Roberto Tykanori: “Pacientes voltarão a ter suas vidas reduzidas a pacotes de sintomas que precisam ser controlados para o interesse de terceiros”

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Em entrevista publicada em VIOMUNDO, Robert Tykanori, ex-Coordenador Geral de Saúde Mental, denuncia os retrocessos propostos pelos atuais ocupantes do Ministério da Saúde.

Tykanori foi secretário de Saúde de Santos, litoral paulista, a primeira cidade do País sem manicômio. Foi também o último coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Mintério da Saúde, com essa visão. E atualmente, é médico da Prefeitura Municipal de Santos e professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Nesta quinta -feira (14/12), o Ministério da Saúde submete a gestores municipais, estaduais e federais alterações na política nacional de saúde mental. Será durante reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), da qual participarão o coordenador-geral de Saúde Mental, o médico Quirino Cordeiro Júnior, e o ministro Ricardo Barros. As propostas de Quirino são uma volta ao tenebroso passado dos hospitais psiquiátricos e contra o qual o colega que ocupou o seu cargo de 2011-2015, Roberto Tykanori, luta desde os anos 1980, quando ainda era estudante de Medicina.

Tykanori

“O modelo proposto – ambulatório + hospital psiquiátrico – é o retorno dos interesses financeiros do setor privado que se sobrepõem à busca de uma qualidade de vida melhor aos mais vulneráveis. Propagam o ‘sonho elusivo das curas mágicas’ embaladas em caixinhas bem desenvolvidas por marqueteiros e bulas com palavras incompreensíveis aos leigos, em letras minúsculas, como se isso as tornassem científicas…

“Existem novas abordagens sem medicamentos, chamadas de Diálogos Abertos (open dialogs). Existe em vários países o renascimento  do modelo do Projeto Soteria (http://www.moshersoteria.com), desenvolvido  pelo psiquiatra americano Lorenz Mosher, que demonstrou que, a longo prazo, cuidados sem medicação são mais eficazes do que com remédios. Mosher foi diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental Americano NIMH/DHS, fundador da revista Shizophrenia Bulletin, da qual foi editor por   mais de uma década. Porém, após essas pesquisas, foi colocado em ostracismo perene. Nesta história, a reforma italiana que sempre foi um marco. Recentemente, fechou o seu último manicômio judiciário. Agora, há uma proposta de modificação da lei para avançar na garantia de mais mecanismos de sustentação dos direitos e da vida em sociedade. ”

Leia a entrevista na íntegra  →

Entrevista: Paulo Amarante fala sobre a Proposta de Reformulação da Política Nacional de Saúde Mental

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Em entrevista dada à ENSP TV. O coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ENSP/Fiocruz) e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Paulo Amarante, fala sobre a proposta de reformulação da Política Nacional de Saúde Mental e o que ela pode representar para a área de saúde mental.

Assista a entrevista  → clicando aqui

O Psiquiatra Desiludido

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ewoodMuitos de nós, psiquiatras, estão lutando com o que somos enquanto profissão e campo. Nossas taxas de adoecimento por estresse profissional são alarmantes. O suicídio é comum: 400 médicos nos EUA se matam anualmente, e 5% dos médicos dos EUA pensaram em suicídio nos últimos 12 meses. Isolamento e desesperança abundam para nós. E 40% de nós não buscarão ajuda de qualquer tipo, por medo de perder nossos registros profissionais. Este é certamente um problema sério!

Nós psiquiatras já fomos considerados “professores da alma”, que é o verdadeiro significado da palavra psiquiatra. Não há muito tempo atrás, nosso trabalho envolvia entrar nos recessos mais profundos do mundo de nossos pacientes e fazer parcerias com eles para se encontrar cura e transformação. Muitos de nós fomos atraídos para o campo da psiquiatria, especificamente porque nos oferecia a melhor oportunidade de conhecer e ajudar os outros que precisavam de cura. A relação terapêutica era amplamente entendida como primordial para que esse processo fosse possível.

Nós, psiquiatras, passávamos muito tempo com nossos pacientes, e estávamos profundamente conscientes do poder de nossas palavras para prejudicar ou curar. Embora possamos haver prescrito alguns medicamentos, não estávamos lidando com um universo de diagnósticos, sempre em expansão e questionáveis, assim como com recomendações de medicamentos não fundamentadas. Nós não nos sentíamos sendo traídos pelas organizações e sociedades profissionais com as quais contamos para nos fornecer as melhores ferramentas para o sucesso do nosso trabalho. E estávamos em grande parte felizes e realizados em nosso trabalho. Esse universo foi totalmente transformado.

As mudanças que eu tenho visto no campo da psiquiatria ao longo dos meus 35 anos em medicina são impressionantes! Coisas outrora impensáveis são agora comuns. Em 15 de outubro de 2017, um artigo apareceu no feed Op-med (med) da Doximity escrito por Jeffrey Alan Vernon, DO, intitulado: “Por que o treinamento de psicoterapia não deve ser parte da residência de psiquiatria”! Para aqueles que não sabem, Doximity é um serviço de rede social online para clínicos dos EUA. Lançado em março de 2011, a Doximity tem mais de 800.000 membros verificados a partir de fevereiro de 2017. Desde a publicação do artigo do Dr. Vernon, 214 médicos, principalmente psiquiatras, comentaram sobre isso. A maioria tem sido profundamente incomodada com a sugestão de que a psicoterapia deve ser relegada a um plano secundário, e o psiquiatra “liberado” para fazer mais de “Gerenciamento Médico”. Porém, 32 expressaram-se com seus polegares para acima curtindo o artigo.

Uma noção que este artigo reflete é que o psiquiatra passou a ser predominantemente um especialista em medicina, cujo trabalho é a doença e o gerenciamento médico. Nós, psiquiatras, somos agora “provedores” de serviços e não profissionais da cura. É bastante desanimador este movimento crescente de questionar a importância do psiquiatra se envolver profundamente com seus pacientes para que enfrentem melhor os desafios que experimentam. E eu acredito ser este o principal motivo de nossa angústia como psiquiatras.

Muitos de nós estamos desiludidos com a nossa profissão. Nós experimentamos uma perda de significado, propósito, conexão e esperança. À medida que o campo se afastou da maravilha e do pathos da existência humana, e assumiu um modelo que reduz a vida às caixinhas de seleção e à dispensação de comprimidos, perdemos contato com o que nos torna humanos. O campo psicanaliticamente orientado em que fui criada, a psiquiatria psicodinâmica, falava de seres humanos complexos que sofriam e lutavam. Como psiquiatras, tínhamos a oportunidade de nos encontrar com essas pessoas e ouvir suas histórias de uma maneira íntima.

“A psiquiatria moderna nos dá um sentido fortemente empobrecido do que significa ser humano”, disse Robert Whitaker, “o que levou ao desastre para aonde quer que olhemos”. Os impulsionadores dessa mudança cataclísmica, do compartilhamento de histórias à tomada de comprimidos, incluem as instituições que mais esperamos que estejam lá para nos proteger e prevenir.

Muito já foi escrito e compartilhado neste site sobre a grande traição feita pela APA (Associação de Psiquiatria Americana), a indústria farmacêutica, a FDA e os interesses corporativos da aliança, na construção e perpetuação desta casa de cartas. Não preciso revisar isso aqui. Mas o que eu preciso chamar a atenção é que muitos de nós, psiquiatras, estamos lutando com perguntas sobre se nós ajudamos ou prejudicamos nossos pacientes em algumas de nossas intervenções, estamos confusos sobre em quem podemos confiar e há uma enorme preocupação sobre o que devemos e precisamos fazer de agora em diante.

Como muitos de vocês, eu fui médica durante toda a minha vida adulta. Adoro ter tido a oportunidade de ajudar os que sofrem e de retorno aprender com eles. Sempre me senti privilegiada de ser acolhida nos mais profundos recessos do coração e da alma do outro, e ter a oportunidade de fazer parceria com os pacientes para um melhor resultado poder ser alcançado. Eu me sinto abençoada por poder curar e ser professora. E pensei que eu iria praticar psiquiatria para sempre.

Eu nunca esperava ter que me preocupar com que a maleta de ferramentas que estava me sendo dada para fazer meu trabalho estaria cheia de implementos enferrujados e poções ineficazes. Nunca pensei que estivesse sendo empurrada para fazer coisas que pudessem prejudicar, ou mesmo matar pessoas. Mas hoje eu sei que nossas drogas podem fazer isso. À medida que a cortina foi puxada, e a natureza macabra do universo farmacêutico me foi revelada, passei a me sentir completamente impressionada e desafiada pessoalmente.

Durante a minha carreira, vi médicos se tornarem “provedores de tratamento”. Vi desaparecer a capacidade de um médico para cuidar de seus próprios pacientes, do consultório para hospital e do hospital para o consultório. Eu costumava ser a mesma psiquiatra para os meus pacientes dentro e fora do hospital. Agora, temos médicos que só veem pacientes no hospital. Eles são chamados de “hospitalistas”. E não podemos ver os nossos próprios pacientes no hospital, porque suas empresas de planos de saúde controlam onde eles vão, e quem elas podem ver.

Nós, psiquiatras, não tratamos mais os pacientes, nós “gerenciamos medicamentos”. Quase todos usamos um registro de saúde eletrônico (EHR), no qual precisamos documentar as notas clínicas e as prescrições. Esta atividade leva um tempo precioso longe dos poucos momentos de face a face que temos com nossos pacientes. Todo o trabalho da visita, com frequência inferior a 20 minutos de duração, deve ser documentado em um EHR pesado e demorado.

Em 1997, nos primeiros anos da minha carreira, os Estados Unidos se tornaram o primeiro país do mundo a permitir que a indústria farmacêutica comercializasse seus produtos diretamente ao consumidor. Até então, eles só podiam ser comercializados com os médicos. Nós, médicos, naquela época, podíamos, pelo menos, ser um ‘amortecedor’. Agora, o orçamento de marketing da indústria farmacêutica é voltado de forma massiva para o orçamentos no desenvolvimento de novos medicamentos, e as companhias farmacêuticas bombardeiam o público com mensagens sobre tudo o que estava errado com os pacientes, precisando de outra pílula maravilhosa para corrigir os erros. Nossos pacientes passam a ser exigentes de medicamentos específicos, e um estudo publicado recentemente mostrou que estamos sujeitos a receber duras críticas como médicos se não prescrevemos e encomendamos o que o paciente quer! Infelizmente, muitas organizações esperam que recebamos consistentemente boas críticas, independentemente dos desafios envolvidos nisso.

Ao escrever essas palavras, uma tristeza profunda brota em mim pelo que todos nós perdemos. Todos nós perdemos a alma de cuidar das pessoas com dor profunda, perdemos o otimismo e a fé que podemos recuperar as pessoas dos solavancos, contusões e contratempos da própria vida. Cada vez mais temos menos escolhas. E nós fomos levados a confiar, e a acreditar que necessitamos de coisas que podem estar na verdade interferindo na qualidade das nossas próprias vidas. Todos nós temos feito um mau serviço. E nós merecemos muito mais!

Eu acredito, e talvez você também, que o cuidado médico deve estar pautado em como ajudar as pessoas. Não deve ser principalmente impulsionado pelos lucros. O paciente deve ser o centro do modelo e a sua prioridade. A organização profissional de alguém deve ser o baluarte por meio do qual todos podemos defender nossos melhores esforços. Mas todo o campo ficou louco. E nós, psiquiatras e nossos pacientes, somos vítimas. Isso é realmente trágico. Compreender isso é suficiente para que todos nós desejemos se enrolar em uma bola e desistir. Mas somos resistentes e capazes. Então, vamos nos reerguer, sacudir a poeira e começar a olhar para onde ir daqui para frente.

Eu decidi escrever este blog, em vez do que originalmente havia pensado estar a escrever para este site, porque acredito que os psiquiatras desiludidos precisam de um fórum para se conectar, ser ouvidos, apoiados e ajudados. É difícil falar sobre o modelo prevalecente. E é difícil saber para onde ir, ou o que fazer, quando todos os trabalhos abertos para você – e existem milhares deles – são fundamentalmente os mesmos.

Hoje em dia os residentes em psiquiatria recebem uma média de 100 ofertas de emprego para fazer o gerenciamento de medicamentos. E não há outras opções. Muitos residentes têm grandes empréstimos para serem reembolsados pelo pagamento da sua formação pelas escolas médicas e talvez nem tenham muito conhecimento dos riscos inerentes aos modelos prevalecentes. O treinamento de psicoterapia em programas de residência psiquiátrica é bastante mínimo hoje, muitos psiquiatras recém-formados podem nem mesmo saber usar opções terapêuticas para enfrentar a angústia e promover a transformação em seus pacientes.

Muitos de nós psiquiatras não podem respeitar o paradigma prevalecente, e estão lutando com o que fazer em vez disso. Eu mesmo tentei trabalhar dentro do novo modelo por cerca de 10 anos. E isso me deixou bem mal. Eu estava vendo pacientes sem parar, perdi muito peso, estava ansiosa e esgotada, e passei a ter problemas para dormir. Eu tentei trabalhar para uma série de instituições diferentes, pensando que poderia ser diferente mudando de lugares. Mas eu aprendi que o modelo e os desafios eram basicamente os mesmos em todos eles. Na minha última posição como empregada, eu tive tantas visitas de pacientes em três anos como eu havia tido na minha prática privada em tempo integral durante 10 anos. E eu escrevi mais prescrições nos três anos que eu estava no meu último trabalho do que eu tinha escrito nos 20 anos anteriores!

No final das contas, eu me encontrava incapaz de continuar trabalhando no universo da gestão de medicamentos, nesse lugar na caixa onde muitos de nós agora residimos. Mas deixar seria difícil de fazer! Eu não tinha ideia do que fazer para frente. E eu adoro ser médica e realmente não gostaria de desistir. No entanto, o que eu estava fazendo, e sendo convidada a fazer, abalava as minhas crenças mais profundas sobre o que significa participar na cura. Eu lutei muito. E realmente não havia muitos lugares seguros para falar sobre isso. Eu não conseguiria levantar isso com meus supervisores no trabalho, onde desafiaria o modelo de organização financiado pela empresa. Não conseguia escrever sobre isso de maneira ampla, por medo de perder credibilidade como psiquiatra. Não via nenhuma maneira de melhorar, e eu continuava me sentindo cada vez mais isolada e angustiada. Então, finalmente deixei, em março de 2017.

Desde então, aprendi muito sobre o que nos aflige a todos e o que nos impede de obter ajuda. Passei a poder falar mais abertamente sobre onde eu estou e o que eu acredito. E, decidi que eu preciso fornecer ajuda e apoio como treinador para meus colegas que podem estar enfrentando dificuldades semelhantes e não têm para onde ir. Nossa angústia está literalmente nos matando.

Recentemente tive a oportunidade de participar da primeira Conferência Americana de Saúde Médica em San Francisco, co-patrocinada pela AMA e pela Stanford University. Havia 375 lugares, mas dada demanda extraordinária, eles aceitaram 425 participantes e tiveram uma lista de espera de mais 100! Estamos claramente lutando por apoio e orientação.

O ex-cirurgião norte-americano Murthy nos falou sobre a crescente desumanização e despersonalização na medicina. Ele discutiu nossa necessidade de ser valorizados, compreendidos, desejados e apreciados. Ele disse: “Os locais de trabalho não priorizam as conexões sociais com nossos colegas” e que “os médicos estão com dor e sua dor é importante”. Ele falou da falta de auto-eficácia que muitos sentem, e o custo pessoal extremo envolvido fazendo um ótimo trabalho para nossos pacientes. O aplicativo 2shoes foi usado para perguntas, para que os participantes pudessem votar as questões pendentes para cada orador, para permitir ao moderador saber quais as questões eram as mais desejadas. A primeira e mais votada questão para o Dr. Murthy foi: “Como destigmatizamos os médicos que procuram ajuda?” Eu aplaudo a Universidade de Stanford, a AMA, os conferencistas e o Dr. Murthy por validar este problema crucial.

Elementos Dialógicos Comuns em todas as Práticas Relacionais

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CAMILAO artigo Developing Dialogicity in Relational Practices: Reflecting on Experiences from Open Dialogues, nasce da experiência na redação do livro Open Dialogues and Anticipations: Respecting Otherness in the Present Moment. Os autores Jaakko Seikkula e Tom Arnkil, se propõem investigar os elementos centrais nas práticas dialógicas, através de uma interação entre a psiquiatria e a educação. Os autores argumentam que existem dois elementos nucleares, cruciais e independentes na dialogicidade: estar presente no aqui e agora e o respeito incondicional pela singularidade do outro.

O Diálogo Aberto é a princípio uma abordagem de tratamento da saúde mental, e como tal, é um exemplo especial de dialogicidade aberta. Porém, não se fecha a esse tipo de prática, posto que, respeitar a singularidade de cada pessoa é essencial para todos os tipos de práticas relacionais. No artigo a dialogicidade na psicoterapia foi discutida, principalmente, através da experiência atual de Jaakko na terapia de casais com a abordagem do Diálogo Aberto, realizada por dois co-terapeutas, onde tentam criar um espaço dialógico, seguindo momento a momento o que o paciente lhes apresenta.

Os profissionais de saúde têm o costume de planejar suas intervenções entre a equipe e longe do paciente – atrás da cena-, este tipo de planos e metas, por mais bem fundamentadas teoricamente que possam ser, interferem na escuta. Pelo contrário, no Diálogo Aberto, a proposta é a dialogicidade aberta – face a face-, de maneira que todos os envolvidos participem – tanto terapeutas como clientes -, agindo no momento presente, no aqui e agora. Essa é a chave para a mudança mútua.

Através de uma pesquisa anterior de Seikkula, se chegou à conclusão que os princípios centrais da abordagem do Diálogo Aberto são: Ajuda imediata (dentro de 24 horas); Uma perspectiva de rede social (sempre convidando os parentes, familiares e outros membros chaves da sua rede social para as reuniões); Flexibilidade e mobilidade (adapta o tratamento oferecido para a especificidade e as necessidades de cada caso); Responsabilidade da equipe (quem quer que esteja na equipe é responsável por reunir a rede); Continuidade psicológica (a equipe se torna responsável pelo tratamento pelo tempo que seja necessário); Tolerância à incerteza (criando segurança e confiança em situações onde ninguém tem a resposta definitiva); Dialogicidade (focando principalmente no diálogo, deixando em segundo plano querer mudar o outro).

Os autores fazem o paralelo entre psicoterapia e educação, em que as relações entre os atores são assimétricas –  professor / aluno, terapeuta / paciente, p.e. -, seria possível gerar um diálogo verdadeiro entre eles? A resposta é sim; justamente por causa dessa assimetria é que é possível haver trocas.

“De fato, todos os relacionamentos são assimétricos. Como o filósofo Emmanuel Lévinas (1969/2004) enfatizou, essa é precisamente a diferença entre as pessoas, que permite diálogos necessários e possíveis entre elas: O Outro é sempre mais que alguém que eu possa ter domínio .”

DialogicidadeA exemplo de Lévinas, Bakthin exerce uma importante influência no pensamento do Diálogo Aberto. De acordo com Bakhtin, através do diálogo podemos perceber como os outros nos veem, na medida em que o Eu, só é possível através do olhar de outrem.

“De que modo poderia o evento ser enriquecido se eu me fundir com o outro, e ao invés de dois apenas haver um? E o que eu próprio ganharia tendo o outro se fundido comigo? Se assim fosse, ele veria e saberia não mais do que eu vejo e sei de mim próprio: ele meramente repetiria nele próprio a falta de qualquer assunto, que não sejam inerentes aos que caracterizam a minha própria vida. Permita que ele, ao invés disso, permaneça fora de mim, porque nessa posição ele pode ver e saber o que eu próprio não vejo e não sei, a partir do meu próprio lugar, e ele pode essencialmente enriquecer o evento da minha própria vida” (Bakthin, 1990, p. 87). *

Os praticantes da dialogicidade se esforçam por responder ao que é dito, isso significa estar aberto aos novos pontos de vista. Nós, como seres dialógicos que somos, assim como necessitamos respirar, necessitamos ser escutados.

A conclusão do artigo é que assimetria não é um problema para a dialogicidade, as perspectivas únicas de cada pessoa não se tornam semelhantes através do diálogo, mas podem tornar-se mais ricas.

* trad. livre

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O artigo na íntegra →

Como Prevenimos a Solidão?

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Photo Credit: “Lonely,” by Maykel Stone (Flickr)

shanonspetersRita Rubin, que é uma jornalista independente, explora os desafios com relação ao desenvolvimento de intervenções para reduzir a solidão. Em um novo artigo sob essa perspectiva, publicado no periódico científico JAMA, Rubin analisa estudos recentes sobre o impacto da solidão e programas para melhorar os ‘vínculos sociais’. Ela também informa sobre entrevistas com pesquisadores e profissionais dedicados a reduzir a solidão. Em suma, há um consenso de que a solidão está relacionada a resultados adversos para a saúde, mas as soluções não são claras.

“A associação entre a solidão e as doenças físicas e o fato de que a solidão é angustiante são motivos suficientes para intervir … [ainda] há uma escassez de evidências para apoiar o que intuitivamente parece ser um bom conselho para indivíduos solitários: fazer um curso, tomar uma aula de ginástica, pegar um cachorro, fazer algum trabalho voluntário “, escreve Rubin.

Solidão

A solidão é “uma discrepância angustiante entre níveis desejados de contato social e aqueles reais”, explica Rubin.

A solidão é diferente do isolamento social, na medida em que alguém pode sentir-se solitário sem estar isolado e vice-versa. No entanto, ambos têm sido associados a resultados negativos de saúde.

A solidão tem sido identificada como uma epidemia, com alguns cientistas colocando a solidão no mesmo nível do que fumar cigarros.

Christina Victor, professora de Gerontologia e Saúde Pública da Universidade Brunel de Londres, aborda o equívoco de que a solidão possa ser facilmente ‘consertada’ por uma única interação com um estranho. Ela dá o exemplo de instituições de caridade que criam laços entre idosos com voluntários, quando os idosos não passam férias sozinhos. Esta intervenção não é apoiada pela pesquisa, uma vez que as interações com estranhos demonstraram não reduzir a solidão, e que os idosos são mais propensos a se sentir mais solitários no verão do que no Natal.

Rubin também relata a pesquisa de Julianne Holt-Lunstad, professora de psicologia e neurociência da Universidade Brigham Young. Holt-Lunstad identificou a solidão como uma ameaça à saúde pública, com base em pesquisas que descobriram que o isolamento social aumenta o risco de se morrer prematuramente.

Estudiosos, como Victor, observaram limitações na pesquisa sobre a solidão. As principais questões são que a maioria dos estudos tem sido transversais ou que não conseguem controlar fatores confusos, deixando não claro se a solidão está realmente causando resultados negativos para a saúde. Apesar dessas limitações, Holt-Lunstad e seu colega, Timothy Smith, afirmam: “A evidência cumulativa aponta para o benefício de fatores sociais, em treinamento médico e educação continuada voltados para profissionais de saúde”.

Infelizmente, “há que se reconhecer que a solidão recebe pouca atenção nos cuidados de saúde”, de acordo com Rubin. E mesmo quando os indivíduos são adequadamente identificados, Rubin observa que “a evidência sugere que o que muitas pessoas considerariam soluções de senso comum não necessariamente são as que levantam o véu da solidão”.

Um exemplo disso é ‘fazer amizade com’, onde um voluntário regularmente se encontra com um indivíduo identificado como solitário para desenvolver uma relação de apoio. Uma recente revisão bibliográfica sobre programas de amizade feita por acompanhantes descobriu apenas uma modesta melhoria nos sintomas de depressão e de ansiedade, e que tais benefícios não foram estatisticamente significativos.

De acordo com Laurie Theeke, professora associada de enfermagem na Universidade da Virgínia Ocidental, as intervenções de acompanhantes são falhas porque adotam uma abordagem universal que trata cada pessoa solitária como sendo a mesma. Em vez disso, Theeke identifica a solidão como uma construção psicológica conectada à depressão e à ansiedade. Theeke e colegas desenvolveram “Intervenção de Solidão usando a Teoria da História para Melhorar os Resultados Sensíveis às Enfermagens” (LISTEN),  como uma abordagem individualizada.

Participantes do programa LISTEN se envolveram em sessões grupais de 2 horas por cinco semanas. Esses cursos incluem educação sobre envelhecimento e espaço para falar sobre sua solidão e quais padrões em seus pensamentos ou comportamentos podem contribuir para isso. Theeke diz que este programa “é como ensinar uma pessoa a como pescar”, fornecendo-lhes as habilidades para promover mais conexão social. Segundo Theeke, este programa também combate o estigma da “não ser desejável socialmente”, muitas vezes associada à solidão, normalizando a experiência.

A solidão afeta as pessoas ao longo da vida útil. Uma abundância de pesquisas sugere que tanto a solidão quanto o isolamento social estão ligados a resultados negativos para a saúde e a uma menor qualidade de vida. No entanto, os pesquisadores ainda não encontraram soluções eficazes. Para combater a solidão, Rubin pede mais atenção nos cuidados de saúde para que sejam indentificados os indivíduos que vivem a solidão, e pra programas mais individualizados, como é o caso do LISTEN.

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Rubin, R. (2017). Loneliness might be a killer, but what’s the best way to protect against it? JAMA. Advance online publication. doi:10.1001/jama.2017.14591 (Texto Completo).

Além da Crítica: os Psicólogos Discutem Alternativas de Diagnóstico

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Photo Credit: JD Hancock, “I’m a doctor, not a psychiatrist” (Flickr)

ZenobiaO Journal of Humanistic Psychology apresenta diversas alternativas de diagnóstico oferecidas por pesquisas com o objetivo de uma mudança de paradigma na atenção em saúde mental.

Como parte do Journal of Humanistic Psychology o segundo número especial sobre Alternativas de Diagnóstico, pesquisadores continuam a conversação importante a respeito da necessidade de uma mudança de visão na psicologia e na psiquiatria. Para se ir além da crítica aos equívocos do atual paradigma da atenção em saúde mental e seus correspondentes sistemas de diagnóstico, um grupo de diferentes pesquisadores oferece alternativas e explora novas abordagens que privilegiam tanto a ciência quanto os usuários dos serviços.

“Os variados artigos que vem nesse número especial pretendem sublinhar a diversidade das alternativas de diagnóstico atualmente em desenvolvimento e as já existentes, “ os editores escrevem.

“A existência de múltiplas alternativas ao atual paradigma de diagnóstico demonstra que os sistemas de diagnóstico não são classificações fixas ou pré-determinadas de entidades objetivas encontradas na natureza, mas sim modelos conceituais e empiricamente inspirados que se desenvolvem e se transformam ao longo do tempo. “

Photo Credit: JD Hancock, “I’m a doctor, not a psychiatrist” (Flickr)
Photo Credit: JD Hancock, “I’m a doctor, not a psychiatrist” (Flickr)

Em um dos artigos destacados, “Mas o que são doenças mentais reais? Alternativas à abordagem do modelo de doença”, Dra. Anne Cooke entra no debate que está circulando com críticas aos sistemas de diagnóstico e medicalização da ‘psicose’.  Cooke aprofunda a conversação, propondo sistemas alternativos de classificação que enfatizam formulações conceituais de experiências individuais.

Anne Cooke é também editora do relatório recentemente revisado da Sociedade Britânica de Psicologia (BPS) intitulado “Entendendo a psicose e a esquizofrenia: por que as pessoas algumas vezes ouvem vozes, creem em coisas que os outros acham estranho ou que parecem estar fora da realidade, e o que pode ajuda-las” (veja o recente relatório do MIB).

Peter Kinderman, também um grande colaborador do relatório do BPS, oferece uma crítica explícita aos modelos de ‘doença’ que é compartilhada pelo comitê clínico da entidade – que representa a maioria dos psicólogos que trabalham nos serviços de saúde mental do Reino Unido.

Neste número especial, Cooke e Kinderman resumem  as chocantes falhas que atravessam a atual abordagem da ‘esquizofrenia’.  Primeiro, eles argumentam que a distinção entre as experiências ‘normais’ e ‘psicóticas’ não podem ser concretamente identificadas, muito menos contarem com suporte científico. Essa questão é especialmente importante quando se leva em consideração o quão comum é para as pessoas terem experiências ‘psicóticas’, tipicamente consistindo em ouvir vozes e experimentarem paranoia. Não apenas são essas experiências subjetivamente compreensíveis, mas a sua consideração varia fortemente entre culturas.

A realidade dessas experiências entre as pessoas e culturas enfatiza a necessidade de se conceituar a experiência de ‘psicose’ em um continuum, os autores argumentam. Mais ainda, a natureza falsa e arbitrária do constructo ‘esquizofrenia’ é demonstrada pelo seu fracasso em atender os imperativos científicos básicos de confiabilidade, validade e utilidade.

Há discrepâncias entre clínicos, hospitais e países quando se observa o constructo da ‘esquizofrenia’ pelos critérios do DSM-5. Sem evidências para uma causa biológica subjacente, o constructo parece apenas ser reificado circularmente, por meio da identificação de ‘sintomas’ associados.

Finalmente, pesquisas que demonstram como o rótulo de ‘esquizofrenia’ faz mais mal do que bem, com isso comprometendo a utilidade do emprego das atuais categorias de diagnóstico que é hoje professada, os autores argumentam. Contudo, a ideia de ‘esquizofrenia’ permanece inseparável das instituições de saúde mental por várias razões, incluindo os próprios interesses corporativos. Os autores sublinham sinais de mudança, apontando para a crescente cobertura das mídias e o interesse despertado nos movimentos focados em modelos-centrados no paciente e em sistemas alternativos de classificação.

Acompanhando sugestivas abordagens que privilegiam as perspectivas dos usuários dos serviços, formulações conceituais colaborativas e explicações psicossociais, os autores notam a necessidade de se afastar das experiências de enquadramento em explicações no ‘cérebro ou na culpa’. Com outras palavras, eles defendem experiências compreensíveis de um modo que nem sugira que os indivíduos devem ser culpabilizados nem que seus problemas estejam ‘em suas mentes’. Cooke e Kinderman concluem seu artigo com as palavras de alguém que foi pessoalmente afetado pelo atual paradigma em saúde mental”

“Se os psicólogos estão corretos de que as causas primárias da doença são psicossociais ao invés de biológico, a narrativa da minha família pode ser reescrita. Nós podemos sair do nossa armário da vergonha e  ter os nossos direitos colocados em um continuum de experiência humana aceitável. “

Uma outra contribuição que vem apresentada nesse número especial do JHP desafia o monopólio do DSM/CID para o diagnóstico, ao sugerir uma abordagem diferente de classificação que retenha benefícios práticos na medida em que emancipa os que a utilizam do foco do modelo patológico médico. Em “Preocupações com o Manual de Classificação e Estatística de Saúde Mental: uma proposta de alternativa científica prática ao DSM e ao CID”, Dr. Jeffrey Rubin sublinha um argumento para um sistema alternativo, com o Manual de Classificação e Estatística de Preocupações em Saúde Mental (CSM). Rubin delineia as limitações primárias da abordagem do DSM/CID:

“Entre elas estão as que o Manual tende a estigmatizar os usuários dos serviços de saúde mental, a violar os princípios básicos da ciência, a privilegiar a perspectiva do clínico em detrimento daquela do usuário do serviço, e com isso se tornou um monopólio com todas as desvantagens associadas em tais instituições. “

Essencialmente, ele observa que o sistema DSM/CID coloca adiante a ideia que um ‘transtorno’ existe como um resultado de ‘disfunção mental no indivíduo’. Enquanto oferece escassa ciência para sustentar essas pretensões, ou para apoiar os 300 constructos listados como ‘transtornos’ no DSM, não há um meio direto, confiável, válido para acessar o ‘funcionamento’ individual. A decisão final de determinar se as apresentações são ‘clinicamente significativas’ permanece então nas mãos dos clínicos que são influenciados tanto pelas demandas dos serviços quanto pelos interesses financeiros.

Rubin escreve, “a falta de confiabilidade e validade para o DSM e a aplicação da palavra ‘diagnóstico’ de uma maneira enganosa, violando três dos princípios básicos da ciência. O problema final com o DSM que eu quero discutir aqui é que a despeito das questões que se espalharam sobre a sua validade, ele parece alheio à falácia ontológica, quer dizer, em acreditar que por ter dado um nome para algo que pensamos que vemos, que algo deve existir. “

A abordagem do CSM, em contraste, enfatiza que a “individualidade ultrapassa qualquer sistema de classificação. “Ao substituir ‘transtorno’ de saúde mental pelo termo “preocupação”, seu principal constructo é definido como se segue?

“Uma inquietação de saúde mental ocorre quando uma pessoa que procura serviços de saúde mental expressa ao prestador de serviços de saúde mental uma preocupação sobre qualquer um desses tópicos: comportamento, emoção, humor, vícios, significado da vida, morte, morrer, gerenciamento de dor crônica, trabalho, relacionamentos, educação, alimentação, cognição, sono e situações desafiadoras de vida “.

Desta forma, a preocupação é definida por quem busca ajuda, que é também quem identifica sua identidade pessoal e fatores contextuais. Seguindo essa classificação, ambas as partes constroem juntas uma hipótese sobre a natureza e a origem da preocupação.

Rubin observa que o sistema CSM poderá introduzir uma competição positiva em um campo onde a abordagem DSM / ICD domina. Além disso, ele chama a atenção para o caso de que o sistema CSM possa ser facilmente usado por terceiros pagadores e ser praticamente incorporado em uma sociedade com vastas organizações, incluindo programas educacionais, alinhando-se com missões de “saúde mental”.

“Por estas razões, o CSM manteria o conceito de “saúde mental “para que ele possa ser acomodado confortável e realisticamente em muitas grandes organizações que estejam usando”, ele escreve. No entanto, o CSM usaria o termo “saúde mental” de uma maneira que é diferente do que está implícito no DSM e no CID. O CSM rejeitaria explícitamente a ideia de que o oposto da saúde mental é doença mental “.

Ao contrário do sistema DSM / ICD, o CSM é ateórico e orientado para reduzir o estigma e elevar o respeito pelos usuários do serviço. A sintonização com a pesquisa e o foco no empoderamento de indivíduos que procuram ajuda, oferece uma resposta potencial a recentes clamores e solicita mudanças no campo (confira matéria do MIB).

Acompanha esses dois artigos acima apresentados uma ampla gama de tópicos diversos que formam esta segunda edição especial, incluindo uma resposta colaborativa / avaliativa de resultados de psicoterapia liderada por Barry Duncan, formulações psicológicas como alternativa ao diagnóstico, e um modelo de consentimento informado para o tratamento de transgênero como alternativa para a ‘Disforia’ de gênero.

Os editores da edição especial, Kamens, Flanagan e Robbins, escrevem:

“Acreditamos que as alternativas de diagnóstico previstas por esses autores nesta edição geram esperança para um futuro humanista e centrado na pessoa, na pesquisa e nas práticas de saúde mental”.

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Leia o número especial na íntegra →

Epidemia de Doenças Mentais em Tempos de Capitalismo Ultraliberal

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Rita AlmeidaNão é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será que ampliamos tanto o espectro do que é considerado “patológico” que transformamos quase tudo em doença mental?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

A novela Machadiana, O Alienista, ilustra bem esse incômodo ético. Simão Bacamarte é o médico que envereda pelo ramo da psiquiatria e que, autorizado pelo rigor da sua ciência, acaba por internar todos os cidadãos de Itaguaí, até que só resta ele mesmo fora do hospício. Publicada pela primeira vez em 1882, o texto de Machado de Assis nos soa mais como uma profecia. Hoje, o DSM – Bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo que está na sua V edição – transforma quase todos os nossos mal-estares em patologia.

Mas, diante das três questões que levantei no início do texto, defendo que, a última responda mais ao que temos tomado como direção em nossos tempos de capitalismo ultraliberal. Ampliamos sobremaneira o limite utilizado para diagnosticar os males que atormentam nosso ser, transformando-os em alguma doença, de preferência medicalizável. E seria ingenuidade pensar que isso se deve a um suposto avanço científico que “descobriu” novas doenças. A verdade é que “fabricamos” novas doenças, e para um propósito muito simples, para que sejam vendidas no mercado.

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Dany Dufour – em A arte de reduzir as cabeças – vai dizer que, o avanço do capitalismo, representa a morte do sujeito crítico kantiano e do sujeito neurótico freudiano; ambos sujeitos modernos. Ele nos lembra que, tal como formula Lacan quando nos diz que “o inconsciente é a política”, esse Outro que já está posto aí quando chegamos ao mundo não é um organismo fixo, ele modifica ao longo do tempo, o que, consequentemente, interfere no tipo de sujeito que irá emergir em determinada época. Assim sendo, o sujeito dos nossos tempos – balizado pelo Outro da política do capitalismo ultraliberal – seria o sujeito pós-moderno; um sujeito sem limites. Na busca da radicalidade da sua “liberdade” tal sujeito rejeita se submeter a qualquer tipo de categoria ou determinação, seja no campo da sexualidade, da identidade ou da geração. Ao rejeitar o recalque como estratégia, acreditando que assim teria mais garantia de satisfação, o sujeito pós-moderno favorece a plenitude do capitalismo, afinal, quanto menos barreiras (externas ou internas), mais interessante a esse modelo político-econômico. Se o sujeito que faz mover o capitalismo é o consumidor, ele é tanto mais interessante quanto mais flexível, descontruído e mutante for. O novo capitalismo, dirá Dufour, tem como objetivo principal destruir sistematicamente todas as instituições e todas as referências culturais e simbólicas que possam entravar a livre circulação das mercadorias.

Mas, voltando ao tema dessa nossa psiquiatria que serve ao mercado de consumo, é curioso que, em tempos de defesa irrestrita a tantas “liberdades individuais”, as diferenças que emergem sejam cada vez mais capturadas pelo mercado, incluindo o de diagnósticos e medicamentos. Atenta a tanta diversidade, a indústria farmacêutica – uma das três mais poderosas do mundo – não para de crescer e de se diversificar. Todo dia há uma nova pílula para cada novo mal-estar do ser.

E enquanto o sujeito freudiano tinha interesse em decifrar seu mal-estar, interrogá-lo para saber mais sobre seus sintomas e o véu que os encobria, o sujeito pós-moderno não quer saber nada sobre isso, na medida em que não acredita que haja qualquer simbólico que o anteceda e o determine de algum modo. O sujeito pós-moderno parece querer viver sem referências, ou seja, sem passado, usa o seu presente para consumir e o futuro para pagar a fatura do cartão. E, sem uma barreira identitária ou simbólica que o marque e que o determine em seu passado, temos sujeitos que não se sentem impelidos a escolher entre uma coisa e outra, já que eles podem,  tranquilamente, querer as duas coisas. E se sabemos que desejar implica em escolher entre uma coisa e outra, o sujeito que interessa ao nosso tempo não deseja, pois ele quer tudo. Então, que consumidor maravilhoso ele se tornou!

Para esse mal-estar sem passado, sem recalque e sem desejo, resta a prateleira de medicamentos, que serve muito bem à nossa epidemia de doenças do ser, chamadas de mentais, quem sabe apenas para caber no discurso da ciência. Talvez não seja possível resgatar o sujeito freudiano, mas, talvez seja necessário sustentar uma ética do desejo, tal como a psicanálise propõe. Isso significa escutar o sintoma como algo que diz da matéria-prima da qual fomos feitos e que serve, sobretudo, para nos manter desejantes. Tal ética inaugurada por Freud nos alerta que é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.

Nesse sentido, o deprimido de nossos tempos, talvez, seja menos doente do que supomos. Quem sabe seja apenas esse sujeito que foi alijado do desejo e que, consumindo a si mesmo, nos denuncia que consumir não é a saída?

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Manifestação da ABRASME sobre o Encontro dos 30 anos de Luta Antimanicomial

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A Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) oficialmente vem manifestar o seu total apoio ao Encontro em Bauru, que ocorrerá nos dias 8 e 9 de dezembro, que reunirá usuários, familiares, profissionais de saúde mental, estudantes, representantes dos movimentos sociais organizados, intelectuais, em defesa de uma Sociedade sem Manicômios.

Como é destacado pelo Manifesto da ABRASME:

“Neste momento histórico em que o Movimento por Uma Sociedade sem Manicômios completa 30 anos de grandes vitórias e, ao mesmo tempo, de enfrentamentos de imensos desafios, colocam-se em pauta reflexões sobre o futuro do Movimento (…) O Movimento por Uma Sociedade sem Manicômios e todos os seus acúmulos e conquistas no processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira é alvo, hoje, de tentativas claras de conquista e destruição. Seremos mais vulneráveis quanto mais divididos estivermos. É da maior importância que os vários grupos, movimentos e entidades que compõem este Movimento polissêmico estejam bem articulados, para melhor cumprirmos a missão comum de defender direitos que estão sendo espoliados. “

BAURU

Na íntegra o conteúdo do Manifesto:

Neste momento histórico em que o Movimento por Uma Sociedade sem Manicômios completa 30 anos de grandes vitórias e, ao mesmo tempo, de enfrentamentos de imensos desafios, colocam-se em pauta reflexões sobre o futuro do Movimento. Uma delas relaciona-se à construção de uma posição estratégica na relação interna dos coletivos que compõem a luta antimanicomial, para o enfrentamento dos ataques que sofrem atualmente não só à Saúde da população brasileira, mas a todos os sistemas públicos de sustentabilidade, amparo e promoção social. O Brasil vive um amplo processo de regressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais!

A situação é de uma verdadeira guerra entre os grupos que tomaram o Congresso e os outras instituições da República – subsidiários de esquemas internacionais, cujo objetivo é a destruição do bem público para favorecer mercados, a exploração das pessoas e a expropriação de seus direitos pelo capital internacional – contra o povo, principalmente os trabalhadores e os mais vulneráveis pela miséria historicamente a eles imposta pela elite dominante.

A metáfora da guerra invoca as estratégias militares como, por exemplo, os ensinamentos de Sun Tzu que escreveu, em tempos remotos, A Arte da Guerra, e de Maquiavel, cujo livro O Prìncipe foi publicado no alvorecer da Idade Moderna. Estas obras afetam até hoje as táticas de guerra e de conquista de poder. Um ponto comum destes ensinamentos encontra-se na máxima “Dividir para Conquistar”.

Aponta que é vantajoso, quando se quer conquistar um exército, um povo, um grupo ou uma comunidade, que esta esteja dividida, fraturada, desunida. Um grupo dividido é fraco, é presa mais fácil do grupo conquistador, facilita o trabalho de quem quer destruir.

O Movimento por Uma Sociedade sem Manicômios e todos os seus acúmulos e conquistas no processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira é alvo, hoje, de tentativas claras de conquista e destruição. Seremos mais vulneráveis quanto mais divididos estivermos. É da maior importância que os vários grupos, movimentos e entidades que compõem este Movimento polissêmico estejam bem articulados, para melhor cumprirmos a missão comum de defender direitos que estão sendo espoliados.

Em um dos grandes momentos de nossa História conseguimos, com a força das articulações entre diversos atores sociais, derrubar uma sangrenta e poderosa ditadura militar. A história desta luta nos lembra a evolução dos lemas que, juntos, ritmicamente, bradávamos nas manifestações, nas passeatas, onde pudéssemos ser ouvidos. O primeiro lema era a expressão de um desejo: “Abaixo a ditadura”. O segundo demonstra maior entendimento da importância da organização dos grupos: “O povo organizado / Derruba a ditadura” tornou-se um mantra, uníssono, ritmado, musical, motivador.

Mas o ultimo lema iluminou um momento em que já reconhecíamos como melhor lutar, já sabíamos que assim lutando venceríamos e que já podíamos prever passos futuros: “O povo / Unido / Jamais será vencido”. Esta é uma grande lição daquela luta dolorosa, mas em que fomos coroados com a Vitória: Unidos, jamais seremos vencidos.

O Manifesto de Bauru, que faz 30 anos, já apontava o sentido de unidade de todos e todas que lutavam contra a estrutura manicomial na sociedade brasileira, com a máxima “Por uma sociedade sem manicômios” (…) organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional”. Sinalizava inclusive a necessidade dessa unidade se compor com o “movimento popular e sindical”.

No campo da Luta Antimanicomial temos a clareza de que somos muitos e precisamos estar juntos. Isto significa superar divergências, quando as houver. O fundamental não é buscar um pensamento único, mas que a diversidade de

pensamento seja uma potência de luta. Que no Movimento Antimanicomial não haja disputa de supremacia, mas consensos progressivos para a ação, e clareza do inimigo comum. Para isto os movimentos e entidades precisam construir estratégias para permanecerem articulados e atentos.

Nessa perspectiva a ABRASME entende que esse amplo processo de mobilização dos 30 anos da Carta de Bauru deve ser impulsionador de uma unidade na pluralidade que se expresse na construção de uma Articulação Nacional da Luta Antimanicomial, para que possamos construir mais avanços e conquistas #PorMais30.

A derrubada da ditadura é uma inspiração para que, em Bauru, possamos nos articular para que, Unidos, jamais sejamos vencidos.

Todas e Todos a Bauru, Por Uma Sociedade sem Manicômios! “

ABRASME

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Resultado do Relatório sobre Viéses em Pesquisas com Medicação Antipsicótica

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Peter SimonsUm novo estudo sugere que a eficácia dos medicamentos antipsicóticos pode ser exagerada devido a métodos tendenciosos de publicação. Os pesquisadores descobriram que a grande maioria dos testes com drogas antipsicóticas tem usado métodos com viéses em seus relatos. Essas práticas têm garantido que os ensaios clínicos publicados sobre a eficácia de tais drogas demonstrem resultados positivos, obscurecendo uma série de achados negativos.

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Desde 2006, a Organização Mundial da Saúde determina que pesquisas com drogas têm que  pré-registrar no banco de dados quais são os indicadores dos resultados pretendidos. Isso foi projetado para justamente evitar viéses seletivos nos relatórios, um tipo de prática enganosa em que os pesquisadores manipulam os indicadores de resultados e, em seguida, relatam somente os que são positivos.

Pesquisadores da Utrecht University recentemente realizaram um estudo. A investigação foi coordenada por Jurjen J. Luykx, do Departamento de Neurociência Transnacional. Luykx e seus colegas descobriram que 85% dos ensaios com medicamentos antipsicóticos publicados não relataram os indicadores de resultado que eles indicaram quando pré-registraram seus estudos. Na verdade, de acordo com os pesquisadores:

“81% dos [ensaios com antipsicóticos] tinham pelo menos um resultado secundário não relatado, recém-introduzido ou alterado, para dar um resultado primário na respectiva publicação”.

Para se entender melhor o que está em jogo, eis como isso é feito. Quando os pesquisadores conduzem estudos para determinar se determinados medicamentos são eficazes, é prática padrão declarar um resultado primário (como por ex. a pontuação em uma medida padronizada de psicose). No entanto, quando os pesquisadores utilizam questionários múltiplos que avaliam muitos tipos de resultados, são aumentadas as chances de que qualquer resultado possa ser melhorado simplesmente devido ao acaso. Ou seja, quanto mais testes se executa, maior a  probabilidade que um deles encontre algum resultado significativo.

Quando os pesquisadores informam sobre o teste que resultou positivo, em vez do teste que eles selecionaram para o resultado primário no início do estudo, isso é conhecido como ‘viés de relatório seletivo de resultados’. Isso permite que os pesquisadores se assegurem que seus resultados sejam positivos e publicáveis; mas isso tem o efeito colateral de enganar o público – e potencialmente outros pesquisadores – ao se pensar que os resultados foram uniformemente positivos.

Luykx e seus colegas encontraram 48 estudos publicados, desde 2006, de controle randomizados de medicamentos antipsicóticos para esquizofrenia ou transtorno esquizofrênico, e compararam os resultados relatados com os indicadores de resultado que eles haviam registrado na base de dados de ensaios clínicos antes de haverem iniciado seus estudos. No entanto, 17 dos 48 ensaios haviam sido registrados no banco de dados antes que as pesquisas estivessem sido concluídas, fazendo malograr a finalidade do pré-registro dos resultados esperados.

Dos 48 ensaios, quatro nem sequer mencionaram algum dos resultados primários pré-registrados em sua publicação. Outros três converteram seu resultado primário pré-registrado em um resultado secundário ao publicar a pesquisa (ou seja, o resultado primário parece ter sido o menos importante). Outros dez estudos não conseguiram pré-especificar adequadamente seu resultado primário.

Os resultados secundários mostraram ainda mais discrepâncias. Dezoito dos ensaios falharam em mencionar seus resultados secundários pré-especificados em sua publicação; quatro dos estudos converteram um resultado secundário em um resultado primário para a publicação (fazendo parecer que era o resultado alvo, quando de fato era uma parte menor do estudo); e 37 dos 48 ensaios não conseguiram pré-especificar todos os seus resultados secundários.

Quanto à segurança e à tolerabilidade dos medicamentos antipsicóticos, houveram 74 resultados pré-especificados – dos quais 53 foram incluídos nas publicações como relevantes. No entanto, os artigos adicionaram 335 novas medidas de resultado em relação à segurança e à tolerabilidade que não haviam sido pré-registrados. Isso pode indicar que os pesquisadores realizaram uma miríade de testes de segurança e tolerabilidade para publicar seletivamente os que eram favoráveis.

Essas descobertas são consistentes com pesquisas anteriores que encontraram resultados semelhantes para pesquisas tanto para com drogas antipsicóticas  (ver artigo completo) quanto para os antidepressivos (ver artigos completos aqui e aqui). Esses estudos também documentam outras formas de viéses, como a tendência a se deixar os resultados negativos como não publicados. Por exemplo, em pesquisas com antidepressivos, quando ensaios publicados e não publicados são combinados, 49% destas pesquisas descobriram que os medicamentos não eram mais eficazes do que placebo.

Luykx e seus colegas pesquisadores sugerem que a comunidade de pesquisadores precisa ser mais cuidadosa. Os autores devem explicar discrepâncias em seus artigos publicados, e os editores de revistas devem exigir que os pesquisadores deem conta das suas medidas de resultado previamente especificadas.

Somente quando essas fontes de vieses forem reduzidas, o público poderá confiar na veracidade dos estudos que avaliam a eficácia e a segurança dessas drogas.

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Lancee, M., Lemmens, C. M. C., Kahn, R. S., Vinkers, C. H., & Luykx, J. J. (2017). Outcome reporting bias in randomized-controlled trials investigating antipsychotic drugs. Translational Psychiatry, 7, e1232. doi:10.1038/tp.2017.203 (Link)

Uma psicanalista pioneira, desprezada pelos ‘Grandes Homens da Psicanálise’, depois assassinada pelos nazistas

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Da revista Tablet: o novo livro de Angela Sells, Sabina Spielrein: The Woman and the Myth, descreve o trabalho e a vida de uma psicanalista pioneira que desafiou as ideias convencionais de seus contemporâneos sobre as mulheres e a sexualidade feminina. Como uma mulher judia e ex-paciente mental, Spielrein enfrentou a marginalização no mundo psicanalítico e na sociedade em geral; seu trabalho foi roubado e apagado pelos chamados Grandes Homens da Psicanálise, e ela finalmente foi assassinada pelos nazistas.

Entre as suas contribuições: o questionamento da ‘inveja do pênis’, em voga na psicanálise; assim como a formulação do conceito psicanalítico de ‘pulsão de morte’, que permitiu avanços no pensamento da psicanálise.

“É insuportável que o trabalho de Spielrein tenha sido tomado e usado sem credenciá-la; que seu personagem tenha sido difamado pelos ‘Grandes Homens’ que usaram suas ideias sem dar crédito a ela; e que ela não tenha conseguido ganhar a vida na Áustria e na Suíça porque era uma mulher; incapaz de continuar seu trabalho pioneiro em Moscou porque era judia; e que foi, em 1942, assassinado pelos nazistas. Em um ato heroico de resistência contra o ‘memoricídio’, Sells começou a promover a ressurreição de Spielrein há algum tempo. O livro de Angela Sells é uma contribuição feminista importante, talvez definitiva, para a literatura. Alguém deve fazer um filme sobre a verdadeira Sabina Spielrein “.

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