Conversações com os pacientes a respeito da retirada dos antidepressivos

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Desde a aprovação da fluoxetina (Prozac), em 1987, saber se os antidepressivos funcionam é objeto de um intenso debate. Hoje em dia a literatura científica conta com um corpo de evidências a mostrar que a psicofarmacologia para lidar com a depressão não é um procedimento baseado em dados científicos e é incongruente com os princípios básicos de uma psicologia humanista.

Quando se começa a tomar antidepressivos seu usuário não imagina ser grande a probabilidade de ter que passar a depender dessas drogas pelo restante de sua vida. Os médicos em geral e os psiquiatras costumam dizer a seus pacientes que no curso do tratamento sabem como desprescrever, quando julgarem ser isso o adequado.

Se tomarmos como referência o que está nos protocolos oficiais, o que os prescritores dizem parece ser verdadeiro. É dito que a descontinuação pode ser feita em um curto período, entre duas a quatro semanas de redução da dose, até a cessação completa quando assim se quer. Não obstante essa prática discursiva de tão repetida parecer corresponder com a realidade, na prática o que ocorre é quase que sempre bem diferente. A literatura científica mostra que todas as classes de antidepressivos estão associadas com a “síndrome de abstinência”. Quer dizer, deixar de tomar antidepressivos implica para os seus usuários sofrer com sintomas de abstinência e que podem ser muito severos.  E os médicos em geral e os psiquiatras afirmam que tais sintomas mostram que o paciente continua doente e que é por isso que a medicação antidepressiva precisa ser mantida.  Contudo, a experiência dos usuários mostra que seus prescritores estão errados e que os usuários já têm know-how de como deixar de ser dependentes da droga prescrita.

É da maior importância que os profissionais de saúde em geral e os prescritores em particular aprendam como iniciar discussões com seus pacientes a respeito dos riscos que ocorrem com a retirada dos antidepressivos quando não há um planejamento criterioso. É o é que abordado em um artigo publicado em Therapeutics Advances in Psychopharmacology. Trata-se dos resultados de uma pesquisa qualitativa com um grupo de pacientes que estava a tomar antidepressivos por mais de 9 meses e que receberam orientação médica para a descontinuação da medicação.  O que foi observado é que o temor pela recorrência e a crença que sofrem de uma deficiência de serotonina ou de um desequilíbrio químico são barreiras para a descontinuação e impedem que os pacientes prossigam o processo recomendado.  O que sugere a necessidade que os profissionais de saúde mental desenvolvam meios de como reeducar os pacientes.

O artigo trabalha com fragmentos de um processo de uma conversação mantida para dar suporte psicoeducacional ao processo de retirada de antidepressivos.  Trata-se de um paciente com o diagnóstico de transtorno depressivo maior e que estava a tomar um antidepressivo (ISRS) há três anos. Tendo sido avaliada a sua saúde física e mental, o paciente recebeu aconselhamento médico de seu psiquiatra para interromper o medicamento. Mas o paciente não hesitou em expressar preocupações e vacilações sobre a interrupção. A seguir serão apresentados trechos da discussão psicoeducacional sobre a descontinuação e a retirada de antidepressivos.

Discutindo o funcionamento atual, as esperanças e os medos:

“Entendo que você tenha expressado hesitação em abandonar seu antidepressivo atual. Sua preocupação é completamente compreensível e muitos outros em situações semelhantes também expressaram hesitação. Você sentiu seu humor melhorar ao tomar este medicamento e é normal se preocupar com a recaída e o efeito que a interrupção pode ter no seu humor e se seus sintomas anteriores podem retornar. Além disso, o processo de saída do antidepressivo pode ser desafiador quando não há suporte. Talvez você já tenha tido experiências anteriores desagradáveis com a redução ou esquecimento da dose. Gostaria de oferecer uma revisão das vantagens e desvantagens de interromper seu antidepressivo e apoiá-lo nesse processo, se você decidir por interromper. Se você quiser, eu poderia demorar um pouco para discutir esse tópico com você e enfrentar suas preocupações.”

Psicoeducação sobre o mecanismo teórico do funcionamento dos antidepressivos:

“Darei rapidamente uma visão geral da teoria de como os antidepressivos Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRSs), como é aquele que você está tomando, afetam o cérebro e depois abordarei alguns equívocos comuns. As teorias atuais sugerem que os antidepressivos ISRS aumentam a quantidade de serotonina química disponível em seu cérebro, impedindo ou ‘inibindo’ a ‘recaptação’ de serotonina. Se menos serotonina for reabsorvida, isso significa que mais está disponível para atuar nas células cerebrais. Pensa-se que é este nível aumentado de serotonina que tem um efeito positivo no humor; no entanto isso não está comprovado. Além disso, é comum afirmar que a depressão é o resultado de um ‘desequilíbrio químico’, mas as evidências não apoiam essa teoria. Isso significa que a melhoria que você viu no seu humor pode não ser única ou diretamente um resultado dos efeitos do medicamento e que o nível de serotonina no cérebro após a liberação de antidepressivos não dita necessariamente o seu humor. Além disso, seu cérebro também pode mudar em resposta a um placebo, ao seu ambiente, aos relacionamentos e através de psicoterapia.”

Informar sobre possíveis efeitos e estratégias de abstinência:

“Depois de usar um ISRS a longo prazo, acredita-se que o cérebro possa se adaptar a isso, reduzindo o efeito da serotonina. Isso pode significar que poderia ter que tomar mais do medicamento para obter o mesmo efeito, embora isso não esteja claro como exatamente funciona. Também pode ser por isso que, quando a quantidade do medicamento diminui ou quando se para completamente, ocorrem os sintomas de abstinência. Esses sintomas variam entre os indivíduos e podem depender do antidepressivo que está sendo tomado. Há uma série de sintomas que algumas pessoas podem experimentar, mas isso não é o que se passa com todas as pessoas. Os sintomas podem incluir ansiedade, sintomas semelhantes aos da gripe, insônia, náusea, tontura, sensações semelhantes a choques elétricos chamados “zaps do cérebro”, espasmos musculares, agitação, embotamento emocional e disfunção sexual. Para algumas pessoas, esses sintomas são relativamente leves e breves, mas para outras podem ser graves e duradouros. É comum que as pessoas planejem uma redução lenta e controlada de sua dose de antidepressivo ao longo de 2 a 4 semanas. No entanto, para diminuir o potencial de sintomas de abstinência, a pesquisa mais recente sugere que a redução gradual em quantidades cada vez menores pode ser uma estratégia valiosa. Isso significa reduzir lentamente a dosagem por um período mais longo, como vários meses. Qualquer que seja a estratégia que você decida, é importante trabalhar com um profissional médico que entenda suas preocupações e que possa orientá-lo na redução de sua dose. Será benéfico fazer check-ups regulares durante todo esse processo.”

Permitir que o paciente tenha informações do que hoje se sabe sobre os antidepressivos em termos científicos é um direito inequívoco, sistematicamente negado; mas é igualmente fundamental para o êxito do processo de desmedicação. O que exige dos profissionais de saúde a atualização das informações e o desenvolvimento de habilidades psicoeducacionais para assim poder dar suporte a esse processo.

“Após essa discussão, os profissionais de saúde devem perguntar o que pode não haver sido esclarecido e quais perguntas essa conversa trouxe para os pacientes. É importante que os profissionais estejam abertos a ouvir a frustração dos clientes com a falta de informações sobre esses problemas que deveriam ter sido fornecidas desde o início do tratamento, assim como é igualmente importante que sejam honestos com as limitações da ciência atual. Pesquisas sugerem que a qualidade do relacionamento entre o profissional e o usuário do serviço impacta as expectativas em relação à ingestão ou à saída de um medicamento. Como resultado, o profissional pode afetar significativamente a experiência da interrupção e contribuir para a eficácia da intervenção. Portanto, recomenda-se que os profissionais utilizem habilidades motivacionais de entrevistas durante essas conversas, expressando empatia, normalizando a ambivalência em relação à interrupção e apoiando a autoeficácia e o otimismo.”

Que um artigo como este sirva como referência para que aqui no Brasil construamos meios para ajudar os usuários a se libertar do seu tratamento psicofarmacológico de forma segura, eficaz e com o mínimo de sofrimento possível. Podemos imaginar, por exemplo, que nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) as equipes multiprofissionais desenvolvam programas psicoeducacionais para dar suporte a processos de desmedicação psiquiátrica. Esse trabalho poderia começar já no momento da prescrição, com o paciente tendo que assinar uma autorização ciente dos malefícios e da dependência futura. E uma vez já tornados dependentes químicos, por uso em médio e longo-prazos, como ingressar em um processo de desmedicação lenta e gradual, com acompanhamento e suporte clínico e psicossocial.

 

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Karter, J. M. Conversations with clients about antidepressant withdrawal and discontinuation.https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/2045125320922738#bibr2-2045125320922738