A Psiquiatria Ignora um Elefante na Sala

0
2834

peter-gotzscheAmplos estudos de coorte de pessoas em primeiro episódio de psicose fornecem uma oportunidade única para se descobrir por quê muitos jovens com distúrbios do espectro de esquizofrenia morrem em uma idade jovem. No entanto, parece que aqueles psiquiatras que têm acesso aos dados de mortalidade geralmente não querem que os fatos venham a público. Em estudos de coorte publicados, praticamente sempre há pouca informação ou nenhuma informação sobre as causas da morte.

Em 2012, Hegelstad et al. publicaram dados de um estudo de acompanhamento (‘follow-up’) de 10 anos em um grupo de 281 pacientes com psicose no primeiro episódio (estudo TIPS).[1] Embora a idade média deles quando entraram no estudo tenha sido de apenas 29 anos, 49 pacientes (17%) morreram em menos de 10 anos. O artigo detalhado dos autores era sobre a recuperação (‘recovery’) e os resultados dos sintomas; eles não estavam interessados por quê todas essas mortes, que apareceram em um fluxograma de pacientes perdidos pelo follow-up e que não mereceram qualquer comentário em seu artigo. No texto, no entanto, eles mencionaram apenas 28 mortes (11%), por isso é difícil saber como morreram.

Em 5 de março de 2017, escrevi para o primeiro autor: “Em seu interessante estudo de 2012, ‘Follow-up de longo prazo do estudo TIPS Detecção Precoce na Psicose: efeitos sobre o resultado de 10 anos’, 281 pacientes 28 morreram. Você tem as causas da morte, que seria muito interessante conhecer. Eu notei que a maioria dos pacientes ainda estava em antipsicóticos 10 anos após eles começarem (tabela 2). Considero isso muito assustador, p.e., que cerca de metade deles terá discinesia tardia (o que muitas vezes é encoberta pelo tratamento contínuo) e muitos, se não todos, terão desenvolvido danos cerebrais permanentes, para mencionar apenas dois dos danos importantes do tratamento a longo prazo. Em contraste, apenas 17% dos pacientes em Lappland [*] ainda estavam em antipsicóticos 5 anos após o primeiro episódio (contra 75% em Estocolmo)”.

Mandei um lembrete dez dias depois e recebi uma mensagem que em breve receberia uma resposta. Em 10 de maio, escrevi novamente: “Agora são mais dois meses. Você fez um estudo importante e é importante para o mundo saber de que 10% dos seus pacientes muito jovens morreram em apenas 10 anos. É uma taxa de morte assustadora. Precisamos apresentar um pedido de Liberdade de Informação para obter essa informação? ”

Hegelstad respondeu: “Estamos preparando um manuscrito detalhando as informações que você está pedindo. Será submetido a um periódico revisado por pares. Quando publicado, a informação estará prontamente disponível para todos “.

A preparação do manuscrito e sua publicação foram muito rápidas. Já em junho, o artigo estava publicado, em World Psychiatry [2].  Com essa velocidade recorde, eu me perguntei como teria sido a revisão dos pares, se houve alguma. Parecia mais uma carta ao editor, sem subtítulos, e ocupando apenas 1,5 páginas. O número de mortes já era nem 49, nem 28, mas 31.

Como as informações que eu solicitei não foram encontradas em seu artigo, Bob Whitaker e eu escrevemos uma carta ao editor da revista, o professor Mario Maj, em 16 de agosto com esta mensagem: “O relatório de Melle et al., de um estudo prospectivo de 10 anos de 281 pacientes com distúrbios do espectro de esquizofrenia, diz que 11% morreram, embora sua idade média na entrada no estudo tenha sido de apenas 29 anos. Seu estudo poderia nos dar uma visão singular de por quê tantos pacientes com esses transtornos morrem tão jovens, mas havia muito poucos detalhes em seu artigo para fornecer esse conhecimento tão necessário. Nós esperamos muito que você ajude a obter o conhecimento que Melle et al. têm em seus arquivos publicados ao tornarem pública a nossa breve carta, e que lhes peça para que respondam às questões que levantamos. Esse seria um ótimo serviço para a psiquiatria, os pacientes e para todos os outros com interesse nesta questão de vital importância “.

A nossa carta enviada foi esta:

Por que tantos jovens com distúrbios do espectro de esquizofrenia morrem tão cedo?

Melle et al. relatam que, em um estudo prospectivo de 10 anos de 281 pacientes com distúrbios do espectro de esquizofrenia, 11% morreram [1], embora a sua idade média na entrada no estudo tenha sido de apenas 29 anos.[2] Seu estudo pode nos dar uma visão única sobre o por quê de tantos pacientes com esses transtornos morrerem tão jovens, mas havia muito poucos detalhes em seu artigo para fornecer esse conhecimento tão necessário.

Melle et al. escrevem que 16 morreram por suicídio, 7 por overdoses acidentais ou outros acidentes, e 8 de doenças físicas, incluindo 3 de doenças cardiovasculares. Para tentar separar as causas iatrogênicas da morte por mortes causadas pela desordem, precisamos saber:

Quando ocorreu o suicídio? Os suicídios geralmente ocorrem cedo, depois que os pacientes deixaram o hospital[3], e às vezes são iatrogênicos. Um estudo de registro dinamarquês de 2.429 suicídios mostrou que, em comparação com as pessoas que não receberam tratamento psiquiátrico no ano anterior, o índice de taxa de suicídio ajustado foi de 44 para pessoas que foram internadas em um hospital psiquiátrico.[4] Desses pacientes, obviamente, o que se espera é que estejam em maior risco de suicídio porque estavam mais doentes do que os outros (confundindo por indicação), mas os achados foram robustos e a maioria dos vieses potenciais no estudo foi realmente conservadora, ou seja, favoreceu a hipótese nula de não haver relação. Um editorial acompanhando o estudo observou que há poucas dúvidas de que o suicídio esteja relacionado ao estigma e ao trauma e que é totalmente plausível que o estigma e o trauma inerentes ao tratamento psiquiátrico – particularmente se involuntário – possam causar suicídio.[5]

O que as overdoses acidentais e outros acidentes significam? Os médicos prescreveram uma overdose ou os pacientes por engano fizeram uma overdose, e quais os tipos de acidentes estiveram envolvidos? As drogas psicotrópicas podem levar a quedas, o que pode ser fatal, e os suicídios às vezes são mal codificados como sendo acidentes.[6]

Peter C. Gøtzsche1 and Robert Whitaker2

1 Nordic Cochrane Centre, Copenhagen, Denmark

2 Boston, United States

Conflitos de interesse: nenhum.

1. Melle I, Olav Johannesen J, Haahr UH et al. Causes and predictors of premature death in first-episode schizophrenia spectrum disorders. World Psychiatry2017;16:217-8.

2. Hegelstad WT, Larsen TK, Auestad B et al. Long-term follow-up of the TIPS early detection in psychosis study: effects on 10-year outcome. Am J Psychiatry2012;169:374-80.

3. Chung DT, Ryan CJ, Hadzi-Pavlovic D et al. Suicide rates after discharge from psychiatric facilities: a systematic review and meta-analysis. JAMA Psychiatry2017;74:694-702.

4. Hjorthøj CR, Madsen T, Agerbo E et al. Risk of suicide according to level of psychiatric treatment: a nationwide nested case-control study. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 2014;49:1357–65.

5. Large MM, Ryan CJ. Disturbing findings about the risk of suicide and psychiatric hospitals. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 2014;49:1353–5.

6. Brown S. Excess mortality of schizophrenia. A meta-analysis. Br J Psychiatry1997;171:502-8.

Oito dias depois Maj nos disse que “infelizmente, embora sendo um assunto interessante, não é da nossa competência responder à seção de cartas”.

Cinco dias depois, respondi e disse a Maj que esperávamos que ele reconsiderasse a sua rejeição da nossa carta:

“Permita-me acrescentar que as pessoas com quem conversei em vários países sobre as mortes em jovens com esquizofrenia – psiquiatras, especialistas forenses e pacientes – concordaram que precisamos desesperadamente do tipo de informação que lhe pedimos para garantir que obtivéssemos dessa coorte valiosa de pacientes relatada por Melle et al.

Existe uma suspeita generalizada e bem fundamentada de que a razão pela qual não vimos uma descrição detalhada das causas de morte em coortes como a do estudo TIPS de Melle et al. publicado em seu periódico é que os psiquiatras priorizam a proteção dos interesses da aliança em vez de proteger os pacientes. Ao recusar a publicação da nossa carta e a obtenção dos dados que Melle et al. têm em seus arquivos, você contribui para essa suspeita. Nós pedimos previamente a um dos pesquisadores, Wenche ten Velden Hegelstad, que nos fornecesse esses dados, mas fomos informados em 10 de maio deste ano que eles seriam publicados (…). Eles não foram publicados, na medida em que o que Melle et al. publicaram em seu periódico não é um relato adequado do por quê esses jovens morreram.

Portanto, pedimos que você assegure que esses dados sejam abertos, em benefício dos pacientes. Acreditamos que é seu dever profissional e ético – tanto como editor de jornais como como médico – para que isso aconteça. Esta não é uma questão sobre a seção que você possui no jornal para cartas. É uma questão de priorização “.

Até o momento . Mas, uma vez que o TIPS foi apoiado por doações do Conselho de Pesquisa da Noruega, eu pedirei ao Conselho os dados anônimos sobre as mortes, pois isso é claramente de interesse público. TIPS também foi apoiado por Lundbeck Pharma, Eli Lilly e Janssen-Cilag Pharmaceuticals, que dificilmente estarão interessados em disponibilizar esses dados para o acesso público, por isso será interessante ver o que acontece.

Em contraste com os autores do estudo TIPS, a professora de psiquiatria Merete Nordentoft, em Copenhague, estava à disposição quando lhe perguntei sobre as causas da morte de 33 pacientes após 10 anos de seguimento no estudo OPUS, também de pacientes com um primeiro episódio psicótico.[3] Eu mencionei especificamente que os suicídios, os acidentes e a morte súbita e inexplicável podem estar relacionados à droga. Recebi uma lista das mortes e Nordentoft explicou que ninguém tinha uma causa de morte relacionada ao coração, mas que isso provavelmente era porque eles eram tão jovens. Nos certificados, ela tinha visto alguns pacientes simplesmente terem caído mortos, um deles sentado em uma cadeira.

Assim é como deve ser. A abertura é o caminho a seguir se desejarmos reduzir as muitas mortes que ocorrem em pacientes jovens tratados em saúde mental. Não deve ser necessário dizer isso, mas infelizmente existem poucos psiquiatras como o Nordentoft. Perguntei a Hegelstad sobre o número conflitante de mortes e também pedi para obter as causas da morte com mais detalhes. Até o momento nenhum retorno de Hegelstad.

Conflito de interesse: nenhum.

[1] Hegelstad WT, Larsen TK, Auestad B et al. Long-term follow-up of the TIPS early detection in psychosis study: effects on 10-year outcome. Am J Psychiatry 2012;169:374-80.

[2] Melle I, Olav Johannesen J, Haahr UH et al. Causes and predictors of premature death in first-episode schizophrenia spectrum disorders. World Psychiatry 2017;16:217-8.

[3] Hegelstad WT, Larsen TK, Auestad B et al. Long-term follow-up of the TIPS early detection in psychosis study: effects on 10-year outcome. Am J Psychiatry 2012;169:374-80.

[*] N.R. Lappland, região da Finlândia, onde é desenvolvida a abordagem do Diálogo-Aberto (Open Dialogue).

Artigo anterior“FDA aprova droga para a alegria irritante”
Próximo artigoPesquisa sobre Maconha: Superando as Barreiras
Peter C. Gøtzsche, MD, publicou mais de 100 artigos nas cinco principais revistas médicas gerais e seus trabalhos científicos foram citados mais de 150.000 vezes. Ele publicou vários livros relevantes para a psiquiatria, incluindo Deadly Psychiatry and Organised Denial, Mental Health Survival Kit and Withdrawal from Psychiatric Drugs e Critical Psychiatry Textbook. Atualmente, ele está financiando por meio de crowdfunding seu Institute for Scientific Freedom com o objetivo de preservar a honestidade e a integridade na ciência.