Um estudo publicado em Clinical Psychology and Psychotherapy examina as crenças dos psicólogos clínicos (CPs) de que a psicose pode ser uma experiência transformadora.
Realizado por Anne Cooke e Caroline Brett da Canterbury Christ Church University, o estudo constatou que os psicólogos que eles entrevistaram consideravam a psicose como mais do que uma ruptura biológica. A maioria considera os fatores psicossociais como importantes, e alguns acreditam que a experiência poderia ser transformadora, significativa e espiritual. Além disso, muitos psicólogos utilizam um modelo transformador, e suas crenças muitas vezes guiam sua abordagem com os pacientes.
Embora a compreensão biomédica da psicose tenha se popularizado, estudos mais recentes que utilizam dados qualitativos e incluem a experiência do usuário do serviço têm abalado significativamente a mesma. Na última década, uma quantidade crescente de literatura surgiu, indicando que a psicose está relacionada à privação socioeconômica e ao trauma infantil. Até mesmo a alienação cultural entre os imigrantes e fatores sistêmicos como o racismo têm sido implicados.
Apesar desta mudança de foco, poucos estudos têm levado a sério os aspectos transformacionais e as dimensões espirituais de algumas experiências psicóticas. Isto apesar de numerosos pacientes relatarem que a psicose para eles foi intencional e significativa – tanto pessoal quanto espiritualmente. Outras teorias ao longo dos anos também têm apontado conexões entre as emergências espirituais e a psicose.
Neste novo estudo, Cooke e Brett investigam esta compreensão transformadora da psicose no atendimento mainstream no Reino Unido. Tanto os usuários de serviços como a literatura passada observam que a psicose pode ser uma experiência dolorosa, mas positiva para algumas pessoas. Por exemplo, ela pode ajudar a resolver experiências traumáticas ou servir como um método de resolução de problemas cognitivos.
Além disso, alguns pacientes consideram que suas crises psicóticas têm dimensões espirituais significativas, o que os ajuda na recuperação. Se uma experiência pode ser considerada angustiante ou positiva depende do contexto em que a pessoa se encontra; por exemplo, quando estão rodeados por outros que aceitam essas experiências ou quando suas próprias atitudes as normalizam, eles encontram menos angústia.
Os pesquisadores conduziram um estudo qualitativo utilizando uma teoria fundamentada. Eles entrevistaram 12 psicólogos clínicos trabalhando com os Serviços Nacionais de Saúde do Reino Unido sobre as suas crenças em torno de psicose em geral e modelos transformadores em particular.
Eles também examinaram como as suas crenças influenciam as abordagens clínicas e o que os impede de usar esses modelos. Como forma de garantir a qualidade, os pesquisadores tomaram o feedback dos participantes sobre as suas análises. Eles asseguraram que participantes com diferentes crenças sobre modelos transformadores fossem recrutados para a pesquis.
Os psiquisadores descobriram que os psicólogos clínicos têm uma variedade de opiniões, com alguns acreditando que a psicose é uma doença enquanto outros como sendo benéfica. Dois psicólogos clínicos disseram que a encaram através de uma lente biopsicossocial, pensando que se trate de um transtorno mental, com exceção de um para quem o conteúdo dos sintomas é considerado como da ordem do significado. Alguns vêem a psicose como um traço (esquizotipia) que acontece em um continuum e está relacionada a outros traços, como a criatividade. Outros utilizam um modelo de trauma, acreditando que uma ruptura psicótica é uma resposta compreensível a eventos devastadores da vida. Ninguém disse que o evento psicótico é exclusivamente biológico por natureza e causa. O mais importante,
“…um grupo viu as experiências psicóticas como respostas compreensíveis a situações da vida, particularmente traumas. Finalmente, alguns foram mais longe, acreditando que as experiências têm uma função particular, por exemplo, ajudar a resolver dilemas ou sentimentos insuportáveis e, portanto, podem ser vistas como propositais“.
Da mesma forma, os psicólogos clínicos também disseram manter diferentes crenças sobre as dimensões transformadoras da experiência psicótica. Enquanto alguns pensam que a psicose é transformadora em um sentido amplo, como qualquer crise pode ser, outros consideram a própria experiência da psicose como tendo qualidades intencionais, transformacionais e espirituais. Deste grupo, alguns disseram achar que poderiam ajudar no processamento e na resolução de experiências traumáticas, mas também esclareceram que apesar de ser potencialmente positiva, a experiência também seria dolorosa e destrutiva.
Os psicólogos clínicos que atuavam em intervenções precoces demonstraram ser mais propensos a acreditar que alguns de seus clientes poderiam estar tendo uma emergência espiritual; alguns pensavam que nesses casos os clientes não ficariam angustiados enquanto outros não fizeram essa distinção. Alguns psicólogos clínicos consideraram que a crise espiritual representava apenas uma pequena minoria de seus clientes ou que, quando os clientes estão profundamente envolvidos com vários serviços, já não é de natureza espiritual. Os psicólogos clínicos freqüentemente consideram os modelos transformadores mais úteis:
“Muitos participantes foram atraídos por modelos transformadores porque tinham experimentado estes como mais úteis para os clientes. Eles sentiram que a idéia de doença poderia levar à passividade e desesperança e que os modelos transformadores fornecem uma estrutura útil que integra experiências na vida das pessoas e pode reduzir a ansiedade e fornecer esperança”.
Os pesquisadores disseram haver descoberto que todos os psicólogos clínicos tendiam a convidar os pacientes a procurar um significado em seus sintomas, o que eles acreditavam ter diminuído a ansiedade. Mesmo aqueles que usaram o modelo de doença encorajavam seus pacientes a perceber como os eventos da vida estavam ligados a seus delírios; eles usavam formulações criadas em colaboração com os pacientes para fazer isso. Aqueles que acreditavam que a experiência psicótica tinha um propósito, pensavam que ligá-la a experiências biográficas de vida era importante para a integração. Estes psicólogos clínicos permitiam que seus pacientes explorassem, refletissem e aprendessem com suas experiências psicóticas.
Alguns psicólogos clínicos, especialmente aqueles que tiveram experiências similares, tinham a tendência de acreditar que a experiência anômala real em psicose poderia proporcionar uma visão mais profunda, e eles tendem a se envolver com estes sintomas. Aqueles que usam o modelo da doença tiveram maior probabilidade de se posicionar como especialistas, enquanto outros tomaram a posição de “não saber”; isto envolveu não dar conselhos diretos e facilitar as decisões e escolhas dos clientes.
Quando se tratava do que limitava seu uso do modelo transformacional, eles mencionaram a adequação do papel e o contexto do serviço. Três em cada seis que consideravam a psicose potencialmente ter uma dimensão espiritual, não falaram sobre ela com seus pacientes, pois acreditavam que não era apropriada ao seu papel. Os contextos de serviço geralmente são desafiadores, especialmente para aqueles que não aderem ao modelo de doença, mas têm que trabalhar em lugares e entre os colegas que o fazem.
Eles também consideraram que a abordagem medicalizante era prejudicial à confiança.
“Eles consideraram que isso torna os clientes menos inclinados a serem honestos com os trabalhadores; que promove uma atitude mais passiva; e que os clientes em crise aguda são freqüentemente sedados demais para se envolverem em conversas terapêuticas”.
Os pesquisadores escrevem que embora houvesse diferenças na maneira como os psicólogos clínicos viam a psicose, todos deram aos clientes um lugar para explorar seus sintomas no contexto de suas vidas. Todos eles também priorizaram o engajamento em metas do mundo real. Os autores também observaram pontos em comum significativos quando se tratava de intervenções utilizadas pelos psicólogos clínicos com diferentes orientações – eles muitas vezes montaram e utilizaram o modelo transformador (como o uso de insight fornecido pela psicose) em colaboração com o psicológico para seus pacientes (como o tratamento de traumas).
Os psicólogos clínicos têm sido muitas vezes parte integrante do desenvolvimento destes modelos não biomédicos de psicose. Suas crenças influenciam sua abordagem terapêutica e também como esses modelos são vistos e aceitos nos principais cuidados de saúde.
****
Cooke, A., Brett, C. (2019). Clinical Psychologists’ Use of Transformative Model of Psychosis. Clinical Psychology and Psychotherapy, 27, 87-96. DOI: 10.1002/cpp.2411 (Link)