Em 1977, George Libman Engel, um clínico e psiquiatra estadunidense, que passou a maior parte de sua carreira no Centro Médico da Universidade de Rochester, em Rochester, NY, e quem deu uma contribuição seminal à medicina através da formulação do modelo biopsicossocial, criticou a cultura médica dominante daqueles dias. Ele disse que o dogma biomédico exige que todas as doenças, incluindo as doenças ‘mentais’, sejam conceitualizadas em termos de desarranjo dos mecanismos físicos subjacentes. Ele acrescentou que isso permite apenas duas alternativas de comportamento e abordagem médicos: o reducionista, que diz que todos os fenômenos da doença devem ser conceituados em termos de princípios físico-químicos; e o excludente, que diz que tudo o que não é capaz de ser assim explicado deve ser excluído da categoria de doenças. Os reducionistas admitem que alguns distúrbios pertencem ao espectro da doença, categorizando-os como doenças mentais. Os excludentes consideram a doença mental como um mito.
Vamos traduzir para a prática as consequências das abordagens reducionistas e excludentes mencionadas acima, tomando como base a seguinte história clínica:
John é um homem de 35 anos tratado para um diagnóstico de transtorno do pânico com Paroxetina (Paxil) ao longo de cinco anos. Dois meses atrás, John decidiu diminuir e interromper a Paroxetina, porque estava em boa saúde há três anos. Alguns dias após a interrupção da Paroxetina, John apresentou sintomas semelhantes aos da gripe, fadiga, tontura, confusão e leves mudanças de humor. Primeiro, ele pensou que estava gripado por causa da temporada de inverno e porque muitos colegas de trabalho tinham se gripado, mas quando, depois de duas semanas, ele ainda apresentava esses sintomas, decidiu ir ao clínico geral.
Aqui o excludente entra em cena. O médico garantiu a John que se tratava de uma gripe e, quando John disse que tudo começou apenas alguns dias após a interrupção da Paroxetina, o médico disse que esses sintomas não podiam ser explicados pela interrupção, portanto, que deviam ser excluídos da categoria de doença mental e simplesmente considerados uma gripe. O médico sugeriu que John usasse anti-inflamatórios não esteroides por alguns dias. Como depois de mais duas semanas, John ainda tinha sintomas de gripe, fadiga, tontura, confusão, mudanças moderadas de humor, e também pesadelos e taquicardia, ele decidiu pedir uma consulta com o psiquiatra que lhe havia prescrito Paroxetina pela primeira vez.
Aqui o reducionista entra em cena. O psiquiatra admitiu que a síndrome de interrupção antidepressiva foi documentada na literatura médica e que os sintomas descritos por John podem pertencer a esse espectro da doença. No entanto, afirmando que as síndromes de interrupção são raras e os sintomas são de curta duração, o psiquiatra excluiu a possibilidade de que fosse a interrupção e explicou os sintomas de John como a fase inicial de uma recaída do transtorno do pânico. Assim, o psiquiatra sugeriu que John voltasse à Paroxetina para eliminar os sintomas. John voltou a tomar Paroxetina e em dois dias os sintomas desapareceram. Ele informou o psiquiatra dessa melhora rápida e o psiquiatra sugeriu que ele não interrompesse a Paroxetina novamente.
Em 1977, George Libman Engel propôs uma alternativa aos reducionistas e aos excludentes. Ele sugeriu que médicos, e entre psiquiatras, precisam de um modelo biopsicossocial. O escopo do modelo é determinado pela função histórica do médico em estabelecer se a pessoa que solicita ajuda está ‘doente’ ou se está ‘bem’ – e estando doente, porque doente e de que maneira está doente – e então desenvolver um programa racional para tratar a doença. e restaurar e manter a saúde.
Vamos traduzir este conceito em prática, mais uma vez, usando a história de John, que eu inventei, embora se pareça com a história clínica de muitos pacientes que eu abordo diariamente.
Vamos imaginar que John não esteja convencido pela opinião do psiquiatra e, em vez de voltar à Paroxetina, ele decida consultar outro psiquiatra que ele encontrou mencionado em uma página da web sobre Paroxetina e problemas relacionados à sua interrupção (por exemplo, este). Este segundo psiquiatra ouve a história de John e concorda com John que ele está ‘doente’ e que existe uma ligação entre a interrupção da Paroxetina e os sintomas que ocorreram. Este psiquiatra pergunta a John se ele concorda em ser avaliado através de uma entrevista que foi desenvolvida para avaliar os sintomas de abstinência após a interrupção do uso de antidepressivos e permite ao psiquiatra saber mais sobre esses sintomas (Cosci et al. 2018). John concorda em ser entrevistado. Depois disso, o psiquiatra, levando em consideração sua avaliação clínica e os resultados da entrevista, dá seu feedback a John. O psiquiatra diz a John que os sintomas que ocorreram são sintomas de abstinência, que eles são devidos à interrupção da Paroxetina e são bem conhecidos na literatura (por exemplo, Fava et al., 2015; Cosci & Chouinard, no prelo). Além disso, o psiquiatra diz a John que a ‘abstinência’ é um termo geral que, na realidade, inclui três síndromes bem conhecidas e bem descritas. Essas três síndromes são: novos sintomas de abstinência, rebote e transtorno persistente pós-abstinência (Chouinard & Chouinard, 2015)
- Os novos sintomas de abstinência consistem em sintomas que não estavam presentes antes do início do tratamento com antidepressivos e não estavam presentes antes da redução ou interrupção. Podem ser sintomas tanto inespecíficos ou específicos da serotonina. Entre os sintomas inespecíficos relacionados à serotonina, são comuns náuseas, dores de cabeça, tremores, distúrbios do sono, diminuição da concentração, ansiedade, irritabilidade e depressão. Entre os sintomas específicos relacionados à serotonina, sintomas semelhantes aos da gripe, sensações de choque elétrico e confusão são comuns. Esses sintomas geralmente são de curta duração – ou seja, não duram mais do que seis semanas – e são espontaneamente reversíveis, portanto, o melhor a ser feito pelos pacientes é esperar até que os sintomas desapareçam.
- O rebote consiste no retorno dos sintomas que estavam presentes antes do início do tratamento antidepressivo, mas não se apresentavam antes da redução ou interrupção. Os sintomas são mais intensos do que os que ocorreram antes do início do tratamento. Por exemplo, se uma pessoa fez terapia antidepressiva para tratar a ansiedade, após a redução ou interrupção da terapia antidepressiva, a ansiedade está de volta e é mais intensa do que antes do tratamento. Além disso, os sintomas de rebote ocorrem rapidamente após a redução ou interrupção do tratamento antidepressivo, são transitórios, uma vez que podem ir e vir, e são reversíveis – o que significa que se o paciente voltar ao tratamento antidepressivo ou se o paciente esperar que irão desaparecer longe dos antidepressivos os sintomas irão realmente desaparecer. O rebote é comumente associado a uma crença psicológica de estar precisando da droga, o que pode levar erroneamente o paciente a voltar ao antidepressivo.
- Transtorno persistente pós-abstinência consiste no retorno dos sintomas originais que estavam presentes antes do início do tratamento antidepressivo, mas não estavam presentes antes da redução ou interrupção. Esses sintomas se apresentam tanto com maior intensidade quanto se juntam aos novos sintomas que o paciente nunca havia sofrido antes. Por exemplo, quando a terapia antidepressiva foi usada para tratar a depressão, quando a depressão reaparece rapidamente após a redução ou a interrupção do tratamento antidepressivo, quando é mais intensa do que antes do tratamento antidepressivo e está associada a outros sintomas não depressivos, como por exemplo o pânico. Esses sintomas persistem por mais de seis semanas e podem ser parcialmente ou totalmente reversíveis. Sendo tão duradouro, o paciente geralmente se beneficia do suporte farmacológico ou psicoterápico adequados.
Depois disso, o psiquiatra informa John que ele atualmente apresenta novos sintomas de abstinência e encoraja-o a não voltar à Paroxetina, mas administrar esses sintomas, fazendo algumas sessões com um psicólogo que fornecerá mais informações sobre a retirada e como manejá-la diariamente. O psiquiatra programa uma consulta de acompanhamento em um mês. Na visita de acompanhamento, John tem apenas uma leve fadiga e informa ao psiquiatra que concluiu as sessões com o psicólogo e se sente bem.
Apenas uma breve conclusão, já que eu contei uma longa história. O excludente e o reducionista não foram capazes de ajudar John, pois basearam sua avaliação em um modelo biomédico que precisa de evidências probatórias físico-químicas ou biológicas para permitir que o médico reconheça uma doença e formule um diagnóstico específico. Assim, o excludente perdeu o diagnóstico ao negar a síndrome de abstinência (e, consequentemente, prescreveu o tratamento errado) e o reducionista fez o diagnóstico errado confundindo a abstinência com a recidiva da doença original, sugerindo, assim, novamente o tratamento errado. Em ambos os casos, basearam suas intervenções no modelo biomédico e nos medicamentos prescritos.
O segundo psiquiatra foi capaz de ajudar John na medida em que ele baseou sua avaliação em um modelo biopsicossocial. O segundo psiquiatra ouviu a história de John, observou John para identificar possíveis sinais de doença, avaliou-o por meio de uma entrevista específica e, levando em conta sua avaliação clínica e os resultados da entrevista, disse a John que ele estava doente por causa da abstinência da Paroxetina, e sugeriu a ele o que fazer para melhorar – isto é, não voltar a tomar Paroxetina, já que estava claro que a Paroxetina havia desencadeado a síndrome de abstinência atual, e fosse feita uma intervenção psicológica visando educar John sobre o que estava acontecendo e como administrar os sintomas diários.
As síndromes de abstinência que ocorrem após a redução da dose ou a interrupção dos antidepressivos são transtornos psiquiátricos iatrogênicos, isto é, transtornos psiquiátricos desencadeados por um tratamento farmacológico. Como a maioria dos transtornos psiquiátricos não pode ser reconhecida e diagnosticada com base em evidências probatório físico-químicas ou biológicas, apesar das inúmeras tentativas dos neurocientistas de fornecer evidências, síndromes de abstinência semelhantes, por sua natureza de transtornos psiquiátricos, não podem ser reconhecidas, diagnosticadas, e tratados com base no modelo biomédico. No entanto, a retirada do antidepressivo não é mais um distúrbio desconhecido, já que o conhecimento sobre esse assunto cresceu o suficiente para ser traduzido em prática. Conforme proposto por George Engel, médicos, incluindo psiquiatras, podem observar e ouvir seus pacientes e desenvolver um programa para tratar a retirada e restaurar a saúde. Segundo o que tenho visto em minha prática clínica, o que Engel propôs em 1977 ainda é em 2019 a abordagem que funciona e produz saúde.
Bibliografia:
(1)Engel, George. The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science. 1977;196(4286):129–136
(2) Cosci F, Chouinard G, Chouinard VA, Fava GA. Riv Psichiatr. 2018;53(2):95-99. doi: 10.1708/2891.29158.
(3) Fava GA, Gatti A, Belaise C, Guidi J, Offidani E. Psychother Psychosom. 2015;84(2):72-81.
(4) Cosci F, Chouinard G. The monoamine hypothesis of depression revisited: could it mechanistically novel antidepressant strategies? In Neurobiology of Depression, edited by de Quevedo JL, Carvalho AF, Zarate CA. Elsevier, in press
(5) Chouinard G, Chouinard VA. Psychother Psychosom. 2015;84(2):63-71