Chamar alguém de ‘anti-psiquiatra’ não é um argumento – e para muitos parece abusivo

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Grupos diferentes usam frases e palavras de maneiras diferentes para atingir fins específicos. Isso nunca foi mais verdadeiro do que quando se considera a expressão altamente controversa “anti-psiquiatria”. Alguns optam por usar essa expressão como um distintivo de honra, expressando seu desafio a um sistema que consideram ter causado danos significativos a eles ou a outras pessoas. Outros usam o termo porque acreditam que ele captura a conclusão lógica a seguir aonde as evidências imaculadas e independentes os leva. Outros ainda, enfurecidos por um senso de injustiça ética e social, usam o termo para expressar a ideia de que a psiquiatria não é uma especialidade médica legítima e que estaríamos melhor com ideias e intervenções não médicas. [I]

Os usos acima do termo ‘anti-psiquiatria’, no entanto, são muito diferentes de como agora estão sendo implantadas por muitos profissionais de saúde mental e psiquiatras, geralmente no contexto de um debate acalorado e em geral pejorativamente. Esse último uso ocorre principalmente quando alguém rotula um crítico (por exemplo, um profissional, um usuário de serviço ou uma organização) como ‘anti-psiquiatria’ sem o consentimento ou acordo desse crítico, e muito menos sem realmente saber se o criticado se identifica com essa frase. Esse uso específico, “ele é um antipsiquiatra” geralmente tem a intenção de denegrir o crítico como sendo alguém irracional, despropositado; generalizando erroneamente a partir de sua experiência que se encontra fora da curva, chamando-o de irresponsável, por estar expressar sentimentos negativos com relação à psiquiatria, além de estar em busca de intervenções para ‘salvar vidas’. Esse uso pejorativo, por conseguinte, transforma a expressão “antipsiquiatria” em uma arma, na tentativa de silenciar, deturpar ou deslegitimar o debate crítico e a dissidência.

Um bom exemplo disso foi o recente artigo do psiquiatra americano Ronald W. Pies. [2] Segundo ele, o argumento bem fundamentado de que a psiquiatria ou os psiquiatras promoveram a teoria do desequilíbrio químico da depressão é, de fato, uma ilusão da mente ‘anti-psiquiátrica’ e que, portanto, é não confiável. A técnica aqui empregada é tão primitiva quanto obtusa: basta expandir a definição de ‘anti-psiquiatria’, para assim abranger todas as críticas pelas quais se tem pouca simpatia, manchando-as por associação ao termo.

Tais sofismas são tão dissimulados quanto cada vez mais se tornam populares. Por exemplo, agora observo, com crescente preocupação, quantos colegas profissionais estão usando a frase de maneiras cada vez mais indiscriminadas e hostis; sem pensar se captura com precisão a posição da outra pessoa, tampouco sem se importar com a maneira como a calúnia está sendo recebida. Uma coisa é que eu diga que estou com ‘excesso de peso’, mas outra coisa é inteiramente distinta se você me chamar publicamente de ‘estar com excesso de peso’, especialmente no contexto de desacordo ou debate acalorado. Isso não está bem – isso é, de fato, sutilmente abusivo. Mas agora testemunhamos esse tipo de derrapagem ocorrendo com crescente regularidade. Apenas outro dia um médico sênior se referiu a um grupo de pacientes, que se sentem vítimas da psiquiatria, organizado nas mídias sociais, como sendo pessoas que fazem o ‘culto à anti-psiquiatria’ ; e outro médico, conhecido por todos, a dizer que se trata de um grupo de pacientes organizados pelos sentimentos ‘anti-psi’ e ‘anti-med’. Em tais contextos, essas frases vem sendo usadas para relegar a raiva dos pacientes aos males de pertencer a uma seita irracional. Eles não são vistos como reagindo compreensivelmente aos danos graves sofridos dolorosamente, senão a falhas psiquiátricas claramente percebidas. Nesse caso, sua dissidência passa a ser deturpada, estigmatizada e patologizada, agravando assim a mágoa deles e, de maneira compreensível, a raiva deles com relação à psiquiatria.

Como nada de bom ocorre ao se derramar gasolina aonde há incêndio, é dever de qualquer profissional de saúde mental evitar atacar, silenciar ou deturpar aqueles que pretendem servir, especialmente quando essas pessoas passaram pelos nossos serviços de assistência psiquiátrica. Mas a etiqueta anti-psiquiatria está cada vez mais sendo usada, indiscriminadamente. Como também pode vem ocorrendo com relação ao novo termo ‘crítica’, com um olhar de desaprovação, dirigido a alguém que questiona a ortodoxia atual; como se a única posição correta hoje em dia deva ser a de acrítica.

Então agora permitam-me concluir com uma confissão. Não sou um anti-psiquiatra, se por essa expressão se queira dizer “negar a legitimidade fundamental da psiquiatria como uma especialidade médica”. Mas isso não significa que estou feliz com o status quo (com bio-reducionismo, a excessiva prescrição de psicofármacos, a medicalização da existência humana, o baixo humanismo, os vínculos corrosivos com a indústria, os danos produzidos pelas drogas psiquiátricas, o conservadorismo institucional, a predominância do modelo médico e, assim por diante). No entanto, embora eu não seja da anti-psiquiatria nesse sentido restrito, respeito inteiramente o direito dos outros de se definirem dessa maneira, e nunca usaria esse termo de maneira pejorativa contra eles. O fato é que, se você se define como anti-psiquiatra ou psiquiatra crítico ou qualquer outro termo que escolher (e para ser sincero, não sei dizer com qual tag muitos dos críticos que eu conheço se identificam), você não deve tolerar os outros definindo você como eles querem que você seja visto, especialmente quando isso é feito com más intenções. Quando isso acontece, é uma forma sutil de abuso. E devemos deixar isso claro para os caluniadores.

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Notas de pé de página:

[1] Openly identifying with this term is more characteristic of activists in the US, where people like Bonnie Burstow were proud to own it. In contrast, few UK professionals or survivors use this term about themselves – and ironically, nor did most of the ‘anti psychiatrists’ of the 1960s and 1970s, with the exception of David Cooper who coined the term. A growing term of preference in the UK today is ‘pro-evidence’, and for good reason, as it moves the emphasis away from what one is against to what one is for.

[2] Pies, R. W. Debunking the Two Chemical Imbalance Myths, Again. Psychiatric Times, 2019 Aug [website] https://www.psychiatrictimes.com/depression/debunking-two-chemical-imbalance-myths-again

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[Publicado originalmente no Mad in the UK. Trad. Fernando Freitas]

Revista RADIS Entrevista o Neurocientista Sidarta Ribeiro

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A entrevista com o conceituado neurocientista brasileiro, um dos fundadores do Instituto do Cérebro, Sidarta Ribeiro, foi publicada na edição de fevereiro da revista RADIS.

O neurocientista defende que o futuro da medicina está no uso da maconha para os tratamento de doenças e a importância dos sonhos para entender o mundo real. Mas segundo o cientista, não há interesse por parte da industria farmacêutica, por ser uma planta que pode ser cultivada em casa e apresenta possibilidade de tratamento para uma vasta gama de doenças, compete com vários fármacos presentes nas farmácias e quebraria a indústria.

“Mesmo com o uso indiscriminado de medicação, o sofrimento psíquico não diminuiu. Ao contrário aumentou. Houve uma simplificação grosseira da psiquiatria. Antidepressivo é receitado por qualquer médico, não só por algumas especialidades, sem nenhuma base científica. As pessoas embarcaram na medicalização achando que estavam comprando o passaporte para a felicidade. Como já apontam estudos mais recentes, os efeitos colaterais do uso de antidepressivos são muito grandes quando comparados com os benefícios, que são muito pequenos.”

Leia a entrevista na íntegra → (Link)

O que podemos aprender com o Asilo Psiquiátrico?

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Essex Asylum

Meu estudo sobre a história do asilo de Essex, nos arredores de Londres, publicado recentemente na Psychological Medicine, constata que aqueles que eram admitidos apresentavam distúrbios significativos de comportamento ou evidência de alguma doença orgânica. Quase dois terços daqueles que tinham distúrbios psicológicos, em oposição aos orgânicos, recebiam alta por serem considerados recuperados ou melhorados (principalmente ‘alta recuperada’). A ideia de que asilos agiam como lugares para encarcerar mães solteiras e desviantes sociais não é confirmada por este ou outros estudos sobre asilo. A pesquisa atual sugere, no entanto, que os serviços modernos de saúde mental cumprem funções semelhantes aos antigos asilos – prestando assistência àqueles que são incapazes de cuidar de si mesmos, e contenção para aqueles cujo comportamento é perturbador para os outros.

Essex Asylum 1987

Comecei a treinar como psiquiatra no final da era do asilo. Essas enormes instituições, antes uma presença iminente nos subúrbios das cidades e vilarejos, foram reduzidas nos anos 90 a algumas enfermarias espalhadas e, na década seguinte ou em duas décadas, a maioria dessas instituições desapareceu completamente. Olhando para trás, as instituições asilares eram tanto melhores quanto piores que o sistema que as substituiu. Os asilos proporcionavam uma comunidade pronta tanto para pacientes quanto para funcionários. Eles estavam frequentemente situados em belos cenários rurais, com atividades delicadas como jardinagem à mão e eventos sociais regulares.

Hoje, muitos pacientes vivem sozinhos, isolados e solitários. Serviços e atividades no território podem estar distantes, e muitos deles dão pouco acesso ao espaço verde e à paisagem. Os profissionais encontram-se hoje distribuídos em amplas áreas e desacreditados. Os sindicatos hoje são menores e mais fracos e as atividades coletivas são poucas e distantes entre si.

No entanto, minha experiência foi a de que a comunidade dos antigos asilos era estranha e insular. Isolada do resto do mundo, ela existia em sua própria bolha – um pouco como um internato ou um reformatório.

Enquanto existiam asilos, parecia que eles eram indispensáveis. Agora que eles se foram, percebemos que não. Então, como eles surgiram e a qual propósito eles originalmente serviam? Como foi que a sociedade do século XIX tenha sido persuadida a empreender um dos programas de construção pública mais caros de todos os tempos, e isso numa época em que o Estado central e os impostos nacionais ainda eram relativamente novos? O programa de asilo é anterior à formação da profissão psiquiátrica e ao triunfo da abordagem médica da loucura; portanto, eles não eram destinados a fins médicos, pelo menos não como os entenderíamos hoje. Portanto, que função esses lugares cumpriam?

Os estudiosos responderam a essa pergunta de várias maneiras. Alguns afirmam que os asilos sempre foram destinados a ser lugares terapêuticos onde as pessoas pudessem se recuperar e se abrigar das duras demandas do mundo exterior.[1] Outros afirmam que eram prisões secretas para desviantes sociais, incluindo mães solteiras e ativistas políticos. [2] [3] [4] Em algum lugar entre essas duas posições, o historiador Andrew Scull sugere que os asilos faziam parte de um sistema mais amplo de bem-estar e controle social, sob a égide da Lei dos Pobres na Inglaterra e vinculados à casa de trabalho (e seu equivalente em outros lugares). A casa de trabalho (workshop) foi projetada para forçar os pobres ‘fisicamente aptos’ a trabalhar, e os asilos se desenvolveram como uma alternativa especializada para as pessoas que não eram adequadas para esse plano.[5]

Olhei para as anotações médicas de pessoas que foram admitidas no asilo de Essex, situado nos arredores de Londres, no início do século XX. Fui ajudada por Joseph Rehling, um estudante de mestrado na UCL. Também nos referimos a uma história do asilo compilada na década de 1950.[6]

Vimos as anotações de 100 homens e 100 mulheres admitidos consecutivamente em 1904. A maioria das pessoas admitidas era da classe trabalhadora; as pessoas mais ricas seriam admitidas em asilos privados ou tomariam outras providências. Todas as pessoas admitidas apresentavam comportamento significativamente perturbado. As pessoas eram frequentemente descritas como “furiosas”, “incoerentes”, “delirantes”; algumas estavam a cantar, gritar ou a orar em circunstâncias incomuns, e muitas foram notadas como incapazes de cuidar de si mesmas. As pessoas se queixavam de ouvir vozes pelo telefone, de ter eletricidade em suas cabeças; uma mulher pensou que seu marido era Jack, o Estripador, e outra que ela era uma máquina a vapor. Classificamos os problemas descritos em termos de conceitos modernos de transtorno mental usando categorias amplas (Tabela 1).

Tabela 1. Classificação Retrospectiva das Apresentações

     Homem (N=100)  Mulher (N=100)   Combinados (N=200) %
Psicose 16 29 22.5%
Mania 11 16 13.5%
Depressão Não-Psicótica 7 9 8%
Depressão Psicótica 5 4 4.5%
Outro transtorno Orgânico (epilepsia, delírio, não especificado) 22 16 19%
Incapacidade de aprendizado 12 7 9.5%
Sífilis 8 2 5%
Transtorno induzido por álcool 5 4 4.5%
Comportamento anormal (não classificável) 1 4 2.5%
Crise pessoal (‘transtorno de ajustamento’) 2 2 2%
Demência 11 1 6%
Mania perinatal ou psicoses 5 2.5%
Depressão pré-natal 1 0.5%
Total 100 100 200

 

Um total de 44% apresentava um transtorno ‘orgânico’, incluindo demência, delírio, epilepsia, dificuldade de aprendizado, sífilis e condições relacionadas ao álcool. 36% tivera um episódio psicótico ou maníaco e 12,5% tivera algum tipo de episódio depressivo, com ou sem sintomas psicóticos. As apresentações de cinco pessoas não foram classificáveis, mas todas mostraram comportamento perturbado, incluindo um jovem que tirou a roupa e atacou funcionários da enfermaria da Workhouse da qual ele foi transferido e uma jovem que ria constantemente e era descrita como “apática” e “inadequada para viver por conta própria”.

Curiosamente, as 100 mulheres incluídas foram admitidas por um período mais curto que os homens, sugerindo que as mulheres eram mais propensas a serem admitidas. As mulheres apresentaram maior taxa de psicose ou mania, e os homens apresentaram maior frequência de distúrbios orgânicos.

Não há dúvida de que as pessoas recebiam alta do asilo, se isso fosse possível. No geral, 45,5% da amostra recebeu alta como ‘recuperada’, ‘melhorada’ ou, em casos raros, ‘não melhorada’ no julgamento do autor médico das anotações do caso. Pouco menos de 30% morreu no asilo, a maioria logo após a admissão. Houve uma diferença acentuada (e estatisticamente significativa) nos resultados daqueles classificados como tendo uma condição orgânica versus aqueles com um problema não orgânico ou psicológico (veja a Figura 1).

Entre os portadores de um distúrbio psicológico (psicose, mania, depressão, condições perinatais, crise comportamental e ‘comportamento anormal’), 62% receberam alta recuperada ou melhorada (52% recuperada e 10% melhorada). Um terço permaneceu no asilo ou foi transferido para outro lugar. Para aqueles com diagnóstico de psicose, a taxa de alta recuperada ou melhorada foi de 33%, com 62% permanecendo no asilo. Entre aqueles com mania, 85% receberam alta recuperada ou melhorada e 11% apresentaram curso crônico e permaneceram no asilo. Entre aqueles com distúrbio orgânico, quase 60% morreram no asilo, mas 22% tiveram alta recuperada ou melhorada.

Figura 1: Resultado de distúrbios orgânicos e psicológicos (%’s)

Infelizmente, não conseguimos analisar o resultado final das pessoas, porque elas podem ter sido readmitidas em vários outros asilos nas proximidades. Esses números estão relacionados apenas ao resultado da admissão atual. Aqueles que receberam alta permaneceram no asilo por uma média de 6,4 meses e as mulheres ficaram mais tempo que os homens (oito meses versus quatro meses).

Curiosamente, algumas pacientes do sexo feminino admitidas com distúrbios psicóticos mostraram evidências de recuperação após períodos prolongados de transtorno. Agnes, por exemplo, uma mulher casada de 52 anos, foi internada com depressão psicótica e continuou em estado agitado por quase dois anos, mas depois melhorou e recebeu alta recuperada. Chrissy, uma garçonete de 27 anos, foi internada com delírios e conversas desmedidas e incoerentes. Dois anos após a admissão, ela ainda era descrita como sintomática, mas após três anos recebeu alta recuperada. Harriet, 30 anos, foi internada com ‘melancolia’ e delírios e mais tarde foi descrita como ouvindo vozes e parecendo ‘perplexa’. Nos anos seguintes, ela ficou ‘excitada e violenta’ e exigiu reclusão, mas recebeu alta ‘recuperada’ cinco anos após a admissão.

Então, o que isso nos diz sobre a natureza e as funções do sistema asilar? Não encontramos evidências de que as pessoas foram admitidas por ‘desvio social’, como filhos ilegítimos, atividade política ou pequenos crimes. A única mulher que foi admitida grávida e deu à luz no asilo teve sintomas psicóticos persistentes e permaneceu no asilo por pelo menos os seis anos seguintes. Os contribuintes locais pagavam pela manutenção dos residentes do asilo, então houve um incentivo para que as pessoas recebessem alta, embora o processo certamente não fosse tão rápido quanto é hoje. Muitos pacientes pareciam receber alta em algumas semanas e, às vezes, meses de intervalo entre serem considerados ‘melhorados’ e receber alta.

Por outro lado, os asilos eram claramente locais onde pessoas incapazes de cuidar de si mesmas ou que perturbavam a paz, por motivos de doenças orgânicas ou distúrbios psicológicos, eram sequestradas até recuperar a saúde ou a sanidade. O fato de muitos deles não terem se recuperado nada se deveu, é claro, a qualquer intervenção médica que atualmente seria considerada terapêutica. Nesse sentido, não era uma intervenção médica para os padrões de hoje. No entanto, parece que psiquiatras, políticos e outros na época acreditavam estar envolvidos em um esforço terapêutico. O sistema de asilo foi fundado na crença de que poderia restaurar a sanidade das pessoas, e eram realizadas inspeções regulares para manter esses objetivos e garantir a qualidade dos cuidados.

Gostaria de saber se as coisas estão tão diferentes hoje? Embora o sistema de saúde mental esteja agora firmemente marcado como ‘médico’, a desejada base biológica como hipótese dos transtornos psiquiátricos ‘funcionais’ não se materializou, e a psiquiatria ainda não possui tratamentos que visem a suposta base biológica dos sintomas, como outras especialidades médicas. Embora possa não corresponder à sua própria autoimagem como uma intervenção técnica moderna e sofisticada, o sistema fornece, no entanto, cuidados para aqueles que são incapazes de cuidar de si mesmos e contenção para aqueles cujo comportamento é perturbador para os outros. Essas pessoas ainda incluem uma mistura daqueles com distúrbios orgânicos e problemas psicológicos.

Os tratamentos modernos podem efetivamente suprimir alguns sintomas, o que pode reduzir o tempo que as pessoas precisam passar em uma instituição, mas não está claro que as taxas de recuperação atuais sejam melhores do que eram no início do século XX. De fato, David Healy e colegas descobriram que as pessoas estavam mais sujeitas a cuidados institucionais em 1996 em comparação com 1896, mas em 1996 o atendimento era mais diversificado, incluindo residências e lares protegidos.[7]

Pesquisas recentes sobre recuperação mostram achados bastante sombrios para pessoas que têm um episódio psicótico ou um diagnóstico de esquizofrenia. Em um estudo randomizado comparando o tratamento com antipsicótico de manutenção com aqueles em uma redução de antipsicóticos tecnicamente acompanhada em pessoas com um primeiro episódio de psicose, apenas 29% das pessoas em geral se recuperaram após 7 anos de acompanhamento – e daquelas que foram alocadas ao tratamento de manutenção antipsicótica, menos de 20 %  foram os recuperados.[8] Outro estudo de follow-up de 15 anos realizado na década de 1990 constatou que mais de 80% das pessoas diagnosticadas com esquizofrenia apresentaram significativa incapacidade social.[9]

Talvez a função de um sistema de saúde mental seja, afinal, fornecer assistência ou ‘asilo’, enquanto tenta, ao mesmo tempo, promover a capacidade de recuperação das próprias pessoas.

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Rehling, J. & Moncrieff, J. (2020). The functions of an asylum: an analysis of male and female admissions to the Essex County Asylum in 1904. Psychological Medicine. doi: https://doi.org/10.1017/S0033291719004021. Published online 15 January, 2020. (Abstract)

Bibliografia:

[1] Jones K (1993) Asylums and After: A Revised History of the Mental Health Services: From the Early 18th Century to the 1990s. Athlone Press: London.

[2] Eloise M (2017) why women were put in asylums in the 19th century. Dazed, 24th March 2017 https://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/35262/1/all-the-reasons-women-used-to-be-put-in-asylums. Accessed 22/08/2019

[3] Cohen BMZ (2016) Psychiatric Hegemony: A Marxist theory of mental illness. Palgrave Macmillan, London

[4] Russell D (1995) Women, madness and medicine. Polity Press: Oxford

[5] Scull A (1993) The Most Solitary of Afflictions: Madness and Society in Britain 1700-1900. Yale University Press: London

[6] Nightingale GS (1953) Warley Hospital, Brentwood. The first hundred years 1853 – 1953. Unpublished manuscript accessed at Essex Record Office, Chelmsford, Essex, UK. Also available at http://www.simoncornwell.com/urbex/projects/w/docs/fhy1.htm

[7] Healy D, Harris M, Michael P, Cattell D, Savage M, Chalasani P, & Hirst D (2005). Service utilization in 1896 and 1996: morbidity and mortality data from North Wales. History of Psychiatry16(1): 27-41

[8] Wunderink L, Nieboer RM, Wiersma D, Sytema S, & Nienhuis FJ (2013). Recovery of first-episode psychosis at 7 years of follow-up of an early dose reduction/discontinuation or maintenance treatment strategy. JAMA Psychiatry 70: 913-20

[9] Wiersma D, Wanderling J, Dragomirecka E, Ganev K, Harrison G, An Der Heiden W, Nienhuis FJ & Walsh D (2000). Social disability in schizophrenia: its development and prediction over 15 years in incidence cohorts in six European centres. Psychological Medicine 30(5): 1155-1167.

(trad. Fernando Freitas)

TDAH – Congresso SINPF: Resposta do Mad in Italy

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O Congresso Nacional da Sociedade Italiana de NeuroPsicoFarmacologia (SINPF) foi inaugurado em 29 de janeiro em Milão, sobre a questão do diagnóstico e tratamento do TDAH (Síndrome de Hiperatividade e Déficit de Atenção), Asperger e outras doenças patológicas do desenvolvimento neurológico. O artigo publicado por Corriere della Sera (1) é um relato dos pontos essenciais do Congresso, mostra que a liderança da SINPF tem entre seus principais objetivos a criação de uma rede de profissionais e associações de familiares em nível nacional, com o objetivo de divulgar os diagnósticos acima e seu possível desenvolvimento ao longo da vida, da infância à maturidade.

O artigo concentra essencialmente a atenção no curso clínico desses problemas que, segundo os oradores, poderiam passar despercebidos e, portanto, negligenciados, causando danos substanciais ao desenvolvimento neuro-emocional do indivíduo.

Nesse contexto, os palestrantes enfatizam a necessidade de diagnóstico precoce para a adoção de intervenções que possam melhorar o curso desses desconfortos, a fim de evitar ou diminuir a extensão do dano emocional que eles podem criar, se crônico, mesmo na idade adulta.

O papel das drogas psiquiátricas é destacado em seus diferentes e potenciais aspectos terapêuticos, tanto em crianças quanto em adultos, e descrito de acordo com preceitos farmacológicos questionáveis atualmente, conforme discutido no decorrer do artigo.

O artigo do Corriere inclui dados dos Estados Unidos, com referência à prevalência dessas patologias, relacionando-os aos possíveis danos econômicos que resultariam, tendo em vista que esses transtornos seriam acompanhados por outros transtornos, como depressão, ansiedade e transtornos do humor.

Como já mencionado, fica claro que, entre os principais objetivos do Congresso, há a necessidade de ampliar os diagnósticos de TDAH e Asperger, até então limitados à idade da infância e adolescência, mas que atingem a idade adulta, a fim de tratar farmacologicamente também esta parte do população.

Nossa resposta:

Ao entender a importância dos desconfortos emocionais que podem afetar a vida de crianças e adolescentes, com potencial para se estender até a idade adulta, é necessário fazer observações referentes aos conceitos expressos no artigo, para ajudar o leitor a formar uma imagem melhor sobre os problemas discutidos no artigo.

Uma primeira observação é que, ao contrário do que tem sido afirmado, o TDAH não é uma síndrome médica válida, mas reflete um amplo espectro de possibilidades para as variações no comportamento da criança. Quando falamos de TDAH não falamos sobre uma patologia orgânica por si só, pois o termo reúne essencialmente um conjunto de sintomas (desatenção, impulsividade e hiperatividade) que podem ser causados ​​por múltiplos fatores psicológicos, pedagógicos, ambientais e culturais.

O TDAH é frequentemente apresentado como um distúrbio do neurodesenvolvimento com bases genéticas; mas, na realidade, não há evidências de alterações orgânicas do sistema nervoso, nem os genes responsáveis ​​pelo distúrbio foram isolados.

A completa falta de parâmetros biológicos também pode ser deduzida do fato de que os diagnósticos, de acordo com o Istituto Superiore di Sanità, são feitos exclusivamente através da administração de testes com família e a escola,  assim como outras avaliações baseadas em entrevistas e exame de sintomas com escalas comportamental (2).

Não há testes clínicos ou laboratoriais que possam confirmar o diagnóstico de TDAH, como é o caso de doenças ou patologias orgânicas, como por exemplo para diabetes.

É dito pelos neuropsiquiatras infantis que o TDAH seria causado por um desequilíbrio químico no cérebro da criança. Em particular, diz-se que as crianças diagnosticadas têm baixas concentrações de dopamina no espaço sináptico. No entanto, é preciso ficar registrado com honestidade frente aos usuários e leitores que esse desequilíbrio químico ainda não foi comprovado.

Sem esclarecer esses conceitos básicos, a hipótese de desequilíbrio químico dá a impressão errônea de que estimulantes, como o metilfenidato (Ritalina), seriam usados para restaurar o equilíbrio.

O metilfenidato, como outros estimulantes, pertence à classe das anfetaminas, possui o mesmo mecanismo de ação que a cocaína e também pode ser considerado mais poderoso que o mesmo, como afirma Nora Volkow (3).

Como nenhuma deficiência de dopamina foi demonstrada nas sinapses de crianças diagnosticadas com TDAH, parece provável que a hipótese nunca verificada da natureza do TDAH tenha decorrido de deduções no mecanismo de ação dos estimulantes, como tem sido feito para outros transtornos mentais, como depressão, psicose etc. (Gilman e Goodman). (4)

Deve-se notar que entender o mecanismo de ação de um medicamento não é o mesmo que entender a causa do distúrbio da doença que se deseja tratar ou curar.

De fato, no que diz respeito às patologias mencionadas no artigo, as evidências científicas não apenas não confirmam a existência de um desequilíbrio químico, mas também mostram que o desequilíbrio químico é induzido pelo uso de drogas psicotrópicas, como amplamente explicado por Robert Whitaker no livro Anatomia de uma Epidemia (5).

Além disso, no que diz respeito à necessidade de tratamento medicamentoso, a ser estendido à idade adulta, muitos estudos alertam sobre os riscos significativos associados ao uso de estimulantes. Esses medicamentos, como mencionado, pertencem à classe das anfetaminas e são classificados pela OMS como medicamentos com alto risco de dependência e abuso; na mesma tabela de cocaína, anfetamina, opiáceos e barbitúricos, enquanto são classificados pela AIFA (Agência de Regulação Italiana de medicamentos) como psicotrópicos para crianças de 6 a 18 anos (6).

Mas há outra consideração importante: quando se trata de TDAH, costuma-se dizer às pressas e erroneamente que o distúrbio estaria em comorbidade com outros distúrbios, como depressão, transtornos maníacos, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo, síndrome de Tourette, ansiedade, disforia, e associados à irritabilidade, hostilidade e agressão, tanto verbal quanto física, ‘crises emocionais’ e crise de raiva, ideias e tentativas de suicídio (7).

O psiquiatra americano Peter Breggin, em seu meticuloso estudo sobre os efeitos das drogas psiquiátricas, publicou muitos livros e artigos nos quais fornece evidências tangíveis de que muitas das doenças acima mencionadas atribuídas à ‘comorbidade’ com o TDAH, na realidade, também seriam os efeitos colaterais aos estimulantes e outras drogas psicotrópicas usadas para controlar os efeitos colaterais dos próprios estimulantes. (8) (9)

Em uma certa porcentagem de casos, portanto, o que é chamado de ‘distúrbios comórbidos’ seria realmente efeitos colaterais de drogas psicotrópicas que, não sendo reconhecidos como tais, são tratados com novas drogas psicotrópicas.

Considerando que não há evidências de que o TDAH seja um distúrbio orgânico, de neurodesenvolvimento e genético, mas que os sintomas que o caracterizam têm muito mais probabilidade de serem psicológicos, pedagógicos e ambientais, modelos de tratamento baseados em intervenções psicológicas e psicossociais parecem muito mais convenientes e adequados.

Concluindo, acreditamos que os usuários e suas famílias devem ser informados sobre esses aspectos dos problemas descritos no artigo, que infelizmente são quase sempre negligenciados.

Para obter informações completas, listamos a lista de empresas farmacêuticas que apoiaram o Congresso Nacional do SINPF, conforme mostrado no site do SINPF:

Bibliografia:

(1)  Asperger e Adhd, ancora troppo poche le diagnosi (e le cure). Corriere della sera, 29 gennaio 2020.

https://www.corriere.it/salute/neuroscienze/20_gennaio_29/asperger-adhd-ancora-troppo-poche-diagnosi-cure-72d6c028-4286-11ea-8fab-5eae1fe9ccd1.shtml

(2)  Istituto Superiore di Sanità. ADHD

http://old.iss.it/adhd/index.php?lang=1&id=233&tipo=1

(3) Volkow ND. Expectation enhances the regional brain metabolic and the reinforcing effects of stimulants in cocaine abusers. J Neurosci. 2003 Dec 10;23(36):11461-8.

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/14673011

(4)  Goodman & Gilman. Pharmacology. July 6 2018.

https://medicostimes.com/goodman-gilmans-pharmacology-pdf/

(5)  Whitaker R. Indagine su un’epidemia. Fioriti Editore, 2013.

(6)  AIFA Concept Paper. Titolo: Gestione farmacologica del disturbo da deficit attentivo con iperattività (ADHD). 20/11/2014

http://old.iss.it/binary/adhd/cont/AIFA_Concept_Paper_ADHD_101214.pdf

(7)  Comorbilità e diagnosi differenziale del disturbo da deficit dell’attenzione e iperattività: implicazioni cliniche e terapeutiche
https://www.aifaonlus.it/ladhd/le-comorbilita.html#ADHD_DISTURBI_DEPRESSIVI

(8)  Breggin R.P. ADHD: Bambini esposti a più farmaci a cominciare dagli stimolanti.

https://mad-in-italy.com/wp-admin/post.php?post=2478&action=edit

(9)  Breggin R.P. ADHD e trattamenti farmacologici

https://mad-in-italy.com/2019/07/adhd-e-trattamenti-farmacologici/

50 ANOS EM 5: COMO O BRASIL ESTÁ REGREDINDO DÉCADAS NA LUTA ANTIMANICOMIAL

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Publicado em Com Ciência, Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, matéria assinada pelos jornalistas Rafael Revadam e Tainá Scartezini.

“A luta antimanicomial no Brasil se desenvolveu a partir da década de 1970. Mais do que questionar as internações compulsórias e as formas de se diagnosticar pacientes de saúde mental, o movimento buscava a reflexão sobre o que é a loucura e a incessante procura por uma sociedade aparentemente normal. Entender doenças como depressão, transtorno bipolar, além dos vícios em drogas e álcool, é enxergar indivíduos por trás de suas condutas. Mas as conquistas de décadas, concretizadas em 2001 com uma lei federal que garantiu proteção e direitos a pessoas portadoras de transtornos mentais, estão sob ameaça. Desde 2015, durante o governo Dilma, posicionamentos conservadores na psiquiatria vêm ganhando espaço e recursos, numa defesa do isolamento como tratamento e da religião como cura.”

Para ter acesso à matéria em sua íntegra, clique aqui →

Revisão bibliográfica: dependência, abstinência e rebote, com usuários de drogas psiquiátricas

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A assistência psiquiátrica brasileira, ou se preferirmos dizer a “reforma psiquiátrica” brasileira, não conseguiu se libertar do modelo biomédico da Psiquiatria. Muito em particular, a hegemonia do tratamento psicofarmacológico na rede de atenção psicossocial criada como substituta à assistência historicamente concentrada no hospital psiquiátrico.

Com efeito, a problemática das drogas é eloquente por si só. Quando o assunto são problemas com o uso de drogas, o senso comum imediatamente faz a associação ao consumo de álcool e das chamadas drogas ilícitas.  E assim sendo, somos informados sobre estimativas do número de dependentes de álcool e/ou maconha e/ou cocaína ou crack, que costumam ser apresentados de forma alarmante em relatórios mundiais sobre drogas.

No Brasil, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas realizado no ano de 2012, estimou que existem na população cerca de 5,7% de brasileiros que são dependentes de álcool e/ou maconha e/ou cocaína, representando mais de 8 milhões de pessoas. Havendo este mesmo levantamento tomando como base que os domicílios no Brasil são compostos por uma média de 3,5 pessoas; por conseguinte, o que é dito é que pelo menos 28 milhões de pessoas vivem hoje no Brasil com um dependente químico dessas drogas.

E o número de dependentes das drogas psiquiátricas?

Sobre as drogas psiquiatras muito pouco se diz. Quando sabe-se que o número de dependentes dessas drogas prescritas é muitas vezes superior ao número dos dependentes de álcool e drogas ilícitas.

No mundo inteiro, em particular aqui no Brasil, pessoas e instâncias do sistema de assistência em saúde pensam ou querem acreditar (deliberadamente?) no tratamento psicofarmacológico como abordagem de frente para dar conta das demandas por tratamento em saúde mental. E que o problema é a não adesão dos pacientes ao tratamento psicofarmacológico prescrito.

Quando na verdade, o que vem sendo denunciado há tempos, por expoentes cientistas, é que os fármacos psiquiátricos fazem muito mais mal do que bem.

O Mad in Brasil (MIB) tem postado sucessivas e variadas matérias a respeito; basta clicar no botão de ‘busca’ para acessar o que nós temos disponibilizado. Não obstante, não é pouco frequente ser dito, em particular pelos próprios profissionais de saúde, que o que está sendo postado não está baseado em uma sólida revisão da literatura científica.

Eu estou cansado de ouvir que o que eles médicos fazem está baseado nos protocolos oficiais.

O que quer dizer, a reforma psiquiátrica aqui no Brasil não tomou entre os seus focos a mudanças dos chamados protocolos com os quais os psiquiatras trabalham e assim se sentem confortáveis. O lugar comum é que a reforma psiquiátrica é um processo complexo  que implica em um trabalho interdisciplinar (bio-psicossocial). Quando se sabe que na prática é o ‘bio’ que sustenta o ‘psicossocial’.  Seja via o diagnóstico, seja via o tratamento psicofarmacológico.

Acaba de ser publicado no último número do periódico científico Brain uma detalhada revisão bibliográfica, atualizada, sobre a dependência química, os sintomas de abstinência e o chamado rebote; fenômenos produzidos pelas drogas psicoativas, com um amplo destaque dado às drogas prescritas enquanto medicamentos psiquiátricos.

A proposta dos autores da revisão em tela, Alicja Lerner e Michael Klein, é não apenas mostrar que as drogas psiquiátricas produzem dependência química e as dificuldades de descontinuação do seu uso, mas também explicitar definições que ajudem a distinguir fenômenos comumente mal compreendidos.

Irei apresentar partes do artigo, na íntegra, e sem aspas. Tomo essa iniciativa para que um maior número possível dos nossos leitores tenha acesso ao que considero como sendo o mais essencial. Mas que fique claro que a revisão bibliográfica é extensa, muito detalhada. Assim sendo, recomendo a todos que leiam na íntegra essa revisão. Reitero: vale a pena ler o artigo em sua íntegra. E que cesse de ser dito que a desconstrução do ‘modelo biomédico’ da psiquiatria não tem fundamentos científicos. Ou que a desconstrução do ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria põe em risco os consideráveis avanços positivos do processo de reforma psiquiátrica no Brasil. Espero que após a leitura dessa revisão atualizada e exaustiva, fique mais do que nunca claro que sem o enfrentamento do ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria, a reforma psiquiátrica será nada mais e nada menos do que reforma da psiquiatria, conforme a conjuntura; e não, uma reforma do sistema de assistência em saúde mental vigente.

O que a literatura científica sugere, o que a experiência clínica mostra no cotidiano, o que as vozes dos usuários dizem, é que não se trata de reformar a psiquiatria, mas sim de reformar o modo como a assistência em saúde mental está estruturada.

Considerações Preliminares

Antes de começarmos a abordar o conteúdo da revisão bibliográfica, peço licença para fazer algumas considerações preliminares.

Faz parte do nosso senso comum associar substâncias psicoativas ao álcool, tabaco e drogas ilícitas. Cientificamente são consideradas substâncias psicoativas qualquer substância química capaz de modificar a função dos organismos vivos, resultando em mudanças fisiológicas ou comportamentais. O termo ainda é sinônimo de substâncias denominadas psicotrópicas ou drogas, que atuam no sistema nervoso central e podem conter propriedades reforçadoras do uso trazendo consequências prejudiciais à saúde física e mental. No que se refere à terminologia, habitualmente são utilizados termos com grande imprecisão e estes são excessivamente genéricos como: ‘tóxicos’, ‘narcóticos’ ou mesmo ‘psicotrópicos’. A Organização Mundial de Saúde, em seu Lexicon of Alcohol and Drugs Terms  define que ‘droga’ é um termo de uso variado. Em medicina, refere-se a qualquer substância com potencial de prevenir ou tratar uma doença, melhorando o estado físico ou mental e na farmacologia é qualquer agente químico que altera os aspectos bioquímicos e fisiológicos de tecidos e organismos. Para os órgãos públicos que definem políticas do Estado com relação às drogas psicoativas, o termo drogas refere-se mais especificamente às substâncias psicoativas ilícitas, utilizadas sem finalidades terapêuticas.

Dependência e drogadição

Para melhor ser iniciada a fenomenologia do que ocorre com os usuários de drogas psiquiátricas, é fundamental que distinções sejam feitas.

Embora os fenômenos de dependência e aqueles gerados pela retirada (abstinência) sejam aspectos importantes da ‘drogadição’ como normalmente é entendida, eles não são os mesmos.

A ‘drogadição’, chamada na psiquiatria como “transtorno de abuso de substância”, aparece no DSM 5, na seção “Transtornos relacionados a substâncias e dependência”. A ‘drogadição’ é definida como o que afeta o cérebro e o comportamento do indivíduo, e representa o incontrolável abuso da droga e uma inabilidade para parar de tomar a droga independentemente do dano que ela causa.

Com efeito, a preocupação está voltada para o álcool e drogas ilícitas quando consideradas como drogas de uso abusivo. Não é por acaso que o sistema de saúde costuma destinar serviços de assistência destinados a usuários de álcool e drogas ilícitas. São os CAPS AD.  Ou as comunidades terapêuticas.

A problemática dos milhares de usuários de drogas psiquiátricas e a sua dependência química aos medicamentos prescritos ainda é fortemente ignorada.

Quando se sabe que o número de dependentes químicos das drogas psiquiátricas é significativamente muito maior do que os dependentes de álcool e drogas ilícitas.

E ainda não contamos com dispositivos institucionais e profissionais capazes de dar suporte aos dependentes das drogas psiquiátricas. Para o senso comum, dependentes de drogas psiquiátricas não é um ‘toxicômano’. O que tem algo realmente a ver. Ainda que, de fato, os usuários das drogas prescritas se tornem dependentes químicos.

Nos últimos tempos maior atenção vem sendo dada aos eventos adversos graves e potencialmente fatais relacionados à retirada e dependência de drogas prescritas pela medicina, que formalmente não estão classificadas como substâncias de potencial abuso. Como é o caso dos efeitos com a descontinuação dos antidepressivos, das benzodiazipinas, estimulantes e antipsicóticos, drogas essas que podem desencadear sintomas perigosos e com ameaças à vida, podendo até mesmo levar ao suicídio.

A proposta dos autores da revisão bibliográfica é que as drogas que estão sendo desenvolvidas e avaliadas pela FDA, sejam classificadas segundo outros critérios de definição de dependência, que vem sendo propostos pela Sociedade Americana de Medicina da Dependência (ASAM), e que passaram a ser empregados desde 2001 pela Academia Americana de Medicina da Dor e Sociedade Americana da Dor. Os critérios são os seguintes:

  • Dependência física’ – usada de três maneiras diferentes: (i) dependência física é um estado de adaptação que se manifesta por uma síndrome de abstinência específica a uma classe de medicamento que pode ser produzida pela interrupção abrupta, rápida redução da dose, redução do nível sanguíneo do medicamento e / ou administração de um antagonista; (ii) dependência psicológica é um senso subjetivo de necessidade de uma substância psicoativa específica, seja por seus efeitos positivos ou por evitar efeitos negativos associados à sua abstinência; e (iii) uma categoria de transtorno do uso de substâncias psicoativas em edições anteriores do DSM, mas não no DSM-5, publicado em 2013.
  • Drogadição’ é caracterizada pela incapacidade de abster-se de forma consistente, pelo comprometimento no controle comportamental, pela fissura para ter acesso à substância, pela diminuição do reconhecimento de problemas significativos com os próprios comportamentos e com relacionamentos interpessoais, e por uma resposta emocional disfuncional. Como outras doenças crônicas, a drogadição geralmente envolve ciclos de recaída e remissão. Sem tratamento ou envolvimento em atividades de recuperação, a drogadição é progressiva e pode resultar em incapacidade ou morte prematura.
  • Tolerância’ – um estado de adaptação no qual a exposição a um medicamento ao longo do tempo resulta na diminuição de um ou mais dos efeitos fisiológicos do medicamento.
  • Síndrome de abstinência’ – o início de uma constelação previsível de sinais e sintomas após a interrupção abrupta ou após a rápida redução da dose de uma substância psicoativa.

‘Drogadição’ e Dependência

É fundamental ser feita a distinção entre ‘drogadição’ e dependência.

Primeiramente, como os autores afirmam, um indivíduo tanto pode ser ‘drogadito’ em uma droga de abuso, ou apenas desenvolver dependência da droga de abuso sem ser um ‘drogadito’. Assim como, para drogas não associadas ao potencial de abuso, um indivíduo ainda pode desenvolver dependência; mas, novamente, isso não seria classificado como ‘drogadição’. Na linguagem popular, socialmente falando, um usuário crônico de um antipsicótico, antidepressivo, ansiolítico, por exemplo, não é um ‘toxicômano’.

A respeito dos fenômenos produzidos com a descontinuação das drogas psiquiátricas, vale a pena ser apresentada essa longa citação, em sua íntegra, a respeito dos benzodiazipínicos:

Qualquer droga usada cronicamente gera gradualmente uma série de respostas homeostáticas que tendem a restaurar a função normal, apesar da presença do medicamento. Com o uso crônico de benzodiazepínico ocorrem alterações compensatórias nos receptores GABA. Tais alterações consistem na diminuição da sensibilidade desses receptores ao GABA, provavelmente como resultado de alterações no estado de afinidade e diminuição da densidade.

Além disso, há alterações nos sistemas secundários controlados pelo GABA, de modo que a saída dos neurotransmissores excitatórios tende a ser restaurada e / ou a sensibilidade de seus receptores aumenta. Todo o complexo de alterações primárias e secundárias acaba resultando em tolerância à benzodiazepina.

O desenvolvimento da tolerância farmacodinâmica define o cenário para a síndrome de abstinência. O cessar da droga expõe todas as adaptações acumuladas para neutralizar a sua presença, liberando um rebote da atividade sem oposição a envolver muitos neurotransmissores e seus receptores e muitos sistemas cerebrais. Clinicamente, esse estado se manifesta como a síndrome de abstinência, consistindo em efeitos que são amplamente opostos aos originalmente induzidos pelo medicamento.

A avaliação da dependência e dos sintomas de abstinência também é necessária como um aviso potencial para médicos e pacientes e deve ser fornecida no rótulo do medicamento para informar se o medicamento pode ser retirado abruptamente no final do tratamento ou deve ser diminuído lentamente para evitar efeitos potencialmente adversos e ameaçadores da vida após uma retirada abrupta. Também é importante informar os indivíduos que abusam do medicamento sobre as consequências para a saúde do desenvolvimento da dependência e dos sintomas de abstiência do medicamento.”

Síndromes de abstinência aguda – características gerais

Os autores especificam os fenômenos relacionados com a abstinência que estão baseados em uma descrição dos aspectos clínicos da abstinência, que surgem após a descontinuação abrupta das drogas psiquiátricas em geral:

  • Novos sintomas (sintomas agudos de abstinência): Sinais e sintomas recentemente emergentes que ocorrem quase imediatamente após a interrupção abrupta do medicamento ou, às vezes, mesmo após a diminuição da dose. Esses sintomas estão relacionados à interrupção das alterações neurorregulatórias (neuroadaptação) estabelecidas durante a administração do medicamento.
  • Rebote: recorrência dos sintomas do transtorno tratado, mais graves do que antes do tratamento.
  • Síndrome de abstinência prolongada: geralmente aparece muito após o período de sintomas agudos de abstinência, podendo durar semanas e meses e, às vezes, se apresentar como um transtorno novo.
  • Recaída. Retorno de sinais e sintomas da doença após a remissão, devido a causas naturais ou ao término do tratamento; ocorre como um fenômeno na história natural do transtorno. Recaída não é um aspecto da dependência; no entanto, é mencionado aqui porque ocorre durante o período de abstinência aguda e precisa ser diferenciado da abstinência propriamente dita.
  • Sintomas da toxicidade retardada da droga: pode ser superposto a sintomas de abstinência aguda e, às vezes, é difícil diferenciá-los.

Destacando o que ocorre com três das classes de drogas psiquiátricas mais prescritas

A revisão bibliográfica aborda a literatura a respeito e diferentes drogas psicoativas. Entre elas destaco as mais frequentemente prescritas pelos médicos, pelo menos entre os brasileiros. Vejamos o que ocorre.

(1) Síndrome de abstinência de benzodiazepínicos (BZ)

Os sintomas de abstinência de BZ podem variar em intensidade. Retirada leve pode incluir ansiedade, apreensão, medo, insônia, irritabilidade, agitação, inquietação, tontura, dor de cabeça, anorexia, perda de peso, dificuldade de concentração, rigidez e dor muscular, hiperosmia, gosto metálico, alterações perceptivas, sudorese e intolerância à luz e som. Os sintomas mais graves incluem náusea, vômito, vertigem, cãibras, fraqueza, tremor, taquicardia, hipotensão postural, hipertermia, ataques de pânico, depressão, reações psicóticas, despersonalização, desrealização, delírio, delírios e alucinações). Os eventos adversos mais graves que podem ocorrer são psicose, delírio, suicídio, convulsões e catatonia em idosos.

O momento dos sintomas de abstinência depende de vários fatores; o principal é meia-vida  do BZ. BZs de ação prolongada incluem diazepam, clordiazepoxide, flurazepam e clorazepate; BZs de ação mais curta incluem oxazepam, lorazepam e triazolam. Para os BZs de ação prolongada, existe um período de latência de 3 a 7 dias para o início dos sintomas de abstinência após a descontinuação do medicamento; enquanto que os sintomas de abstinência de BZs de ação curta podem ocorrer em 24 horas.

O uso de BZ durante as fases posteriores da gravidez pode resultar em sintomas de abstinência no neonato, como apneia, bradicardia, hipertonia, irritabilidade, hipotermia, hiperatividade, taquipneia, inquietação, tremores, hiperreflexia, choro inconsolável, cianose, diarréia, vômito e dificuldades de alimentação.

(2) Síndrome de abstinência de ISRSs antidepressivos e ISNRs

Alguns ISRS mais usados ​​incluem: fluoxetina, fluvoxamina, paroxetina, citalopram e sertralina. Alguns SNRIs usados ​​com mais frequência incluem: venlafaxina, desvenlafaxina e duloxetina.

A síndrome de abstinência de ISRSs e SNRIs é caracterizada pelos seguintes sintomas, gerais: dores de cabeça, sintomas de gripe, taquicardia; gastrointestinais: náusea, vômito, diarréia, anorexia; relacionados ao sono: sonhos irrequietos, pesadelos, insônia ou hipersonia; neuropsiquiátrico: ansiedade, depressão, suicídio, hipomania, agitação, disforia, agressão, alucinações, desrealização e despersonalização, diminuição da concentração, tontura, ataxia, sensações de choque elétrico (‘zaps cerebrais’), confusão e mioclonia

Os sintomas de abstinência de SSRIs e SNRIs têm seu pico de início entre 36 e 96 horas ou mais, dependendo da meia-vida do medicamento, e podem durar até 6 semanas, também dependendo da meia-vida do medicamento. Os ISRSs individuais têm perfis um pouco diferentes de eventos adversos, e parece que a gravidade pode estar relacionada à meia-vida. Observou-se também que a síndrome de abstinência sendo mais comum em pacientes jovens do que em idosos. Freqüentemente, a síndrome de abstinência aguda pode ser seguida por rebote da doença (consulte a seção Rebote) e síndrome de abstinência prolongada (consulte a seção Síndrome de abstinência prolongada).
A notar, há uma tendência na literatura científica de chamar a síndrome de abstinência de SSRIs e SNRIs de ‘síndrome de descontinuação’, que em nossa opinião é cientificamente incorreta e enganosa, pois pode sugerir uma ausência da síndrome de abstinência.  O termo “síndrome de descontinuação” minimiza as vulnerabilidades induzidas pelo ISRS e deve ser substituído por “síndrome de abstinência” .

Além disso, a síndrome de abstinência neonatal associada aos ISRSs foi identificada. Inclui dificuldade respiratória, cianose, convulsões, dificuldade de alimentação, vômitos, hipoglicemia, hipotonia ou hipertonia, hiperreflexia, tremor, nervosismo, irritabilidade, hipertensão pulmonar; e com o uso de paroxetina, enterocolite necrosante.

(3) Síndrome de abstinência de antidepressivos tricíclicos

Alguns antidepressivos tricíclicos mais frequentemente usados ​​incluem: imipramina, clomipramina, amitriptilina, amoxapina, desipramina, doxepina e nortriptilina. Os sintomas de abstinência de antidepressivos tricíclicos podem ser agrupados em quatro síndromes discretas: (i) desconforto gastrointestinal e somático geral com ansiedade e agitação ocasionais, também náusea, vômito, diarréia, dor abdominal e anorexia; (ii) distúrbios do sono, como insônia inicial e média, sonhos vívidos e pesadelos; (iii) parkinsonismo incluindo bradicinesia, rigidez da roda dentada, tremor ou acatisia; e (iv) mania paradoxal. Às vezes, a síndrome de abstinência se apresenta como uma síndrome do tipo gripe; que além de gasto

(4) Síndrome de abstinência de drogas antipsicóticas

Os medicamentos antipsicóticos pertencem a vários grupos farmacológicos: fenotiazinas, tioxantenos, butirofenonas e antipsicóticos atípicos. Para esses medicamentos, os sintomas comuns de abstinência são náusea, vômito, diarréia, anorexia, síndrome do tipo influenza, rinorreia, diaforese, mialgia, parestesia, ansiedade, agitação, inquietação, insônia, vertigem e tremor. Os sintomas podem aparecer 36 a 96 horas ou mais após a descontinuação, redução ou troca da dose, dependendo da duração da ação da droga e duram até 6 semanas. É importante notar que, durante o período de abstinência, também não é incomum a repercussão da psicose, que resulta em reemergência ou agravamento da psicose, ou psicose de supersensibilidade e ocorrência de discinesia tardia emergente da abstinência .

Uma reação rara, mas potencialmente fatal, com taxa de mortalidade de 10% à retirada antipsicótica é uma síndrome neuroléptica maligna (SMN), caracterizada por hipertermia, rigidez muscular, rabdomiólise, instabilidade autonômica, alterações do estado mental , diaforese, incontinência e creatina fosfoquinase elevada.

Os antipsicóticos tomados durante o terceiro trimestre da gravidez podem causar sintomas de abstinência neonatal, que podem incluir agitação, tremor, sonolência, hipertonia, hipotonia, dificuldade respiratória e distúrbio alimentar.

Os efeitos rebote

Outro aspecto da retirada, o chamado fenômeno rebote, ocorre em um período semelhante ao da retirada aguda. O fenômeno rebote é um rápido retorno dos sintomas originais do paciente em uma intensidade maior do que antes do tratamento. A repercussão pode causar em um pequeno subconjunto de indivíduos suscetíveis eventos adversos graves e fatais após a interrupção abrupta do medicamento, como psicose grave após neurolépticos, piora grave da esclerose múltipla após medicamentos imunomoduladores,  ou suicídio após antidepressivos. No entanto, diferentemente dos sintomas de recuperação prolongados das síndromes de abstinência, são transitórios e reversíveis e retornam após dias ou semanas à linha de base.

O levantamento da literatura médica com relação ao ‘fenômeno rebote’ após a retirada dos medicamentos mostra que ele pode aparecer após todas as classes de medicamentos, independentemente de sua formulação química ou ação farmacológica.

O surgimento de rebote é variável para diferentes drogas e pode ser observado em apenas 36 a 96 h para ISRSs e antipsicóticos orais, e em 1 a 5 dias para alguns BZ, como em pacientes com ansiedade experimentando rebote após descontinuação abrupta de bromazepam e diazepam e nos casos de pacientes com insônia após retirada abrupta de triazolam.

Desafios

Conforme é dito pelos autores na Conclusão:

“Os efeitos da descontinuação de medicamentos podem ocorrer e geralmente são negligenciados na farmacologia e na medicina até que eventos clínicos adversos os forçam a serem notados. É vital que a dependência, retirada e recuperação sejam reconhecidas e compreendidas pelos profissionais de saúde, porque esses efeitos podem constituir grandes problemas de segurança. Os dados sobre sintomas agudos de abstinência e rebote obtidos do estudo e avaliação da dependência fornecerão aos médicos e pacientes informações sobre a diminuição gradual da droga e constituirão um alerta sobre possíveis efeitos relacionados à interrupção abrupta da droga.”

Tomando como referência a realidade brasileira, penso eu que além das ameaças de um retorno à assistência ‘hospitalocêntrica’ – conforme o que vem sendo proposto, desde o Governo Temer e agora Governo Bolsonaro -,  o grande desafio é como dar suporte a que os ‘usuários’ deixem de ser pacientes crônicos desse ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria. Hoje em dia, o número de pessoas cronificadas pela Psiquiatria é muitas vezes maior do número de pessoas cronificadas em manicômios no passado.

Será que não teremos que ter Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) destinados àqueles que demandam deixar de ser dependentes químicos das drogas psiquiátricas que lhes foram prescritas?  Os CAPS AD não estão preparados para esse tipo de demanda!

O que acabo de apresentar é apenas trechos destacados dessa revisão bibliográfica.

Espero haver despertado a atenção de cada um de vocês, caro leitor.

E reitero, vale a pena o artigo ser lido por todos. Pelos profissionais de saúde, o que é o obviamente o esperado. Mas muito particularmente pelos usuários do tratamento psicofarmacológico, familiares e suas redes sociais.

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O artigo em sua íntegra →

A Rede de Apoio Como um Fator Protetor para a Saúde das Mulheres

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A Revista Latino – Am. de Enfermagem publicou no ano passado um artigo sobre o papel do apoio social no adoecimento psíquico de mulheres. As autoras analisaram a relação entre os sintomas emocionais e físicos associados a quadros psiquiátricos em mulheres e a percepção que estas apresentam sobre apoio social.

Apoio social é entendido no artigo como o auxílio disponível nas necessidades físicas, psicológicas, materiais, bem como o encorajamento oferecido pelos indivíduos de sua rede de contato. A rede de apoio consiste em pessoas e instituições com as quais o sujeito conta e confia, e podem incluir familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, entre outros.

Estudos têm mostrado a influência positiva da rede de apoio na saúde das pessoas, demonstrando melhoras nas taxas de diminuição no uso de drogas, ajudando a amenizar as consequências negativa do estresse, etc.

Em relação ao gênero, pesquisas apontam que mulheres são mais dispostas a procurar, receber e se beneficiar do apoio social. Ao mesmo tempo demonstram que pelas responsabilidades de cuidado culturalmente atribuída a elas, necessitam acionar mais sua rede de apoio. Considera-se que a percepção de apoio social deve ser considerado como um indicador de saúde mental entre as mulheres. Especialmente, porque estudos apontam que melhores índices de apoio social são inversamente proporcionais a ocorrência de transtornos mentais.

A presente pesquisa é um estudo quantitativo transversal com mulheres atendidas em uma Unidade de Saúde da Família de Ribeirão Preto -SP. A região atendida pela unidade se caracteriza pela violência, pobreza, falta de saneamento e baixa escolaridade. A amostra estimada foi de 141 mulheres na faixa etária entre 18 e 65 anos. Os instrumentos utilizados na entrevista foram um questionário sociodemográfico, o Questionário de Suporte Social (SSQ) e o Self Report Questionaire (SRQ 20).

A maior parte da amostra era casada, branca, católica, tinha um ou dois filhos, não exercia atividade remunerada, com renda familiar de dois a cinco salários mínimos compartilhada com aproximadamente três pessoas. Os casos suspeitos de transtornos mentais alcançou 43, 4% da amostra, havendo associação significativa entre ser mãe e transtornos mentais.

A maioria delas estava satisfeita ou muito satisfeita com sua rede de apoio, e apresentavam de seis a nove apoiadores. Os apoiadores mais mencionados foram
os filhos, o cônjuge e os pais. Do total, apenas sete participantes mencionaram os profissionais da saúde como apoiadores. Também notou-se associação significativa entre não citar amigos como apoiadores e transtornos mentais. Já as mulheres pouco satisfeitas com sua rede de apoio e com filhos tiveram cerca de sete vezes mais chance de apresentar sintomas característicos de algum trastorno mental em relação aquelas satisfeitas com sua rede e sem filhos.

Os resultados do estudo apontam para questões relacionadas à desigualdade de gênero e sua interação com outros atributos, como raça, renda, escolaridade, entre outros. Nesse sentido, as autoras julgam importante considerar estes atributos ao planejar ações de saúde da mulher, já que se caracteriza como um importante determinante de saúde e saúde mental.

“O fato dos principais sintomas mencionados pelas
participantes ser o cansaço, a tristeza e o nervosismo,
corrobora estudos prévios. Tal resultado, analisado à
luz das características sociodemográficas, nos remete a
uma situação de vulnerabilidade que combina aspectos
psíquicos e sociais. Entende-se que o contexto de vida
dessas mulheres contribui de modo importante para o
aumento de tais sintomas, potencializando os riscos de
apresentar transtornos mentais.”

Ter amigos na rede de apoio é um fator protetor para as mulheres, pois representa certa diversificação nas fontes de apoio social. Ter filhos apareceu nos resultados como um fator de risco, sugerindo que a responsabilidade com os filhos, atribuída as mulheres, pode contribuir para altos índices de estresse. Ao mesmo tempo, os filhos apareceram como um dos grupos de apoiadores. Outro elemento destacado é o fato dos profissionais de saúde serem os menos citados como apoiadores, quando participam de uma parte significativa da vida dessas mulheres. Entre outros fatores, as autoras se perguntaram sobre o acolhimento oferecido pelos serviços de saúde.

Dessa forma, a rede de apoio demonstra ser relevante para as questões de saúde mental, especialmente de mulheres, assim como elementos ligados a gênero, raça, renda e outros. Levando essas questões em consideração, os profissionais de saúde podem promover uma escuta qualificada para além das questões físicas, possibilitando a elaboração de ações com maior grau de resolutividade, como a criação de apoio entre pares, rodas de conversa, ações para melhorar o manejo de estresse, entre outros. A partir dessa mudança, os profissionais e o serviço de saúde podem ser percebidos por essas mulheres como parte da sua rede de apoio, ajudando a diminuir a vulnerabilidade a que estão expostas.

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Gaino LV, Almeida LY, Oliveira JL, Nievas AF, Saint-Arnault D, Souza J. The role of social support in the psychological illness of women. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2019;27:e3157. (Link)

Maior pesquisa de experiências com antipsicóticos revela resultados negativos

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Em uma nova pesquisa internacional, a maior feita até o momento, os pesquisadores descobriram que mais da metade dos usuários de antipsicóticos relatam apenas experiências negativas com os medicamentos. O estudo on-line foi conduzido por John Read e Ann Sacia, da Universidade de East London, e publicado no periódico líder na temática, Schizophrenia Bulletin. Seiscentos e cinquenta pessoas de 29 países diferentes responderam a perguntas sobre sua experiência em primeira pessoa com uso de antipsicóticos. O pesquisador John Read comentou:

“Essas 650 pessoas confirmam os achados de pesquisas de dimensão menor feitas com drogas, nos quais os antipsicóticos são melhores que o placebo para apenas cerca de 20% das pessoas e causam uma gama assustadora de efeitos adversos graves. Por décadas, as empresas farmacêuticas exageraram os benefícios e subestimaram os efeitos colaterais desses poderosos agentes tranquilizantes.”

Creative commons

Tradicionalmente, a psiquiatria concentra-se apenas em relatos dos profissionais de saúde mental para declarar se um tratamento é bem-sucedido ou ineficaz. Isto é especialmente verdadeiro com referência à base de evidências com medicamentos antipsicóticos, que têm sido marcada por controvérsias há décadas. No entanto, os antipsicóticos continuam sendo o tratamento mais proeminente para a esquizofrenia e outros transtornos psicóticos, e são usados regularmente para outras condições como “transtorno de personalidade borderline“, “depressão” e são rotineiramente administrados a crianças em orfanato.

Embora os estudos tenham atribuído declínio cognitivo e recuperação prejudicada com o uso de antipsicóticos, menos atenção tem sido dada às experiências em primeira pessoa dos pacientes com esses medicamentos. Em um caso em que um psiquiatra experimentou as drogas e documentou sua experiência, ele escreveu a respeito:

“Eu não posso acreditar que eu tenho pacientes que andam em torno de 800mg com esse material. Não há como, em sã consciência, poder administrar essa oferta (sic), a menos que um paciente consinta ficar com 20 horas de sono por dia. Tenho certeza de que existe um nicho de mercado para este medicamento. Tem que haver uma população de pacientes que não quer sentir emoções, trabalhar, fazer sexo, cuidar de suas casas, ler, dirigir, fazer coisas e que deseja diminuir seu QI em 100 pontos.”

Outros efeitos adversos dos antipsicóticos incluem problemas de saúde cardíaca, atrofia cerebral e aumento da mortalidade. Apenas recentemente os pesquisadores começaram a explorar as experiências dos pacientes com medicamentos antipsicóticos. Existem evidências que sugerem que alguns usuários acreditam que os antipsicóticos prejudicam a recuperação. No entanto, esses relatos em primeira pessoa não desempenham um papel significativo na forma como esses medicamentos são avaliados.

As abordagens psicossociais, como a abordagem do diálogo aberto, o movimento dos ouvidores de vozes e outras formas autóctones de ajuda, sugerem que os sintomas psicóticos podem ser tratados com o mínimo uso de drogas.

Esta pesquisa atual apontada como a maior até hoje feita está chegando justamente em um momento em que os antipsicóticos estão sob crescente escrutínio. Seiscentos e cinquenta usuários da pesquisa em 29 países responderam a perguntas da Pesquisa sobre a Experiência com Antidepressivos e Antipsicóticos. Para este estudo, Read e Sacia usaram as respostas dadas a duas perguntas abertas: “No geral na minha vida, os medicamentos antipsicóticos têm sido ____” e “Há mais alguma coisa que você gostaria de dizer ou enfatizar sobre sua experiência com drogas antipsicóticas?

Foi realizada uma análise temática, e três componentes do estudo foram categorizadas: experiência positiva, experiência negativa e experiência mista. Read e Sacia descobriram que apenas 14,3% relataram que sua experiência com antipsicóticos havia sido puramente positiva, 27,9% dos participantes tiveram experiências mistas e a maioria dos participantes (57,7%) relatou apenas resultados negativos.

Cerca de 22% dos participantes relataram que os efeitos dos medicamentos foram mais positivos do que negativos na escala de Classificação Antipsicótica Global, com quase 6% chamando sua experiência de “extremamente positiva”. A maioria dos participantes teve dificuldade em articular o que havia de positivo em sua experiência, mas cerca de 14 pessoas notaram uma redução nos sintomas e 14 outras notaram que isso as ajudou a dormir.

Dos que declararam ter efeitos adversos, 65% relataram sintomas de abstinência e 58% relataram pensamentos de suicídio. No total, 316 participantes reclamaram dos efeitos adversos dos medicamentos. Estes incluíram ganho de peso, acatisia, entorpecimento emocional, dificuldades cognitivas e problemas de relacionamento. Um paciente declarou:

“Minha primeira e única tentativa de suicídio foi por causa da inquietação da acatisia. Ninguém poderia ter uma ideia de quanta dor eu estava sentindo.”

Outro observou: “Eles tiraram a única coisa em que eu já tinha sido capaz de confiar: a minha mente, e a tornaram inútil”.

Resultados semelhantes foram relatados em uma revisão recente, que constatou que, enquanto alguns pacientes relataram uma redução nos sintomas dos antipsicóticos, outros afirmaram que causaram sedação, embotamento emocional, perda de autonomia e um senso de resignação. Os participantes da pesquisa atual também se queixaram dos efeitos adversos persistentes dos antipsicóticos, muito tempo depois de interromperem o uso.

É importante ressaltar que esses temas negativos também incluíram interações negativas com os prescritores da medicação. Os participantes relataram falta de informações sobre efeitos colaterais e efeitos de abstinência, falta de apoio dos prescritores e falta de conhecimento sobre alternativas; alguns observaram que foram diagnosticados incorretamente e os antipsicóticos pioraram as coisas.

Um participante disse: “Não fui avisado sobre os efeitos permanentes / semipermanentes dos antipsicóticos que recebi”. Outro observou: “A maioria dos médicos não tem ideia. Eles dão as costas aos pacientes que sofrem, negando a existência dos problemas com retirada.”

Esse é um achado importante, pois pesquisas anteriores mostraram que relacionamentos positivos com o profissional de saúde mental são considerados por muitos pacientes que sofrem de psicose no primeiro episódio como essenciais para a recuperação.

Read e Sacia escrevem que a principal conclusão é que os usuários dos serviços desejam que os médicos desenvolvam relações de respeito e colaboração com eles. Eles escrevem que isso requer:

“… O fornecimento de informações completas sobre todos os possíveis efeitos adversos, incluindo sedação, suicídio e efeitos de abstinência, e sobre vias alternativas de tratamento; e responder respeitosa e terapeuticamente quando os pacientes expressam o tipo de preocupação levantada neste estudo e nos 35 estudos qualitativos anteriores “.

Os pesquisadores observam que o estudo tem certas limitações, como o uso de ‘amostragens por conveniência’*. Além disso, sua natureza online pode restringir o uso aos economicamente favorecidos, uma vez que eles têm fácil acesso à Internet.

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* A amostragem por conveniência é um tipo de amostragem não probabilística que envolve a coleta da amostra daquela parte da população que está próxima.  Cf. definição wikepedia.

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Read, J. & Sacia, A. (2020). Using open questions to understand 650 people’s experiences with antipsychotic drugs. Schizophrenia Bulletin. First published online: 12 February 2020. https://doi.org/10.1093/schbul/sbaa002 (Link)

 

Peter Kinderman – Por que precisamos de uma revolução nos cuidados de saúde mental?

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Nesta semana, na Rádio MIA, conversamos com o professor Peter Kinderman. Peter é professor de psicologia clínica da Universidade de Liverpool, consultor honorário de psicologia clínica do Mersey Care NHS Trust e consultor clínico de saúde pública na Inglaterra, Reino Unido. Foi presidente da Sociedade Britânica de Psicologia (BPS) em 2016-2017 e duas vezes presidente da Divisão de Psicologia Clínica da BPS. Sua atividade de pesquisa e trabalho clínico concentram-se em problemas sérios e duradouros de saúde mental, bem como em como a ciência psicológica pode auxiliar as políticas públicas em saúde e assistência social. Seu livro anterior A Prescription for Psychiatry: Why We Need a Whole New Approach to Mental Health and Wellbeing, foi lançado em 2013.

Nesta entrevista, discutimos o novo livro de Peter, A Manifesto for Mental Health, Why We Need a Revolution in Mental Health Care, que apresenta uma perspectiva radicalmente nova e distinta que examina criticamente o ‘modelo de doença’ dominante dos cuidados de saúde mental.

O livro destaca evidências persuasivas de que nossa saúde mental e bem-estar dependem amplamente da sociedade em que vivemos, das coisas que acontecem conosco e de como aprendemos a entender e responder a esses eventos. Peter propõe uma rejeição de rótulos de diagnóstico inválidos, ajuda prática ao invés de  medicamentos e um reconhecimento de que a angústia é geralmente uma resposta humana compreensível aos desafios da vida.

Conteúdos da entrevista:

  • O que levou Peter a se interessar por psicologia, tendo inicialmente se interessado por física e filosofia.
  • Como seu trabalho acadêmico e clínico foram influenciados ou ao longo de sua carreira.
  • Por que é importante desafiar as principais mensagens de saúde mental, não apenas como um exercício acadêmico, mas também para o bem da sociedade.
  • Que está bem claro que atualmente temos um sistema muito ruim para responder ao sofrimento emocional.
  • Como não estamos oferecendo ajuda para problemas do mundo real.
  • É essencial que ofereçamos às pessoas uma estrutura alternativa de entendimento para que elas possam decidir por si mesmas qual a melhor forma de enquadrar e, portanto, responder à dificuldade.
  • Que Peter observou mudanças na linguagem que estão ajudando a apoiar a percepção pública de que ‘doença mental’ é uma ideia ou teoria, e não um fato inegável.
  • Como uma resposta à saúde mental com base psicossocial pode funcionar.
  • Como nosso sistema hierárquico de saúde confere aos médicos um poder enorme.
  • Que os países nórdicos evoluíram para uma abordagem mais socialmente integrada e baseada na comunidade, que integra melhor a saúde e a assistência social.
  • Como aqueles que criticam o modelo da doença são, às vezes, vistos como “negadores de experiências reais”, mas que isso é uma descaracterização porque se trata mais de entender essas experiências de uma maneira diferente ou de usar uma estrutura diferente.

O livro → A Prescription for Psychiatry: Why We Need a Whole New Approach to Mental Health and Wellbeing

Crise na Rede de Assistência em Saúde Mental no Rio de Janeiro

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Pamela_Perez

Publicado na página Frente Estamira de CAPS:

“A Frente Estamira de CAPS se solidariza e apoia o movimento dos trabalhadores da saúde no município do Rio de Janeiro e vem, por meio desta nota, informar que participará da reunião que irá debater a grave situação da saúde na cidade. A reunião será no dia 18/02/2020 (próxima terça-feira), às 16h, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, campus da Praia Vermelha (sob ameaça de alienação imobiliária), no auditório Leme Lopes do Instituto de Psiquiatria (IPUB).”

Confira a Nota na página da Frente Estamira  → clicando aqui.

Pamela_Perez

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