanto, e isto foi o que achei desanimador, esse questionamento do pensamento dominante está em falta na emissão. Rossberg e Larsen, que foram apresentados como psiquiatras proeminentes na Noruega, apresentaram o habitual discurso sobre os antipsicóticos e os horrores da psicose “não tratada”, e dessa forma reivindicaram o manto da ciência para os ouvintes da BBC. Como tal, a BBC transmitiu, mesmo ao relatar essa “experiência radical – e fê-lo com entrevistas reflexivas de Magnus Hald e de vários líderes de grupos de utilizadores – serviu para reforçar as crenças sociais convencionais.

Isto é algo que se vê uma e outra vez quando os principais meios de comunicação social relatam abordagens alternativas ao tratamento de doentes diagnosticados com uma “doença mental grave”. Quase sempre chega um momento em que a publicação tem o cuidado de tranquilizar os leitores de que os medicamentos são na sua maioria “úteis” e negligência mencionar a investigação que apontaria para uma conclusão diferente.

O Último Artigo do Harrow

Provavelmente não teria sido levado a escrever este blogue se não fosse o fato de dois dias após a emissão da BBC, ter lido o último artigo publicado por Martin Harrow e Thomas Jobe. Foi a justaposição dos dois que assim diz da cobertura mediática que deixa o público mal-informado e no escuro sobre os efeitos a longo prazo dos antipsicóticos e outros medicamentos psiquiátricos.

A investigação de Martin Harrow e Thomas Jobe é, creio eu, a investigação psiquiátrica mais importante que foi realizada nos últimos 65 anos. A razão é que desmente completamente a narrativa convencional que tem animado os cuidados psiquiátricos desde que a clorpromazina, comercializada como Thorazine, foi introduzida na medicina de asilo em 1955. Este medicamento, ou pelo menos a narrativa assim o diz, tornou possível esvaziar os asilos. A clorpromazina é lembrada como o primeiro antipsicótico, um nome que fala de como foi concebido como um antídoto específico para a psicose, e que se diz ter dado o pontapé de saída de uma ” revolução psicofarmacológica”. Esta é a própria classe de drogas que se situa no centro dessa narrativa de progresso.

Martin Harrow e Thomas Jobe iniciaram o seu estudo, que foi financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, no final dos anos 70. Eles inscreveram 200 pacientes psicóticos que tinham sido tratados convencionalmente num hospital psiquiátrico com antipsicóticos e simplesmente começaram a avaliar periodicamente como estavam se saindo, e se estavam tomando medicamentos antipsicóticos. Em 2007, relataram que a taxa de recuperação a longo prazo dos doentes com esquizofrenia fora da medicação antipsicótica era oito vezes superior à dos que tomavam a medicação (40% versus 5%).

Embora esta tenha sido uma descoberta espantosa, Harrow e Jobe ofereceram uma explicação para a divergência nos resultados que pouparam as drogas de qualquer culpa. Eles escreveram que eram aqueles com um melhor prognóstico inicial que tinham mais probabilidades de deixar de tomar os seus medicamentos, e essa poderia ser a razão para os melhores resultados para o grupo não medicado.

No entanto, a partir de então, Harrow e Jobe realizaram mais análises dos seus dados e atualizaram regularmente os seus resultados, e à medida que o faziam, essa justificação para a preservação das drogas foi sendo gradualmente posta de lado. Especificamente:

  • Relataram que em cada subgrupo de pacientes, os resultados foram muito melhores para os que não tomavam medicação. Os doentes esquizofrênicos com um “bom prognóstico” na linha de base que deixaram de tomar medicamentos antipsicóticos tiveram melhores resultados a longo prazo do que aqueles com um bom prognóstico que se mantiveram com os medicamentos. O mesmo era verdade para os doentes esquizofrênicos com um “mau prognóstico” na linha de base; aqueles que deixaram de tomar a medicação tiveram um melhor desempenho a longo prazo. E era verdade para os doentes diagnosticados com transtornos psicóticos mais ligeiros – o grupo de doentes sem medicação tinha resultados marcadamente melhores.
  • Os melhores resultados para os pacientes não-medicados surgiram após os pacientes terem abandonado os seus medicamentos antipsicóticos. No seguimento de dois anos, havia pouca diferença entre aqueles que estavam em conformidade com os medicamentos e aqueles que tinham deixado de tomar os medicamentos. Contudo, durante os 2,5 anos seguintes, os seus resultados divergiram drasticamente. O grupo não-medicado melhorou notavelmente durante esse período, enquanto que o grupo medicado não o fez. Não foi que os pacientes do grupo “não-medicados” tivessem melhorado com os medicamentos e depois tivessem ficado bem depois de terem saído; foi que não melhoraram até terem deixado de tomar os medicamentos.
  • A diferença nos resultados que apareceram no acompanhamento de 4,5 anos permaneceu ao longo de todo o estudo. Em cada follow-up subsequente, aqueles que utilizavam medicação antipsicótica, em geral, eram mais propensos a estarem ativamente psicóticos, ansiosos e funcionalmente deficientes.
  • Dados estes resultados, Harrow e Jobe começaram a escrever sobre a razão pela qual as drogas poderiam piorar os resultados a longo prazo. Uma razão possível, escreveram eles, era que os antipsicóticos poderiam induzir uma supersensibilidade à dopamina que tornaria os doentes mais vulneráveis biologicamente à psicose do que de outra forma estariam no curso natural da doença.

Estas descobertas, a partir do melhor estudo a longo prazo de doentes psicóticos realizado desde a chegada da clorpromazina na medicina de asilo, colocam a narrativa convencional no topo. Os antipsicóticos, em vez de servirem de antídoto para a psicose, podem agravar esses sintomas a longo prazo, e, mais amplamente, agravar o curso a longo prazo da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos.

No seu artigo recentemente publicado em Medicina Psicológica, Harrow e Jobe fizeram uma análise cuidadosa de quaisquer fatores de confusão que pudessem explicar a divergência nos resultados para os pacientes medicados e não medicados. Ao fazê-lo, concentraram-se diretamente na desculpa habitual ainda dada pelos defensores da psiquiatria de que aqueles que abandonaram a medicação estavam menos doentes desde o início. Eis o que eles concluíram:

“O nosso estudo atual aqui mostra que independentemente do diagnóstico (esquizofrenia e psicose afetiva), os participantes que não receberam medicação antipsicótica são mais propensos a experimentar mais episódios de recuperação, maior pontuação de GAF [que mede o funcionamento], e são menos propensos a ser re-hospitalizados. Além disso, os participantes que não tomaram medicação antipsicótica tiveram aproximadamente seis vezes mais probabilidades de recuperação do que os participantes que tomaram medicação, independentemente do estado de diagnóstico, índice prognóstico, raça, sexo, idade, educação e outros fatores”.

Em suma, eles isolaram o uso de medicamentos como a variável que contabilizava os maus resultados a longo prazo para aqueles que ficaram com os medicamentos. Também discutiram seis outros estudos publicados na última década que dão apoio às suas conclusões. Aqui estão os estudos que citaram e a sua descrição dos resultados:

  • Wunderink (2013): No final de sete anos, os pacientes aleatorizados para um plano de tratamento de redução/descontinuação da dose, em comparação com o tratamento antipsicótico como de costume, encontravam-se “significativamente melhor em termos de funcionamento social, funcionamento profissional, autocuidado, relações com os outros, e acima de tudo integração na comunidade”.
  • Molainen (2013): Num seguimento de 10 anos de pacientes psicóticos nascidos em 1966, 63% dos que não receberam medicação antipsicótica estavam em remissão em comparação com 20% dos que receberam a medicação.
  • Morgan (2014): No estudo AESOP-10 no Reino Unido, as taxas de remissão permaneceram mais elevadas nos últimos dois anos do estudo para aqueles que não tomaram os medicamentos em comparação com os que permaneceram com os medicamentos.
  • Kotov (2017): neste grande estudo longitudinal “bem documentado”, o uso antipsicótico foi associado “a um funcionamento geral mais baixo, medido por uma diminuição das pontuações de GAF, inexpressividade e apatia-não sociabilidade em geral”.
  • Wils (2017): O estudo dinamarquês Opus descobriu que “uma maior percentagem de pacientes com medicação antipsicótica apresentava um mau desempenho em comparação com os participantes que não tomavam antipsicóticos. Aproximadamente 75% dos 120 participantes sem medicamentos no período de 10 anos que se seguiu estavam a ter bons resultados e em remissão.

Esta é, evidentemente, uma informação que o público gostaria de conhecer. Deve fazer parte de qualquer processo de consentimento informado para a prescrição dos medicamentos, e pode-se pensar que os principais jornais e revistas estariam ansiosos por relatar os resultados de um estudo a longo prazo, financiado pelo NIMH e o melhor do seu gênero jamais feito, que tão completamente desmente a narrativa convencional e as pistas de danos feitos em grande escala.

No entanto, se procurar por “Martin Harrow” na função de pesquisa do New York Times, eis o que irá descobrir: Em 1967, ele “ganhou o primeiro lugar” no torneio de xadrez do New England Open em Boston. Procure um pouco mais neste aspecto da sua vida, e descobrirá que ele empatou duas vezes com Bobby Fischer em torneios de xadrez.

E aqui está o que você não encontrará: qualquer menção à sua pesquisa e à de Thomas Jobe.

Antipsiquiatria

Depois de eu ter terminado de ler o último artigo de Harrow, tive este pensamento: se o público quiser saber por que é que existe um movimento “antipsiquiatria”, poderia rever a emissão da BBC e as constatações no último artigo de Harrow. Rossberg sabia da investigação de Harrow. Ele sabia da pesquisa Opus. Sabia dos resultados superiores obtidos no norte da Finlândia com práticas de Diálogo Aberto que minimizavam o uso de drogas psiquiátricas. No entanto, escolheu dizer ao mundo através da BBC que não havia provas de que os doentes psicóticos pudessem ser tratados sem drogas.

E depois o público podia recorrer ao estudo de Harrow e ver o que não lhes estava sendo dito. Ficariam a saber que, a longo prazo, os doentes psicóticos fora dos medicamentos antipsicóticos tinham seis vezes mais probabilidades de se recuperar do que os que estavam em obediência aos medicamentos, e que vários outros estudos tinham produzido resultados semelhantes de melhores resultados para doentes não-medicados.

Seis vezes mais probabilidades de recuperação.

Estas eram as palavras que ficariam, e para muitos, seriam palavras que partiriam os seus corações.

***

Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para uma discussão-psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

In Memoriam: Birgitta Alakare

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Em 19 de Fevereiro de 2021, o mundo perdeu Birgitta Alakare, a antiga psiquiatra chefe do Hospital Keropudas em Tornio, Finlândia, e pioneira no desenvolvimento do Diálogo Aberto. Médica e terapeuta de família de renome, foi autora de muitos artigos profissionais e científicos e ensinou e deu palestras em todo o mundo. Era venerada e amada por muitos que trabalharam com ela e aprenderam com ela.

Conheci a Dra. Alakare pela primeira vez quando viajei para Tornio em 2012 para a 17ª Conferência Internacional sobre o Tratamento da Psicose. Eu tinha tomado conhecimento do Diálogo Aberto (DA) através da Anatomia de uma Epidemia de Robert Whitaker e o meu foco inicial era a aparente desconfiança na farmacoterapia como um componente essencial do tratamento psiquiátrico. Cheguei sozinha àquela pequena cidade, naquela que parecia ser uma parte extremamente remota do mundo. Fiquei profundamente emocionada com o que encontrei e partilhei as minhas reflexões na época. Foi uma experiência transformadora. Apercebi-me que o uso de drogas psiquiátricas, embora importante, era apenas uma parte da história. Aprendi sobre uma forma de cuidar das pessoas que é profundamente humana.

Durante o meu primeiro encontro com a Dra. Alakare, conheci uma mulher de fala mansa. Ela era uma especialista internacionalmente reconhecida na sua área, rodeada de admiradores, que tratava todos com amabilidade e apreço. Durante a minha carreira na medicina, a minha experiência tem sido que este tipo de humildade é raro, especialmente entre os da sua estatura. Eu era uma psiquiatra americana, recém-chegada a esta forma de trabalhar, viajando de outra pequena cidade do outro lado do globo. Durante esta e subsequentes visitas, a Dra. Alakare abraçou-me como a todas as pessoas que encontra na prática clínica e no domínio profissional: com todo o respeito e calor humano.

Fiel à prática do DA, a Dra. Alakare dizia pouco, mas quando ela falava, eu me sentia inclinada e a ouvi-la atentamente. O que ouvi ficou comigo. Naquela primeira conferência, ela sugeriu que tivéssemos uma discussão sobre “o que queremos dizer quando usamos a palavra ‘esquizofrenia'”. No meu diário, escrevi que ela falou sobre o significado deste rótulo para as pessoas e discutiu a nossa obrigação de tentar compreender as afirmações das pessoas, mesmo que as suas palavras não pareçam, no início, fazer sentido. Uma marca do DA é que durante os encontros clínicos os praticantes se voltam uns para os outros e refletem sobre o que ouviram. Perguntaram-lhe se os médicos alguma vez têm conversas entre si quando a pessoa ou família não está presente. Esta é uma pergunta comum, uma vez que muitos de nós pensamos que vamos perder alguma coisa por não termos tais discussões entre colegas. Embora não me lembre das suas palavras exatas, o que me lembro é que ela disse algo sobre não se sentir confortável com a natureza do discurso que ocorre quando os clínicos falam entre si. Nos anos que se seguiram, pensei nas horas de reuniões de equipas clínicas em que tenho participado ao longo dos anos. Mesmo entre pessoas bem-intencionadas, é fácil assumir um tom de julgamento. Ser obrigado a encontrar uma linguagem que possa ser partilhada com todos leva as pessoas não só a falar, mas também a pensar de uma forma mais respeitosa. Em vez de se perder algo, muito se ganha.

Viajei até Tornio pensando que iria aprender sobre o seu uso de drogas psiquiátricas, mas este não era um foco da reunião. No entanto, tinha muitas perguntas e no último dia, invoquei a coragem de me aproximar dela. “Mas e o lítio?” perguntei eu. Esta é uma droga que eu pensava ser útil para alguns e nos EUA é um pilar fundamental no tratamento da mania. Ela respondeu que raramente tinha encontrado a necessidade do seu uso. Eu sabia que ainda havia muito para aprender.

Embora as nossas práticas diferissem em muitos aspetos, existiam algumas semelhanças. Éramos mulheres médicas que entraram para a medicina quando éramos poucas em posições de liderança. Ambas terminámos as nossas carreiras como chefes de psiquiatria nas nossas organizações, situadas em regiões rurais, do Norte dos nossos respectivos países. No meu papel, embora tenha tido muitos colegas que me apoiaram e ajudaram, muitas vezes faltaram-me – embora tivesse ânsia – mulheres como modelos. Embora nunca tivesse a audácia de sugerir que existem mais do que estas características superficiais partilhadas entre nós, sei que em cada oportunidade fiz tudo o que pude para passar tempo com ela e ela foi invariavelmente e infalivelmente amável e generosa. Vi-a pela última vez, em 2018, novamente em Tornio, numa reunião da mesma organização em que nos conhecemos pela primeira vez. Estou eternamente grata por ter feito tudo o que pude para estar em salas com ela, para absorver a sua sabedoria e a sua delicada forma de cuidar.

O Diálogo Aberto é uma forma de trabalho em que todas as vozes são respeitadas. É fundamentalmente transparente e democrático. A humildade é fundamental para a prática. Em ambientes mais tradicionais, os clínicos são os peritos que concluem as suas avaliações a fim de fazer um diagnóstico ou formulação. Nas clínicas de saúde mental, e especialmente nos hospitais, é ao psiquiatra que é concedida a maior autoridade. Um psiquiatra que abraça o DA deve estar disposto a partilhar o poder. Embora os médicos não neguem a sua formação e conhecimentos médicos, reconhecem que existem muitos tipos de competências e que todas são valorizadas. Esta atitude pode ser transformadora e curativa para um jovem que luta com a psicose pela primeira vez e que é tratado como estranho pela maioria de todos.

Cheguei a acreditar que o Diálogo Aberto não teria avançado em Tornio sem a Dra. Birgitta. O DA exigia um líder psiquiátrico que estivesse disposto a compartilhar a autoridade. Durante a minha mais recente visita a Tornio, tive o prazer de observar um painel de discussão entre aqueles que tinham introduzido o DA no Hospital de Keropudas. Este painel incluiu não só o Dra. Birgitta, mas também Jaakko Seikkula, o psicólogo líder, bem como enfermeiros e outros membros da equipe do hospital na época. Foi uma discussão fascinante durante a qual o respeito de uns pelos outros – independentemente da sua posição ou educação – era evidente. Isso não poderia ter acontecido com um psiquiatra que insistisse no tipo de estrutura hierárquica que continua a ser comum na maioria dos hospitais. Os psiquiatras não precisam de estar na sala para que ocorram reuniões eficazes de DA, mas os psiquiatras podem usar a sua autoridade para desprezar a prática e esmagar o seu desenvolvimento. É o psiquiatra que muitas vezes tem autoridade exclusiva para prescrever – ou optar por não prescrever – as drogas. A evolução e crescimento do DA envolveu muitas pessoas notáveis; sem a Dra. Birgitta, porém, parece pouco provável que tivesse crescido da forma como cresceu.

Como o DA continua a expandir-se para além de Tornio, espero que os meus colegas psiquiátricos mais jovens, novatos neste tipo de prática, notem o papel que esta corajosa mulher desempenhou no seu desenvolvimento. Enquanto aqueles sem poder podem forçar a sua entrada, a transformação é grandemente facilitada quando os que estão no poder estão dispostos a abrir portas. Birgitta Alakare exemplificou esse princípio. Com um coração pesaroso, apresento as minhas condolências à sua família, amigos e colegas.

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Nota do editor: Em 2020, a Fundação JAEC, em colaboração com a SO-PSY, a Sociedade Suíça de Psiquiatria Social, apresentou a candidatura da Dra. Birgitta Alakare ao Prêmio de Genebra para os Direitos Humanos na Psiquiatria. Você pode ouvir aqui uma palestra que ela deu em 2016.

‘Desajustamento criativo’: Uma Entrevista com Donzaleigh Abernathy

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The Abernathy Family marching with Dr. Martin Luther King, Jr., and Coretta Scott King on Day 4 of the Selma to Montgomery March for the Right to Vote. Donzaleigh Abernathy is the child on the left side of the front row.

A atriz, cantora, escritora e ativista dos direitos civis Donzaleigh Abernathy é afilhada do Reverendo Dr. Martin Luther King, Jr., e filha do Reverendo Dr. Ralph David Abernathy, o melhor amigo e parceiro de King no movimento dos direitos civis – que foi cofundador da Conferência de Liderança Cristã do Sul [Southern Christian Leadership Conference] e se tornou presidente da mesma após o assassinato de King a 4 de Abril de 1968. A sua mãe, Juanita Abernathy. era a ativista dos direitos civis.

Quando criança, Abernathy testemunhou alguns dos momentos mais inspiradores e formativos do movimento dos direitos civis – e alguns dos mais sóbrios. Ela também cresceu conhecendo e amando o homem a quem chamou Tio Martin, cujas posições contra o racismo, a pobreza e a guerra permanecem tão relevantes hoje como quando ele as exprimiu pela primeira vez. Também são relevantes os seus apelos ao ‘desajustamento criativo’, ou seja, a recusa de se ajustar aos muitos males da sociedade.

Donzaleigh Abernathy

Abernathy é a autora de Partners to History: Martin Luther King, Ralph David Abernathy and the Civil Rights Movement. Ela também contribuiu com o trabalho do Smithsonian Institute’s In the Spirit of Martin.

Como atriz, é conhecida pelos seus muitos papéis em filmes – tais como o drama da guerra civil Gods e Generals – e muitas séries, incluindo o drama Any Day Now e a série The Walking Dead, e séries zombie-apocalypse. Além disso, é a solista principal de uma nova peça coral, The Listening, composta por Cheryl B. Engelhardt  para o The Voices 21C em Nova York. Trata-se uma peça inspirada por um discurso antiguerra que King proferiu precisamente um ano antes da sua morte, e foi lançada enquanto um single e um vídeo.

A transcrição abaixo foi editada para maior compreensão e clareza do conteúdo. Ouça aqui o áudio da entrevista. A tradução não é a íntegra do conteúdo. Quem puder, o melhor é mesmo ouvir a entrevista para mais detelhes.

Nós brasileiros temos muito a agradecer os companheiros do Mad in America.

Amy Biancolli: Vamos começar, se não se importa, voltando no tempo à sua infância. Pelo que li, recordo que a sua família e a família King eram um grupo muito unido.

Donzaleigh Abernathy: Crescemos juntos, e papai e tio Martin eram grandes amigos. Eles conheceram-se quando o meu pai estava na Universidade de Atlanta, obtendo o seu mestrado em sociologia, e o tio Martin era um estudante universitário – e o avô King convidou o meu pai e um grupo de outros jovens ministros ouvindo o tio Martin pregar o seu sermão que ficará para a história. E o tio Martin era, sabe, maravilhoso. Assim, no final do serviço, o meu pai aproximou-se dele e apertou-lhe as mãos para o elogiar. E havia química entre os dois. Eles gostaram um do outro instantaneamente.

Algumas semanas mais tarde, o meu pai teve um encontro com esta jovem. Ele telefonou-lhe bem cedinho nesse domingo para combinar um encontro, e ela disse que tinha uma constipação, que não podia ir ao encontro.

Assim, ele foi ao concerto sozinho – e debaixo da árvore, ele viu Martin Luther King. Ao se acercar do tio Martin, ele vê o braço do tio Martin enrolado em volta da árvore. E eles falam durante alguns minutos – e depois o meu pai apenas seguiu o braço, e do outro lado do braço estava a mulher que havia dito ao meu pai que estava doente. Ela deixou-o à espera para que fosse a um encontro com o tio Martin – e literalmente, foi assim que a amizade deles começou, por causa desta jovem senhora.

Biancolli: Compreendo que, enquanto menina, você se lembra dos Cavaleiros da Liberdade [Freedom Riders] que vêm à sua casa – ou da marcha de Selma para Montgomery. Há algum momento crítico, em particular, no movimento dos direitos civis que lhe vem à mente?

Abernathy: Oh, meu Deus. Lembro-me da passeata em Washington, que foi absolutamente tremenda – e, sabem, a tal ponto a formar uma corrente humana.

E depois participamos na marcha de Selma a Montgomery. E depois fomos a Chicago para os protestos pela habitação, porque queríamos uma habitação justa e integrada. E eles lançaram-nos coisas. Essa foi a única vez em que realmente fomos vítimas de violência, foi em Chicago. As pessoas atiravam-nos coisas. Então, eles levaram-nos para uns carros, e lembro-me de estar no carro com o papai e o tio Martin enquanto tentavam tomar a decisão sobre o que fazer.

The Abernathy Family marching with Dr. Martin Luther King, Jr., and Coretta Scott King on Day 4 of the Selma to Montgomery March for the Right to Vote. Donzaleigh Abernathy is the child on the left side of the front row.

Biancolli: E também tem outras memórias de momentos mais sombrios. Pelo que li, o Ku Klux Klan chamou repetidamente a sua família, tanto no Alabama como depois em Atlanta.

Abernathy: Todas as noites.

Biancolli: Todas as noites.

Abernathy: É isso mesmo. Todos os dias. Todos os dias, sem falta, à hora do jantar. Todos os dias.

Biancolli: Quando criança, isso deve ter sido muito aterrador para você.

Abernathy: Isso era aterrador. Era incrivelmente aterrador, bem como o correio de ódio que eles enviavam e diziam que o meu pai era selvagem por natureza, e que ele era um embaraço para a sua raça e que nós estávamos melhor aqui na América vivendo em segregação do que como animais na África. Era simplesmente repugnante, mas a questão é que, quando telefonavam à noite, diziam que nos iam matar. E assim comíamos o resto do nosso jantar em silêncio.

A minha mãe, você sabe, ela – nós – sabíamos quando a ligação viria, e permanecíamos praticamente em silêncio durante o resto da noite.

Depois a outra coisa era, não se sabia se se ia sobreviver à noite, porque eles já haviam bombardeado a nossa casa antes.

Biancolli: Eu ia perguntar sobre isso. Você estava literalmente in utero, certo?

Abernathy: Exato, e quando nasci, acordei tremendo. Saí literalmente do ventre da minha mãe tremendo, eu despertei. É, acho eu – o nascimento é um despertar. E depois tremi durante seis meses. Acho que tenho ansiedade de separação. Sei que todas as segundas-feiras de manhã, quando o meu pai tinha que sair, eu chorava antes de ir à escola, porque não sabia se o voltaria a ver.

Biancolli: Ele tinha-lhe dito que poderia ser assassinado, certo? Ele tinha tido essa conversa com você?

Abernathy: Mm-hmm. Sim, ele disse. Assim, em 1963, quando Medgar Evers foi assassinado na entrada da sua casa em frente dos seus filhos, e [a sua filha] Reena Evers disse-me, ou ela disse-me que – oh, foi horrível. Ela e os seus irmãos, queriam ir lá fora, mas a mãe não os deixava sair por medo de que o tipo voltasse a disparar. E o pai delas está ali deitado, morrendo.

Assim, o papai tinha que nos explicar isso – e eu sei que o tio Martin tinha de ter essa conversa com os seus filhos.

Biancolli: Quanto disto você conseguiu processar quando era criança? Ou é uma destas coisas em que se olha para trás, e se vê todo o trauma, e se diz, está bem, eu posso dar sentido a isso neste contexto? Quero dizer, será que alguma vez conseguirá dar sentido ao que se passou?

Abernathy: Bem, tinha de fazê-lo, e assim fiz. Foi o que eu fiz nesse momento. Eu sabia que a vida era preciosa. O papai e o tio Martin queriam que compreendêssemos que a vida é preciosa. Portanto, o tempo que passaram conosco em casa como uma família foi sagrado, mas tinham que processar o que estava acontecendo, porque estava aacontecendo à sua volta, e a segregação era algo com que tínhamos que lidar. E sabíamos que eles estavam a lutar pela nossa liberdade, e que tínhamos suportado, sabe, 344 anos de perseguição, segregação – e 244 foram anos foram de escravatura.

Mas de uma forma ou de outra, coloquei isso no passado da minha mente e segui em frente de qualquer forma. Era apenas um fato da vida para nós, mas isso é um trauma. Sem dúvida, é um trauma – e todos lidam com o trauma de forma diferente. O meu pai costumava dizer: “É melhor decidires se você será o seu melhor amigo ou se será o seu pior inimigo”.

Biancolli: Então, voltando a esta canção, a esse trabalho coral, The Listening. Você apresenta-se como solista. É uma obra inspirada no discurso de Martin Luther King de 1967, um discurso antiguerra chamado Beyond Vietnam (Para além do Vietnam): A Time to Break Silence (Um Tempo para Quebrar o Silêncio), que ele proferiu como sermão na Igreja de Riverside (Riverdside Church).  Em seu solo, você canta – maravilhosamente.

Abernathy: Muito obrigado.

Biancolli: “Viro as costas quando me coloco em minha língua. Não posso ficar calada. Não posso ficar de braços cruzados e deixar estas palavras sem ser cantadas. Não posso ficar calada.” Você sente isso como um imperativo – que você não pode ficar em silêncio?.

Abernathy: Claro que sim. Tenho a certeza que sim. Por vezes, gostaria de poder desligar as minhas emoções e o cérebro, e a boca – mas, sim, falo alto, e sinto que tenho uma obrigação moral de falar alto, porque muitas pessoas não o fazem. E quando se vê um erro, é preciso corrigi-lo, e quando se vê uma injustiça, é preciso falar contra ela. E eu faço isso naturalmente. Foi o que me ensinaram e foi assim como me educaram, e estou tão feliz que foi isso que o tio Martin e o meu pai fizeram.

Quando Rosa Parks foi presa, foi o meu pai quem emitiu o primeiro apelo para a criação do movimento dos direitos civis – e ele puxou o tio Martin para dentro. Ele disse: ” Escuta, temos de fazer isto”, e o tio Martin disse: “Não sei”, e depois o papai disse: “Sim”. Você vai fazer isto comigo, e eu vou buscá-lo todas as noites, e você vai comigo nestas reuniões de massa. Temos de fazer isto”. E assim o meu pai liderou isto e começou essa acusação – e assim ele caminhou com o tio Martin durante todo o caminho, e nunca desistiu, e mesmo depois da morte do tio Martin, o meu pai ainda lá estava, pressionando para uma ação afirmativa e depois para o programa de refeições gratuitas que as crianças de baixa renda recebem hoje em dia nas escolas, bem como de vales de alimentação.

Biancolli: Num discurso anterior de 1966, chamado Don’t Sleep Through the Revolution, o seu tio Martin defendeu um “desajustamento criativo”. Ele disse: “Todos procuram apaixonadamente ser bem ajustados . . . Há algumas coisas neste mundo a que os homens de boa vontade devem ser desajustados”. E ele disse: “A salvação humana está nas mãos dos desajustados criativamente desajustados“.

O que você está descrevendo não é apenas uma pessoa sendo criativamente desajustada – mas muitas pessoas do movimento dos direitos civis que foram desajustadas. Será esse o caso? Será que fala consigo e fala com as suas memórias do seu pai e do seu padrinho?

Abernathy: Sem dúvida. Nunca tinha ouvido o tio Martin dirigir-se a ele dessa forma, mas lembro-me de os ouvir dizer que quando os homens bons se calam, é quando o mal circula – e que as pessoas fazem vista grossa.

E assim acontece com o desajuste de que o tio Martin fala no seu sermão. Nessa altura, quando ele falava sobre isso, eu sabia que ele apelava aos brancos.

Biancolli: Também fala da importância e validade de ser diferente do que a sociedade reconhece como “normal”?

Abernathy: Correto. É isso aí.

Biancolli: No sistema de saúde mental, e nos males da sociedade incluindo o racismo estrutural, existe esta ideia em toda a cultura que diz, oh, é preciso ser “normal” com um N maiúsculo. Mas não será o contrário, ser não-conformista, o verdadeiro caminho para a mudança social? Haverá mesmo algum tipo de poder, para se ser desajustado?

Abernathy: Absolutamente. Existe definitivamente poder nele – e a força. E é preciso coragem, mas não se pode concordar com a norma se a norma disser: “Oh, o imperador está vestido com todas estas roupas”, quando se pode ver muito claramente que o imperador está nu. Portanto, é preciso ser suficientemente forte para dizer: “Aquele imperador está nu – ele não tem nada vestido”.

E se isso for desajustado, então acho que preciso de ser desajustado, porque quero ser capaz de ver o mundo claramente – e acho que é isso que todos precisam realmente de fazer, é ver a sociedade claramente, ver a situação claramente, ver as falhas que existem numa sociedade ou num governo.

Biancolli: Há um livro de 2011 do psiquiatra Nassir Ghaemi – chama-se A First-Rate Madness. O livro analisa os muitos líderes mundiais visionários que lutaram contra a depressão e outras dores psicológicas, e ele fala sobre o King.

Abernathy: O tio Martin não sofria de nenhum tipo de depressão que eu saiba. Ele era engraçado. Ele era engraçado como Eddie Murphy. Tinha uma persona diferente que apresentava ao público. Ele pensava que os brancos não precisavam de nos ver a rir e a continuar como quando a porta estava fechada. E o tio Martin podia imitar as pessoas.  Ele podia ouvir alguém falar e imitar a sua voz, o seu gesto, e tudo. Ele era realmente dotado e carismático, e convincente, mas ele não queria que as pessoas vissem esse lado tolo dele, especialmente num fórum público. Então, talvez fosse assim que alguém pudesse chegar à ideia de que ele se encontrava deprimido.

Sei que nesses últimos anos, o movimento mudou, e depois tornou-se a luta pelo poder negro. Houve uma luta pelo poder no seio da comunidade negra para que outras pessoas se levantassem. Stokely Carmichael veio, e quis tomar a cena. Antes disso, Malcolm X esteve lá.

E assim penso, para o tio Martin, isso pode ter sido um pouco deprimente e triste. No entanto, ele estava a trabalhar na campanha dos pobres, que foi emocionante e maravilhosa, e dizia ao meu pai: “Vamos reanimar a alma da América”, você sabe.

Sei que houve um pouco de transição e uma pequena tristeza, mas não sei se houve toda essa tristeza.

Biancolli: Há uma entrevista entre o seu padrinho e o jornalista Martin Agronsky, e é citada nesse livro que mencionei, A First-Rate Madness. Ele estava falando sobre o complexo de culpa no sul. Ele fornece uma espécie de psicanálise do racismo estrutural. Vê este tipo de disfunção na sociedade, este tipo de racismo sistêmico, como uma forma de doença?

Abernathy: Concordo com o tio Martin. Uma outra faceta é que o tio Martin era licenciado em filosofia – e sempre olhou para o mundo de uma forma muito analítica, e o meu pai, obteve o seu mestrado em sociologia. Eles quebrariam os padrões de comportamento na sociedade e a norma – e vendo como as pessoas faziam parte de um grupo e se controla esse grupo. Portanto, há aquele complexo de culpa que levaria à redenção.

E assim tem feito, especialmente agora, desde esta insurreição [6 de janeiro do Capitólio]. Mas há outras pessoas que são apanhadas e varridas, e apesar de serem culpadas, continuam a seguir esse caminho num padrão destrutivo.

Biancolli: Então se este é um exemplo de manifestação deste tipo de doença – e se considerarmos o racismo estrutural como uma doença, a supremacia branca como uma doença, e a devastação e a pobreza como doenças – qual é o caminho para a recuperação?

Abernathy: Acho que é redenção criativa, e o coração humano, ser capaz de – honestamente, do seu coração – olhar claramente para uma situação. E ver a injustiça, e depois ter a coragem de se erguer. No início, admitir para si próprio que isso está errado, e isso é injustiça. E depois, ter a coragem de dar esses pequenos passos. E é isso que as pessoas da América profunda vão ter de fazer agora mesmo.

Biancolli: Na sua ânsia de mudar o mundo, será ele o Martin Luther King que veneramos hoje por causa das suas lutas, por causa de tudo o que ele teve de passar e do seu desajustamento?

Abernathy: Sem dúvida. Sem ambiguidade. Ele era muito sensível – e era isso que eu adorava no Tio Martin. Ele era incrivelmente sensível, e era um herói relutante. Ele não queria ter de fazer isto. O meu pai decidiu que era isto que eles iriam fazer, mas o tio Martin tinha este dom para falar, e ele percebeu que era um dom. Depois de aprender a não-violência com Glenn Smiley e de se aperceber que foram colocados nessa circunstância, o papai costumava dizer – e o tio Martin também dizia – “Somos homens vulgares colocados em circunstâncias extraordinárias, e apenas nos levantamos perante a ocasião”.

Então, sentimo-nos como se tivéssemos o peso do mundo sobre os nossos ombros – e foi assim que aconteceu. Houve momentos em que teriam querido desistir, mas perceberam que não podiam, porque ninguém tinha sido bem-sucedido até agora em 344 anos para os Negros na América. Por conseguinte, tinham a obrigação moral de continuar e de completar este curso em que estavam até sermos todos livres.

Eles acreditavam que estavam a fazer a vontade de Deus, e foi isso que os impulsionou.

Biancolli: Como é que ele a inspira hoje?

Abernathy: Oh, meu Deus.

Biancolli: É uma pergunta muito complicada, eu sei, mas…

Abernathy: Não faz mal, porque agora falo sobre isso. Escrevi esse livro de história. Escrevi outro livro de história, do qual só preciso para fazer a última revisão. Escrevi uma peça de teatro, um roteiro.

Biancolli: O que é isso? O que é o segundo livro?

Abernathy: É de 1619 a 1955. É a cronologia histórica da raça na América, e contém todos os principais incidentes que ocorreram entre 1619 e 1955, até [o linchamento de] Emmett Till.

E depois tenho de contar a história sobre o papai e o tio Martin, sobre a qual escrevo regularmente – a minha perspectiva de uma criança – porque quero que as pessoas saibam quem eram e o que faziam. E quero que compreendam que a mãe e a tia Coretta não eram apenas esposas estúpidas. Eram muito espertas, pensando em mulheres que estavam igualmente empenhadas neste movimento – mas não lhes foi permitido estar na linha da frente, porque eram as esposas.

Mas sim, eles queriam, e eu sinto que estão nos meus ombros, observando-me.

O mais assustador foi durante uma insurreição, vi o homem sentado no escritório de Nancy Pelosi com os pés em cima da secretária – e algo apenas disse: “Olha para a esquerda”. E olhei para a esquerda, e havia uma fotografia do papai e do tio Martin com o congressista John Lewis, marchando em Montgomery, a pedir direitos de voto. Vi a cara do meu pai, e senti-me violada.

Biancolli: Trauma é uma palavra demasiadamente forte?

Abernathy: Não. Trauma é muitíssimo – trouxe de volta tudo desde os dias do movimento dos direitos civis. Tudo. E eu estava ansiosa. Estava aborrecida. Estava a pensando que, ó meu Deus, talvez tivéssemos de ir para a guerra. Haveria uma guerra civil, e eu sou uma pessoa não-violenta, mas o que faria eu?

Por isso, sim, tudo isto voltou a vir a pressas para mim. Foi de partir o coração. Então, há o medo de que, quando esse momento chegar, estaria disposta a sacrificar a vida na luta por algo maior? Tem essa pergunta. Pelo menos, eu fiz. E a resposta é sim, eu faria esse sacrifício. Sei que essa pergunta me veio quando era criança. Estaria eu disposta a fazer esse sacrifício pela nossa liberdade? E sim.

Biancolli: Quantos anos tinha? Quando era criança, que idade tinha quando teve esse pensamento?

Abernathy: Cinco

Biancolli: Uau. Então, a sua compreensão do trauma, a sua relação com ele: é, como o seu padrinho, criativamente desajustado? E nós estamos traumatizados como nação – e devemos responder sendo criativamente desajustados?

Abernathy: Sim, estamos traumatizados como nação, e sim, temos de responder sendo desajustados. Temos de o fazer. A nossa nação foi fundada sobre a escravatura, que é um princípio que é horrível, e ainda não calculámos isso até aos dias de hoje. Há pessoas que ainda estão em negação, e depois há pessoas que estão zangadas por causa disso.

Portanto, sim, precisamos de lidar com isso. Temos de lidar com isso – e a nossa nação está traumatizada.

Biancolli: Lembro-me apenas, enquanto fala, dos “castelos de escravos” em Gana – estas fortalezas que alojavam e despachavam através dos mares todas estas pessoas roubadas, os escravizados. Ficamos dentro delas, e podemos sentir a sua dor. É uma tal recordação do trauma que enraíza a fundação da nação.

Abernathy: Tem razão. Não se pode deixar de o sentir. O primeiro filme ou espetáculo em que trabalhei foi Raízes, e colocaram-nos em câmaras de escravos reais. Éramos muito pouco vestidos. Quase não tínhamos roupa, e depois trancaram aqueles portões para filmar a história, porque lá fora, havia o bloco do leilão e podia-se sentir uma energia dos escravos – de como era para eles. E podia-se sentir a dor.

Não conheço outra forma de descrever a situação, mas é muito tangível e real.

Biancolli: Tudo aquilo de que você tem falado, e também tudo o que o King falou – foi de que temos de enfrentar a dor. Isso faz parte de estarmos criativamente desajustados, certo? Seja pessoalmente ou sistemicamente, temos de nos mover através dela e usar a dor para empoderar. Será que isso faz sentido?

Abernathy: Sim, é verdade. Realmente e verdadeiramente faz sentido. É preciso encontrar uma forma de a atravessar. Sei que quando o anterior presidente foi eleito para o cargo, vi-me a chorar durante três dias seguidos, e isso desenterrou todo o meu medo e ansiedade que eu tinha – ansiedade não resolvida do movimento de direitos civis. Tive literalmente de trabalhar comigo mesma, e penso que foi isso que aconteceu. Foi por isso que todas aquelas mulheres saíram à rua e marcharam na Marcha das Mulheres que aconteceu logo a seguir – porque precisavam de abrir caminho através do movimento.

Depois as pessoas continuaram, jovens, a trabalhar através do movimento “Black Lives Matter” – e também, quando os jovens tomaram as ruas em toda a América, exigindo legislação de controle de armas. É assim que se trabalha através do movimento. Independentemente do que se faça, trabalha-se através dele. É necessário, se se espera curar.

Biancolli: Há um movimento pelos direitos do paciente, um esforço para reformar o sistema de saúde mental e validar, dar voz, às pessoas que são demasiadas vezes marginalizadas. Haverá lições a tirar do movimento de direitos civis?

Abernathy: O movimento dos direitos civis, foi enraizado no amor. Portanto, a primeira coisa que um paciente precisa de fazer é amar a si próprio. Por muito imperfeitos que pensem que são, todos nós somos imperfeitos. E amar a pessoa que se é – por mais imperfeita que seja – e saber que se está bem da maneira que se é. Então, abraçar-se a si próprio. Depois, para tentar trabalhar dentro do quadro da sociedade – e se for injusta e desigual, então deve pronunciar-se contra o que é injusto e desigual. Para que as suas necessidades sejam satisfeitas, e para que as suas necessidades sejam resolvidas. Para que se sintam ouvidos e validados.

Recentemente, o meu marido e eu vimos este filme, O Rei Pescador [The Fisher King], e a personagem de Robin Williams estava a ajudar outros – e ao ajudar outros, ele ajudou a si próprio. Penso que é isso que temos de fazer como seres humanos, uns para os outros. Sei que é decepcionante quando as pessoas gostam de chamar-me de nomes ou são intolerantes para comigo, mas tenho de encontrar uma forma de mostrar compaixão para com elas, e de lhes mostrar amor – e de as ajudar. Ao fazê-lo, penso que posso mudar as suas vidas e melhorar a qualidade das suas vidas.

George Wallace era o governador do Alabama e era um segregacionista convicto que dizia: “Segregação agora, segregação hoje, segregação para sempre”. De qualquer modo, no final da sua vida, foi baleado e paralisado, e estava em uma cadeira de rodas. Ele telefonou e pediu ao meu pai para ir vê-lo, e eu disse: “Papai, não vai ver George Wallace”. O meu pai me disse: “Ele chamou por mim. Eu vou vê-lo. É provavelmente uma das coisas mais importantes que eu poderia fazer”. E quando o meu pai foi vê-lo, George Wallace disse-lhe que o melhor amigo que tinha no mundo era este negro que tomava conta dele, que demonstrava amor por ele – quando tudo o que George Wallace havia dado todos estes anos, durante décadas, tinha sido o ódio racial.

E depois o mais bonito é que eu voltaria a estar ligada por intermédio de John Lewis, o Congressista John Lewis, a Peggy Wallace Kennedy, que era a filha mais nova de George Wallace – que tinha vindo e falado e pedido perdão pelo seu pai

Ao ouvir Peggy falar, tudo o que pude fazer foi lembrar-me do trauma e do medo que tinha experimentado ao ir para a cama todas as noites – e apenas me pus a chorar. Chorei incontrolavelmente, e no final do seu discurso, fui ter com ela e abracei-a. E tornámo-nos queridos amigos, porque eu não consigo avançar, e ela não consegue avançar, num lugar de ódio. Tivemos de encontrar um ponto em comum. Tivemos de encontrar um amor, e na raiz de tudo está o perdão.

Portanto, é isso que estou a pedir à América para fazer agora mesmo – e era isso que o tio Martin estava a pedir – é boa vontade criativa e redentora no trabalho com o coração humano. É disso que precisamos.

E temos de encontrar o perdão. E depois temos de ser capazes de nos sentar e ouvir uns aos outros, e fechar os olhos e dar as mãos, e deixar o amor trabalhar através de nós para que possamos criar um mundo melhor e uma sociedade melhor, e melhores relações humanas, e uma melhor psique dentro dos cérebros e dos corações e mentes de cada indivíduo aqui na América, e em todo o mundo.

Biancolli: É assim que a cura pode acontecer?

Abernathy: É assim que a cura, creio eu, acontece. Pelo menos foi assim que aconteceu para mim.

Biancolli: Finalmente, o que você quer que as pessoas se lembrem da mensagem de King? O que devemos tomar das suas palavras e da sua vida?

Abernathy: Que um dia, todos nós nos encontremos, como ele disse no final da marcha em Washington. Homens negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, todos se unirão e cantarão nas palavras de uma antiga canção [spiritual] negra: “Livre finalmente, livre finalmente, livre finalmente”. Graças a Deus Todo-Poderoso, somos finalmente livres“.

A sua mensagem era que para nos juntar a todos, raça e religião – e para nos amarmos uns aos outros, para nos sentarmos juntos. E que devemos ter um círculo de liberdade de cada lado da montanha. É isso que eu quero que as pessoas se lembrem.

Biancolli: Donzaleigh Abernathy, muito obrigado por ter tido tempo para partilhar hoje os seus pensamentos e memórias. Muito obrigado.

Abernathy: Obrigado, Amy. É um prazer estar aqui, e é uma honra – e espero, se puder ajudar apenas uma pessoa a sentir-se melhor, então é só isso que importa.

[trad. e edição de Fernando Freitas]

Investigadores estudam porque é que as pessoas permanecem no Facebook

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Porque é que muitos de nós continuamos a utilizar o Facebook apesar dos numerosos estudos e reportagens nos meios de comunicação social que expõem as suas práticas perniciosas e nocivas? A pesquisa empírica sobre o que os usuários australianos do Facebook consideram significativo e valioso na plataforma identifica o impacto emocional, as influências sociais e de relacionamento, e as possibilidades de autoexpressão que mantêm as pessoas a regressar. A pesquisa foi liderada por Deborah Lupton e Clare Southerton do Centro de Investigação Social em Saúde e Política Social da UNSW, Sydney.

Há numerosas questões na interseção da saúde mental profissional e dos meios de comunicação social. Por um lado, os investigadores de psicologia estão tendo uma dificuldade incrível em determinar como a utilização das redes sociais tem impacto na saúde mental e no bem-estar. O Facebook, em particular, tornou-se um motor para rastrear, monitorizar e analisar os dados dos usuários, e a manipulação destes dados pode aumentar a coerção na prestação de tratamento.

Fora da saúde mental, os críticos colocam questões ainda mais ousadas, como por exemplo se o Facebook é uma ameaça estrutural à sociedade livre. É evidente que devemos refletir sobre a razão pela qual, como sociedade, parecemos insistir na utilização destas tecnologias.

Lupton e Southerton realizaram 30 entrevistas por telefone semiestruturadas com atuais ou antigos usuários adultos do Facebook na Austrália no final de 2018, após a notícia de última hora sobre o escândalo de dados Facebook-Cambridge Analytica. Perguntaram aos participantes sobre a sua utilização habitual, avaliaram o seu conhecimento sobre as práticas de coleta de dados da empresa, e perguntaram se os participantes estavam preocupados com a privacidade.

As sete vinhetas apresentadas pelos autores demonstram que o que os usuários obtêm da plataforma “pode gerar uma multiplicidade de forças afetivas e conexões relacionais”. Descrevem o “poder-coisa” do “assemblage” humano-não-humano do Facebook como gerando uma gama diversificada de novas capacidades de ação.

Os sentimentos dos participantes sobre o Facebook parecem ter emergido dos encontros emocionais que vivem diariamente enquanto utilizam a plataforma. As pessoas sentem-se menos influenciadas pelas perspectivas e preocupações dos outros em relação à privacidade e à coleta de dados.

Os participantes descreveram o estabelecimento de fortes ligações relacionais com uma série de pessoas, incluindo membros da família e amigos já estabelecidos, mas também aqueles que partilham interesses especiais ou que envolvem conteúdos relacionados com o trabalho. Estas ligações foram ativamente geridas e tratadas através das preferências e interesses individuais das pessoas relacionadas com o tipo de relação e conteúdo com que pretendiam relacionar-se.

Porque as pessoas estão cada vez mais dispersas geograficamente dos seus entes queridos, e porque as empresas dependem cada vez mais da presença e envolvimento online, os autores afirmam, “as conexões relacionais com outras pessoas foram um elemento chave para motivar os nossos participantes a continuar a utilizar o Facebook”.

Todos os estudos de caso expressaram “sentimentos de pertença, alívio da solidão, manutenção e nutrição de relações estreitas, e benefício de contatos relacionados com o trabalho”. Estes foram também acompanhados pela irritação sobre as opiniões controversas dos amigos do Facebook e a preocupação sobre a partilha excessiva e o envolvimento excessivo no próprio Facebook. Alguns participantes pareciam gostar e apreciar a intimidade da plataforma, enquanto outros utilizavam táticas para limitar a sua utilização, sentindo-se ameaçados, sobrecarregados, ou distraídos em relação a outras coisas.

Em particular, os autores descobriram que as “meta-narrativas” sobre o Facebook (por exemplo, afirmações sobre a sua natureza apresentadas tendo em conta o escândalo da Cambridge Analytica) não têm impacto nas experiências de uso quotidiano como sendo comuns.

Os participantes descrevem o sentimento de se abrirem novas capacidades: a facilidade de conexão através da plataforma e a dificuldade de sair por medo de perder os convites e as conversas. A percepção da facilidade do Facebook, descrevem eles, faz com que outras formas de comunicação pareçam mais pesadas. Estas também reduzem as capacidades:

“Os nossos participantes descreveram estes momentos, por vezes tateando para que a língua capte o seu desconforto e frustração em resposta, não ao próprio Facebook, mas aos conteúdos ou comportamentos de outros usuários.”

Levando em conta a extensão de como Facebook está incorporado na vida social dos utilizadores, os autores sugerem que as atitudes sobre o seu uso ou má utilização não são de modo algum simples. Em vez de sermos rápidos a julgar a utilização “excessiva” da plataforma, devemos lembrar que a utilização só pode ser compreendida no contexto da vida de uma pessoa e como esta consegue aumentar a sua capacidade de afetar e ser afetada através das redes sociais.

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Lupton, D., & Southerton, C. (2021). The thing-power of the Facebook assemblage: Why do users stay on the platform? Journal of Sociology, 144078332198945. https://doi.org/10.1177/1440783321989456 (Link)

A Eletroconvulsoterapia: uma prática possível?

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Vanessa C Furtado – Profa do Dpto Psicologia da UFMT

 

 

 

Paulo Wescley Maia Pinheiro – Prof Depto de Serviço Social da UFMT

 

Desde 2017 assistimos a série de medidas da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde que visam o desmonte de uma política construída coletivamente, calcada nos princípios democráticos e, principalmente, em práticas de atenção às pessoas em sofrimento psíquico pautadas no cuidado humanizado e em liberdade. Estas sempre foram bandeiras inegociáveis no movimento de Luta Antimanicomial, incluindo debates e estudos acadêmicos que respaldam a eficiência dessa forma de cuidado em detrimento das práticas de aprisionamento, super medicalização, contenções mecânicas (quem aqui, hoje em dia é capaz de olhar para uma “camisa de força” sem associá-la a um instrumento de tortura?).

Nessa esteira, a nomeação do novo coordenador de saúde mental, ocorrida no dia 18 de fevereiro de 2021, concretiza mais um ato de aprofundamento dos ataques dentro da política de saúde mental, avançando a desumanização naturalizada que referenda o projeto político em curso. A medida não é menos grave, mas muito capciosa, se pensarmos que uma de suas principais defesas é relativizada por parte de setores críticos ao modelo manicomial.

Esta nomeação que fora noticiada pela mídia hegemônica destacando que o novo coordenador é defensor da prática de Eletroconvulsoterapia – ECT – causou, por um lado, não apenas uma grande discussão e movimentou os coletivos da Luta Antimanicomial, como era de se esperar. Mas, por outro lado, levantou o debate da e-fi-cá-cia da ECT. E qual não foi nossa surpresa ao vermos companheiras/os da luta em defesa dessa eficácia? Pessoas que historicamente estiveram ativamente defendendo a Luta Antimanicomial, as práticas de Redução de Danos e todas as bandeiras do movimento.

Diante da situação, o sentimento imediato foi de consternação, mas lá no fundo fomos mesmo abatidos pela sensação da progressiva falência das possibilidades de luta.

Desculpem o aparente fatalismo pelo qual esse texto se envereda, mas, por vezes, é preciso boa dose de fatalismo para levantar das entranhas do cansaço que o árduo cenário político do Brasil tem nos imposto, para buscarmos as raízes desse derrotismo. Para isso, é fundamental reconhecer a situação em que se encontra o processo da Luta Antimanicomial brasileira para além do campo das aparência. Tomado como exemplo, o que este debate sobre ECT tem nos mostrado, é que não basta apenas creditar este retrocesso ao Golpe de 2016 somado à ascensão do bolsonarismo, mas é estratégico que possamos nos questionar “Como chegamos até aqui?”.

O debate residual do nosso tempo histórico tende às defesas obtusas de lados de uma mesma moeda, onde o racionalismo moderno confronta o irracionalismo contemporâneo, ambos sendo produtos e catalisadores de uma lógica que referenda diferentes formas de conhecimento para a manutenção dessa sociabilidade contraditória, desigual e violenta. O reacionarismo no senso comum e o formalismo de uma ciência abstrata silencia as possibilidades de conhecimento científico socialmente referenciado e eticamente emancipatório. Assim, o debate da ETC é revelador dos nossos limites e possibilidades.

Os setores intelectuais do campo crítico que discursam dentro do cientificismo mercadológico perdem a capacidade de construir e defender conhecimento substantivo e radical, enquanto naturalizam o mito de um “conservadorismo humanizado” frente ao reacionarismo mais perverso.

O pressuposto de que o conhecimento científico é oposto a ideologia é falso! Se cabe ao senso comum o espaço privilegiado da reprodução ideológica, a ciência também é produzida com base, sentido e direção que expressa a hegemonia da sociedade, os interesses fundamentais burgueses e também suas contradições. É preciso muito cuidado para não cair em caminhos científicos que cheguem em lugares muito similares para onde apontam aqueles que se apoiam no falseamento da realidade e na manutenção de práticas naturalizadas, ainda que sob o argumento da eficácia comprovada.

O avanço mais jocoso e caricatural das formas reacionárias no espaço público é apenas a ponta de lança de um tempo histórico que rebaixa todos os níveis de debate. É assim que o combate ao negacionismo científico apresenta vozes de intensificação do positivismo e o fortalecimento do irracionalismo pós-moderno. O que tem protagonizado discursos e práticas que desconectam as possibilidades radicais de superação das formas conservadoras, assumindo o pragmatismo, o minimalismo e o possibilismo.

É fenomenal – de se resumir ao epifenômeno – como o hiperfoco reducionista de causa e efeito ainda protagoniza defesas científicas imediatamente críticas mas essencialmente conservadoras. E apontam, de forma explícita, os limites do liberalismo.

É nesse sentido que se fundamenta o argumento de validação do ETC dentro de um marco regulatório supostamente humanizado, sob a alegação experimental de alguma eficácia, deixando de lado todas os prejuízos – imediatos e históricos – e mais, deixando de lado que há outros tratamentos eficazes e eficientes sem o caráter agressivo.

Para alargarmos a caricatura nesse fatalismo recorrente e instrumentalização casuística, pensemos para além do tema em si: imaginemos que após anos de lutas e debates sobre violência, passássemos a aceitar novamente castigos físicos em crianças, defendendo que eles sejam realizados sem excesso e assumindo a dificuldade de eliminar tal prática de nossa cultura. Afinal, também neste tema podemos atentar testemunhas experimentais de eficácia, com um monte de gente que diz que teve eficiência com o método, além de, também, ter como instrumentalizar teorias de reforçamento comportamental para essa direção. O absurdo pode ser normalizado quando os argumentos apontam para onde o vento hegemônico vai.

Enfim, sucumbir ao processo de normalização de formas não somente ultrapassadas, mas historicamente marcadas como tortura, só expressa que a decadência ideológica atingiu os setores críticos da ciência que, agora, demonstram sua incapacidade de enfrentar as coisas pelas suas raízes, à revelia das vozes dos movimentos sociais de luta.. E, ao nosso entender, para fazer frente à aceleração da contra-reforma psiquiátrica brasileira, é fundamental compreender que a Luta Antimanicomial não se faz apenas de pautas imediatas, mas coaduna com um ideal de sociedade, calcado em uma ciência que expressa a práxis essencialmente revolucionária. Isto quer dizer que, é necessário, por mais óbvio ululante que seja, compreendermos os sentidos sociais ligados não apenas à “loucura”, como também, às práticas de atenção às pessoas em sofrimento psíquico, como por exemplo a ECT.

No que diz respeito ao processo de sofrimento psíquico, basta olharmos quem são as pessoas consideradas “loucas” em nossa sociedade. Uma rápida lida no relatório das inspeções realizadas nos manicômios brasileiros em 2019, apontam que a esmagadora maioria dessa população é negra e pobre. E, não se pode perder de vista que, as estruturas sociais do modelo de sociedade baseada no padrão burguês (cis, heteronormativo, branco e masculino) são a régua que se mede a normalidade em nossa sociedade!

Isto posto, normalizar uma prática historicamente ligada à tortura, pelas nuances do discurso científico de uma dita eficácia, como é o caso da ECT, é o mais puro suco do caldo ideológico mercadológico no qual se afunda o processo de produção do conhecimento e a ciência, que se descola das pautas de luta e desprezam a história. É desconsiderar, por exemplo, que lá quando a Liga de Higiene Mental Brasileira passou a adotar modelos eugênicos baseados na medicina alemã (nazista), todas aquelas práticas eram cientificamente comprovadas e eficazes.

Agora, nunca é demais lembrar que, coube a uma mulher alagoana, comunista, que no último dia 15 de fevereiro completaria 116 anos, questionar essa medicina eugênica e higienista e demonstrar uma forma essencialmente nova de atenção e cuidado sem choques, que poderia chocar muito mais a vida das pessoas em sofrimento psíquico. Sua eficácia foi transformar essas vidas, essas pessoas e revolucionar a história da psiquiatria brasileira! Suas armas foram, não apenas pincel, tinta e tela, mas também, a certeza e orientação político-ideológica de construção coletiva de uma nova forma de sociabilidade. Pois, mais do que nunca, é preciso presentifixar aquelas/aqueles que ousaram lutar por uma sociedade sem manicômios e livre de torturas!

Quando perdemos nosso horizonte e o chão da história, tendemos a enxergar apenas o que está diante dos olhos e rastejar nossas perspectivas nos farelos do imediatismo. Quando perdemos a referência da construção possível do essencialmente novo, passamos a nos contentar em administrar o velho e nos animar com as novidades obsoletas. Não por acaso, tratamentos que tem como base teorias neurocientíficas localizacionistas e o mito do desequilíbrio químico prevalecem em voga.

Quando se acirram as contradições da sociedade e o horizonte de luta se rebaixa, o processo de reflexão teórica e política tende a refletir tal e qual a mediocridade do status quo. A ciência que se limita a causa e o efeito, sem pensar a essência da coisa em si, é a mesma que se afasta da vida e se aproxima da mercadoria.

Quando perdemos a capacidade de chocarmos as estruturas que direcionam aquilo que impacta nossa vida, sucumbimos na naturalização dessas estruturas e menosprezamos nossa possibilidade de ir além, de criar algo essencialmente novo.

Não se trata de voluntarismo, trata-se, sim, de pensar que ciência, eficácia, eficiência, forma e conteúdo, princípios, meios e fins, tudo tem base histórica e direção política. O que hoje é tido como absurdo ontem foi normalizado e contemporizado como excelente. Amanhã, quando ultrapassarmos essa forma social de desumanização, pautada na mercantilização e na razão formal e abstrata, qual o choque histórico será daqueles que olharão para trás e, percebendo a escolha coletiva da sociedade em defender formas de tratamento com práticas agressivas, invasivas, questionadas teoricamente, em detrimento de alternativas radicalmente distintas, onde seus defensores assumiram argumentos científicos similares daqueles que toleraram tantos outros meios de opressão, num outro passado mais distante?

Quando o “mais ou menos”, o “pelo menos” e o “mal menor” tomam de conta do discurso crítico é por que sua essência já foi ocupada pelas raízes conservadoras e o reacionarismo regozija sua eficiência. Ontem, a desigualdade impôs ao oprimido uma condição patologizada e a violência como tratamento. Hoje, observando a persistência dessas amarras, precisamos nos chocar e, como diria o poeta, não sucumbir, pois, “haja hoje para tanto ontem”.

Saudações antimanicomiais! Tortura nunca mais!

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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para uma discussão-psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

Medicina Insana, Capítulo 7: Mercados de psicoterapia industrializada da Psicologia Popular Ocidental

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Group Of Businesspeople Holding Dartboard In Front Of Face

Nota do editor: Ao longo de vários meses, Mad in Brasil está publicando uma versão seriada do livro de Sami Timimi, Insane Medicine [Medicina Insana]. A parte 1 deste capítulo foi publicada há quinze dias. Na Parte 2, ele contrasta as marcas registradas de psicologia popular como TCC e McMindfulness com quadros de empoderamento como o Diálogo Aberto e o Power Threat Meaning Framework. Ás quartas-feiras, quinzenalmente, uma nova parte do livro é publicada, e todos os capítulos são arquivados aqui.

As marcas registradas das terapias ocidentais são extensões da psicologia popular ocidental

Tal como na psicologia em geral, as “tecnologias” que estruturam modelos de psicoterapia são essencialmente construções culturais que foram desenvolvidas num contexto cultural ocidental específico e pesquisadas em sociedades predominantemente ocidentais, levantando questões sobre a sua adequação quando se trabalha com comunidades que vêm de outras origens.

Praticamente todos os modelos que utilizamos foram desenvolvidos em contexto ocidental. Alguns podem traçar as suas origens a culturas não ocidentais, por exemplo, a “mindfulness”[“atenção plena“], mas para se tornar uma “psicoterapia” tem de ser McDonaldisada. Mais sobre isto mais adiante.

A elevada taxa de abandono dos tratamentos de saúde mental para certos grupos, tais como os de baixa origem socioeconômica ou minorias étnicas, pode refletir um desajustamento entre os sistemas de significados empregados pelos profissionais de saúde mental e os mais comumente detidos por esses grupos.

Na verdade, chamar a estas psicoterapias “tecnologias”, está a conferir-lhes mais legitimidade do que merecem. Não tem havido avanços ou inovações que tenham melhorado os resultados da terapia. Na realidade, a maioria são simplesmente versões da psicologia popular ocidental. São basicamente o que constitui a ideia de senso comum da burguesia ocidental, com uma linguagem e regras exclusivas (para criar uma corporação com fronteiras) e a fachada para depois chamar seu modelo de “científico” (bem, elas têm que o fazer, a fim de se adaptarem à visão de mundo dominante do Ocidente.

Tomemos o rei das terapias, TCC. Procure no Google TCC e obterá algo como: “A Terapia cognitivo-comportamental (TCC) explora as ligações entre pensamentos, emoções e comportamento. É uma abordagem diretiva, limitada no tempo e estruturada, utilizada para tratar uma variedade de transtornos de saúde mental. O seu objetivo é aliviar o sofrimento, ajudando os pacientes a desenvolverem cognições e comportamentos mais adaptativos“.

A TCC concentra-se basicamente nos padrões de pensamento, e os pacientes são encorajados a analisar como o seu pensamento afeta os seus sentimentos e depois o seu comportamento. Procura exemplos de pensamentos “disfuncionais”, que resultam em piorar o sentimento do paciente e depois comportar-se de uma forma que não ajuda. Assim, se você estiver deprimido, pense em como as coisas não funcionam e repare em coisas que saem mal e interprete a maioria das coisas negativamente, o que confirma o quão mal se sente, e por isso se sente desesperado, e porque se sente desesperado não faz coisas que o possam fazer sentir-se

O tratamento, então, envolve ensinar-lhe a reconhecer estes pensamentos “disfuncionais” e desafiá-los. Retire todas as fantasias, linguagem, e rituais e isso resume-se a “parar de se concentrar no negativo“.

Mais do que isso, contém certas ideias populares concentradas no Ocidente. Considera as emoções como algo suspeito, a ser gerido e controlado através da promoção de uma abordagem racional, lógica e científica do pensamento, que pode depois ser utilizada para controlar as nossas emoções e o nosso comportamento. Melhorar o seu pensamento e lógica é como recuperar o controle dessas emoções irritantes e irracionais. Tem também um sabor gerencial, com a ideia de analisar os componentes do problema (os pensamentos) e essencialmente usar o seu poder de vontade para aplicar um melhor pensamento à situação.

Agora não há nada de errado, por si só, com a TCC. Como disse, as provas mostram que não é melhor nem pior do que outras terapias, mas os aspectos técnicos têm um impacto insignificante nos resultados. No entanto, não há nada mais do que uma forma “arrumada” de senso comum ocidental.

Tomemos outro exemplo popular – a terapia comportamental [behaviour therapy]. Esta é usada para medos, fobias, fenômenos obsessivos compulsivos, e outras ansiedades. Tal como a TCC, existem versões da mesma para a maioria das condições psiquiátricas. Se tiver uma fobia de cães, por exemplo, então duas formas de terapia comportamental poderiam ser usadas.

Uma chama-se “dessensibilização graduada (ou “sistemática”)” e envolve expor a pessoa a coisas a fazer com cães em etapas graduais, começando talvez com imagens, depois cães de brinquedo, depois olhando para um cão à distância, depois mais perto, até que se acaricie primeiro um pequeno cão tranquilo, etc. Cada passo no “tratamento” aproxima-se cada vez mais do objeto temido, de modo a adaptar-se gradualmente.

A outra abordagem é chamada “inundação”. Nas inundações, procura-se essencialmente tudo de uma só vez, expondo a pessoa ao objeto temido (neste caso um cão) e apoiando a pessoa para ficar ao redor do cão o tempo que for necessário para que o seu nível de medo desça. A terapia do comportamento, em poucas palavras, é um tratamento que não é mais profundo do que a frase comum “enfrente os seus medos“.

O aconselhamento envolve uma escuta empática. Muitas terapias têm uma ideia de catarse – uma extensão do confessionário. Despojadas do seu essencial, as nossas terapias mais usadas são apenas versões extravagantes da psicologia popular ocidental. Não contêm nada de especial. Não é, portanto, surpreendente que, nestes dias de terapia de massas, não estejamos assistindo nenhum avanço particular que mude radicalmente os resultados.

Isto leva-nos a “atenção plena” [mindfulness]. Não será este um exemplo de uma abordagem psicoterapêutica popular que vem da filosofia oriental? A “atenção plena” refere-se ao treino da mente para se distanciar do pensamento (como acerca do passado e do futuro) e, em vez disso, concentrar-se em atender plenamente à experiência do aqui e agora.

Como abordagem terapêutica, tornou-se popular como tratamento autônomo, como parte da promoção do “bem-estar”, como tratamento para o stress laboral, e como componente do que é referido como “terceira onda” TCC e outros modelos terapêuticos formais. Alega-se que foi pesquisada e considerada “eficaz” e “revolucionária” pelos seus defensores.

Qualquer coisa que ofereça sucesso na nossa sociedade injusta sem tentar mudá-la não é revolucionária. Pode ajudar algumas pessoas a lidar com isso, mas também pode, acidentalmente, piorar as coisas para outras. A “atenção plena” diz implicitamente que as causas do sofrimento estão desproporcionalmente dentro de nós e, como tal, junta-se ao mercado de reparadores da mente, alimentando a besta que nos implora que aceitemos que somos disfuncionais na forma como reagimos às nossas circunstâncias.

Não é que a prática da “atenção plena” não possa ajudar alguns. Ajustar a ruminação mental pode ajudar a reduzir o stress e permitir que as pessoas se sintam mais calmas e potencialmente mais amáveis. No entanto, na prudência, vemos o que acontece quando ideias que vêm de outra cultura são expropriadas. A mindfulnes deriva do budismo, mas tem sido despojada dos ensinamentos sobre ética, filosofia, e a espiritualidade que encarna que promove o propósito libertador de dissolver o apego a um falso sentido de si mesmo, ao mesmo tempo que decretando compaixão por todos os outros seres.

A mindfulness não existe como uma prática isolada no budismo, mas na sua forma terapêutica ocidental foi extraída das suas origens, foi-lhe dado um rótulo para permitir a marca registrada, e embalada numa forma fácil e discreta de ingerir “McDonaldised” e comercializada com fins lucrativos para permitir ao consumidor individual viver melhor. Nesta forma, nutre e refresca o ego individualista, em vez de o dissolver.

Ao praticar a mindfulness, a liberdade individual é supostamente encontrada dentro da “consciência pura”, não distraída por influências corruptoras externas. Tudo o que precisamos de fazer é fechar os olhos e observar a nossa respiração. Com o recuo para a esfera privada, a consciência torna-se uma religião do “eu”.

Ao contrário do ideal holístico budista de expandir o nosso sentido de conexão com o mundo em que estamos inseridos, a versão ocidental da “mindfulness” encoraja-nos a ser compassivos para com o nosso eu individual. A ocidentalização esvazia uma prática budista, separa-a das suas raízes, e coloca-a num paradigma da psicologia popular ocidental que enfatiza o indivíduo e desvaloriza o seu contexto e mundo social. A consciência, como muito da psicologia positivista e da indústria da felicidade em geral, despolitiza o stress.

O termo “McMindfulness” foi cunhado por Miles Neale, um professor budista e psicoterapeuta, que descreveu “um frenesi crescente de práticas espirituais que fornecem nutrição imediata, mas nenhum sustento a longo prazo” para descrever esta crassa mercantilização ocidentalizada de uma prática oriental.

É o último exemplo de como as tradições das culturas não ocidentais, particularmente asiáticas, têm sido sujeitas à colonização e mercantilização desde o século XVIII, produzindo uma espiritualidade altamente individualista perfeitamente acomodada aos valores culturais dominantes e não exigindo nenhuma mudança substantiva no estilo de vida. Uma espiritualidade tão individualista está ligada à agenda capitalista neoliberal da privatização, especialmente quando mascarada pela linguagem exclusiva e mística utilizada na literatura de “mindfulness”.

De acordo com a investigação, a mindfulness será melhor do que outras terapias, ou será que melhora os resultados quando adicionada como componente de outras terapias (como a CBT)? Não!

Os profissionais da saúde mental são guias filosóficos

A ciência diz-nos que os resultados da psicoterapia não melhoraram nas muitas décadas de investigação sobre a sua eficácia. Na verdade, alguns estudos descobriram que em ensaios formais de resultados de tratamentos, as terapias populares como a TCC tiveram melhores resultados nos experimentos realizados há várias décadas do que mais recentemente.

Na maioria dos campos da saúde, é possível ver uma melhoria gradual, e por vezes repentina, nos resultados. Há algumas décadas, cerca de metade das pessoas que sofriam um ataque cardíaco morriam no espaço de poucos dias. Hoje em dia, apenas cerca de 10% morrerão nestas fases iniciais, graças a uma maior compreensão da fisiologia, o que leva a melhores tratamentos. Os anos médios de sobrevivência ao câncer melhoraram para a maioria dos cânceres, e os programas de vacinação reduziram a prevalência e letalidade de muitas doenças. É o que acontece quando os aspectos técnicos dos cuidados são centrais para os resultados.

Os resultados em psicoterapia – na realidade, os resultados de todas as apresentações psiquiátricas – não melhoraram como resultado de avanços ou inovações técnicas. Uma interpretação razoável desta conclusão é que os tratamentos de saúde mental não devem ser construídos como pertencentes ao domínio da técnica. Por conseguinte, o diagnóstico, orientações de tratamento e normalização de processos encontrados no resto da medicina não é uma base racional ou baseada em provas sobre a qual conceber serviços para condições que rotulamos como saúde mental.

Então, o que estamos de fato a fazer quando “tratamos” aquilo a que chamamos problemas de saúde mental? Se os modelos que utilizamos não podem ser considerados técnicos, mas sim extensões da psicologia popular, que papel têm os profissionais da saúde mental a desempenhar?

No início deste capítulo propus que a psicologia não pertencesse ao campo das ciências naturais, mas sim à filosofia. A filosofia é geralmente definida como o estudo de questões gerais e fundamentais sobre a existência, conhecimento, valores, razão, mente e linguagem. Não será esta uma definição razoável daquilo em que aqueles de nós que trabalham no campo da saúde mental se empenham quando se deparam com uma pessoa que experimenta angústia mental ou mudança de comportamento?

Dado que não temos avanços técnicos que nos permitam ver o mecanismo da mente em ação e por isso não podemos empiricamente captar nada do que acontece entre o input (estímulos ambientais) e o output (comportamento e funcionamento), então tudo o que temos é a interpretação do que pode estar a acontecer e como a mudança pode acontecer. Tudo o que temos são estruturas de produção de significados.

Portanto, a forma mais apropriada de pensar sobre o que fazemos como profissionais da saúde mental é, na minha opinião, que agimos como guias filosóficos. Os nossos modelos de tratamento são estruturas de criação de sentido que usamos para interpretar a experiência de um doente e um sistema simbólico para imaginar como a mudança pode acontecer. Diferentes sistemas de criação de significados têm diferentes implicações.

Os sistemas filosóficos comuns que utilizamos, como a TCC, o modelo médico, e a mindfulness, são derivações de psicologias populares ocidentais carregadas com os pressupostos dessa filosofia, tais como individualização, racionalização, suspeita das emoções, controle das emoções, bem como significados superficiais. Estas abordagens moldam a investigação realizada e as terapias que fornecemos. Estão perfeitamente incorporadas numa economia de mercado orientada para as mercadorias. São boas para algum alívio a curto prazo, mas, como a maioria dos consumíveis “McDonaldisados“, proporcionam pouco sustento a longo prazo.

Uma economia de mercado requer uma contínua venda para se sustentar. Precisa que os consumidores se sintam um pouco melhor, mas não de uma forma sustentada, por isso continuam a voltar para mais. As terapias de psicologia popular ocidental fazem bem esta função. O mercado de medicamentos, psicoterapias, e produtos de bem-estar em geral, continua a expandir-se sem provas de melhorias sustentadas em toda a população. Isto é perfeito para mercados geradores de lucro.

Eu disse a maior parte das psicoterapias. Nem todos os sistemas filosóficos que utilizamos terapeuticamente estão em conformidade com as versões McDonaldizadas que descrevi.

As abordagens psicanalíticas mergulharam na psique humana, abrindo os grandes dramas em jogo no universo para além da nossa consciência quotidiana.

O pensamento psicanalítico influenciou a nossa cultura mais do que o contrário, sensibilizando-nos para camadas de significado que se podem se desenvolver à medida que os nossos instintos animais se chocam com as restrições impostas pelas nossas civilizações através dos nossos cuidadores, dando origem a conflitos e tensões internas.

Estas camadas mais profundas de significado são reveladas através da nossa linguagem, dos sonhos noturnos e diurnos que temos, e dos lapsos de linguagem que fazemos. As nossas primeiras relações e a nossa interpretação pessoal destas primeiras relações criam um “plano” que se situa para além da nossa consciência diária, mas que posteriormente estrutura os nossos sentimentos para com os outros e, consequentemente, os nossos pensamentos e comportamentos.

A terapia envolve uma profunda consciência de como estes dramas interpessoais, presentes desde a infância, continuam a repetir-se nas relações posteriores, incluindo a relação com o terapeuta. Como modelo filosófico, o trabalho é lento, possivelmente pontuado por epifanias (muitas podem ser falsas epifanias), envolvendo um “trabalho através” destes conflitos profundos a fim de desenvolver uma melhor percepção que lhe permita ter relações mais duradouras.

Onde eu poderia tropeçar com alguns psicanalistas é que, como todos os outros, eles não têm acesso especial ao funcionamento interior da mente. Trata-se de uma filosofia como qualquer outra, embora mais interessante do que as versões da psicologia popular ocidental.

A outra área da teoria que foi além da psicologia folclórica é a filosofia sistêmica. Começando nos finais dos anos 50 e influenciada pela antropologia, as teorias sistêmicas colocaram o sujeito humano num nexo de relações circunvizinhas que se deslocaram da família para as comunidades e sociedades. Influenciada por várias posições filosóficas, incluindo o construcionismo social, o marxismo e o pós-modernismo, estimulou vários modelos terapêuticos que têm em conta a influência do poder, do gênero, da raça, da sexualidade, e da política de forma mais ampla.

A teoria sistémica sugeriu que os sistemas de conhecimento que utilizamos são relativos e provêm daqueles que têm o poder em qualquer sociedade de influenciar as narrativas sociais comuns. Compreende que somos um produto das nossas amplas circunstâncias, desde o âmbito pessoal, à família, até às histórias e práticas comunitárias mais vastas. Isto significa que temos formas finitas de dar sentido às nossas experiências através das histórias que as nossas culturas nos proporcionam como veículos de criação de sentido.

Uma tal postura filosófica ressoa fortemente para mim, com a minha compreensão da evidência e uma ética que me parece apropriada, humana e capaz de se situar com a diferença. Nesta forma de imaginar, “tratamento” pode envolver ajudar os pacientes a olhar para além de um modelo consumista de cuidados ou cura que podem inadvertidamente encurralá-los na condição de pacientes, o que requer um consumo infinito de saúde mental. Também sensibiliza os profissionais para ajudar os doentes a localizar os males como sendo externos a eles e encoraja o envolvimento de uma rede social para ajudar a apoiar a melhoria.

Não tenho provas que sugiram que alguma das minhas filosofias preferidas melhore mais os resultados do que outras. Infelizmente, a própria teoria sistêmica tem sido transformada em “terapia familiar” ou “terapia sistêmica” e as formações específicas produzem “terapeutas familiares” que depois montam clínicas de terapia familiar, ou os pacientes recebem uma oferta de terapia familiar como uma marca da mesma forma que lhes pode ser oferecida a ” TCC”. A “terapia familiar” de marca não faz melhor ou pior na investigação do que outras terapias de marca.

Bem, talvez. Há uma exceção.

As Alternativas

O “Diálogo Aberto” é um modelo de cuidados de saúde mental que envolve uma abordagem de rede familiar e social onde o tratamento é realizado através de reuniões de todo o sistema/rede que incluem sempre o doente. É simultaneamente uma abordagem filosófica/teórica às pessoas que enfrentam uma crise de saúde mental e às suas famílias/redes, e um sistema de cuidados.

Foi desenvolvido pela primeira vez na Lapônia Ocidental, na Finlândia. Na década de 1980, os serviços psiquiátricos na região da Lapônia Ocidental estavam em mau estado – de fato, tinham uma das piores incidências de “esquizofrenia” na Europa. A equipe de saúde mental de lá, recorrendo a um modelo escandinavo de terapia narrativa, desenvolveu uma abordagem envolvendo toda a equipe para ajudar aqueles que se apresentavam em sofrimento mental, incluindo aqueles considerados como tendo uma apresentação psicótica.

Todos os membros da equipa: psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e terapeutas, adotaram a filosofia de ver as experiências das pessoas através do prisma do humano e não dos desafios técnicos. O diagnóstico não era utilizado, os medicamentos eram utilizados com parcimônia e a maior parte a curto prazo, e a rede social significativa estava envolvida desde cedo no cuidado do paciente. A maioria das reuniões permitiu uma exploração aberta dos possíveis significados que surgiram das histórias contadas pelos pacientes e por aqueles que os rodeavam, para criar um esforço de colaboração para dar sentido ao que tinha acontecido e ao que poderia ajudar.

Após 20 anos de funcionamento do seu serviço regional de saúde mental utilizando estes princípios, documentaram os melhores resultados para a psicose no Mundo Ocidental. Por exemplo, cerca de 75% das pessoas com psicose tinham regressado ao trabalho ou ao estudo no espaço de dois anos e apenas cerca de 20% ainda estavam tomando medicação antipsicótica no acompanhamento de dois anos.

O que é particularmente único no Diálogo Aberto é que não é uma alternativa aos serviços psiquiátricos convencionais ou uma novidade (tal como ter uma clínica de Diálogo Aberto), é precisamente o serviço psiquiátrico na Lapônia Ocidental. Isto tem proporcionado uma oportunidade única de desenvolver uma abordagem abrangente com serviços de internamento e ambulatório bem integrados.

Trabalhando com as famílias e redes sociais, tanto quanto possível nas suas próprias casas, as equipas de Diálogo Aberto ajudam os envolvidos numa situação de crise a estarem juntos e a empenharem-se no diálogo. Tem sido a sua experiência que se a família/equipe puder suportar a emoção extrema numa situação de crise, e tolerar a incerteza, então, a seu tempo, pode surgir um significado compartilhado que seja útil para todos. Não há nenhuma tentativa de ensinar esta ou aquela estratégia didática e, por conseguinte, um risco muito menor de desmotivação do paciente e das suas famílias.

O incrível sucesso do Diálogo Aberto resultou na sua exportação com um portfólio crescente de formação e investigação em desenvolvimento em muitos países. Prevejo com confiança que não reproduzirão os resultados e o sucesso encontrados na Finlândia. Isto porque o Diálogo Aberto está a tornar-se uma marca registrada, e por isso as pessoas estão criando clínicas de Diálogo Aberto para receberem encaminhamentos ou serem pesquisadas. Não estão sendo criadas como um serviço. Não estão sendo criadas da mesma forma que na Lapônia como um serviço, de propriedade e autoria do pessoal desse serviço e com uma filosofia diferente do modelo de diagnóstico técnico que domina outros serviços de saúde mental.

Outra filosofia que vale a pena mencionar: O “Power Threat Meaning Framework”, publicado em 2018, foi desenvolvido ao longo de cinco anos por um grupo de psicólogos seniores e usuários dos serviços de apoio, com base no Reino Unido, para servir de alternativa aos modelos baseados no diagnóstico psiquiátrico.

O PTMF resume e integra uma grande quantidade de evidências sobre o papel de vários tipos de poder na vida das pessoas, os tipos de ameaças que o abuso de poder nos coloca, e as formas como aprendemos a responder a essas ameaças. O PTMF pode ser usado como uma forma de ajudar as pessoas a criar narrativas ou histórias mais esperançosas sobre as suas vidas e as dificuldades que enfrentaram ou ainda enfrentam, em vez de se verem a si próprias como censuráveis, fracas, deficientes, ou “doentes mentais”.

Realça e clarifica as ligações entre os fatores sociais mais amplos como a pobreza, discriminação e desigualdade, juntamente com traumas como o abuso e a violência, e o consequente sofrimento emocional ou comportamento perturbado que por vezes pode então emergir. Mostra também porque é que aqueles de nós que não têm uma história óbvia de trauma ou adversidade ainda podem lutar para encontrar um sentido de autovalorização, significado e identidade.

Como tal, é uma filosofia que se afasta radicalmente de abordagens medicalizadas e consumistas, criando significados que não são reduzidos a “sintomas” ou ” transtornos”. Em vez disso, procura compreender como fazemos sentido destas experiências e como as mensagens da sociedade em geral podem aumentar os nossos sentimentos de vergonha, autocondenação, isolamento, medo e culpa.

Há outras que criaram modelos de serviços abrangentes e viáveis que utilizam uma filosofia de orientação mais contextual e humano-relacional como alternativa às abordagens individualizantes e técnicas dominantes. Por exemplo, alguns serviços baseados no feedback, como o desenvolvido por Bob Bohanske no Arizona ou Birgit Valla na Noruega, eliminaram o diagnóstico e, em vez disso, utilizam um modelo que incorpora o feedback contínuo dos pacientes e famílias que encontram, para que o processo terapêutico seja constantemente coconstruído como um esforço conjunto entre o paciente, a sua rede, e o(s) seu(s) terapeuta(s).

Existem alternativas. As evidências estão aí. As filosofias técnicas de diagnóstico não funcionam na saúde mental. Elas tornam as coisas piores. Encurralam os doentes para se tornarem consumidores a longo prazo. Chegou a hora de as eliminar. Totalmente.

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[trad. e edição Fernando Freitas]

Do Sujeito ao Dado

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Não há mais como voltar à Terra.

Não temos mais como pousar e repousar no que poderia ter sido nosso paraíso em vida, do qual viemos fugindo nas últimas décadas.

Conforme já utilizei, um dos argumentos de H. Arendt no prefácio de sua mais densa obra (A condição Humana) [1], a saída do planeta, umas das mais definidas constituições da nossa condição humana, não se deu como a grande pensadora temia, rumo ao espaço sideral. Mas, definitiva e irrevogavelmente, se consumou com a entrada no universo virtual.

Transitar nesse novo mundo, no entanto, pode ter suas consequências indesejáveis. Tanto podemos cair de volta ao solo da realidade material de forma não esperada, como podemos não definir mais onde nos encontramos e permanecer perdidos no espaço.

Sendo uma opção incontornável, é preciso então atenção na abordagem das questões da revolução digital que chega de forma assustadoramente veloz, principalmente na nossa área da saúde. Refugá-la, nos colocaria no mesmo patamar do obscurantismo militante que se afastou do conhecimento da revolução tecnológica das ciências médicas no final do século passado, já caracterizado como uma ressaca de arrependimento pós-iluminista com a ciência [2].

Em paralelo a isso, as discussões sobre o processo de saúde e doença, sua determinação social, a crítica ao modelo de medicina preventiva e a ampliação do conceito da luta sanitária não resolveram nosso modo de pensar ontologicamente o que é a doença, ou a saúde. A dificuldade em sua definição e demarcação permanece a mesma desde os tempos do lançamento de O Normal e o Patológico [3], e avança atualizada no debate entre o naturalismo e normativismo [4]. Nesse ponto, entretanto, para o campo da saúde mental, a distinção ontológica entre doença e sofrimento é fundamental. Embora ambas as situações sejam antagônicas à concepção de saúde, a não distinção ontológica entre doença e sofrimento é que instaura o equívoco para o que se propõe com a atuação da medicina. Nesse sentido, é evidente que a força heurística do programa de pesquisa da medicina tente, a todo tempo, neurologizar o que é mental.

Mas a questão da saúde mental não encontra o mesmo substrato ontológico para sediar o processo de transtorno ou doença. Saindo da anatomia patológica, o ampliado conceito de sujeito necessita de outra abordagem [5]. Toda a questão da Reforma Sanitária na Saúde Mental e na luta antimanicomial teve sucesso pelo acertado questionamento ontológico de doença na área da mente [6].

A discussão que aqui se coloca diz respeito ao sujeito, que pode ser abordado em uma concepção ampliada normativista, ou na sua redução, ao menos conceitual, no modelo objetivo do naturalismo. Embora, não por acaso, Boorse deixe reservas quanto à aplicação do seu modelo nesse campo [7], a psiquiatria mainstream mantém sua caminhada pelo objetivismo das sinapses, dos neurotransmissores e agora procura apoiar nas bases moleculares da genética seus códigos classificatórios e demarcadores de qualquer essência que seja possível para o transtorno mental.

Quando olhamos para a medicina clínica, em paralelo, percebemos que saímos de uma época onde ainda não havíamos ultrapassado o modelo que nos dava o clássico Canguilhem, quando dizia que “é a própria vida […] que introduz na consciência humana as categorias de saúde e doença. Essas categorias são biologicamente técnicas e subjetivas e não biologicamente científicas e objetivas” [8]. Ou seja, postulava-se um saber técnico-profissional, estruturado a partir do aprendizado teórico e da experiência empírica, que deixava ao médico, como sujeito da relação ou equação médico-paciente, o poder de decidir a condução do seu agir. Mesmo que, no avançar das acomodações da relação trabalho-capital do final do século XX, a transformação da medicina liberal em medicina socializada [9] tenha dinamizado novos mecanismos de controle e coerção sobre a autonomia tanto do profissional quanto do paciente.

Mas atualmente, com a transformação epistemológica que possibilitou a medicina digital, onde o dado científico passou a ocupar o lugar da anatomia patológica, o acesso semiológico a esse substrato exclui, por definição, o intangível da subjetividade. Agora sim, a cientificação plena da biologia na sua redução à objetividade dos dados coloca a metafísica definitivamente fora da medicina e, neste sentido, a sede ontológica para o sujeito da saúde mental, abordado pelo dado objetivo, estará nas raias da neuropsiquiatria.

Até mesmo na discussão ampliada dos determinantes sociais, a leitura pelo foco da objetividade procura abarcar a realidade do sujeito através de sua decodificação em dados. E o mundo do convívio virtual das redes sociais tornou-se um dos campos possíveis para a observação clínica [10]. Nessa busca, ou garimpo de dados e indicadores, estão sendo definidos os processos e protocolos de percepção e cuidado, mas também de vigilância e controle [11]. Assim, não há exatamente mais um conflito com o modelo biomédico, mas apenas críticas aos moldes de realidade que se busca construir na racionalização dos algoritmos. Então, o que seria mais importante – a questão da redução da realidade ao dado – passa despercebida na aceitação prima facie da evidência tangível. Nesse contexto, a psiquiatria digital caminha na mesma trilha da medicina baseada em evidência, que capturou a prática médica na virada do século XX; e, como componente estrutural desta, as práticas da gestão em saúde e da cultura corporativa no ambiente financeiro da economia, a condução para a medicina baseada em valor é o passo seguinte. Tanto condição sine qua non, quanto consequência da redução ao dado.

Nesse ponto, em uma pequena revisão dos fundamentos que justificam esse modelo, vamos rever o que desenvolveu K.M.V. Fulford [12], a partir do campo filosófico original da discussão moral sobre o valor. Saindo da ótica consequencialista que privilegia a observação de resultados para a tomada de decisão, Fulford vai recuperar a reflexão a partir da divisão clássica entre fatos e valores, ponto importante da filosofia moral, que ressurgiu no final do século XX com o impulso que o desenvolvimento tecnológico deu ao debate bioético.

De forma simplificada, sua proposta trata do entendimento de que todos nós baseamos as nossas escolhas a partir de fatos e valores. Seu argumento nos esclarece a situação ao demonstrar, como exemplo, que ninguém iria se opor ao pronto-atendimento com uma sutura de uma ferida que estivesse sangrando em uma lesão traumática; pois, em cima desse fato, sem perceber, todos nós faríamos um juízo de valor – de que aquilo tem o risco de comprometer a vida humana e que tal abordagem seria justificada. Nessas situações “tais juízos de valor só agem em segundo plano, pois há quase um acordo universal sobre eles” [13].

O problema é que o avanço tecnológico e as múltiplas opções disponíveis para o cuidado moderno diminuíram o acordo universal sobre determinados valores e aumentaram as distâncias entre as múltiplas possibilidades que esse avanço nos trouxe, numa sociedade cada vez mais heterogênea. Não menos importante, para o caso da Atenção Primária, seria a mudança de foco na assistência sanitária, com maior ênfase se direcionando do tratamento para a prevenção, e da abordagem hospitalar para dentro da comunidade, onde encontramos as mais amplas variações no estilo de vida e de práticas cotidianas, onde o autor destaca ainda o comportamento de consumidor assumido pelo paciente [14].

Fulford descreve como a abordagem das teorias sobre o valor na prática da medicina já se iniciava ao longo da década de 1990, com as primeiras reflexões da Medicina Baseada em Evidência (MBE). Nesse sentido, um dos princípios propostos seria o compartilhamento de decisões que fossem centradas nos pacientes [15]. Esse avanço na consideração do tema se dará até o destaque sobre a Medicina Baseada em Valor (MBV) refletindo as ideias do texto seminal de Brown e Sharma [16]. O esclarecimento teórico de Fulford está na explanação das situações nas quais devemos considerar distintamente dois pontos: quando estamos lidando com fatos – as instâncias para as quais as orientações da MBE seriam uma resposta à crescente complexidade desses fatos relevantes, ou quando estamos lidando com valores – nesse ponto, a MBV seria a abordagem também para uma crescente complexidade, mas dos valores relevante [17].

Fica evidente, ao nos depararmos com esta definição teórica mais precisa, que as disposições apresentadas pela corrente norte-americana da MBV [18] – notadamente atrelada às questões financeiras do mercado de saúde – consideram como valor uma outra composição de dados, que, na verdade, são ainda fatos. Ou seja, as concepções de MBV que tratam o valor como meta objetiva de resultados estão lidando ainda com fatos. Sem partir de princípios, mas ainda observando as consequências, são dados objetivos, de projeção prospectiva a partir de resultados retrospectivos, mas agora tanto clínicos quanto financeiros que estarão dispostos como opção para a escolha de decisões. Esse formato de MBV seria, de um ponto de vista filosoficamente mais teórico, um avanço no ajuste contábil das mesmas métricas técnicas da MBE. E poderíamos ainda observar um agravante: se pensarmos no peso que os custos representam para as medidas de saúde pública, e no reforço epistêmico que essa influência tem sobre os resultados científicos esperados pelos protocolos da MBE, fica a dúvida de qual espaço restaria para as escolhas individuais, ou mesmo de pequenas comunidades, baseadas realmente em seus valores como princípios.

O modelo proposto por Fulford torna-se distintamente evidente na área da psiquiatria, na qual percebemos que as grandes diferenças de abordagem sugerem um caráter pouco científico ao aporte do tratamento psiquiátrico. O autor nos faz perceber que isso se dá justamente pela natureza mais carregada de valor da relação entre a saúde mental e o transtorno psíquico. Assim, como

na MBE, nossa primeira ligação é informação objetiva, ou seja, informação o mais livre possível da perspectiva subjetiva particular deste ou daquele indivíduo ou grupo, […] as informações derivadas de meta-análises de pesquisa de alta qualidade estão no topo da ‘hierarquia de evidências’ [19].

O que a sua abordagem de MBV traria a esse ponto seria não a referência a uma regra que prescreve um resultado ‘correto’, mas a processos projetados para apoiar um equilíbrio de perspectivas”, pois os “valores humanos não são, meramente, diferentes, mas legitimamente diferentes” [20].

No seu rol de princípios da MBV, além da fundamental necessidade de distinção entre fato e valor, notamos que esses se tornam mais claros justamente nas situações de conflito, que são cada vez mais frequentes com os avanços tecnológicos e de serviços. A legitimidade da perspectiva individual ou de um grupo; a necessidade de aprimoramento da linguagem para a informação adequada dos pacientes e reconhecimento de seus valores pelos profissionais; a abordagem da MBV mais focada no processo do que no resultado; a liberdade para pensar no dissenso e não obrigatoriedade do consenso dão corpo a um modelo que redefine novamente o foco da decisão. Tal modelo não mais privilegia as deliberações entre clínicos e pesquisadores [21], mas centraliza novamente na relação médico-paciente, em uma recuperação original do ethos profissional da medicina.

Fulford e seu grupo passam a aplicar o seu método no ensino e na prática a partir do programa implantado no Warwick Medical School e demonstram seus próprios modelos de resultados [22]. Neste texto, afirmando que a razão pela qual “as coisas dão errado nas interações entre médico e paciente por uma falha na prática baseada em valores, não uma falha na prática baseada em evidências”; eles seguem sem se deter no controle dos números como guia para os valores, nem em “número necessário para tratar”. No lugar disso,

histórias da vida: exemplos de boas práticas na tomada de decisão baseada em valores ilustrados pelas histórias de pessoas individuais – clínicos, pacientes, famílias e outras pessoas – que lidam com as complexidades apresentadas pelas contingências das situações práticas particulares em que se encontram [23].

E como que recuperando o enquadramento que aqui fizemos, logo ao abrir o texto, com a premissa de Canguilhem sobre a subjetividade das ciências da saúde, concluem que “a prática essencial baseada em evidências […] é científica e geral. A prática essencial baseada em valores é humana e individual” [24].

Temos, então, a possibilidade de caminhar neste mundo ampliado pela realidade virtual, a partir do juízo prévio de valores que nos dizem respeito, que ampliem as possibilidades dos sujeitos e suas opções de vida, na comunidade de afetos que desejam construir, para além de métricas utilitaristas. É preciso deixar espaço para as intuições, para as percepções intangíveis e talvez, até mesmo, para os riscos da fé.

É possível e necessário, ainda que seja na expectativa de estarmos habitando um novo espaço, sem delimitações territoriais, mas ao mesmo tempo tão cercado, parametrizado e quantificado, insistirmos em manter nossa perspectiva de lidar com o humano na compreensão de que nossa vida estará além do dado.

 

* Argumentos e parte deste texto foram extraídos do livro O Ocaso da Clínica. A Medicina de Dados – Editora Zagodoni, 2021.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] ARENDT, H. A condi[1ção humana. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

[2] SLOTERDIJK, P. Crítica da Razão Cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

[3] CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002

[4] GAUDENZI, P. A tensão naturalismo/normativismo no campo da definição da doença. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., v. 17, n. 4, p. 911-924, 2014.

[5] AMARANTE, P. Loucura, cultura e subjetividade: conceitos e estratégias, percursos e atores da Reforma Psiquiátrica Brasileira. In: FLEURY, S (Org.). Saúde e Democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial, 1997

[6] AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

[7] BOORSE, C. Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, v. 44, n. 4, p. 542-573, 1977

[8] CANGUILHEM, 2002, p.72

[9] No nosso meio, ver textos seminais que avaliam essa transição: seja do ponto de observação da década de 1970 (DONNANGELO, M. C. F.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976.), seja no auge dessa transição na década de 1990 (SCHRAIBER, L. B. O médico e seu trabalho. Limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993.).

[10] ABNOUSI, F & cols. Social Determinants of Health in the Digital Age. Determining the Source Code for Nurture. JAMA Published online December 20, 2018 https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2719583

[11] BEMME, D; BRENMAN, N; SEMEL, B. The subjects of digital psychiatry. Somatosphere. October 13, 2020. http://somatosphere.net/2020/subjects-of-digital-psychiatry.html/

[12]Professor de filosofia e saúde mental na Faculdade de Medicina da Universidade de Warwick, da Universidade de Oxford e do King’s College de Londres. Editor do Philosophy, Psychiatry, & Psychology e coautor do Oxford Text book of Philosophy and Psychiatry.

[13]FULFORD, K. M. V.; DALE, J.; PETROVA, M. Values-based practice in primary care: easing the tensions between individual values, ethical principles and best evidence. British Journal of General Practice, v. 56, n. 530, 2006, p.704

[14] Idem.

[15] EVIDENCE-BASED MEDICINE WORKING GROUP. Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine. JAMA. v. 268, n. 17, p. 2420-2425, 1992.

[16] BROWN, G. C.; BROWN, M. M.; SHARMA, S. Health care in the 21st century: evidence-based medicine, patient preference-based quality, and cost effectiveness. Qual Manag Health Care. v. 9, n. 1, p. 23-31, 2000.

[17] FULFORD, K. M. V. Ten principles of values-based medicine. In: RADDEN, J. (ed.) The philosophy of psychiatry: a companion. New York: Oxford University Press, 2004. p. 205-234

[18] Nos referimos aos modelos baseados na proposta teórica de Porter, principal articulador desta visão da MBV. (ver PORTER, M. E.; TEISBERG, E. O. Redefining health care: creating value-based competition on results. Boston: Harvard Business School Press, 2006; PORTER, M. E. What is value in health care? N Engl J Med. v. 363, n. 26, p. 2477-2481, 2010.)

[19]FULFORD, 2004, p. 210

[20] FULFORD, 2004, p. 210

[21] CHANG, S.; LEE, T. H. Beyond evidence-based medicine. N Engl J Med, 2018: Nov v. 379, n. 21, p. 1983-1985, 2018.

[22] FULFORD, K. M. V.; PEILE, E.; CARROLL, H. Essential values-based practice: clinical stories linking science with people. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

[23]IDEM, p.48

[24]IDEM, p. IX

[Artigo postado no blog ObMed →]

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