Estratégias culturais em Manguinhos

0

A participação em projetos de arte e cultura ou em experiências voltadas para profissionalização, trabalho, economia solidária ou a participação social se apresenta como estratégia fundamental para o suporte social e para a produção de vida (e saúde) em comunidade.

 

Assim, o  Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz), a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Universidade Queen Mary (Londres) fizeram um levantamento on-line que buscou mapear iniciativas voltadas para arte e cultura desenvolvidas em Manguinhos (RJ) durante os anos de 2021 e 2022. As iniciativas culturais se constituem como lugares de memória devido a sua importância para o desenvolvimento e para a manutenção de tradições locais, para o desenvolvimento de pertencimento comunitário e para o desenvolvimento de manifestações culturais que abrem espaço para discussões sobre gênero, questões étnico-raciais, sexualidade e geracionais, assim como para o cultivo de redes de solidariedade e de apoio mútuo.

No dia 5 de outubro de 2022, na Biblioteca Parque de Manguinhos, um evento marca o lançamento do Catálogo “Estratégias culturais em Manguinhos: Olhares sobre o cuidado em saúde mental e o protagonismo de moradores de favelas“, organizado por Ana Paula Guljor, Silvia Monnerat, Paul Heritage e Paulo Amarante.

Clique abaixo para acessar o catálogo em português ou inglês:

→ Português: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/pesquisa-conhecimento/2022-10/catalogo_26desetembro_0.pdf

→ Inglês: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/pesquisa-conhecimento/2022-10/Cultural_Strategies.pdf 

 

A Experiência dos Sobreviventes da Psiquiatria no Brasil

1

Eu passei anos da minha vida pensando que transtornos mentais eram doenças como quaisquer outras, e que essa ideia era inquestionável por qualquer pessoa que partisse de um ponto de vista científico. Eu mesma tinha um diagnóstico psiquiátrico, que fazia todo o sentido para mim. Foi em uma palestra em um evento da semana de luta antimanicomial, que eu vi que estava errada. Nela, eu descobri que já há muito tempo diversos acadêmicos, profissionais da área da saúde e ex-pacientes psiquiátricos apontam para a falta de provas cientificas que indiquem que os fenômenos que chamamos de transtornos mentais tenham qualquer base biológica, e denunciam as consequências danosas dos diversos tipos de intervenções psiquiátricas. Desde então, eu me tornei uma ex-paciente crítica da psiquiatria, passando a me ver como sobrevivente ao entender que havia sofrido várias violências durante as internações psiquiátricas as quais fui submetida, bem como desenvolvido diversos problemas de saúde por ter tomado drogas psiquiátricas desde os 16 anos.

Eu estudei sobre as substâncias que eu tomava através do site “The Withdrawal Project”,
criado pela sobrevivente norte-americana Laura Delano. Esse site conta também com uma
plataforma chamada “The Withdrawal Project Connect”, que permite que pessoas lidando com efeitos físicos ou psicológicos desagradáveis e que desejem parar ou diminuir o uso de drogas psiquiátricas possam conversar e trocar estratégias para lidar com as dificuldades próprias desse processo, que pesa e muito em um corpo que se adaptou às drogas. E em 2022, duas sobreviventes brasileiras decidiram fazer um grupo de WhatsApp inspirado nessa iniciativa, para que também tivéssemos esse espaço de trocas em português. Essa foi a primeira vez, até onde sabemos, que sobreviventes da psiquiatria brasileiros se reuniram.

No Brasil, não temos historicamente movimentos de sobreviventes, apenas movimentos de
usuários da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial). O que diferencia os movimentos de usuários brasileiros dos movimentos de sobreviventes que existem ao redor do mundo é que, enquanto usuários entendem que tem uma doença que precisa de tratamento e reivindicam que este tratamento seja humanizado, sobreviventes da psiquiatria entendem que não são doentes e que colocar suas questões, que não são de ordem biológica, como objetos da medicina, é algo inerentemente desumano.

Eu logo me juntei ao grupo, que permite que mulheres em retirada ou pensando sobre
retirada das drogas troquem informações sobre a substância utilizada e sobre como costuma ser sua redução, além de estratégias para lidar com sintomas difíceis que surgem no processo. Se incentiva a busca por um profissional que acompanhe corretamente o processo de redução e a ideia não é oferecer conselhos médicos, e sim fornecer apoio. Com o tempo, o grupo também virou espaço de trocas sobre experiências adversas com a psiquiatria de forma geral.

Existem várias dificuldades comuns. Uma delas é a de que psiquiatras não costumam
reconhecer problemas causados pelas drogas, mesmo quando estes constam na própria bula dos medicamentos, ou quando são sintomas de acatisia, síndrome que o próprio DSM já reconhece como sendo causada por drogas psiquiátricas. No desespero para se livrar dos
sintomas, muitos pacientes tentam parar a medicação de uma só vez, desenvolvendo sintomas de abstinência e sendo ainda culpabilizados por estes, ouvindo de psiquiatras que aquilo seria “a doença voltando”, mesmo quando os sintomas nada tem a ver com aqueles de qualquer transtorno. Mesmo quando encontram um profissional que está disposto a retirar as drogas, este normalmente desconhece a existência da forma segura de fazê-lo, que é a de retirar no máximo 10% da dose em um período de no mínimo 3 semanas (Breggin, 2012).

Outro desafio é o de encontrar psicólogos que tenham qualquer leitura sobre danos causados por drogas psiquiátricas e que não interpretem a opção de não as utilizar como “resistência ao tratamento”. Relatos de violências praticadas por profissionais e de experiências adversas com drogas psiquiátricas são invalidados. Mesmo os profissionais que se dizem críticos da psiquiatria, só são críticos até o paciente chegar em um “tema de psiquiatra”, como suicídio, automutilação ou audição de vozes. Quando os pacientes tentam trazer algum desses temas para o psicólogo, na tentativa de elaborá-los, ouvem de volta “Você está tomando seus remédios?” ou “Você contou isso para o seu psiquiatra?”, dando a entender que essas são questões a serem apenas medicadas, não verbalizadas, e culpabilizando a pessoa pelo que ela vive: se ela sente aquilo ainda, é porque deve estar fazendo algo errado, não seguindo o tratamento. Isto não condiz com a realidade, já que muitos pacientes tomam medicações há anos e sentem que só pioram.

Dessa forma, muitos sobreviventes que desejam trabalhar suas questões, desistem da
psicoterapia. No meu caso, só voltei a terapia quando vi uma psicóloga postando sobre o
movimento de sobreviventes da psiquiatria no Instagram, porque eu queria um profissional
que acreditasse em mim. Assim, eu pude elaborar anos de traumas causados por internações psiquiátricas e violências sofridas por profissionais de saúde. Ter essas violências vistas como o que são, violências, faz toda a diferença. Um psicólogo reconhecer que outro profissional praticou uma violência é raridade, já que eles normalmente assumem de antemão que o especialista, detentor do saber, estava certo, e a pessoa diagnosticada, irracional, errada.

Nos CAPS, infelizmente a situação muitas vezes é a mesma do setor privado. Além de não
saberem fazer a retirada medicamentosa e repetirem o mesmo discurso culpabilizante, os
profissionais coagem usuários a fazer uso de drogas psiquiátricas, seja condicionando sua
participação em outras atividades do CAPS ao uso das drogas, ou fazendo ameaças de
internação involuntária aos que não querem se medicar.

Um ponto que fica claro nos relatos de sobreviventes é que o sofrimento e as reações
causadas por violências física, sexual ou psicológica, comuns na vida das mulheres, são
patologizados. É possível perceber isso em casos em que a raiva de uma sobrevivente é lida como “inadequada” porque incomoda o psiquiatra e a família abusadora, por exemplo. O foco das intervenções, por sua vez, fica todo no comportamento das vítimas. Inclusive, relatos de violência apareceram tanto no nosso grupo que esse foi um dos motivos para a votação de que nele só entrariam mulheres. Muitas relataram não se sentir confortáveis com o risco de homens invalidarem suas histórias, coisa que já experienciaram antes, inclusive com profissionais da saúde. Outro ponto interessante é que na nossa página do Instagram também chegam mais mulheres, muitas deixando claro que são feministas. As feministas já estão acostumadas com instituições que se dizem “neutras”, mas na verdade servem aos interesses do patriarcado.

Mas nem toda sobrevivente foi patologizada por ser vítima de violências. Algumas relatam ter vivido um período particularmente difícil ou estressante, procurado um psiquiatra e acabado imensamente piores do que chegaram no consultório, com sintomas que nunca haviam vivido antes. O que une os sobreviventes é a busca por repensar aquilo que foi colocado para eles pela psiquiatria, e em muitos casos, a vivência de um processo de desmedicalizar o próprio sofrimento, através da reflexão crítica sobre a própria história. Quando entendemos que nossas questões não são causadas por uma doença, abrimos a porta para construir novos sentidos. Histórias que entes eram “tenho tristeza profunda porque tenho depressão” podem virar “tenho tristeza profunda porque de fato eu vivi uma situação muito triste”. A experiência de troca entre mulheres que passaram pela mesma situação ou simplesmente se mostram disponíveis e solidárias a dor uma da outra, mostra que não é necessário um diagnóstico médico para que um sofrimento seja reconhecido e validado, nem para que ocorram trocas entre pessoas com o mesmo sofrimento, justificativas muito usadas para defender os diagnósticos psiquiátricos.

Hoje, esse grupo já atingiu sua capacidade máxima, com 15 participantes, devido às limitações do formato WhatsApp e da capacidade das moderadoras, que cuidam para que nenhuma conduta perigosa, como a retirada abrupta de qualquer droga, seja incentivada. Incentivamos que novos grupos de sobreviventes se organizem, para tratar do tema de drogas psiquiátricas ou de outros temas. Estamos abertas para trocas, envio de relatos e construção de projetos no Instagram @sobreviventesdapsiquiatria.

REFERÊNCIAS:

BREGGIN, Peter. Psychiatric Drug Withdrawal: A Guide for Prescribers, Therapists, Patients and Their Families. Springer Publishing Company, 2012.

***

Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens foram elaboradas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são dos próprios escritores.

***

Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

Para Evoluir, a Psiquiatria Precisa Aprender a Desmedicar.

0
Schizophrenia psychiatric disease and mental disorder as a psychiatry and psychology concept for human abnormal personality behavior and mood illness in a 3D illustration style.

Escute o paciente, ele lhe dirá o diagnóstico.A vontade de tomar remédios é, talvez, a maior característica a distinguir o homem dos outros animais.

William Osler ( 1849-1919 ), eminente médico canadense.

 

Após mais de trinta anos em pesquisas sem alcançar resultados satisfatórios sobre a etiologia cerebral do sofrimento psicológico, assistimos espantados à falta de esclarecimentos à população sobre esta situação. Uma das repercussões ainda presente é o engano instalado de que as medicações “corrigem” problemas cerebrais.1 E na esteira deste entendimento veio uma avalanche de consumo medicamentoso. O que foi prometido pelas Neurociências não foi entregue e pior, grande prejuízo foi introduzido através de crenças de difícil desconstrução.

As Neurociências anunciaram que o sofrimento humano iria ceder frente aos avanços da racionalidade e da ciência. Receberam tanto incentivo que a década ficou caracterizada como a Década do Cérebro.2 Uma parte significativa da Psiquiatria tentou colocar de lado suas compreensões morais, políticas, filosóficas, espirituais e do senso comum sobre os sofrimentos psicológicos, adotando o enquadramento tecnológico das Neurociências. Havia a ilusão de se explicar a mente através do cérebro.

Infelizmente no Brasil as discussões em torno do uso inadequado de medicações ainda é incipiente. Muitas pessoas recebem as medicações para sintomas que se relacionam a problemas emocionais e cronificam os mesmos por não terem assistência para resolver as questões de relevância em suas vidas. Por isso, motivei-me em contribuir com uma perspectiva de quem está trabalhando para clarear algumas confusões e tentar instruir na redução das medicações, dada a quantidade de pessoas tomando excesso de medicações, com claros sinais de danos e dependência das mesmas. Tenho esperança que este relato seja útil àqueles que estão experimentando semelhantes questionamentos e ainda não encontram pares para discutir o tema no país. Além disso, que saibam que existem profissionais já trabalhando com a mentalidade atualizada.

Esquizofrenia, transtorno mental como conceito de psiquiatria e psicologia em um estilo de ilustração 3D.

Por característica pessoal, desde que iniciei a carreira em Psiquiatria clínica de adultos, sempre questionei essa prática de “tranquilização” das pessoas via química. Adentrei sozinho na prática crítica do uso das medicações psiquiátricas, mas não sem dificuldades, pois recebi treinamento para aplicar a CID (Classificação Internacional das Doenças) cuja décima edição havia acabado de ser oficializada durante a residência e aprendemos que os remédios tinham indicações conforme a caracterização do quadro clínico descrito. No entanto, por perceber que todas as alterações mentais ocorrem em um contexto, dentro de relações humanas, e por constatar que os resultados são muitas vezes insatisfatórios com os remédios, alojou-se em minha mente uma desconfiança sobre a real utilidade das medicações para o tratamento de problemas mentais.

A observação mostrava que alguns casos pareciam se beneficiar no curto prazo, um tanto menor no médio prazo e poucos no longo. Havia algo de errado em manter medicações por longos períodos.3 Com tanta ênfase em “novas” drogas durante a Década do Cérebro, minhas desconfianças cederam parcialmente. Assim, prescrevi as medicações, mas com um fundo conflituoso, dividido entre as demandas para consumo das “novidades”, as indicações e a inespecificidade das medicações e seus fracos resultados, além das queixas dos efeitos adversos. Acreditei que estava conduzindo tratamentos corretamente conforme as “evidências” que os pesquisadores nos ofereciam, tendo em mente que nós, enquanto clínicos, prestamos reverência àqueles que verdadeiramente labutam para extrair através de árduas pesquisas algum conhecimento válido.

Devo admitir que meus conflitos só foram aumentando ao longo do tempo, muito em função das observações clínicas em contraste com as divulgações científicas que estavam disponíveis na época. Estas provaram-se bastante problemáticas diante de leituras mais rigorosas.4 Descobri, a duras penas, que as medicações não se aplicavam de acordo com o discurso prevalente de que são tratamento específico de distúrbios mentais. No máximo, podíamos pensar em termos de aproveitar um efeito da droga para ajudar no alívio e controle momentâneos. Durante um bom tempo, tudo se passou como se eu estivesse sem chão, sentindo-me perdido e confuso com as novas percepções. Precisei vivenciar vários erros e questionamentos para que eu pudesse direcionar-me para um caminho de mais clareza e ressignificar meu trabalho finalmente.

Por força de concisão, darei um salto para o presente. Gostaria de expor algumas considerações sobre a experiência clínica da redução de medicações e ao final deixar algumas questões para nossa reflexão. Hoje não há dúvidas sobre a necessidade de se rever profundamente o uso de medicações na Psiquiatria. Busco contribuir com a melhora da especialidade. Só vejo possível a reversão da prescrição indiscriminada de medicações a partir de nós de dentro da área, remodelando os paradigmas do cuidado.5 A literatura, para quem quiser, é vasta e parcialmente acessível e uma dose de coragem é preciso para iniciar o caminho.

Estratégias clínicas para a “desprescrição”
I – O encontro inicial

O processo clínico de retirada de medicações é complexo. No nosso meio envolve considerar que boa parte da população tem dificuldades para executar um pensamento abstrato e culturalmente expressamos muito as emoções através do corpo. Estes fatos relacionam-se com uma conexão forte com meios concretos de alívio. O vínculo a remédios é estabelecido na perspectiva do corpo que expressa sintomas. Temos sempre que ver caso a caso, mas de modo geral há enormes dificuldades de expressão emocional e reconhecimento de vulnerabilidades. Somados a isto, temos diversos problemas sociais, que corroboram para formação de inúmeros traumas e memórias indizíveis.

Assim, o primeiro encontro médico-paciente é muito carregado. Aquele que chega para uma consulta traz expectativas. Muitas vezes, condutas prévias levaram a entender que as medicações são necessárias. As crenças em torno de remédios são fortes e há que se ter calma para avaliá-las, pois um elemento fundamental que não se pode perder é a esperança. A esperança frustrada pelos remédios precisa ser construída sobre outra fundação.

Além disso, existe uma grande assimetria neste encontro. O médico vem de uma formação e “conhece” mais que o paciente sobre seu problema. Muitos pacientes sentem um grande alívio por ter alguém que “sabe” o que é seu problema. Ele(a) ignora que ninguém sabe mais sobre seus problemas do que ele(a) próprio(a). Se por um lado é mais confortável alguém que orienta tudo, por outro, perder o poder pessoal é um dano ao psiquismo e uma barreira para tomar decisões. Essa discrepância leva a um desequilíbrio no poder de escolhas e de expressão Há que se considerar que a recuperação passa por construir a autonomia e assumir estar no mundo com todas as dores e sabores, livre para escolher e colher o que a vida oferece, seja o que for. Nossa medicina é carregada pelo paternalismo nada bem vindo nessas horas. Neste momento, precisamos evitar atos que possam ter um teor coercitivo. Quantas vezes não ouvimos: você tem que tomar seus remédios direitinho! O contrário também não devemos fazer.

II – A apresentação de uma proposta

Passada a primeira fase de conhecimento da pessoa e suas crenças, podemos chegar juntos à conclusão que a redução/retirada das medicações é o projeto escolhido. Deixar claro porque fazer isto é fundamental. Dada a falta de estímulos e materiais encorajadores, cabe ao profissional uma atitude educacional e pacienciosa a respeito do processo de redução de remédios. Com o passar do tempo, creio que mais pessoas chegarão ao consultório já buscando ajuda para a retirada, mas por ora é algo que é apresentado como novidade aos pacientes. O informar vai construir uma base de confiança para se começar tal empreitada. É incrível constatar a facilidade com a qual as medicações entram na vida das pessoas, mas para sair há que se ter uma estratégia muito elaborada e demorada.

E em antecipação àqueles que perguntam “o que vai ser colocado no lugar das medicações? ”, destaco algumas possibilidades que podem religar o indivíduo consigo mesmo, promovendo uma maior conscientização e consequente apropriação de seus recursos próprios. A prática de atividades artísticas, como a dança, por exemplo, trazem

benefícios comprovados ao psiquismo.6 Seguindo esta linha do autoconhecimento, há muitas outras ferramentas a serem melhor estudadas e praticadas no campo da saúde mental.

Existem muitos aspectos a se considerar dentro dessa nova prática, impossíveis para se encampar neste texto. Os primeiros manuais para a chamada “desprescrição” já estão sendo publicados e neles há muitos detalhes do processo.7

III   –  A polifarmácia

 O mais frequente na clínica é encontrar pessoas tomando mais de um psicotrópico. As associações de medicações são utilizadas na medicina em geral de forma estratégica. No entanto, na Psiquiatria prevalece uma irracionalidade no uso de múltiplas drogas concomitantemente, sem uma base farmacológica clara que sustente as condutas. Quando tais drogas são colocadas para interagir entre si, a previsibilidade do que vai acontecer é de difícil elaboração. Os bancos de dados que temos disponíveis para consultar a respeito de interações farmacológicas são insuficientes para esclarecer sobre as consequências de várias drogas nas diversas combinações possíveis. E tem sido mais fácil para a maioria dos profissionais simplesmente ignorar este assunto devido às dificuldades de observação e caracterização das interações farmacológicas.

Uma das questões que aparece quando vamos planejar a redução ou retirada dessas medicações é com qual sequência de retirada devemos trabalhar. A experiência clínica mostra que não há uma regra fixa para essa sequência. No entanto, existem alguns pontos norteadores. Pode-se pensar a princípio sobre a segurança ou insegurança do paciente em relação às medicações e seguir conforme a confiança do paciente permite.

De modo geral, o plano precisa ser flexível. Isto quer dizer que se a primeira escolha, pensada como mais fácil, tornou-se difícil, é possível voltar atrás e iniciar outra. Importante é perceber o relacionamento do paciente com cada substância e no que ele imagina que ela está ajudando ou causando mal. Às vezes escolhemos aquela que seria menos útil, mas é aquela que o paciente está mais apegado e terá mais dificuldade para diminuir. Os caminhos podem ser retraçados tranquilamente, desde que já no início sejam anunciadas estas condições.

Todas as condutas nestas novas abordagens ainda estão sendo construídas e muito bom senso pode ser aplicado. Uma regra que tenho utilizado é não desistir facilmente. Parto da ideia que não é fácil reduzir medicações. Mapear a situação com calma é o que permitirá evitar mal estar e mal entendidos na trajetória. Outra regra em mente: sempre uma droga de cada vez. Isto permite foco e melhor observação de um fenômeno que tem aterrorizado muitas pessoas, qual seja, a síndrome de abstinência que comentaremos a seguir.

IV  – A síndrome da abstinência

Muitos pacientes já experimentaram sintomas de abstinência de psicotrópicos, mas não sabiam que era isto. Resolvem diminuir drasticamente ou parar as medicações por conta própria, seja porque estavam cansados de tomá-las ou porque sentiam efeitos adversos. O mal estar que elas sentem em seguida é na maioria das vezes interpretado como recaída e muitas pessoas, inclusive médicos dizem: “ Tá vendo, você não pode parar os remédios!”

Esta situação é responsável por induzir uma crença altamente danosa que associa a tomada das medicações para vida toda. Um equívoco que vem sendo alertado em diversos fóruns da saúde mental.8 Muito embora a distinção entre abstinência e recaída seja por vezes confusa, é fundamental para o bom andamento do trabalho que ela seja feita.

Sintomas de abstinência são frequentes e tendem a ser tanto mais intensos quanto maiores as doses e maior o tempo de uso. No entanto, as dificuldades podem incluir outras variáveis, inclusive é difícil afirmar sobre quais remédios são mais difíceis de abordar. Mas os benzodiazepínicos estão sempre entre os maiores desafios. Muitas vezes conseguimos evitar manifestações de abstinência se pudermos fracionar adequadamente as reduções. Quando há a forma líquida, trabalhar uma gota de cada vez é uma excelente opção.

Costuma dar certo. Infelizmente são poucas as medicações que possuem esta apresentação. O fracionamento de comprimidos, drágeas e cápsulas é um grande desafio na clínica das reduções de medicações. Há saídas para esta encruzilhada, mas a lógica destas reduções requer um espaço próprio e não fará parte deste texto.9

A abstinência pode ser uma barreira às progressões das reduções. Dependendo da intensidade, pode levar o paciente a desistir. Portanto, caso ela ocorra, um acompanhamento mais próximo permite observar melhor e colocar alternativas para alívio e, ao mesmo tempo, não perder os objetivos de vista. Nestas horas, o tempo é o tempo do paciente. Não há que se ter pressa. Um ponto crítico da redução pode levar meses para ser superado. No meio tempo, vai se estruturando confiança e esperança.

V – A política de redução de danos

Diante dos casos mais graves e crônicos, a estratégia das reduções recebe questionamentos no que se refere a seus limites. Sem dúvida, haverá casos, felizmente a minoria, que não poderão chegar a um ponto considerado ótimo. Por diversas razões, como por exemplo quadros delirantes intensos, com alto nível de agressividade, pessoas muito idosas que tomaram remédios por longos anos e possuem poucos recursos emocionais, dificilmente poderão deixar o auxílio calmante das medicações. Mesmo síndromes ansiosas crônicas, muito arraigadas no funcionamento psicológico, com fortes sintomas físicos, precisarão de um efeito químico para equilibrar a vida. Em todos esses casos, dentre outros, cabe a política de redução de danos.

Assim, pode-se usar de preferência uma única droga em que haja alívio e adaptação na menor dose possível. Muitas vezes um ajuste de dose pode representar uma grande ajuda na prevenção/redução de alguns danos. Nesses casos, o esclarecimento, o apoio e a negociação para um plano terapêutico é o caminho para evitar mudanças de conduta quando houver flutuações de sintomas inerentes às pessoas e ao frequente processo de tolerância às drogas com o uso prolongado. Na prática, saber reduzir danos pode ser uma conduta valiosa.

VI – Conclusão

Certamente o universo de coisas a considerar é vasto e este texto nada mais pretende do que chamar a atenção para alguns pontos e estimular as discussões. Tenho convicção que no futuro os remédios serão melhor utilizados nas situações que forem necessários. Por ora, a balança está muito desequilibrada para o lado do uso irracional e abusivo, influenciada pela falta de esclarecimentos em vários níveis. A grande maioria das pessoas que toma medicações psicotrópicas não deveria estar consumindo essas drogas, principalmente as crianças e os adolescentes. Há uma responsabilidade enorme em proteger as pessoas nessa faixa etária. Um tanto de gente sempre precisará de tranquilizantes. Por outro lado, sabendo distinguir as situações, teremos mais chances de alcançar propostas mais saudáveis para se trabalhar na área de Saúde Mental.

Mas como fazer isso? Como desfazer a confusão que se instalou na área de tratamentos medicamentosos? Como explicar à população as omissões e distorções das pesquisas em farmacologia clínica? Como formar melhor os novos profissionais? Como rever o modelo médico prevalente no momento de modo que ocorra uma real melhora da assistência? Como negociar todas as diferenças existentes na área de Saúde Mental?

Como estimular a participação da sociedade como um todo nos caminhos que devemos adotar?

Haveriam muitas outras perguntas e elas todas não são para nos desanimar. Elas existem para instigar a curiosidade e trazer à tona a vida. Tendo a vida ativa dentro de nós, sabemos que só podemos fazer um tanto de cada vez e isto talvez seja tudo e o melhor que possamos fazer. Assim, a esperança continua…

 

 


1 Uma recente revisão sistemática feita por Joanna Moncrieff et al mostrou várias inconsistências nas teorias serotoninérgicas sobre a depressão. The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence, Molecular Psychiatry, July 2022.

2 Designação feita pelo ex-presidente norte-americano George H. W. Bush para expandir a consciência pública dos “benefícios” advindos das pesquisas sobre o cérebro (aspas do autor). Fonte: Wikipedia.

 3 Os trabalhos de Thomas J Raedler apresentam vários desses problemas. Ver, por exemplo,

Cardiovascular aspects of antipsychotics, Curr Opin Psychiatry, Nov; 23(6):574-81, 2010.

4 No site de Peter C. Gøtzsche Institute for Scientific Freedom encontramos análises detalhadas sobre os problemas das pesquisas.

5 Uma reflexão interessante está no artigo de Patrick Bracken e Philip Thomas, Postpsychiatry: a new direction for mental health, BMJ Vol 322 , 24 March 2001.

6 Ver as propostas de France Schott-Billmann em Quand la danse guérit, Le courrier du livre, 326 págs. 2012. Não podemos nos esquecer da pioneira Nise da Silveira (ver Imagens do Inconsciente, Editora Vozes, 280 págs 2015 e o significativo trabalho de Vitor Pordeus no Rio de Janeiro (ver Restaurando a Arte de Curar, Edições Nosso Conhecimento, 148 págs. 2023) entre tantos outros que trabalham com arteterapia.

7 Consultar M.Horowitz e D.M. Taylor The Maudsley Deprescribing Guidelines, 580 págs., Wiley-Blackwell, 1ª edição, 4 janeiro 2024.

8 Ver Thomas M. Laursen et al Excess Early Mortality in Schizophrenia Annual Review of Clinical Psychology, Vol. 10:425-448, 2014.

9 Ver os trabalhos do professor Peter C. Groot e Jim van Os na Holanda com os “tapering strips”.

***

Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens foram elaboradas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são dos próprios escritores.

***

Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

Painel de discussão: Apoio a estados extremos, psicose e dissociação

0

Um painel de discussão especial sobre a compreensão e o apoio às pessoas que estão passando por estados extremos, psicose e dissociação.

 

 

 

 

Data e horário:
Sábado, 9 de março – 4 – 5:30pm GMT-3 (13h-14h30, no horário de Brasília)

Localização:
Online

Política de reembolso:
Reembolsos até 1 dia antes do evento
A taxa da Eventbrite não é reembolsável.
Sobre este evento
1 hora e 30 minutos
Bilhete eletrônico móvel

Mad in America apresenta um painel de discussão especial:

Apoio a estados extremos, psicose & dissociação

Junte-se a nós no sábado, 9 de março de 2024

O Mad in America apresenta um painel de discussão especial sobre a compreensão e o apoio às pessoas que estão passando por estados extremos, psicose e dissociação. Ao contrário da crença popular, nosso foco principal será como o envolvimento e a validação desses estados podem servir como uma ferramenta de apoio para a cura. Teremos a oportunidade única de explorar o tópico por meio das perspectivas de sobreviventes, familiares e terapeutas. Muitos recursos serão compartilhados e o painel será concluído com uma sessão de perguntas e respostas aberta ao público.

Ingresso único: US$ 10. Os fundos serão destinados a apoiar o trabalho da Mad in America como uma organização sem fins lucrativos. Entendemos que nem todos podem arcar com essa despesa no momento. Digite o código extremestates para obter um ingresso gratuito, se necessário.

OBTENHA ACESSO GRATUITO AOS EVENTOS! Como alternativa à compra de um único ingresso, você pode optar por se tornar um doador da MIA por US$ 5 por mês ou US$ 20 por ano. Todos os doadores ativos da MIA recebem acesso gratuito aos nossos eventos e acesso irrestrito ao nosso conteúdo. Consulte nossa página de doações para se inscrever. Depois de se inscrever como doador, você receberá um e-mail automático com seu código de acesso gratuito ao evento. Você digitará esse código no checkout da Eventbrite em vez de usar um cartão de crédito.

 

Sobre os palestrantes convidados:

Cindy Marty Hadge é uma pessoa que sofreu traumas físicos, emocionais, sexuais e médicos quando criança. Ela também teve vozes, visões e pensamentos de acabar com sua vida enquanto crescia. Quando jovem adulta, ela recorreu ao álcool e às drogas ilícitas em um esforço para tornar a vida mais fácil. Com o passar do tempo, ela entrou no sistema de saúde mental, onde as drogas ilícitas foram substituídas por medicamentos prescritos, e o resultado era frequentemente o mesmo – caminhar ou tropeçar pela vida em um estado de entorpecimento mental, enquanto continuava a ter vozes, visões e pensamentos de acabar com sua vida.

Sabendo que o apoio de colegas na forma de programas de 12 etapas havia sido útil enquanto lutava contra o uso de substâncias, ela procurou apoio de colegas para sua angústia emocional e experiência de estados extremos. Cindy descobriu que morava a uma curta distância de um dos espaços da Wildflower Alliance, onde era realizado um dos poucos grupos da Hearing Voices Network nos EUA. Nessa comunidade, ela encontrou cura e esperança. Ao participar dos grupos da HVN, ela descobriu que havia coisas que poderia fazer além de tomar medicamentos para lidar com sua experiência.

Cindy encontrou o significado, o propósito e a conexão que tanto desejava e encontrou uma maneira de dar sentido ao sem sentido. Ela está transformando suas tragédias em tesouros, sendo curada ao criar espaço para que outros se curem. Cindy foi reconhecida pela Inter-Voice, a organização internacional da HVN, por seu trabalho como educadora. Cindy não tem conformidade de gênero e já se apresentou tanto como Cindy quanto como Marty. Cindy é uma palestrante principal e treinadora nacional.

 

Olga Runciman é a única psicóloga em consultório particular na Dinamarca especializada em estados extremos (psicose). Ela é instrutora e palestrante internacional, escritora, ativista e artista. É cofundadora da Danish Hearing Voices Network (Rede Dinamarquesa de Vozes Auditivas) e do International Institute for Psychiatric Drug Withdrawal (Instituto Internacional para Retirada de Drogas Psiquiátricas). É membro da diretoria de várias organizações, incluindo Intervoice, Mad in America, The Danish Psychosocial Rehabilitation organization e outras. Ela fez o curso de três anos do Finnish Open Dialogue em Londres e hoje trabalha como terapeuta familiar dialógica e treinadora.

Por muitos anos antes de sua carreira atual, Olga trabalhou como enfermeira em neurologia e psiquiatria. Ela também conhece a psiquiatria por dentro, pois já foi paciente. Disseram-lhe que ela era um caso incurável. Hoje, ela está na posição única de criar uma ponte entre o paciente e o profissional.

 

Sam Ruck se formou em uma área relacionada ao ministério cristão, mas deixou esse sonho de lado quando sua esposa começou a apresentar sintomas relacionados a traumas de infância no início do casamento de 35 anos. Juntos, nos últimos 16 anos, eles aprenderam a lidar com estados e problemas dissociativos extremos, ao mesmo tempo em que abraçaram as sete identidades “alternativas” dela em seu relacionamento e em sua família. Sam aprendeu a se tornar o companheiro de que sua esposa precisava em sua jornada de cura mútua, usando estratégias extraídas de teorias de apego e outras abordagens pragmáticas.

Hoje, Sam e sua esposa lutam juntos, como muitos outros, em meio à agitação das guerras culturais e após seu diagnóstico de câncer em 2023. Eles ainda estão lidando com os resquícios do trauma e da dissociação dela. Embora sua esposa opte por permanecer anônima, ela apoia que Sam compartilhe seus aprendizados com outras pessoas importantes, familiares e qualquer pessoa interessada em uma maneira melhor de envolver alguém que esteja passando por problemas mentais. Observe que, para fins de privacidade, Sam Ruck está usando um pseudônimo.

Sam escreveu no blog sobre sua jornada por vários anos, resumindo a experiência em um pequeno livro oferecido gratuitamente aqui. Trechos foram publicados no MIA.

 

Sobre os apresentadores:

Kermit Cole é um terapeuta de casal e família licenciado, treinado em terapias dialógicas e tem ampla experiência em trabalhar com pessoas em estados psicóticos. Ele é membro da diretoria da Mad in America e atuou como editor (2012 – 2014). Ele também é facilitador do Grupo de Apoio aos Pais da MIA EUA/Canadá.

Ex-cineasta, ele tem graduação e mestrado em psicologia por Harvard. Fundou o projeto de filmes Open Paradigm para produzir vídeos de alta qualidade sobre pessoas e projetos que questionam o valor e a validade do DSM e seu sistema biomédico de diagnóstico. Atualmente, ele cuida de uma pequena fazenda urbana com sua parceira, Louisa Putnam, no Novo México.

 

Louisa Putnam é uma terapeuta familiar licenciada, meditadora de longa data e ativista da justiça social. Tendo vivido a experiência de ter um familiar amado, ela se tornou membro da diretoria da Mad in America e facilita o Grupo de Apoio aos Pais nos EUA/Canadá. Ela e Kermit Cole cuidam e compartilham com a comunidade uma pequena fazenda urbana no norte do Novo México, cultivando o solo, a consciência, os relacionamentos e a paz.

Inscrições pelo Link: https://www.eventbrite.com/e/panel-discussion-supporting-extreme-states-psychosis-dissociation-tickets-828970512117?aff=MIAwebsite

 

 

Medicalização do sofrimento psíquico na Atenção Primária à Saúde em um município do interior do Ceará

0

Com o objetivo de discutir como o fenômeno da medicalização do sofrimento psíquico se apresenta no discurso e na prática dos profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS), o artigo Medicalização do sofrimento psíquico na Atenção Primária à Saúde em um município do interior do Ceará, realizou observações sistemáticas e entrevistas semidiretivas com sete trabalhadores do município de Iguatu- CE. A partir da pesquisa realizada, suscitaram-se interrogações acerca do acolhimento aos pacientes com demandas de saúde mental pelos profissionais da APS, o cotidiano do serviço e do diálogo com os trabalhadores e usuários, questões relativas às dificuldades no contato com pacientes em sofrimento psíquico, e do uso de tecnologias leves no acolhimento, produziam condutas centradas a medicação, e partindo dessas experiências, este artigo se propôs a discutir sobre como a medicalização do sofrimento psíquico aparece nos discursos e/ ou práticas de saúde mental dos profissionais.

A psiquiatria moderna passou a classificar sintomas e comportamentos enquanto transtornos mentais, os quais seriam desequilíbrios químicos no cérebro. Contudo, como apontam Freitas e Amarante (2015), no processo de construir categorias diagnósticas para classificar comportamentos sociais, pôde-se perceber que os critérios de classificação mudavam historicamente, de acordo com condições morais, políticas e institucionais, por isso diversas edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) foram criadas em pouco tempo. Logo, esse modelo de tratamento passou a ser questionado por alguns movimentos sociais.

O discurso biomédico ocupa papel hegemônico no imaginário social. A medicina e suas narrativas em torno dos tratamentos dos agravos em saúde possuem centralidade nos modos de organização da vida dos sujeitos, e nas expectativas para se alcançar a cura, que geralmente é entendida como a supressão do sintoma que causa mal-estar (FREITAS; AMARANTE, 2015).

Os profissionais das equipes eram responsáveis por realizar atividades coletivas e individuais de promoção e prevenção a saúde da população, dentre os serviços ofertados estavam: consultas médicas, de enfermagem e odontológicas; atividades de educação em saúde realizadas dentro da unidade e na comunidade; realização de visitas domiciliares para acompanhamento das famílias; e ainda ações das categorias profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF): psicologia, fisioterapia, serviço social e nutrição.

Para o NASF, as demandas de agendamentos chegavam através de encaminhamentos dos enfermeiros e médicos, e também a partir dos agentes comunitários de saúde.

Ao longo da pesquisa não havia um questionamento específico sobre a medicalização, contudo o fenômeno surgiu na fala dos entrevistados, principalmente no segundo bloco de perguntas, quando indagados:

“Como se dá o acompanhamento desse usuário pela Estratégia Saúde da Família? Quais são os encaminhamentos realizados e/ou ofertados para esses pacientes durante o acompanhamento? ”

Demonstrando como o processo de medicalização do sofrimento psíquico se faz presente nos cuidados ofertados aos usuários com necessidades de saúde mental acompanhados pelos profissionais entrevistados.

A pesquisa aponta que durante as demandas de saúde mental que chegavam as unidades de saúde, se faziam presentes os considerados “transtornos mais leves e moderados”, a saber, sintomas ansiosos e depressivos. Havia ainda os usuários que eram acompanhados pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e procuravam a APS para renovação de suas receitas e/ou agendamento de consultas. Sendo possível perceber que enquanto o profissional estava diariamente inserido na realidade do serviço das unidades, a prática tecnoassistencial prevalecia em boa parte dos atendimentos, bem como o modelo biomédico da psiquiatria. Devido a impossibilidade de se trabalhar a escuta dos sujeitos, por conta de dias específicos de consultas médicas de saúde mental, na prática o que ocorria nada mais era do que uma renovação das receitas dos pacientes, se tornando uma onda de “renovação de receitas”.

Graças à imposição das gestões (não só em nível municipal, mas também federal) de cumprir metas, e atender uma maior quantidade de pacientes, notou-se que práticas como: dedicar um tempo a escutar o que o usuário tinha a dizer sobre seu agravo de saúde, entender a história da doença e as práticas de saúde dos usuários, bem como fornecer orientações gerais para autocuidado, eram cada vez mais escassas no fluxo de trabalho, confirmando assim que a “renovação de receitas” havia se propagado nas unidades de saúde. A Unidade Básica de Saúde (UBS) tinha profissionais residentes que faziam parte da equipe do NASF, o profissional acabava sendo referência para encaminhamentos de usuários pelos demais, o que causou uma enorme demanda de atendimentos individuais. Quando havia necessidade de rever a medicação indicada, o usuário era encaminhado para o CAPS. Em alguns breves momentos de diálogo com os médicos de família, eles relatavam não se sentirem confortáveis quanto a realizar alterações nas doses e tipos de medicação.

Através dos membros da equipe foram verbalizadas dificuldades que os profissionais encontravam em manejar o atendimento a pacientes que traziam em suas falas algum tipo de sofrimento psicológico e demonstravam por exemplo, receio em lidar com choro dos participantes ou com relação ao que falar e ao que fazer, e apontavam que durante a formação acadêmica, apesar de ser bastante discutida a atuação na atenção primária, a temática de saúde mental não era aprofundada, os próprios profissionais se queixaram que as suas formações não os capacitaram para acompanhar usuários com demandas de saúde mental. O matriciamento, momento em que os profissionais do CAPS e da APS se reuniriam para discutir casos e/ou trabalhar temáticas relativas as demandas dos usuários no território, seria uma possibilidade de capacitar os profissionais, contudo, este quase não ocorria nas unidades de saúde, sendo desmarcado em algumas situações devido as agendas dos serviços, falta de carro, ou não comparecimento dos profissionais da APS ao momento.

Os profissionais-residentes que compunham o NASF realizavam alguns encontros formativos com os profissionais. Destacando que os profissionais-residentes eram estimulados, devido ao próprio processo formativo da residência, acerca da importância da realização dessas ações. Logo, a inserção dos residentes nos serviços de saúde era potencializadora de práticas de cuidado antimanicomiais e não biomédicas.

Na atenção primária, o discurso de que a medicação é uma estratégia de tratamento rápida e eficiente, que resulta na melhora do agravo dos usuários, se fazia presente no cotidiano do serviço. Muitos frequentavam a unidade apenas esse dia do mês, conhecido na agenda do médico como o “dia da saúde mental”. No trecho a seguir, os entrevistados discursaram sobre o medicamento enquanto oferta na assistência:

É só consulta médica e pronto […] Pra mim resume-se aquele atendimento voltado, aquela atenção voltada pro medicamento, curativa. (E. 3 – Enfermeira).

Eu vejo que aqui no PSF é só mais receita. Minha receita, minha consulta, minha receita, minha consulta. (E. 4 – ACS).

Apontando assim uma centralidade no uso de medicação para atender o sofrimento psíquico que chega à UBS, onde o médico acaba ganhando papel centralizador das ações, e os demais profissionais são coadjuvantes na produção de suas práticas, no entanto, os mesmos coadjuvantes parecem se organizar para atender as pessoas com queixas de sofrimento psíquico de modo a garantir a dispensação de medicamentos como única terapêutica ofertada a estas pessoas.

Os pesquisadores pontuam que o atendimento na UBS, quando se restringe à conduta médica e à prescrição de medicamentos, promove à manutenção de práticas hegemônicas que não possibilitam a elaboração do sofrimento psíquico a partir da experiência dos sujeitos. Como ilustrado no trecho abaixo:

[…] muitas vezes o médico renova a receita, não olha pro paciente, às vezes a ACS pega a receita e renova com a médica (E. 1 – Assistente Social).

A “renovação de receitas” é resultado do processo de medicalização, o qual está relacionado com a prática de assistência biomédica e do modelo curativo que a reforma psiquiátrica vem tentando modificar (BEZERRA et al., 2014). Frisando também que dentro das unidades básicas de saúde, esse saber voltado para o médico é muito presente e esses profissionais nunca estão disponíveis, devido a uma superlotação de atendimentos, ou flexibilidade de horários, pois a categoria possui uma carga horária que eles podem adaptar do modo que acharem mais confortável.

Um dos pilares que sustentam a medicalização é a classificação do que hoje se chama de transtornos mentais. O crescente número de diagnósticos no decorrer das edições do DSM, bem como dos fármacos que chegam ao mercado com o objetivo de “curar” rápida e eficazmente os sintomas, reafirmam o lugar do medicamento como solução (FREITAS; AMARANTE, 2015).

Diversas vezes no cotidiano dos serviços de saúde se escuta frases, tanto de usuários, quanto de profissionais, que reafirmam esses estereótipos, quando, por exemplo, o paciente chega relatando que não havia procurado o serviço antes, com receio de ser visto enquanto “louco”, ou quando uma ACS entra na sala e diz “hoje é dia de saúde mental, só tem gente perturbada lá fora (sic)”. O artigo aborda a narrativa de controle e exclusão da loucura, colocando o medicamento enquanto um dispositivo para atingir esse fim, como expressado nos trechos a seguir:

Muitas vezes o médico não colabora, vê que a pessoa tá surtando e “nam, hoje não é dia de receita controlada”, não dá, não dá, não dá e não dá. (E. 4 – ACS).

Mas sempre tem aqueles probleminhas daquelas pessoas que sabe que é saúde mental, sabe que não pode deixar de tomar o remédio, deixa, chega aqui surtando. (E. 7 – ACS).

Se anteriormente se trancava ou amarrava o sujeito louco para controlá-lo e lhes dispensar uma série de tratamentos morais, atualmente, observa-se, através das falas dos entrevistados, que se renovam receitas e psicotrópicos para que o paciente esteja nos espaços do território controlado, sem “surtos”.

Desinstitucionalizar significa cuidar do sujeito em sua existência e em relação com suas condições de vida, e não somente através da administração de fármacos ou psicoterapias (AMARANTE, 1995). O intuito é construir possibilidades junto aos usuários, promover que estes, ocupem uma posição de sujeito de seu sofrimento, já que percebeu-se também que as concepções de sofrimento e adoecimento mental dos trabalhadores é atravessada pelos potentes discursos da medicalização e patologização do sofrimento. Os profissionais da APS reproduzem essa narrativa tanto em suas falas, quanto em suas práticas. A própria organização dos processos de trabalho nas unidades não prioriza a lógica de cuidado ampliado, pois para atender uma maior quantidade de sujeitos e/ou atingir metas, acaba-se não realizando acolhimento, escuta e diálogo, ferramentas essenciais quando se trata de cuidado em saúde mental.

Além de cursos ou capacitações que proporcionem os profissionais se sentirem mais seguros no uso de tecnologias leves e da ampliação das ofertas terapêuticas nos serviços, é importante promover um debate político sobre as concepções da reforma sanitária e reforma psiquiátrica. Apresentando-os enquanto processos sociais complexos que não só objetivam a melhoria da assistência aos usuários, mas que fazem parte de um movimento que propõe que o paciente com necessidade de saúde mental seja visto enquanto sujeito de experiência, que possui saber sobre seu processo de adoecimento.

Por fim, essas experiências podem diminuir o estigma e preconceito com os pacientes em sofrimento psíquico, gerar tensões e produzir novas formas de gerir e cuidar, oferecendo aos usuários oportunidades de desmedicalizar ações e atitudes em relação a dor, envelhecimento, angústia ou sofrimentos que podem estar relacionados a aspectos próprios da vida.

***

Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

***

Santos, J. C. G. dos ., Cavalcante, D. S., Vieira, C. A. L., & Quinderé, P. H. D.. (2023). Medicalização do sofrimento psíquico na Atenção Primária à Saúde em um município do interior do Ceará. Physis: Revista De Saúde Coletiva, 33, e33010. https://doi.org/10.1590/S0103-7331202333010 (Link)

As vozes são muito mais que um sintoma: um artigo sobre os Ouvidores de Vozes

0

Apresentando a compreensão de como pessoas que participaram do grupo de ouvidores de vozes no SUS lidam com suas experiências, além de explorar estratégias de enfrentamento individuais, desenvolvidas pelas vivencias de cada um com as suas próprias vozes, o artigo As vozes são muito mais que um sintoma, fala sobre o Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes, que atua como um instrumento de socialização, por meio da normalização da experiência, da maior autoaceitação e da redução do estigma.

Ouvir vozes tem sido constantemente associado aos diagnósticos de transtornos mentais, na contracorrente desse paradigma, o Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes ganhou força e autonomia com o passar dos anos, dando respeito e qualidade de vida para pessoas que experienciam esse fenômeno, sendo um movimento que acredita, também, na necessidade de combater os preconceitos que envolvem a experiência de ouvir vozes e fomenta o apoio as pessoas que necessitam.

Uma das formas importantes na atuação do movimento é a criação do grupo de Ouvidores de Vozes. Nesses grupos, as pessoas que passam por tais situações podem se encontrar e partilhar experiências, validando os seus sentimentos e possibilitando a vivência de pertencimento dos indivíduos, sendo assim, atuando no enfrentamento do silenciamento e do isolamento do sujeito. O movimento pode ser visto, então, como uma estratégia de desinstitucionalização com um forte status de luta contra os estigmas e preconceitos.

O artigo aponta que no último guia da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre Saúde Mental, são indicadas e valorizadas ações que estimulem o recovery e a participação comunitária, bem como criações de estratégias centradas na pessoa e que respeitem os direitos humanos. Entre elas, os grupos de ouvidores são citados como modelos a serem seguidos. Portanto, é de interesse do campo da Saúde Coletiva e da Reforma Psiquiátrica Brasileira a criação de estratégias baseadas nesse paradigma, pois veem o indivíduo, a sua história e seus contextos em sua integralidade.

A pesquisa apresentada pelo artigo, foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) de Curitiba-PR, através de entrevistas em profundidade e elaboração de diário de campo via observação participante, levando em conta a singularidade de cada indivíduo e buscando conhecer as vivências e representações acerca da experiência vivida. As entrevistas foram feitas no período entre setembro e outubro de 2020, com os participantes do grupo. O recrutamento privilegiou participantes que frequentaram regularmente o referido grupo de Ouvidores de Vozes, por pelo menos um mês. Os dados foram coletados de cinco entrevistas.

Com as entrevistas, percebeu-se que as vozes exercem impacto na vida dos sujeitos e que eles precisaram estabelecer formas de lidar com elas para conseguir seguir com suas atividades cotidianas. As descrições de como lidam com essas situações, frequentes em seu dia a dia, foram variadas. As ações que essas pessoas utilizam para lidar com as situações, por meio de sua vivência e da experimentação, podem ser denominadas como mecanismos de enfrentamento. Uma pesquisa que realizou revisão sobre o estado de conhecimento de pesquisas, com foco no diagnóstico de esquizofrenia e sintomatologia alucinatória, identificou que os mecanismos de enfrentamento utilizados podem ser voltados para a diminuição das vozes, ou então, podem objetivar melhora dos sentimentos associados a elas.

Os entrevistados contaram que suas reações variavam de acordo com a vivência. Neste trecho por exemplo:

“Que é um constante aprendizado também, sim. Depende a pessoa que é e o que ela representa, o que aquela visão representa, você vai lidar diferente. É meu irmão, por exemplo, vou conversar sobre a minha mãe, entende?” (Frida)

É válido, ainda, compreender que as estratégias empregadas na prática, mediante a vivência pessoal da situação, têm grande relevância por colocarem os sujeitos em protagonismo, valorizando sua própria forma de construir recursos para amenizar o sofrimento. Nesta pesquisa, por exemplo, Virgínia contou que conseguia lidar com as vozes por meio da compreensão de que não precisava responder às demandas delas, entendendo que podia realizar julgamento e escolha. Segundo ela, as vozes mandavam fazer coisas ruins, as quais interpretava como demoníacas:

“Pensei: não vou fazer isso porque são as vozes que estão mandando. É coisa ruim, daí eu não fiz.” (Virgínia)

De modo parecido, outro participante do grupo relatou que, para sair do estado de persecutoriedade (perseguição), utilizava o raciocínio lógico. Conseguia pensar que se não fez nada para ser perseguido, então isso não devia estar realmente acontecendo e esses pensamentos permitiam que ele se tranquilizasse. Podemos afirmar que uma boa vinculação com os profissionais tende a predispor melhora com relação aos sentimentos e, por essa perspectiva, é importante que os profissionais valorizem a experiência dos viventes, realizem o cuidado centrado na pessoa e compartilhem a tomada de decisões.

Ao longo da pesquisa os entrevistados mencionaram atividades prazerosas e que exigiam concentração ou criatividade, como práticas manuais ou corporais. Demonstrando que a realização de atividades pode ajudar pelo fato da pessoa que está escutando vozes conseguir desviar o foco delas, podendo se sentir menos invadida.

“As coisas nós pintávamos, nós pintávamos pano de prato, nós fazíamos vaso tudo lá com terapeuta lá embaixo. Ajudava mais eu, eu não ficava escutando vozes, chegando em casa mais animada, né?” (Virgínia)

“Eu tenho que respirar, que eu aprendi que nem agora, respira inspira segura, conta até seis e vai soltando devagarinho. Esse eu aprendi e me ajudou muito.” (Frida)

O artigo expõe diversas estratégias para lidar com vozes, visões e sensações corporais consideradas estranhas ou bizarras. As pessoas que as vivenciam utilizam tais estratégias em seu dia a dia, inclusive modos complexos de interação que tendem a ser deixados de lado ou a ser pouco explorados nos atendimentos em saúde.

Essas formas de lidar com tais fenômenos vão muito além das abordagens clássicas de tratamento e, à medida que são conhecidas, poderão ser estimuladas, desenvolvidas ao longo do tempo e compartilhadas. São algumas delas: refletir e realizar escolha própria; usar a racionalidade; comunicar-se com alguém de confiança; contar com os as profissionais; realizar atividades que envolvam concentração e criatividade; interagir com vozes.

Ao mesmo tempo, a participação nos grupos de ouvidores de vozes garante interação social e reforça a percepção de não estar sozinho. O estímulo e o desenvolvimento de grupos de ouvidores de vozes podem permitir que as pessoas contem o que vivenciam de modo protegido, suspendendo, mesmo que temporariamente, o estigma social nesses espaços para funcionarem como local de aprendizado e troca de experiências, respeitando as singularidades de cada indivíduo, mas, ao mesmo tempo, auxiliando na manutenção da esperança, no protagonismo, no apoio mútuo e na construção coletiva.

Por fim, o artigo destaca que a diversidade de pessoas participantes, com suas variadas experiências, estratégias de enfrentamento, histórias de vida e ressignificações, pode garantir exemplos e trazer esperança de uma vida melhor para aquelas que estão se deparando com tais fenômenos. Tal enfoque amplia o próprio paradigma compreensivo clássico da Psiquiatria, que enxerga o fenômeno como apenas um sintoma a ser controlado. Pelo contrário, esse olhar, por meio da experiência, permite a estruturação de uma rede solidária, comunitária, que não depende de serviços de saúde para que aconteça.

***

Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 7: Psicose (Parte Cinco)

0

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute os estudos que compararam as diferentes drogas para psicose, bem como os danos de adicionar mais drogas para psicose ao regime terapêutico. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

As diferentes drogas para psicose

Um manual[17:656] observou que uma meta-análise de 2003 mostrou um efeito melhor das drogas de segunda geração do que das de primeira geração.[211] Isso é improvável e devemos lembrar que as comparações diretas são geralmente falhas. Elas são quase sempre conduzidas pelas empresas que vendem as drogas mais novas e o desenho muitas vezes é falho, por exemplo, drogas antigas como haloperidol foram administradas em doses muito altas.[6] Fraude também é um problema. Por exemplo, a AstraZeneca apresentou uma meta-análise de quatro estudos mostrando que a quetiapina era mais eficaz do que o haloperidol, mas documentos internos divulgados por meio de litígios mostraram que a quetiapina era menos eficaz do que o haloperidol.[196]

É muito raro que o título de um artigo lhe dê todas as informações de que você precisa, mas aqui está um exemplo:

“Por que a olanzapina supera a risperidona, a risperidona supera a quetiapina e a quetiapina supera a olanzapina: uma análise exploratória de estudos de comparação direta de antipsicóticos de segunda geração.”[212] Em um sentido matemático, isso é impossível. Se A é maior que B e B é maior que C, então C não pode ser maior que A. Mas na psiquiatria, o impossível é possível.

Não vou entrar em detalhes sobre as vantagens das drogas individuais ou classes de drogas, pois a literatura de pesquisa é pouco confiável. Apenas mencionarei algumas questões.

A meta-análise de 2003 relatou que 4 de 10 drogas de segunda geração eram mais eficazes do que as drogas de primeira geração e que isso não ocorreu porque o haloperidol foi administrado incorretamente.[211] No entanto, os autores observaram que outra meta-análise, de 2000, havia concluído que “Não há evidências claras de que os antipsicóticos atípicos sejam mais eficazes ou melhor tolerados do que os antipsicóticos convencionais”,[213] e que outros pesquisadores e diretrizes compartilhavam dessa visão, por exemplo, as diretrizes de tratamento da Associação Psiquiátrica Americana, a Equipe de Pesquisa de Resultados do Paciente Esquizofrênico financiada pela Agência de Pesquisa e Qualidade em Saúde dos EUA e o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA.

Os autores não encontraram uma relação dose-resposta para as drogas antigas,[211] ao contrário da meta-análise de 2000 que descobriu que doses altas de haloperidol reduziram o efeito e que observou que quase todos os estudos haviam sido patrocinados pela indústria farmacêutica, o que poderia levar a viés.[213] Esses autores também mencionaram a não publicação de estudos negativos e a publicação apenas de resultados favoráveis, razão pela qual fizeram esforços consideráveis para obter dados completos, por exemplo, no site da FDA.

Os testes diretos entre drogas são um negócio arriscado para as empresas farmacêuticas, e geralmente não os realizam ou garantem que o resultado seja favorável a eles. Dado isso, geralmente é fútil tentar descobrir se algumas drogas são melhores do que outras. Portanto, geralmente devemos esquecer as meta-análises diretas, mas mencionarei uma delas.

É notável que tenha sido possível mostrar em uma meta-análise de ensaios publicados que novas drogas (“segunda geração”) não são melhores do que as antigas (“primeira geração”). Uma enorme meta-análise de 2009 de 150 ensaios com 21.533 pacientes mostrou exatamente isso. Isso significa que os psiquiatras foram enganados por décadas.[214,215]

Um manual observou que atípicos como risperidona, aripiprazol e olanzapina estavam sendo cada vez mais usados para mania e que eles tinham perfis de danos mais favoráveis do que as drogas antigas.[18:114] Minhas habilidades imaginativas podem ser limitadas, mas tenho dificuldade em aceitar que o perfil de danos da olanzapina possa ser melhor do que o de qualquer droga antipsicótica.

No manual sobre psiquiatria infantil e adolescente, os autores deram uma referência a uma meta-análise em rede por autores dinamarqueses[216] no capítulo sobre esquizofrenia.[19:240] Eu coescrevi as diretrizes para realizar tais análises às quais muitas revistas se referem em suas instruções para autores.[217] Para aumentar o poder, uma meta-análise em rede geralmente inclui tanto ensaios controlados por placebo quanto comparações diretas entre drogas. Se as drogas A e B foram comparadas apenas em dois ensaios, mas ambas foram comparadas com placebo ou droga C em três ensaios, haverá oito ensaios fornecendo dados para a comparação de A com B, em vez de apenas dois. Este método é muito atraente, mas também apresenta desafios. Como em outras meta-análises, deve-se ter muito cuidado para que ensaios com efeitos implausivelmente grandes ou com poucos danos não tornem os resultados não confiáveis e para garantir que os dados inseridos na meta-análise possam ser confiáveis.

A meta-análise em rede incluiu 12 ensaios comparando 8 pílulas antipsicóticas entre si ou com placebo em jovens com esquizofrenia e concluiu que 6 drogas eram eficazes conforme medido na PANSS e que 5 drogas eram eficazes para sintomas negativos.[216] Os autores não prestaram atenção se os pacientes já estavam em tratamento antes de serem randomizados, ou se o efeito medido na PANSS era clinicamente relevante (eles não foram relatados como pontuações, mas como tamanhos de efeito, sem desvios padrão). Não é possível concluir nada com base em sua análise, e é altamente suspeito que um efeito também tenha sido encontrado nos sintomas negativos porque as pílulas para psicose pioram os sintomas negativos.

Os autores escreveram que as drogas não têm os mesmos danos, por exemplo, “O ganho de peso foi principalmente associado à olanzapina.” Essa expressão minimiza o dano. O termo “associado a” pertence à pesquisa observacional porque não podemos ter certeza de que uma associação é causal, já que pode ser causada por confundimento. Fazemos ensaios randomizados para eliminar confundimento. Portanto, quando a olanzapina faz as pessoas ficarem obesas em ensaios controlados por placebo, o dano é real e é causado pela olanzapina.

Outro manual também mencionou uma meta-análise em rede de pílulas para psicose em pacientes com esquizofrenia.[16:569] Os autores compararam as drogas quanto ao seu efeito na cognição.[218] Eles incluíram apenas nove ensaios, mas encontraram vários resultados significativos, por exemplo, que quetiapina, olanzapina e risperidona eram melhores que amisulprida e haloperidol, e que quetiapina era melhor que outras drogas em tarefas de atenção e velocidade de processamento. Eles concluíram que quetiapina e olanzapina tiveram os efeitos mais positivos. Isso também é difícil de aceitar, já que essas drogas pioram a cognição. Além disso, muitos estudos mostraram que a olanzapina é uma das drogas mais sedativas, o que não melhora exatamente a atenção e a velocidade.

Já pensei na ideia de tomar uma pílula de olanzapina apenas para sentir como é, mas não o farei. Se eu fosse uma daquelas pessoas que têm um intervalo QT longo no ECG, a olanzapina poderia me matar, pois prolonga esse intervalo e pode causar arritmia ventricular fatal.[134]

A meta-análise da cognição foi particularmente não confiável.[218] Os autores não avaliaram criticamente os ensaios incluídos; três dos nove ensaios nem sequer foram cegos; e alguns foram de qualidade lamentavelmente baixa, pois entre 20% e 85% dos pacientes desistiram. Isso foi lixo entrando, lixo saindo. Os autores até admitiram que a superioridade observada dos atípicos poderia refletir um efeito deletério do haloperidol em alta dose. Por que publicar o lixo então?

Os autores do manual observaram que as diferenças de efeito relatadas nesta meta-análise não tinham relevância clínica, exceto a clozapina, que consideraram mais eficaz do que outras drogas.[16:569]

Outro manual didático ofereceu uma observação preocupante: os atípicos geralmente têm menos danos extrapiramidais,[16:561,20:416] mas a distinção não é totalmente lógica, já que esses danos também podem ocorrer com vários atípicos, especialmente em doses mais altas.[16:561]

O conto de fadas da clozapina

Os autores de um manual didático consideraram a clozapina a droga mais eficaz,[16:569,16:576,18:101,18:235,20:418] e alguns até afirmaram que reduz a mortalidade[17:656] e os suicídios.[16:576,17:656] Também nos dizem que, devido ao seu considerável efeito anticolinérgico, a clozapina não causa sintomas extrapiramidais.[16:576]

Nada disso está correto. No folheto informativo da clozapina, a FDA alerta que “Recém-nascidos expostos a drogas antipsicóticas durante o terceiro trimestre de gravidez estão em risco de sintomas extrapiramidais e/ou de abstinência após o parto”,[219] e em um estudo, 4 dos 104 pacientes tratados com clozapina desenvolveram discinesia tardia.[220]

Alegações de efeitos altamente improváveis devem ser acompanhadas de referências, mas não havia nenhuma. Nunca foi documentado em pesquisas confiáveis que qualquer pílula para psicose reduza a mortalidade, mas foi documentado em ensaios randomizados que essas pílulas aumentam substancialmente a mortalidade.

A suposta superioridade da clozapina também é altamente questionável. Existem meta-análises medíocres que sugerem isso, mas uma revisão Cochrane de boa qualidade não o fez.[221] Ela incluiu 27 ensaios comparativos. A taxa de desistência foi alta, 30%, “deixando a interpretação dos resultados problemática”. Os autores encontraram uma taxa de desistência maior devido a efeitos adversos com clozapina e uma taxa de desistência menor devido a ineficácia, o que sugeriram apontar para uma maior eficácia da clozapina.

Isso não pode ser concluído e a afirmação é falha. Como os eventos adversos ocorrem imediatamente, as pessoas abandonam o estudo mais cedo muito mais devido a eventos adversos do que devido a uma percepção de falta de efeito e, portanto, há menos pacientes usando clozapina que podem abandonar o estudo devido à falta de efeito do que nas drogas comparadoras. Não houve diferenças significativas entre clozapina e olanzapina ou risperidona em termos de sintomas positivos ou negativos da esquizofrenia, enquanto a clozapina pode causar danos mais graves, por exemplo, agranulocitose fatal e uma incidência mais alta de alterações no ECG, que também podem ser fatais. Os autores observaram que dados sobre desfechos importantes como funcionamento cognitivo, qualidade de vida, morte ou uso de serviços estão em grande parte ausentes.

Quanto à alegação de que a clozapina reduz suicídios, não consegui encontrar nenhum ensaio controlado por placebo documentando isso. A clozapina é o único medicamento com uma indicação aprovada pela FDA para reduzir o risco de comportamento suicida, mas, curiosamente, isso não se baseia em um controle placebo, e sim em um ensaio com olanzapina como comparador.[222] Randomizou-se 980 pacientes com esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo considerados de alto risco de suicídio. As diferenças foram apenas estatisticamente significativas, P = 0,03, tanto para comportamento suicida quanto para tentativas de suicídio. Isso é pouco convincente. Além disso, não podemos excluir a possibilidade de que ambos os medicamentos aumentem os suicídios, mas que a clozapina faça isso em menor grau do que a olanzapina. Finalmente, com P = 0,03, pode ser uma descoberta ao acaso ou um resultado de manipulação de dados.

Adivinha quem apoiou este ensaio? A Novartis, fabricante da clozapina, e 6 dos 13 autores receberam bolsas da Novartis ou eram consultores da empresa. Eles agradeceram a uma organização de pesquisa contratada por monitorar o estudo e cuidar das transferências de dados. Não exatamente um cenário que inspire confiança no que aconteceu e os acadêmicos provavelmente não tiveram muito, se é que tiveram alguma coisa, a ver com a análise de dados e a redação do manuscrito.

Aumentar a dose, usar várias drogas simultaneamente e aumentar as mortes

Um livro observou que pode ser apropriado em alguns casos aumentar a dosagem acima do intervalo aprovado.[17:652] Este é um conselho muito ruim. Isso não levará a um melhor efeito[157], mas a mais danos,[63 ]incluindo matar mais pacientes.[223-227]

Sobre a combinação de várias pílulas para psicose, um livro observou que um efeito melhor não foi documentado, mas pode ser necessário em pacientes com esquizofrenia resistente ao tratamento.[16:577] Outro afirmou que o tratamento combinado nem sempre pode ser evitado e que não foi demonstrado que aumentou a mortalidade.[18:101] Até mesmo afirmou que as drogas para psicose diminuem a mortalidade.

Isso é o máximo de absurdo que se pode chegar na psiquiatria. Em uma citação cuja origem é incerta, a definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar um resultado diferente. Quando as drogas não funcionam, mais do mesmo também não funcionará. E quando drogas altamente tóxicas aumentam substancialmente a mortalidade, mais do mesmo aumentará ainda mais a mortalidade.

Os psiquiatras não percebem que quando um paciente é “resistente ao tratamento”, o que é um termo insultuoso, pois sugere que o paciente é culpado e não a droga, eles não devem aumentar a dose ou adicionar outra droga, mas reduzir gradualmente a primeira droga, o que terá o melhor resultado para o paciente.

Um relatório do Conselho Nacional de Saúde (Danish National Board of Health) da Dinamarca mostrou que metade dos pacientes estava em tratamento com mais de uma pílula para psicose simultaneamente,[228] embora não haja dados científicos que apoiem isso e embora as diretrizes nacionais e internacionais façam recomendações contra isso. Já ouvi que o recorde de uso de pílulas para psicose usadas simultaneamente foi de sete pílulas para psicose.

Um manual didático admitiu que combinações com benzodiazepínicos aumentam a mortalidade,[18:101] o que o Conselho Nacional de Saúde da Dinamarca também alertou, afirmando que as combinações aumentam a mortalidade em 50-65%.[228] No entanto, metade dos pacientes dinamarqueses receberam terapia combinada.[228] O relatório desaconselhou o uso maciço de pílulas para depressão, que também estava fora de controle. Quase metade dos pacientes estava em tratamento com drogas para psicose e drogas para depressão.[228]

O uso de drogas psiquiátricas está fora de controle em todos os lugares. No Reino Unido, metade das prescrições de psiquiatras gerais de pílulas para psicose são emitidas para pessoas com problemas não psicóticos, incluindo ansiedade e problemas de sono, e são particularmente usadas em pessoas com demência e em idosos.[229] Nos Estados Unidos, o uso de pílulas para psicose dobrou em adultos e aumentou oito vezes em crianças em apenas 11 anos.[230] Em 2005, sete crianças por 1.000 estavam em tratamento com as pílulas,[231] e apenas 14% das prescrições eram para psicoses. A maioria era para problemas de comportamento e transtornos de humor.[4]

Estudos observacionais mostram que há mais do que o dobro de mortalidade quando mais de uma pílula para psicose é usada.[223-225] Isso não é um efeito de confundimento. Como já observado, pílulas para psicose podem causar prolongamento do intervalo QT e arritmias ventriculares potencialmente fatais, e grandes estudos nos EUA mostraram que as drogas dobram o risco de morte súbita cardíaca de maneira dose-dependente.[226,227] Elas também causam quedas e fraturas de quadril devido à hipotensão ortostática, sedação e perda de consciência, e aumentam os eventos adversos cerebrovasculares.[162]

Os enormes ganhos de peso e diabetes que muitos pacientes experimentam também aumentam a mortalidade. Uma revisão sistemática mostrou que a mortalidade para pacientes com esquizofrenia aumentou consideravelmente em comparação com a população em geral; a razão de mortalidade padronizada mediana para os anos 1970, 1980 e 1990 foram 1,84, 2,98 e 3,20, respectivamente.[232] Os autores observaram que uma explicação óbvia para esse desenvolvimento é o aumento do uso de novas pílulas para psicose, que têm mais probabilidade de causar ganho de peso e síndrome metabólica do que as drogas antigas.

É claro que também existem estudos negando isso, mas eles são falhos.[7:174] Existem muitos truques que se pode usar para fazer um aumento na mortalidade parecer uma diminuição, por exemplo, ignorar que os pacientes não tratados geralmente têm saúde muito mais precária ou usar pessoas-anos em estudos de acompanhamento de segurança após a fase randomizada, em vez de contar corpos mortos, o que não é tendencioso. Em um desses estudos, os autores afirmaram que as pílulas para psicose reduziram a mortalidade em mais de 50% e reduziram os suicídios, enquanto seus dados mostraram que 65% mais pacientes morreram e três vezes mais se suicidaram.[233] Este estudo foi publicado em uma das principais revistas de psiquiatria, JAMA Psychiatry.

Injeções depot, que liberam o medicamento muito lentamente, são recomendadas para pacientes que não estão interessados em tomar pílulas para psicose e frequentemente as interromperão se deixadas a si mesmas.[18:235] Alegou-se que isso é causado pela falta de percepção dos pacientes sobre sua doença, chamada de não conformidade, e que é importante para o prognóstico motivar esses pacientes a aderir ao tratamento.[18:235]

Essa abordagem aos pacientes é horrível. Conheci muitos pacientes que têm excelente percepção de sua doença e entendem mais sobre pílulas para psicose do que seus psiquiatras. Alguns deles sofreram graves danos quando tratados à força ou viram pacientes morrerem repentinamente e estão muito assustados de que também possam ser mortos.

No livro “Querida Luise”, Dorrit Cato Christensen escreve sobre sua filha que foi morta dessa maneira pela psiquiatria.[234] O principal problema com as drogas depot é que elas não podem ser interrompidas mesmo que a vida do paciente tenha se tornado ameaçada, por exemplo, se for detectado que o paciente é um metabolizador lento, como muitas pessoas são. Luise era uma metabolizadora lenta.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

***

Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Em Gaza, o enfoque nos sintomas de “transtorno mental” oculta a violência estrutural e a opressão

0
(INT) Gaza feels sad after an explosion killed people near the Israeli border. September 14, 2023, Gaza, Palestine: Gazans are mourning a great loss as thousands gathered to bid farewell to the victims of the explosion that occurred in the Malka area, east of Gaza City. The Ministry of Health issued a statement confirming the tragic incident, and reporting the death of five individuals and the injury of 25 others, some of whom are in critical condition. The explosion was caused by a suspicious device that exploded in Malka camp, east of Gaza. The victims whose names were published by the Ministry are: Baraa Al-Zard, Muhammad Qaddum, and Ali Ayyad. While their names echoed in the streets of Gaza, their sudden passing left a deep scar in the hearts of Gazans, who gathered to offer condolences and support to the bereaved families. Credit: Hashem Zimmo/Thenews2 (Foto: Hashem Zimmo/Thenews2/Deposit Photos)

Traduzido por Tiago Pires Marques de Mad in America (texto original) e revisado por Camila Motta.

Depois de entrevistar 30 clínicos de saúde mental em Gaza, os investigadores concluíram que o enfoque estrito no trauma, nos sintomas de “transtorno mental” e no diagnóstico psiquiátrico não consegue abordar e captar as causas e expressões do sofrimento na Palestina.

Os investigadores escrevem que “promover e restaurar o bem-estar mental atuando exclusivamente sobre sintomas e síndromes psicológicos impede a aplicação da justiça social e da equidade numa sociedade caracterizada pela violência estrutural e pela opressão”.

Marwan Diab, diretor do Programa de Saúde Mental Comunitária de Gaza, juntamente com colegas dessa organização e da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, liderou a investigação. Os resultados foram publicados na revista Transcultural Psychiatry.

O estudo foi realizado antes da atual e contínua ofensiva israelita no território ocupado de Gaza, que resultou em mais de 22.000 mortes de palestinianos, na sua maioria civis, e que se seguiu ao ataque do Hamas em 7 de outubro, que matou cerca de 1.200 israelitas, na sua maioria civis. Esta última onda de violência agrava as condições de vida já difíceis e angustiantes em Gaza, um território que tem estado sob ocupação prolongada. Estas condições fazem parte de um conflito mais vasto e contínuo, profundamente enraizado em injustiças históricas e políticas, que contribui para um sofrimento humano e dificuldades significativas.

(INT) Os habitantes de Gaza estão de luto por uma grande perda, uma vez que milhares de pessoas se reuniram para se despedir das vítimas da explosão que ocorreu na zona de Malka, a leste da cidade de Gaza. O Ministério da Saúde emitiu um comunicado confirmando o trágico incidente e comunicando a morte de cinco pessoas e o ferimento de outras 25, algumas das quais se encontram em estado crítico. A explosão foi causada por um engenho suspeito que explodiu no campo de Malka, a leste de Gaza. As vítimas cujos nomes foram divulgados pelo Ministério são: Baraa Al-Zard, Muhammad Qaddum e Ali Ayyad. Enquanto os seus nomes ecoavam nas ruas de Gaza, a sua morte súbita deixou uma marca profunda nos corações dos habitantes de Gaza, que se reuniram para oferecer condolências e apoio às famílias enlutadas. Credit: Hashem Zimmo/Thenews2 (Foto: Hashem Zimmo/Thenews2/Deposit Photos)

A saúde mental na Palestina ocupada (Cisjordânia e Gaza) tem sido considerada uma das piores do mundo. De acordo com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA), em 2022, 26,4% da população necessitava de serviços de saúde mental, o valor mais elevado entre todas as áreas de operação da UNRWA.

No entanto, “a escassez de dados sobre as necessidades de saúde mental da população de Gaza é uma barreira ao desenvolvimento de intervenções eficazes para melhorar o sofrimento psicológico”, observam o psicólogo Marwan Diab e colegas. A sua investigação qualitativa, que tem como objetivo criar uma estrutura para lidar com o trauma coletivo utilizando as perspetivas diretas dos prestadores de cuidados de saúde mental em Gaza, parece ser a primeira do gênero.

Através de uma análise temática das transcrições das entrevistas, o recente estudo publicado na revista Transcultural Psychiatry estabelece correlações entre a crise de saúde mental em Gaza e as condições sociais e políticas de repressão sistêmica, aprisionamento físico, dificuldades econômicas e ciclos de violência e deslocamento que os palestinianos vivem sob a ocupação militar israelita.

Marwan Diab e colegas realizaram entrevistas com 30 profissionais de saúde mental de várias disciplinas, incluindo psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros psiquiátricos e psiquiatras que prestam serviços às comunidades de Gaza. Foi pedido aos participantes que falassem sobre os problemas de saúde mental, diagnósticos e condições psicossociais mais frequentes que observaram nos seus clientes. Utilizando um modelo de sistemas ecológicos, que considera o papel do microssistema, do mesossistema e do macrossistema no funcionamento individual, conseguiram conceitualizar intervenções de saúde mental que seriam apropriadas para problemas de saúde mental a diferentes níveis, do individual ao coletivo.

“Os participantes indicaram que as dimensões sociais e políticas da saúde mental e as consequências econômicas, educacionais e relacionadas com a saúde do bloqueio em curso de Gaza eram os principais determinantes da carga psicológica entre os seus clientes”, escrevem os investigadores.

A análise temática das transcrições identificou um tema mais abrangente, “o impacto do bloqueio na saúde mental e na qualidade de vida”, contendo quatro temas de segunda ordem que incluíam “preocupações com problemas sociais”, “preocupações gerais com a qualidade de vida”, “preocupações com a saúde mental da comunidade” e “preocupações relacionadas com a saúde mental das crianças”.

Algumas das palavras árabes recorrentes que emergiram da análise foram Makhnogeen (sentir-se sufocado), Masjoneen (sentir-se preso) e Maazoleen (estar segregado), que foram utilizadas para refletir o estado psicológico e emocional das pessoas que vivem em condições de isolamento rigoroso. Os autores explicam que estas expressões comunicam a natureza coletiva do seu sofrimento.

Um psiquiatra da Faixa Média de Gaza falou sobre o fato dos clientes terem uma sensação generalizada de estarem coagidos e controlados: “As pessoas não podem fugir para procurar oportunidades. É como uma grande prisão. Não podem entrar nem sair”. Outros profissionais de saúde mental indicaram que os seus pacientes têm uma sensação de perda em relação ao seu futuro, de desespero, bem como de medo e ansiedade constantes.

Os participantes explicam o impacto do estado de sítio nas suas rotinas diárias:

“O estado de sítio afeta a situação em Gaza de forma muito dura, uma vez que afeta vários níveis: saúde, educação, alimentação e eletricidade”. De fato, nos últimos 12 anos, a eletricidade só estava disponível entre 4 a 8 horas por dia”.

“A insegurança alimentar conduz à subnutrição e a dietas pouco saudáveis.”

“As estações de tratamento de esgotos são frequentemente fechadas devido ao fornecimento limitado de eletricidade e, consequentemente, a contaminação da orla marítima com esgotos tornou-se um grande perigo para a saúde pública.”

Uma limitação significativa deste estudo é o fato de estas entrevistas terem sido realizadas pouco antes da rápida mudança das condições atuais em Gaza. A recente e contínua ofensiva militar israelita e o bloqueio de recursos agravaram fortememnte as condições, levando a um enorme número de mortes de civis (1 em cada 100 habitantes da região), à fome generalizada e à deslocação interna quase total.

No entanto, as conclusões dos autores elucidam como as terríveis condições atuais podem, até certo ponto, ser vistas como uma exacerbação dos desafios sociais e políticos crônicos que os palestinianos que vivem num espaço sitiado enfrentam há muito tempo.

Os autores argumentam que, uma vez que os problemas de saúde mental dos palestinianos em Gaza parece estar principalmente enraizada nas condições atuais de grave falta de água potável, acesso limitado à eletricidade, serviços de saúde e de educação deficientes e liberdade de circulação e de viagem restrita, estes fatores estruturais teriam de ser abordados para que se verificassem melhorias na saúde mental coletiva.

Sentimentos semelhantes foram partilhados por acadêmicos palestinianos, como Rita Giacaman, que advertiu contra “a redução das experiências palestinianas de violações e injustiças à prevalência de sintomas e ao status de transtorno mental, o que tem o efeito de minar ainda mais o apelo palestiniano à justiça, ” e Lena Meari, que explica como o enfoque no trauma como uma experiência individual através de uma “adoção acrítica do conceito e da linguagem do trauma para representar as experiências palestinianas de violência contém o perigo de despolitizar e descontextualizar questões de justiça social, ocupação e desapropriação. “

Diab e os seus colegas afirmam que as suas conclusões demonstram a importância de adotar uma abordagem da saúde mental que inclua a compreensão dos indicadores psicológicos num quadro mais amplo, informado pelos direitos humanos e pela justiça social.

Samah Jabr (psiquiatra palestiniano e chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Palestina) e Maria Helbich (psicoterapeuta) já tinham defendido este tipo de enquadramento, argumentando que “há uma tendência para ignorar a realidade político-social das pessoas com quem estamos trabalhando, aderindo ao conceito de neutralidade. Para compreender verdadeiramente o sofrimento social nos territórios palestinos ocupados, esse sofrimento tem de ser relacionado com a prevalência de violações dos direitos humanos”.

Jabr e Helbich afirmam que as normas éticas da nossa profissão exigem uma compreensão mais sólida das implicações políticas e sociais do trauma e um papel mais ativo no que diz respeito às injustiças sociais e às violações dos direitos humanos. Um artigo anterior publicado no The New England Journal of Medicine salientou a importância do papel dos profissionais de saúde enquanto defensores da justiça social e da mudança de políticas para combater os danos estruturais do racismo sistêmico, do colonialismo e de outras estruturas de marginalização e desigualdade.

Os comentários recentes de Jabr na revista Lancet Psychiatry sugerem como este quadro pode orientar a ação e a defesa de políticas para os problemas de raiz que conduzem ao sofrimento no contexto atual, salientando que “a necessidade imediata agora [em Gaza] não é a saúde mental, mas um cessar-fogo. Em comparação com o fim do ataque imediato, a satisfação das necessidades de saúde mental – por muito importantes que sejam – não pode ter a máxima prioridade”.

Diab e os colegas partem ainda das suas conclusões para sugerir que “os prestadores de cuidados de saúde não devem trabalhar apenas em termos de estruturas centradas no trauma e orientadas para o aconselhamento, mas também ao nível do apoio à população afetada e da mobilização dos seus recursos pessoais e coletivos de resiliência e resistência”. Lena Meari sugeriu, de forma semelhante, que os profissionais de saúde mental devem reconhecer e afirmar a luta coletiva dos palestinianos sob ocupação e os seus esforços em prol da justiça, uma vez que estes servem de recursos para a coesão social e a preservação da saúde mental.

Diab e os colegas encorajam a investigação futura a continuar a destacar a experiência vivida pelos palestinianos sob ocupação, uma vez que estas perspetivas serão cruciais para informar a resposta internacional à crise de saúde mental na Palestina ocupada.

****

Diab, M., Veronese, G., Abu Jamei, Y., Hamam, R., Saleh, S., Zeyada, H., & Kagee, A. (2023). Preocupações psicossociais num contexto de opressão política prolongada: Gaza mental health providers’ perceptions. Psiquiatria Transcultural, 60(3), 577-590. (Link)

“Em minha carreira como psicóloga, já vi muitas crianças serem diagnosticadas erroneamente como autistas. É uma catástrofe clínica”

0
Preschooler boy walking in autumn park. Outdoor activities for children. Stroll for kids during quarantine.

Nota do Editor: texto orginalmente publicado pelo Mad in the UK, traduzido com a ajuda do DeepL e revisado por Camila Motta.

O diagnóstico que serve para tudo

O diagnóstico de tamanho único do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), conforme configurado na quinta edição revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR), é uma catástrofe clínica.

Profissionais infantis bem-intencionados que levam ao pé da letra os critérios atuais do DSM para autismo, provavelmente presumem que o diagnóstico amplamente utilizado de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) lhes proporciona compreensão e percepção das dificuldades de desenvolvimento das crianças e uma base confiável para fazer recomendações de colocação educacional e tratamento.  Nada poderia estar mais longe da verdade.

Durante minha extensa carreira encontrei, literalmente, milhares de crianças pequenas cujos desafios de desenvolvimento foram diagnosticados erroneamente em outras clínicas como autistas ou, mais atualmente, “no espectro”. Vítimas do que eu considero o uso promíscuo do diagnóstico de autismo, a realização de seu potencial de desenvolvimento foi comprometida quando as decisões de tratamento foram baseadas no diagnóstico de autismo clinicamente mal concebido, que na maioria das vezes se mostrou um diagnóstico errado.

Como discuti abaixo, uma pequena minoria das muitas crianças com suspeita de autismo que atendi se enquadrava nos critérios originais de autismo. Entretanto, atualmente, é muito fácil para uma criança obter um diagnóstico de autismo. Por quê?  Uma leitura cuidadosa dos critérios de autismo do DSM-5-TR expõe imediatamente o problema central.  Na seção “Déficits na comunicação social” dos critérios de autismo, observamos que os três primeiros critérios se referem a uma série de sintomas, desde os leves e superficiais até os profundos e arraigados. Uma série de sintomas para estabelecer um diagnóstico?  Isso seria engraçado, se as implicações não fossem tão sérias.

Evidentemente, em 2013, os critérios de autismo no DSM-5 foram intencionalmente ampliados para que mais crianças pudessem se qualificar para os serviços terapêuticos de que necessitavam. Infelizmente, ao fundir vários diagnósticos já indistintos – Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID), Asperger e Autismo – e ao afrouxar os critérios de diagnóstico de autismo para permitir que a sua “área de abrangência” se expandisse para uma gama de sintomas e vários níveis de gravidade, criou-se um monstro. Como o “The Blob” dos antigos filmes de terror, esse diagnóstico se infiltra em todas as fendas, fornecendo um rótulo diagnóstico prático para quase todos os desafios de desenvolvimento que afetam a comunicação social.

Há uma dificuldade adicional na seção que trata de Comportamentos Estereotipados e Repetitivos. O DSM-5 (e agora o DSM-5-TR) introduziu corretamente como critério a questão da hipo e hiper-reatividade sensorial.  De fato, é fundamental observar o grau de reatividade sensorial de uma criança quando há suspeita de autismo, porque podemos esperar que crianças genuinamente autistas apresentem algum grau de hipo ou hiper-reatividade sensorial.  Entretanto, essa manifestação não funciona de forma inversa.  Em outras palavras, nem todas as crianças com problemas sensoriais são necessariamente autistas. Infelizmente, com as portas do diagnóstico de autismo tão amplamente abertas, continuo encontrando crianças pequenas com problemas de reatividade sensorial que foram diagnosticadas erroneamente por profissionais como TEA.

A conceituação de uma gama de sintomas, de leves a graves, leva muito facilmente ao uso atual predominante e inquestionável do termo “espectro autista”.  O conceito de espectro não pode sequer começar a fornecer um diagnóstico diferencial. Considere o seguinte: se o seu médico diagnosticasse suas dores de cabeça como “Transtorno do Espectro da Cefaleia”, você aceitaria uma compreensão tão fácil e superficial da sua dor? Eu duvido.  Você gostaria de saber o que está por trás de suas dores de cabeça.  Elas podem ser atribuídas à tensão visual? Estresse e tensão? Sono ruim? Deficiência de vitaminas? Uma reação a medicamentos? Um tumor cerebral?

Menino em idade pré-escolar caminhando em um parque de outono. Atividades ao ar livre para crianças. Passeio para crianças durante a quarentena.

O uso do termo “Transtorno do Espectro do Autismo” presta um enorme desserviço às crianças, pois encobre as muitas especificidades de desenvolvimento que podem estar por trás dos desafios de uma criança relacionados à comunicação social.  No campo atual, parece haver um grau surpreendente de profissionais que ignoram a realidade clínica fundamental de que os sintomas têm raízes! O mesmo sintoma, observado comportamentalmente, pode ter origem em uma infinidade de fatores contextuais e de desenvolvimento. Veja, por exemplo, o critério de autismo do DSM-5-TR “falha em iniciar ou responder a interações sociais”.  Se nos permitirmos pensar de forma clínica, analítica e criativa, veremos imediatamente que essa dificuldade social visível na superfície pode ser atribuída a qualquer uma das inúmeras causas subjacentes possíveis: falta de confiança e timidez social; deficiência auditiva não diagnosticada; superdotação, com os interesses da criança em outras áreas que não a social; um problema que afete a fala, como dificuldade de processamento de palavras, gagueira ou gaguejo, dificuldade de recuperação de palavras ou dispraxia oral. Além disso, crianças que testemunharam violência doméstica, que foram abusadas física ou sexualmente, que sofrem de depressão ou que sofreram traumas também marcarão a caixa de sintomas de “falha em iniciar ou responder a interações sociais”.

O que está acontecendo aqui? A contagem dos sintomas superficiais – sem considerar as principais influências do desenvolvimento, bem como o contexto socioemocional da criança e certas variáveis fisiológicas, como sensibilidades alimentares, perda auditiva, sobrecarga sensorial e assim por diante – leva facilmente a um diagnóstico de autismo falsamente positivo.

Vemos, então, que uma leitura atenta e uma consideração cuidadosa dos critérios de autismo do DSM-5-TR expõem várias fraquezas na lógica e nas suposições de desenvolvimento, tornando esse diagnóstico um conceito verdadeiramente elástico e de tamanho único. Qual é o resultado de tais critérios de diagnóstico acomodatícios? Uma enorme incidência de falsos positivos, que não é comumente reconhecida no campo. Não é de se admirar que a incidência estatística de autismo pareça estar aumentando, gerando preocupações sobre uma epidemia de autismo. Calculo que, das milhares de crianças diagnosticadas com autismo que reavaliei usando meios qualitativos (ou seja, descritivos, funcionais, interativos e sensíveis ao desenvolvimento), pelo menos 90% delas haviam sido diagnosticadas erroneamente como autistas quando o DSM havia sido usado anteriormente em outras clínicas.

 

Promiscuidade diagnóstica

A configuração excessivamente flexível dos critérios diagnósticos alimenta o que chamo de diagnóstico promíscuo do autismo atualmente. O resultado, um tema recorrente neste artigo, é o diagnóstico errôneo e desenfreado do autismo.  Em mais de 30 anos de experiência clínica nesse campo, descobri que as seguintes dificuldades de desenvolvimento na infância foram frequentemente diagnosticadas erroneamente como autismo por profissionais que aplicaram os critérios do DSM-IV, DSM-5 ou DSM-5-TR:

  • dificuldades emocionais leves a moderadas;
  • dificuldades emocionais mais graves que pareciam estar relacionadas à psicose, confirmadas posteriormente por um especialista;
  • dispraxia oral, uma condição na qual a conexão entre o cérebro e a musculatura oral é desconectada, deixando a criança capaz de entender a linguagem, mas incapaz de produzi-la;
  • deficiências auditivas moderadas a profundas que não haviam sido diagnosticadas ou, se já diagnosticadas, cujo impacto havia sido mal interpretado como autismo;
  • mutismo seletivo;
  • anormalidades cerebrais; síndromes genéticas; Transtorno de Rett – todos confirmados posteriormente por médicos especialistas. Como alternativa, a anormalidade cerebral ou genética de uma criança pode já ter sido identificada, mas o impacto dessa anormalidade foi interpretado erroneamente como autismo, porque os problemas de comunicação resultantes da criança imitavam os sintomas amplamente configurados do autismo;
  • dificuldades de desenvolvimento diversas, apesar dos resultados normativos dos exames médicos;
  • atrasos no desenvolvimento de crianças que apresentavam potencial normativo, mas que simplesmente precisavam de mais tempo, paciência e compreensão para atingir seu potencial. Algumas precisavam de terapias específicas para fala, motricidade, habilidades de aprendizado ou bem-estar emocional para fechar pequenas lacunas de desenvolvimento.

Infelizmente, interpretar prematura e erroneamente como autismo praticamente qualquer atraso na comunicação social/verbal prevista para a idade é um fenômeno muito comum, e o diagnóstico incorreto de autismo tem um impacto negativo em toda a trajetória de desenvolvimento da criança.

 

Consequências de um diagnóstico errôneo de autismo

As ramificações de um diagnóstico errôneo de autismo são de longo alcance. Em primeiro lugar, na avaliação convencional focada nos sintomas, os pontos fortes da criança são frequentemente desconsiderados. Então, quando os sintomas semelhantes aos do autismo e o diagnóstico muito persuasivo de autismo são destacados e enfatizados no perfil da criança, os pontos fortes e as capacidades normativas evidentes e latentes dessa criança são ainda mais ignorados. Como o perfil da criança foi visto por meio de uma lente de diagnóstico distorcida, a compreensão de toda a personalidade e do potencial funcional de uma criança fica subordinada ao diagnóstico de TEA.

Em segundo lugar, não são apenas os pontos fortes da criança que podem ser ignorados durante a avaliação convencional. Igualmente preocupante é o fato de que as fraquezas subjacentes, as raízes e as causas específicas que desencadeiam ou contribuem para os sintomas do tipo autista evidentes na superfície, muitas vezes não recebem a atenção necessária para o tratamento. Se, por exemplo, os problemas sensoriais, a perda auditiva, a dispraxia oral ou os desafios emocionais de uma criança não forem reconhecidos e tratados de forma eficaz, essa criança provavelmente continuará a apresentar comportamentos semelhantes aos do autista – uma situação que poderia ser remediada com atenção efetiva a esses fatores subjacentes que contribuem para as dificuldades da criança.

Um terceiro fator diz respeito às recomendações bem-intencionadas, mas essencialmente equivocadas, com relação às intervenções de tratamento e às colocações educacionais que geralmente resultam quando os profissionais se baseiam nos critérios elásticos do DSM para autismo como base para suas recomendações. Infelizmente, um diagnóstico ou diagnóstico errôneo de autismo tem o poder de lançar uma sombra duradoura sobre todo o futuro de uma criança, dependendo das recomendações e intervenções resultantes.

Como testemunha de longa data das consequências de diagnósticos errôneos de autismo, considero isso particularmente preocupante, como ilustram os exemplos a seguir: Joe, de cinco anos, tinha um problema de processamento de texto. Intimidado pelo avaliador durante uma avaliação focada nos sintomas do DSM, ele se recusou a falar ou a cooperar.  Ele saiu da clínica de avaliação do hospital com um diagnóstico errado de autismo e uma recomendação para ser colocado em um jardim de infância para autistas. Da mesma forma, o profissional que se baseou no diagnóstico de autismo derivado do DSM de Matt aconselhou seus pais: “Não se preocupe em falar com ele. Ele é autista. Ele não entende a linguagem”. Meu colega fonoaudiólogo aconselhou fortemente os pais a fazerem exatamente o oposto – falar com ele generosamente!

Por fim, há o impacto emocional significativo, geralmente negativo, sobre os pais cujo filho recebeu um diagnóstico de autismo – ou um diagnóstico errôneo. O impacto emocional do diagnóstico de autismo de um filho pode levar os pais a sofrerem emoções que vão desde o desânimo e a tristeza até a depressão, e mesmo um sentimento de luto.  Com muita frequência, junto com o diagnóstico de autismo, os pais recebem dos profissionais um prognóstico negativo e pessimista sobre o futuro de seus filhos. O resultado pode ser que os pais descobrem que não estão disponíveis emocionalmente para seus filhos, exatamente no estágio de desenvolvimento em que a criança com deficiência mais precisa dos pais.  Os pais são culpados por essa situação?  De forma alguma, porque os pais estão simplesmente respondendo às informações que receberam de especialistas em quem confiavam.

Passei muito tempo com os pais, instruindo-os obstinadamente sobre a falta de sentido do diagnóstico elástico do espectro do autismo, tentando neutralizar seu desespero e ajudando-os a redefinir as metas educacionais e de desenvolvimento de seus filhos de forma a atender às causas subjacentes e, ao mesmo tempo, estimular os pontos fortes e as habilidades da criança. Mesmo quando, usando meios dinâmicos, interativos e descritivos de avaliação, eu determinava que a criança era de fato autista, o trabalho com os pais prosseguia na mesma direção focada nos pontos fortes, afirmando aos pais que o autismo é um estado, não uma característica, e que a capacidade de crescer e mudar é intrínseca a todos os seres humanos.

Felizmente, tive a sorte de ter sido orientada por psicólogos corajosos e brilhantes, cujos modelos de intervenção proporcionaram uma maneira criativa e eficaz de avaliar e tratar suspeitas de autismo sem usar os critérios do DSM. Como resultado, meus colegas e eu conseguimos mudar positivamente as trajetórias de desenvolvimento de muitas centenas de crianças pequenas que haviam sido diagnosticadas em outros lugares, correta ou incorretamente, como autistas.

 

Um diagnóstico preciso de autismo?

Todos os diagnósticos de autismo são essencialmente diagnósticos errôneos? Não, nem todos. Estimo que bem mais de 90% das crianças diagnosticadas com autismo que atendi tinham sido diagnosticadas incorretamente em outro lugar, por profissionais que usavam o DSM.  Entretanto, havia algumas crianças que atendiam aos critérios originais mais intensos e focados, que datam de 1943.

Neste artigo, ocasionalmente, usei o termo “genuinamente autista”. Com isso, estou me referindo a crianças que demonstram um isolamento emocional extremo juntamente com comportamentos perseverantes arraigados. Ou seja, sua apresentação tipifica os dois critérios diagnósticos primários originalmente formulados por Leo Kanner. Reconhecendo que os critérios elásticos de autismo do DSM-5 e do DSM-5-TR nem sequer começam a fornecer uma base para um diagnóstico diferencial confiável. Considero útil, ao avaliar crianças com suspeita de autismo, manter os critérios focados de Kanner como referência mental para uma condição genuinamente autista.  A maioria das outras crianças com suspeita de autismo demonstrou ter comportamentos “autistiformes” (semelhantes ao autismo), mas não autismo de fato.  A grande maioria das crianças que encontrei precisou de um trabalho clínico sensível para decifrar as causas básicas de seus sintomas de desenvolvimento “autistiforme”, embora não autista.

 

Esperança

E se, ao usar os critérios rigorosos de Kanner, o diagnóstico de autismo se mostrar preciso, ainda há esperança para a criança genuinamente autista? Sim! Em meu consultório, as mudanças positivas começam, em primeiro lugar, com o abandono do diagnóstico e da mentalidade focados nos sintomas e, em seguida, com a busca de evidências da criança por trás dos sintomas. Isso significa procurar centelhas de capacidade de desenvolvimento que possam ser acesas em uma fogueira quente de desenvolvimento.

A próxima etapa requer atenção minuciosa às influências emocionais, sensoriais, fisiológicas e contextuais no desenvolvimento.  Que fatores podem estar impedindo o desenvolvimento da comunicação social normativa?

Descobri que a adaptação das estratégias lúdicas interativas e de desenvolvimento do modelo DIRFloortime, brilhantemente concebido pelos Drs. Serena Wieder e Stanley Greenspan, provou ser uma forma muito mais confiável de avaliar os pontos fortes e fracos do desenvolvimento das crianças do que a contagem dos sintomas superficiais de acordo com o DSM. As interações baseadas em brincadeiras do DIR com uma criança fornecem um perfil dinâmico e descritivo em tempo real. A pergunta que motiva o trabalho não é “O que essa criança tem?”, mas sim “O que essa criança pode se tornar?

A filosofia e os métodos excepcionais do falecido e corajoso psicólogo educacional Reuven Feuerstein proporcionaram inspiração, visão, metodologia alternativa e terminologia. O trabalho da vida de Feuerstein estava enraizado em uma crença inabalável no potencial de modificabilidade como uma característica intrínseca do ser humano. Seus métodos otimistas e não convencionais, focados na força de trabalhar com crianças e adultos com necessidades especiais proporcionaram o terreno fértil para o pensamento criativo e inovador sobre o autismo, sem ser restringido pela necessidade convencional de um diagnóstico. A noção de Feuerstein, focada na força, de buscar “ilhotas de normalidade” e transformar essas ilhotas em verdadeiros continentes se encaixou perfeitamente com a noção de círculos de comunicação do DIRFloortime. Em vez de usar a lista de verificação de sintomas do DSM, procuro ilhotas de normalidade. O que fazer com elas? Criar cadeias cada vez mais longas de círculos de comunicação. O resultado muitas vezes é a magia do desenvolvimento, pois as crianças se fortalecem e gradualmente se livram de seus sintomas autistas.

 

Considerações finais

Com muita frequência, o autismo é tratado como uma doença terminal para a qual se pode buscar melhorias, mas da qual não se prevê uma recuperação total. É muito triste e injustificado. Tive a sorte de trabalhar com colegas inspirados e de poder fundir métodos de desenvolvimento alternativos e eficazes para a avaliação e o tratamento do autismo.  Esses métodos se concentraram nos pontos fortes das crianças, não nos sintomas, e com resultados muito animadores.

É importante lembrar que nem toda dificuldade de desenvolvimento tem um rótulo específico. Tampouco todas as dificuldades de desenvolvimento exigem rótulos diagnósticos. É muito mais importante entender o que está acontecendo com uma criança do ponto de vista fisiológico, emocional e contextual do que rotulá-la. Essa é uma realidade clínica que é muito difícil de ser internalizada e apreciada pelos profissionais que trabalham em uma estrutura focada em sintomas e baseada em diagnósticos. Acredito que o trabalho clínico eficaz só pode começar quando deixamos o diagnóstico de autismo de lado e nos esforçamos para alcançar, entender e ajudar a criança por trás dos sintomas. Isso é o que importa.

Nota do editor: O livro da Dra. Shoshana Levin Fox “An autism casebook for parents and practitioners: The child behind the symptoms”” está disponível aqui

 

Referências:

Feuerstein, R.,  Rand, Y. & Rynders, J. E. (1988).  Don’t accept me as I am.  New York:  Springer.

Greenspan, S. I. & Wieder, S. (1998).  The child with special needs. Reading: Addison-Wesley.

Kanner, L. (1943).  Autistic disturbances of affective contact.  Nervous Child, 2, 217-250.

Levin Fox, S.  (2020).  An autism casebook for parents and practitioners: The child behind the symptoms.  New York:  Routledge.

***

Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens foram elaboradas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são dos próprios escritores.

 

Mad in Brasil dá as Boas-Vindas ao Mad in Portugal

0

Nós da equipe do Mad in Brasil damos as boas-vindas ao nosso co-irmão Mad in Portugal! Agora a rede Mad in The World está presente em 16 países: EUA, Brasil, Noruega, Finlândia, México, Índia, Espanha, Suécia, Argentina, Dinamarca, Irlanda,  Holanda, Canadá, Itália, Reino Unido e Portugal.

Será de grande importância para a comunidade luso-brasileira a parceria desses dois sites. Temos certeza que será um sucesso.

Noticias

Blogues