Acadêmicos no Sul Global, É hora de vocês descolonizarem a Psicologia

"Alternativas radicais que questionam o paradigma dominante em questões de dinâmica de poder, exploração e subordinação, política e desigualdades são encorajadas para interrogar as suposições subjacentes da pesquisa dominante em psicologia", escreve o psicólogo Mvikeli Ncube.

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Em um novo artigo (publicado no site PsyArXiv), o psicólogo Mvikeli Ncube da Universidade de Arden, no Reino Unido, pede a descolonização do conhecimento psicológico para abordar a violência epistêmica feita às comunidades dos povos originários e locais no Sul Global. Ncube escreve que o campo da psicologia deve ser descolonizado e resituado em contextos locais para garantir que o significado ocorra dentro da própria experiência vivida e não da situação e do poder do Norte Global, sugerindo que os pesquisadores autóctones e as formas de conhecimento ofereçam uma importante alternativa ao status quo colonizador.

“Descolonização significa lutar, desfazer e superar caminhos coloniais recebidos que moldaram práticas de conhecimento em psicologia e estruturas econômicas, políticas e sociais; relações interpessoais; e o self. Grande parte da psicologia no sul global continua a ser moldada fortemente pelas idéias coloniais ou, na melhor das hipóteses, dominada pelas idéias, pelo eu e pela sociedade da Europa e dos Estados Unidos”, escreve Ncube.

O Norte Global exportou seu conceito de psicologia e psiquiatria para todo o mundo, sob a suposição de que as descobertas de como as pessoas se comportam em amostras WEIRD* (ocidental, educado, industrializado, rico e democrático), como os estudantes universitários dos EUA, são universalmente verdadeiras. Isto inclui transtornos psiquiátricos específicos, medicação, linguagem e formas de saber. Ncube, em seu ensaio, encoraja pesquisadores locais e dos povos originários, acadêmicos e pensadores do Sul Global a reconhecer a violência epistêmica inata às formas ocidentais de conhecer e conduzir suas próprias pesquisas para neutralizar seus muitos danos.

Ncube articula este argumento através de uma breve análise filosófica e histórica da psicologia. Ele baseia seu trabalho na posição epistemológica social construcionista (o que significa que sua suposição subjacente é que o conhecimento é criado, em vez de inerente e objetivo). Através desta premissa, Ncube argumenta que a descolonização da psicologia é melhor feita através da “descolonização epistêmica” fanoniana.

Ele explica: “A descolonização epistêmica refere-se à redenção de visões de mundo e teorias e formas de saber que não estão enraizadas, nem orientadas em torno da teoria euro-americana. A principal alegação da descolonização epistêmica é que a subjetividade, o contexto e o lugar social do sujeito são importantes. Rejeita a afirmação, fundada na Era Europeia das Luzes, de que o conhecimento científico é inerente e necessariamente racional, objetivo e universal. Em vez disso, os teóricos descoloniais argumentam que a objetividade também é construída socialmente”.

Ele entende que o conhecimento que é criado na psicologia é uma espécie de conhecimento criado e propagado por pesquisadores brancos no Norte Global. E esta forma específica de conhecer e de fazer sentido nunca será capaz de encapsular ou compreender completamente a verdadeira experiência dos povos originários e locais no Sul Global, porque foi concebida para duvidar e questionar outras formas de conhecimento não fundamentadas no método científico. Ncube o coloca de forma simples: a psicologia atual do Norte Global foi criada, não apenas sem a apreciação de textos e metodologias fundamentadas no Sul Global, mas com a intenção específica de miná-los.

Ele escreve: “A ciência psicológica é uma forma posicionada de conhecimento que reflete os entendimentos e interesses das pessoas em posições de domínio, daqueles que decidem o que é digno de estudo, o que conta como teoria básica ou aplicação restrita etc. […] O significado de tudo isso é que conceitos, crenças e entendimentos psicológicos ocidentais não devem ser aceitos no sul global sem uma profunda aplicação crítica do pensamento. Alternativas radicais que questionam o paradigma dominante sobre questões de dinâmica de poder, exploração e subordinação, política e desigualdades são encorajadas para interrogar as suposições subjacentes da pesquisa dominante em psicologia”.

Entretanto, a psicologia do Norte Global pode ser desafiada pelos acadêmicos do Sul Global, avançando a causa da libertação. Ncube pede que os acadêmicos adotem suas maneiras situadas de conhecer e conduzir pesquisas que exponham e contrariem o que grande parte do mundo considera como conceitos “naturais” e “neutros” para destacar as falhas de uma disciplina criada com negligência intencional para outras formas de conhecimento e de criação de sentido.

* WEIRD = Western, Educated, Industrialized, Rich and Democratic

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Ncube, M. (2022). Epistemic violence in psychological science. Issues of knowledge, meaning making and power: A critical historical and philosophical perspective. Accessed September 21, 2022. https://psyarxiv.com/a5nxs/

[trad. e edição Fernando Freitas]

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Samantha Lilly traz a sua formação em filosofia, bioética e justiça social para o seu trabalho como suicidóloga crítica, com a crença de que a suicidologia, no seu melhor, é um trabalho de justiça social. Antes de iniciar um doutoramento em Saúde em Ciências Sociais na Universidade de Edimburgo, Sam recebeu uma bolsa Thomas J. Watson Fellowship. O seu projecto, "Understanding Suicidality Across Cultures", deu-lhe o privilégio de trabalhar ao lado de especialistas em ética, académicos e defensores dos direitos nos países da Benelux, Lituânia, Argentina, Aotearoa, e Indonésia. A investigação actual da Sam dedica-se a trazer metodologias feministas e descoloniais para a prevenção do suicídio.