As Conseqüências a Longo Prazo do Uso de Antidepressivos: uma entrevista com Michael Hengartner

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Pesquisadores da Universidade de Zurique, liderados por Michael Hengartner, recentemente relataram que o uso de antidepressivos estava associado a piores resultados em pacientes seguidos ao longo de mais de 30 anos. Nesta entrevista, Hengartner fornece mais informações sobre a metodologia do estudo e suas descobertas e seus planos para pesquisas futuras sobre esse tópico.

Michael HengartnerMichael P. Hengartner, PhD, é pesquisador sênior e professor da Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique, na Suíça. Ele possui um doutorado em psicologia clínica e uma qualificação para a cátedra em medicina. Seus principais interesses de pesquisa são psicopatologia, psicossomática, epidemiologia psiquiátrica, psiquiatria social e psicologia clínica. Ele é casado e pai de três filhos. Siga-o no Twitter @HengartnerMP

P. Você recentemente publicou um estudo que descobriu que o uso de antidepressivos estava associado a piores resultados ao longo de um período de trinta anos. Você pode nos contar um pouco mais sobre a natureza do estudo?

R. Utilizamos os dados de um levantamento epidemiológico longitudinal, conhecido como “Estudo prospectivo de coorte de Zurique“, para realizar essa análise. Este notável estudo longitudinal foi desenhado e conduzido pelo investigador principal Dr. Jules Angst, e mais tarde pelo Dr. Wulf Rössler, ambos afiliados ao Hospital Universitário de Psiquiatria em Zurique, Suíça. Eu tive o privilégio de acessar este inédito conjunto de dados porque sou um ex-pesquisador associado tanto do Dr. Angst quanto do Dr. Rössler.

O estudo de Zurique foi patrocinado pela Fundação Suíça de Ciência para o avanço do nosso conhecimento da epidemiologia psiquiátrica. O estudo de Zurique começou em 1978 com a inscrição de uma amostra representativa de 4.547 jovens adultos (os homens tinham 19 anos e as mulheres de 20 anos) da província de Zurique, na Suíça. Com base em um breve teste de triagem psiquiátrica, os participantes foram classificados como de alto risco ou com baixo risco de transtornos mentais.

Em seguida, uma amostra de 591 pessoas, envolvendo dois terços dos indivíduos de alto risco e um terço dos indivíduos de baixo risco, foram sorteados aleatoriamente desta amostra da triagem inicial para participar da pesquisa longitudinal. Este procedimento é referido como um procedimento de amostragem estratificada e é comum em pesquisas psiquiátricas, devido à baixa prevalência de alguns transtornos mentais na população em geral.

A primeira avaliação abrangente desse grupo foi realizada em 1979, quando os participantes tinham 20/21 anos, com uma entrevista clínica semiestruturada, que captava a psicopatologia, o tratamento, o funcionamento social e a saúde física. Essas avaliações psiquiátricas abrangentes foram repetidas em 1981, 1986, 1988, 1993, 1999 e, finalmente, em 2008. Ou seja, a amostra foi acompanhada (follow-up) durante um período total de observação de 30 anos à medida em que os participantes progrediram de 19/20 anos para 49 /50 anos.

Por favor, note que este estudo de coorte, no início, não foi projetado para medir o efeito a longo prazo dos tratamentos psicofarmacológicos. O principal objetivo do estudo de Zurique foi determinar a prevalência e o curso dos transtornos de humor e ansiedade na comunidade, que, no final dos anos 70 e início dos anos 80, eram em sua maioria desconhecidos. Assim, a presente análise foi necessariamente uma análise post-hoc que eu iniciei devido ao meu crescente interesse nos efeitos a longo prazo da farmacoterapia antidepressiva.

P. Qual foi os resultados primários do seu estudo e como foram medidos?

A. O resultado primário deste estudo foi a gravidade da sintomatologia depressiva nos últimos 12 meses, conforme avaliado em cada onda de avaliação (ou seja, em 1979, 1981, 1986, 1988, 1993, 1999 e 2008). Como está detalhado no artigo, definimos os seguintes quatro níveis que refletem o aumento da gravidade da doença: 1) ausência de sintomas depressivos, 2) sintomas depressivos transitórios e menores, 3) transtorno depressivo subliminar (sintomas que não se qualificam para um diagnóstico psiquiátrico), e 4) depressão maior (de acordo com os critérios de diagnóstico do DSM-IV). Preferimos esse resultado contínuo (sem sintomas para sintomas clinicamente relevantes) mais do que um diagnóstico dicotômico (ou seja, distúrbio presente versus ausente), porque as alterações na psicopatologia são frequentemente sutis e são inadequadamente capturadas por amplas categorias diagnósticas. A remissão completa e os distúrbios diagnosticáveis totalmente sintomáticos agudos são polos extremos ao longo de uma dimensão onde a mudança mais observável (isto é, melhoria / deterioração) ocorre entre estes extremos dentro do intervalo moderado da gravidade da doença.

Imagine você, por exemplo, uma pessoa que tenha depressão grave e que tenha começado com um medicamento antidepressivo. E que alguns anos mais tarde, os seus sintomas foram reavaliados e verificou-se que a pessoa ainda apresentava sintomas de depressão debilitantes, embora estes não ultrapassassem o limiar de diagnóstico (isto é, depressão subliminar). E que outra pessoa também tenha apresentado depressão grave no início do estudo, mas que não usou antidepressivos e no acompanhamento essa pessoa não relatou nenhum sintoma. Agora imagine que só avaliamos diagnósticos psiquiátricos. Em ambos os casos, a depressão maior estava presente no início e ausente no acompanhamento, portanto, nenhum efeito de droga teria sido detectado. No entanto, olhando para um resultado de depressão contínua classificado de acordo com a gravidade da doença, torna-se evidente que a pessoa que usou drogas experimentou apenas uma ligeira melhoria nos sintomas de depressão, enquanto o não-usuário experimentou uma remissão completa. Em consequência, um possível efeito adverso do medicamento só foi detectado porque foram avaliadas mudanças sutis ao longo de um gradiente dimensional de gravidade da doença (semelhante aos escores dimensionais baseados em escalas de avaliação para depressão aplicadas nos ensaios clínicos).

P. Você pode explicar um pouco mais sobre o que encontrou durante as avaliações periódicas?

R. Nós utilizamos um modelo de regressão com defasagem de tempo para testar a associação entre o uso de antidepressivos em qualquer momento e a gravidade da depressão subsequente. Isso significa que uma associação separada foi calculada para todas as ondas de avaliação consecutivas. A destacar: O uso de antidepressivos em 1979 (linha de base) foi relacionado à gravidade da depressão em 1981 (acompanhamento), uso de antidepressivos em 1981 (linha de base) à gravidade da depressão em 1986 (acompanhamento) e assim por diante até ao uso de antidepressivos em 1999 (linha de base) relacionada à gravidade da depressão em 2008 (follow-up). No total, houveram assim 6 efeitos prospectivos únicos que foram agrupados estatisticamente, para se obter uma estimativa de tamanho de efeito único para todo o período de observação de 30 anos.

Para minimizar a confusão por indicação, que qualifica o grau em que uma associação entre tratamento (no início do estudo) e resultado (no acompanhamento) é influenciada pela gravidade da doença no início e por outros fatores, nós estatisticamente controlamos vários fatores potenciais de confusão. Imagine você, por exemplo, que apenas pessoas com depressão grave usam antidepressivos (o que certamente não é verdade, mas vamos supor), então o tratamento se refere a um desfecho ruim, porque as pessoas com formas graves de depressão geralmente têm um desfecho pior independentemente do tratamento recebido. Portanto, incluímos vários marcadores de depressão grave, como é a presença de grave tendência suicida no início do estudo, transtorno de ansiedade em comorbidade ou o alto desconforto subjetivo no início do estudo.

Como o intervalo de tempo médio entre as avaliações consecutivas foi de aproximadamente cinco anos, a interpretação do efeito relatado é que, em qualquer momento entre 20 e 50 anos, pessoas com algum tipo de sintomatologia depressiva que usam antidepressivos têm, em média, uma chance aumentada de 81% em ter uma doença mais grave no follow-up de cinco anos do que pessoas que não usaram antidepressivos (quando ajustado estatisticamente para sexo, nível de escolaridade, casamento, qualquer transtorno afetivo no início do estudo, alta probabilidade de suicídio no início e histórico familiar de depressão).

Mais especificamente, se uma pessoa teve apenas sintomas de depressão menores no início do estudo, ela terá um aumento de 81% nas chances de apresentar depressão subliminar em um acompanhamento médio de 5 anos. Se uma pessoa apresentou depressão subliminar no início do estudo, então o uso de antidepressivos relacionou-se a um aumento de 81% nas chances de ter depressão maior diagnosticável no acompanhamento (controlando os potenciais fatores de confusão detalhados acima).

P. Então você encontrou essa associação entre o uso de antidepressivos e os resultados subsequentes piores em todas as avaliações?

R. Sim, esteve presente em todas as avaliações, ou seja, entre todos os pontos de tempo consecutivos. No entanto, devido ao pequeno número de usuários de antidepressivos em alguns momentos, nem sempre se alcançou significância estatística. Essa é exatamente a razão pela qual é importante usar métodos estatísticos sofisticados que considerem medidas repetidas e forneçam uma estimativa combinada de todas as medições. De alguma forma, este procedimento estatístico se compara à metanálise, que agrupa os efeitos de vários estudos individuais para se chegar a um único tamanho médio de efeito. A análise de medidas repetidas tem mais vantagens. Por exemplo, ela permite que pela análise de tendências do tempo (isto é, os efeitos da idade) e para controlar a confusão que varia no tempo (por exemplo, as variações de gravidade da doença em diferentes episódios de depressão).

P. Houve alguma investigação adicional que você fez, além do que foi colocado artigo publicado, para testar essa associação entre o uso de antidepressivos e os piores resultados a longo prazo?

R. Para testar a robustez e generalização de um efeito relatado, os pesquisadores geralmente conduzem as chamadas análises de sensibilidade. O objetivo dessas análises complementares é aumentar a confiança e a credibilidade de uma associação relatada. Nós realizamos várias análises de sensibilidade que não foram incluídas no artigo publicado devido a restrições para o tamanho do manuscrito, porque o editor da revista decidiu aceitar o trabalho apenas como um relatório curto (em vez de um artigo completo).

Então, aqui vou adicionar alguns detalhes interessantes que não foram relatados no artigo publicado. Como mencionado acima, o efeito prospectivo relatado refere-se ao uso de antidepressivos, em algum momento, e em associação com a gravidade subsequente da depressão durante um período médio de acompanhamento de 5 anos (no entanto, note que alguns intervalos de tempo foram consideravelmente menores, como as avaliações em 1986 e 1988, e outras muito mais longas, como a que ocorreram  entre 1999 e 2008). Não foi relatado no artigo publicado é se a idade na avaliação inicial desempenhou um papel na força da associação (ou seja, efeitos potenciais da idade). A análise de sensibilidade revelou que esse não era realmente o caso. A idade no início do estudo não desempenhou um papel na força da associação. O efeito relatado foi estável ao longo do tempo e se aplica a toda a faixa etária de 20 a 50 anos.

Também não relatamos, no artigo publicado, se a medicação antidepressiva de longo prazo (ou seja, uso de antidepressivos presentes em dois pontos de tempo consecutivos) está relacionada a um desfecho diferente da interrupção da farmacoterapia (ou seja, uso de antidepressivos no momento basal, mas uso descontinuado no próximo período de acompanhamento). Embora o número de casos tenha sido pequeno, a análise de sensibilidade revelou que a interrupção da droga e o não uso persistente estavam relacionados a uma redução significativa na gravidade da depressão, enquanto a terapia a longo prazo estava relacionada a sintomas crônicos / recorrentes (ou seja, sem aparente mudança nos sintomas).

P. Em outras palavras, embora os números fossem pequenos, nenhum uso foi melhor do que a exposição seguida de descontinuação, e a descontinuação foi melhor do que o uso contínuo de antidepressivos? É isso mesmo?

R. Sim, isso é exatamente o que essa análise adicional revelou, embora a diferença entre o não uso e a descontinuação tenha revelado apenas uma tendência à uma significância estatística. No entanto, e mais importante, tanto o não uso quanto a descontinuação estão relacionados a um desfecho claramente melhor do que o uso a longo prazo. Então, dito com outras palavras, a associação entre o uso de antidepressivos e os piores resultados reportados no estudo se deveu principalmente ao uso prolongado das drogas, embora a descontinuação também tenha sido relacionada a um risco ligeiramente aumentado de pior depressão. Mas, novamente, havia poucos registros de uso a longo prazo nesta coorte comunitária (especificamente 21), portanto, esses efeitos precisam ser replicados usando uma amostra maior para aumentar a credibilidade.

P. Você fez alguma outra análise de sensibilidade?

R. Uma terceira análise de sensibilidade centrou-se na mudança intra-individual ao longo do tempo, tanto no uso de medicamentos como na gravidade dos sintomas. A análise da mudança intra-individual adota uma abordagem de modelagem estatística ligeiramente diferente. Mas mesmo com essa análise alternativa, o efeito relatado no artigo publicado foi reproduzido de forma completa e consistente. Ou seja, a associação prospectiva relatada entre o uso de antidepressivos e a gravidade subsequente da depressão foi robusta e confiável.

P. Você tem mais pesquisas planejadas sobre esse assunto, o que é obviamente da maior importância?

R. Conforme discutido no artigo, a maior limitação desta pesquisa (e outros artigos publicados anteriormente) é que as análises são feitas sobre tratamento não aleatório. Embora controlemos vários fatores de confusão em potencial, não podemos descartar que fatores não medidos, como as habilidades de enfrentamento e os traços de personalidade de um indivíduo, influenciaram a associação relatada. Infelizmente, ensaios clínicos randomizados e controlados não são boas alternativas, porque não podem acompanhar grandes amostras em períodos de observação tão longos. Portanto, outras abordagens são necessárias para eliminar o viés de seleção.

Uma solução é usar a análise de correspondência de escore de propensão, uma técnica estatística que vincula usuários de drogas a não usuários comparáveis com base em uma infinidade de covariáveis clinicamente importantes. Este método estatístico assegura que os usuários de drogas e não usuários diferem apenas em relação à seleção do tratamento, mas não em relação a outras variáveis que geram confusão (como funcionamento social, número de hospitalizações anteriores, recebimento de benefícios por invalidez e assim por diante). Neste momento, temos esse artigo em fase de revisão e, como o que acabamos de publicar, ele mostra que as pessoas tratadas com drogas têm o pior resultado a longo prazo com relação aos pacientes não medicados.

Em contraste com a presente análise que foi baseada em uma amostra da comunidade, esse outro trabalho é focado em uma amostra clínica de pacientes psiquiátricos internados em dois locais diferentes na província de Zurique, Suíça, e o resultado primário foram as taxas de reinternação dentro de doze meses a partir dos indicadores de hospitalização. No entanto, como você bem sabe, devido à corrupção institucional dentro da psiquiatria acadêmica, é muito difícil se fazer com êxito o processo de revisão de tais documentos. A maioria dos especialistas em psiquiatria que revisa os principais periódicos científicos recusa peremptoriamente qualquer relato que questione os méritos das drogas psiquiátricas. Então, pode levar algum tempo até que este trabalho seja publicado.

P. Existem outros projetos de pesquisa em que você está trabalhando?

R. Sim, claro. Outra limitação importante do presente trabalho é que não sabemos exatamente por quanto tempo alguém esteve usando antidepressivos, porque só tivemos dados de sete ondas de avaliação espalhadas por 30 anos (e não uma avaliação a cada ano). Outro objetivo de pesquisas futuras deve ser considerar a duração da farmacoterapia e as consequências adversas de se interromper a terapia de manutenção a longo prazo. Ou seja, não só temos de olhar para o resultado a longo prazo da farmacoterapia aguda, mas também para o resultado a longo prazo do uso de antidepressivos a longo prazo (ou seja, farmacoterapia de manutenção ao longo de vários anos). Como detalhado acima, parece que o uso a longo prazo é particularmente problemático.

Essas análises também devem enfocar a saúde física, já que o uso prolongado de drogas provavelmente desempenha um papel importante na interrupção de funções corporais adaptativas (como sexualidade, digestão, imunidade e metabolismo) que podem aumentar a vulnerabilidade a doenças físicas sérias. No momento, estamos desenvolvendo um estudo longitudinal prospectivo sobre as consequências do uso de antidepressivos na saúde mental e física, com base em dados médicos abrangentes de longo prazo derivados de sinistros registrados em seguros. Então, definitivamente, há mais por vir do nosso laboratório de pesquisa sobre esse assunto.

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P.S.: Essa entrevista foi feita pelos editores do Mad in America.