Descendo mais no buraco de coelho da pesquisa sobre a síndrome de abstinência de antidepressivos

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Para aqueles que ainda estão interessados ​​no recente debate sobre a síndrome de abstinência dos antidepressivos, aqui está um novo e importante segmento.

Antes de chegarmos à parte essencial, vamos primeiro lembrar que a nossa revisão sistemática apresentada em Addictive Behaviors (2018) mostrou, entre outras coisas, que cerca da metade das pessoas que param de tomar antidepressivos experimentam sintomas da abstinência. Essa conclusão foi criticada em um blog de Joseph Hayes e Sameer Jauhar, ao qual respondemos apontando os muitos erros e deturpações graves do blog (vejam a nossa resposta aqui).

A nossa resposta a esse blog, no entanto, não tratou de uma das principais críticas feitas por Hayes e Jauhar: que a nossa revisão sistemática não incluiu cinco ensaios de controle randomizados (ECRs). (Estes ECRs foram: Baldwin 2004 & 2004b; Lader 2004; Montgomery 2003 & 2004.) Eles alegaram que esses cinco ensaios, embora se concentrassem principalmente na eficácia dos antidepressivos, também continham dados sobre a ‘incidência’ da abstinência – isto é, sobre a real dimensão do fenômeno. Se tivéssemos incluído esses dados em nossa revisão, sustentaram Hayes e Jauhar, o número de pessoas que sofrem de abstinência de antidepressivos teria sido menor do que o relatado por nós, talvez em cerca de 10% (inferimos esses 10% das tabelas que produziram em sua crítica no blog original). Foi, portanto, negligente ou desonesto da nossa parte, eles insinuaram, não havermos incluídos os dados desses estudos.

Hoje, gostaríamos de lidar brevemente com a crítica desse específico blog, não apenas para mostrar como ela é infundada, mas sobretudo porque ao buscarmos os fundamentos da crítica obtivemos um insight crucial sobre o quão sombrias e eticamente suspeitas são as pesquisas com antidepressivos quando passam a ser vistas de perto.

A primeira coisa a notar quando se olha para estes cinco ‘estudos’ é que a empresa farmacêutica, a Lundbeck, financiou todos esses estudos. Além disso, todos os cinco estudos foram realizados e escritos (total ou parcialmente) por funcionários da Lundbeck, que chegaram à conclusão de que seus antidepressivos eram superiores aos medicamentos concorrentes.

A segunda coisa a notar sobre esses estudos é que três deles não foram publicados como estudos completos. Em vez disso, eles foram publicados como curtos ‘suplementos de pesquisa’  – cada um com cerca de 300 palavras. Para aqueles que não sabem muito sobre ‘suplementos de pesquisa’, eles são basicamente resumos de estudos financiados pela indústria que algumas revistas publicarão em troca de uma taxa cobrada pelo serviço. Escusado será dizer que os óbvios conflitos de interesses que estes suplementos envolvem, bem como os sérios desafios que se apresentam a qualquer pessoa que queira avaliar adequadamente os métodos deles (suplementos não fornecem detalhes suficientes para isso). Essas são apenas duas entre as inúmeras razões éticas e científicas para que muitas revistas credíveis, como a Lancet, agora se recusem a publicá-las.

A terceira e mais desconcertante revelação sobre esses cinco ‘estudos’ e, por extensão, as supostas evidências sobre as quais Hayes e Jauhar baseiam a sua crítica, é que nenhum dos cinco estudos realmente contém dados sobre a incidência da abstinência quando se para de tomar antidepressivos. Com outras palavras, esses cinco estudos não contêm os mesmos dados que Hayes e Jauhar alegaram que tenhamos ignorado.

Embora isso, é claro, explique por que não incluímos esses estudos em nossa revisão sistemática, isso não explica por que Hayes e Jauhar afirmaram que os dados estavam lá. Podemos apenas supor que Hayes e Jauhar não verificaram esses cinco estudos. Em vez disso, eles simplesmente citaram um artigo financiado pelo laboratório farmacêutico Lundbeck, que foi publicado três anos depois (por Baldwin et al., 2007), que de alguma forma ‘cita’ dados desses cinco estudos originais que na verdade nunca foram incluídos neles.

Duas implicações disso surgem:

Em primeiro lugar, e mais obviamente, baseando seus argumentos em fundamentos tão duvidosos, Hayes e Jauhar invalidam muitas de suas principais críticas, como a opinião de que a taxa de ocorrência de síndrome de abstinência apresentada nos ECRs está mais próxima de 40% do que dos nossos 50%, insinuando que não fomos o suficientemente meticulosos (ou, o que é pior ainda, que fomos tendenciosos) por não incluir esses cinco ECRs.

A segunda implicação diz respeito a por que tais práticas de pesquisa são permitidas. Como um artigo posterior pode citar dados de ‘estudos’ financiados pela empresa e que não relatam esses dados (e muito menos informam os mecanismos pelos quais esses dados foram coletados)? E como indivíduos, jornais e comunidades de profissionais podem permitir ou fazer uso dessas práticas suspeitas e, ao mesmo tempo, receber ajuda financeira das empresas para beneficiar-se delas?

Ambas as implicações só podem aumentar a crescente inquietação das comunidades de usuários, dos profissionais e dos serviços quanto ao estado empobrecido da pesquisa sobre a retirada de medicamentos psiquiátricos. Onde tal pesquisa existe, ela é dispersa e mínima (e sua metodologia é para minimizar os efeitos da retirada). E onde tal pesquisa exerce influência, parece que o faz menos em nome dos pacientes (cuja retirada muitas vezes carece de reconhecimento e apoio adequados) do que daqueles que promovem, defendem ou sempre prescrevem amplamente essa classe de psicofármacos.

Referências utilizadas:

  1. Baldwin DS, Hindmarch I, Huusom AKT, Cooper J (2004a). Escitalopram and paroxetine in the short and long-term treatment of major depressive disorder (MDD). International Journal of Neuropsychopharmacology 7 (Suppl. 2), S168–S169.
  2. Baldwin DS, Huusom AKT, Mæhlum E (2004b). Escitalopram and paroxetine compared to placebo in the treatment of generalised anxiety disorder (GAD). European Neuropsychopharmacology 14 (Suppl. 3), S311.
  3. Lader M, Stender K, Burger V, Nil R (2004). The efficacy and tolerability of escitalopram in 12- and 24-week treatment of social anxiety disorder: a randomised, double-blind, placebo-controlled, fixed-dose study. Depression and Anxiety 19, 241–248.
  4. Montgomery SA, Durr-Pal N, Loft H, Nil R (2003). Relapse prevention by escitalopram treatment of patients with social anxiety disorder (SAD). European Neuropsychopharmacology 13 (Suppl. 4), S364.
  5. Montgomery SA, Huusom AKT, Bothmer J (2004a). A randomised study comparing escitalopram with venlafaxine XR in patients in primary care with major depressive disorder. Neuropsychobiology50, 57–64.
  6. Lundh A, Barbateskovic M, Hróbjartsson A, Gøtzsche PC. (2010) Conflicts of interest at medical journals: the influence of industry-supported randomised trials on journal impact factors and revenue – cohort study. P L o S Medicine. 2 (1);7(10):e1000354. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1000354
  7. The perils of journal and supplement publishing. Lancet 2010; 375(9712): 347. DOI:https://doi.org/10.1016/S0140-6736(10)60147-X
  8. Baldwin DS, Montgomery SA, Nil R, Lader M. (2007) Discontinuation symptoms in depression and anxiety disorders. International Journal of Neuropsychopharmacology. 1;10(1):73-84.

Co-autor:

James Davies, PhD

Dr. James Davies é um dos fundadores do Council for Evidence Based Psychiatry (CEP) e é editor do livro The Sedated Society: The Causes and Harms of our Psychiatric Drug Epidemic. Graduou-se pela University of Oxford em 2006 com um PhD em antropologia médica e social.  Ele é professor senior em antropologia social e psicoterapia na University of Roehampton e é clínico psicoterapeuta, havendo trabalhado para MIND e para o NHS.

Guia para o uso mínimo de antipsicóticos: Por que e Como?

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Este guia fornece uma revisão abrangente dos antipsicóticos e uma justificativa baseada em evidências para o tratamento de pacientes no primeiro episódio, sem o uso imediato de antipsicóticos; também orienta os médicos como prescrever antipsicóticos em doses baixas quando eles são necessários; e, finalmente, fornece informações para os profissionais de saúde possam melhor apoiar pacientes que desejam reduzir a medicação antipsicótica.

Autores: V. Aderhold, Instituto de Psiquiatria Social da Universidade de Greifswald, Alemanha; P. Stastny, Departamento de Epidemiologia, Universidade de Columbia, Nova York.

Clicar no link →

Desenvolver Alternativas para o DSM é a demanda dos Psicoterapeutas

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Um novo artigo, publicado no Journal of Humanistic Psychology, destaca achados recentes que sugerem insatisfação dos psicoterapeutas com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quinta edição (DSM-5). O artigo enfatiza a oportunidade de se desenvolver uma alternativa ao DSM-5, que o autor, psicólogo Jonathan Raskin, argumenta, deve incluir os seguintes cinco elementos:

  1. Colocar fatores psicossociais em pé de igualdade com fatores biológicos;
  2. Categorizar problemas, não pessoas;
  3. Ser cientificamente fundamentado;
  4. Ser desenvolvido de forma colaborativa;
  5. Ser utilizável em orientações, profissões e bases eleitorais .

“O fato de psicólogos e conselheiros estarem interessados ​​em alternativas sugere uma relação desconfortável entre psicoterapeutas e o modelo médico de diagnóstico do DSM que eles usam regularmente”, escreve Raskin, um terapeuta e professor de psicologia na SUNY New Paltz.

Desde a transição para sua quinta edição em 2013, o DSM  tem sido alvo de intensa crítica. Críticos têm desafiado a confiabilidade e a validade do manual, apontando os múltiplos conflitos de interesse envolvidos em seu desenvolvimento e têm pedido um boicote ao texto. Apesar dessas críticas, os terapeutas e assistentes sociais ainda permanecem amplamente dependentes do manual de acesso para o reembolso dos serviços prestados.

“Tanto os psicólogos quanto os conselheiros tiveram preocupações sobre o DSM-5, apesar de mais de 90% deles dizerem que planejam usá-lo, o que não é surpreendente, dada a sua centralidade em ajudar os profissionais a serem pagos”, escreve Raskin. “No entanto, quando perguntados, psicólogos e conselheiros expressaram apoio ao desenvolvimento de alternativas ao DSM.”

Os entrevistados levantaram preocupações sobre a falta de validade e confiabilidade no manual e destacaram a incongruência entre as classificações medicalizadas oferecidas pelo DSM-5 e a complexidade mais variada do sofrimento humano testemunhado na prática.

“Ao ver o sofrimento humano como uma função de cérebros danificados o DSM frequentemente negligencia a interação complexa e mutuamente determinante dos fatores psicológicos, socioculturais, contextuais e biológicos”, explica Raskin. “Embora o DSM não ignore completamente os fatores psicossociais, ele normalmente os trata como variáveis ​​externas que influenciam, mas são distintas, da suposta principal causa do sofrimento emocional: uma disfunção no indivíduo”.

Classificação Internacional de Diagnósticos , décima edição (CID-10) foi citada como alternativa ao DSM-5. No entanto, os críticos argumentam que a mudança não resolveria os problemas centrais do DSM-5.

“Mudar do DSM para o CID não é uma grande mudança, porque ambos os manuais são conceitualmente semelhantes, há até o compartilhamento dos mesmos códigos de diagnóstico. Ambos atribuem o sofrimento ao transtorno categórico que as pessoas têm e, ao fazê-lo, encobrem fatores psicossociais ”.

Outra alternativa ao DSM é a iniciativa Research Domain Criteria (RDoC). O objetivo do RDoC é “estabelecer raízes de categorias diagnósticas em etiologia biológica”. No entanto, Raskin argumenta que essa abordagem pode ser “equivocada porque pode não ser possível diagnosticar e explicar todas as formas de sofrimento humano em termos de processos biológicos subjacentes; crenças, cultura e espiritualidade podem ser fatores iguais ou mais importantes ”.

“Isso não é o mesmo que dizer que a biologia é irrelevante”, escreve Raskin. “Tudo o que as pessoas fazem está biologicamente baseado. Dito isto, a biologia é nem sempre um determinante unidirecional da emoção e do comportamento. Fatores psicológicos, sociais e contextuais influenciam a biologia tanto quanto a biologia os influencia ”.

Em seu artigo, Raskin descreve os elementos que um manual alternativo deve incluir. Ele argumenta que tal alternativa deve colocar os fatores psicossociais em pé de igualdade com os fatores biológicos, categorizar os problemas, não as pessoas, ser fundamentada cientificamente, desenvolvida de forma colaborativa e utilizável em todas as orientações, profissões e grupos constituintes. Ele faz as seguintes recomendações:

  1. Gerar um sistema que não esteja vinculado a nenhuma orientação teórica específica que não seja aquela que vê todas as formas de aconselhamento e psicoterapia como meio de usar uma combinação de conversação, envolvimento relacional e intervenção comportamental para ajudar os clientes a lidar com suas preocupações.
  2. Construir um sistema que envolva todos os grupos e profissões relevantes no processo de sua criação; isso significa não apenas envolver representantes das várias profissões de ajuda, mas também garantir um lugar à mesa para os usuários dos serviços e seguradoras que cobrem os serviços.
  3. Incluir uma maneira prática de os médicos codificarem as preocupações que as pessoas trazem para o consultório e fornecer evidências de que podemos efetivamente ajudar as pessoas com essas preocupações, e assim permitir que as seguradoras vejam que o está sendo oferecido está empiricamente apoiado e seus interesses financeiros respondidos.

Embora uma alternativa ao sistema atual demande muito esforço, artigos como o de Raskin estão levando a conversa adiante. Ele conclui:

“A mudança para desenvolver alternativas de diagnóstico é, reconhecidamente, uma tarefa desencorajadora. Se é para ocorrer um dia, devemos começar em algum lugar. Encorajo ainda se aprofundar a consideração dos elementos necessários para um esforço bem-sucedido”.

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Raskin, J. D. (2018). What Might an Alternative to the DSM Suitable for Psychotherapists Look Like? Journal of Humanistic Psychology, 0022167818761919. (Link)

Retirada de antidepressivos: um transtorno desconhecido?

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Em 1977, George Libman Engel, um clínico e psiquiatra estadunidense, que passou a maior parte de sua carreira no Centro Médico da Universidade de Rochester, em Rochester, NY, e quem deu uma contribuição seminal à medicina através da formulação do modelo biopsicossocialcriticou a cultura médica dominante daqueles dias. Ele disse que o dogma biomédico exige que todas as doenças, incluindo as doenças ‘mentais’, sejam conceitualizadas em termos de desarranjo dos mecanismos físicos subjacentes. Ele acrescentou que isso permite apenas duas alternativas de comportamento e abordagem médicos: o reducionista, que diz que todos os fenômenos da doença devem ser conceituados em termos de princípios físico-químicos; e o excludente, que diz que tudo o que não é capaz de ser assim explicado deve ser excluído da categoria de doenças. Os reducionistas admitem que alguns distúrbios pertencem ao espectro da doença, categorizando-os como doenças mentais. Os excludentes consideram a doença mental como um mito.

 Vamos traduzir para a prática as consequências das abordagens reducionistas e excludentes mencionadas acima, tomando como base a seguinte história clínica:

John é um homem de 35 anos tratado para um diagnóstico de transtorno do pânico com Paroxetina (Paxil) ao longo de cinco anos. Dois meses atrás, John decidiu diminuir e interromper a Paroxetina, porque estava em boa saúde há três anos. Alguns dias após a interrupção da Paroxetina, John apresentou sintomas semelhantes aos da gripe, fadiga, tontura, confusão e leves mudanças de humor. Primeiro, ele pensou que estava gripado por causa da temporada de inverno e porque muitos colegas de trabalho tinham se gripado, mas quando, depois de duas semanas, ele ainda apresentava esses sintomas, decidiu ir ao clínico geral.

Aqui o excludente entra em cena. O médico garantiu a John que se tratava de uma gripe e, quando John disse que tudo começou apenas alguns dias após a interrupção da Paroxetina, o médico disse que esses sintomas não podiam ser explicados pela interrupção, portanto, que deviam ser excluídos da categoria de doença mental e simplesmente considerados uma gripe. O médico sugeriu que John usasse anti-inflamatórios não esteroides por alguns dias. Como depois de mais duas semanas, John ainda tinha sintomas de gripe, fadiga, tontura, confusão, mudanças moderadas de humor, e também pesadelos e taquicardia, ele decidiu pedir uma consulta com o psiquiatra que lhe havia prescrito Paroxetina pela primeira vez.

Aqui o reducionista entra em cena. O psiquiatra admitiu que a síndrome de interrupção antidepressiva foi documentada na literatura médica e que os sintomas descritos por John podem pertencer a esse espectro da doença. No entanto, afirmando que as síndromes de interrupção são raras e os sintomas são de curta duração, o psiquiatra excluiu a possibilidade de que fosse a interrupção e explicou os sintomas de John como a fase inicial de uma recaída do transtorno do pânico. Assim, o psiquiatra sugeriu que John voltasse à Paroxetina para eliminar os sintomas. John voltou a tomar Paroxetina e em dois dias os sintomas desapareceram. Ele informou o psiquiatra dessa melhora rápida e o psiquiatra sugeriu que ele não interrompesse a Paroxetina novamente.

Em 1977, George Libman Engel propôs uma alternativa aos reducionistas e aos excludentes. Ele sugeriu que médicos, e entre psiquiatras, precisam de um modelo biopsicossocial. O escopo do modelo é determinado pela função histórica do médico em estabelecer se a pessoa que solicita ajuda está ‘doente’ ou se está ‘bem’ – e estando doente, porque doente e de que maneira está doente – e então desenvolver um programa racional para tratar a doença. e restaurar e manter a saúde.

Vamos traduzir este conceito em prática, mais uma vez, usando a história de John, que eu inventei, embora se pareça com a história clínica de muitos pacientes que eu abordo diariamente.

Vamos imaginar que John não esteja convencido pela opinião do psiquiatra e, em vez de voltar à Paroxetina, ele decida consultar outro psiquiatra que ele encontrou mencionado em uma página da web sobre Paroxetina e problemas relacionados à sua interrupção (por exemplo, este). Este segundo psiquiatra ouve a história de John e concorda com John que ele está ‘doente’ e que existe uma ligação entre a interrupção da Paroxetina e os sintomas que ocorreram. Este psiquiatra pergunta a John se ele concorda em ser avaliado através de uma entrevista que foi desenvolvida para avaliar os sintomas de abstinência após a interrupção do uso de antidepressivos e permite ao psiquiatra saber mais sobre esses sintomas (Cosci et al. 2018). John concorda em ser entrevistado. Depois disso, o psiquiatra, levando em consideração sua avaliação clínica e os resultados da entrevista, dá seu feedback a John. O psiquiatra diz a John que os sintomas que ocorreram são sintomas de abstinência, que eles são devidos à interrupção da Paroxetina e são bem conhecidos na literatura (por exemplo, Fava et al., 2015; Cosci & Chouinard, no prelo). Além disso, o psiquiatra diz a John que a ‘abstinência’ é um termo geral que, na realidade, inclui três síndromes bem conhecidas e bem descritas. Essas três síndromes são: novos sintomas de abstinênciarebote e transtorno persistente pós-abstinência (Chouinard & Chouinard, 2015)

  1. Os novos sintomas de abstinência consistem em sintomas que não estavam presentes antes do início do tratamento com antidepressivos e não estavam presentes antes da redução ou interrupção. Podem ser sintomas tanto inespecíficos ou específicos da serotonina. Entre os sintomas inespecíficos relacionados à serotonina, são comuns náuseas, dores de cabeça, tremores, distúrbios do sono, diminuição da concentração, ansiedade, irritabilidade e depressão. Entre os sintomas específicos relacionados à serotonina, sintomas semelhantes aos da gripe, sensações de choque elétrico e confusão são comuns. Esses sintomas geralmente são de curta duração – ou seja, não duram mais do que seis semanas – e são espontaneamente reversíveis, portanto, o melhor a ser feito pelos pacientes é esperar até que os sintomas desapareçam.
  2. O rebote consiste no retorno dos sintomas que estavam presentes antes do início do tratamento antidepressivo, mas não se apresentavam antes da redução ou interrupção. Os sintomas são mais intensos do que os que ocorreram antes do início do tratamento. Por exemplo, se uma pessoa fez terapia antidepressiva para tratar a ansiedade, após a redução ou interrupção da terapia antidepressiva, a ansiedade está de volta e é mais intensa do que antes do tratamento. Além disso, os sintomas de rebote ocorrem rapidamente após a redução ou interrupção do tratamento antidepressivo, são transitórios, uma vez que podem ir e vir, e são reversíveis – o que significa que se o paciente voltar ao tratamento antidepressivo ou se o paciente esperar que irão desaparecer longe dos antidepressivos  os sintomas irão realmente desaparecer. O rebote é comumente associado a uma crença psicológica de estar precisando da droga, o que pode levar erroneamente o paciente a voltar ao antidepressivo.
  3. Transtorno persistente pós-abstinência consiste no retorno dos sintomas originais que estavam presentes antes do início do tratamento antidepressivo, mas não estavam presentes antes da redução ou interrupção. Esses sintomas se apresentam tanto com maior intensidade quanto se juntam aos novos sintomas que o paciente nunca havia sofrido antes. Por exemplo, quando a terapia antidepressiva foi usada para tratar a depressão, quando a depressão reaparece rapidamente após a redução ou a interrupção do tratamento antidepressivo, quando é mais intensa do que antes do tratamento antidepressivo e está associada a outros sintomas não depressivos, como por exemplo o pânico. Esses sintomas persistem por mais de seis semanas e podem ser parcialmente ou totalmente reversíveis. Sendo tão duradouro, o paciente geralmente se beneficia do suporte farmacológico ou psicoterápico adequados.

Depois disso, o psiquiatra informa John que ele atualmente apresenta novos sintomas de abstinência e encoraja-o a não voltar à Paroxetina, mas administrar esses sintomas, fazendo algumas sessões com um psicólogo que fornecerá mais informações sobre a retirada e como manejá-la diariamente.  O psiquiatra programa uma consulta de acompanhamento em um mês. Na visita de acompanhamento, John tem apenas uma leve fadiga e informa ao psiquiatra que concluiu as sessões com o psicólogo e se sente bem.

Apenas uma breve conclusão, já que eu contei uma longa história. O excludente e o reducionista não foram capazes de ajudar John, pois basearam sua avaliação em um modelo biomédico que precisa de evidências probatórias físico-químicas ou biológicas para permitir que o médico reconheça uma doença e formule um diagnóstico específico. Assim, o excludente perdeu o diagnóstico ao negar a síndrome de abstinência (e, consequentemente, prescreveu o tratamento errado) e o reducionista fez o diagnóstico errado confundindo a abstinência com a recidiva da doença original, sugerindo, assim, novamente o tratamento errado. Em ambos os casos, basearam suas intervenções no modelo biomédico e nos medicamentos prescritos.

O segundo psiquiatra foi capaz de ajudar John na medida em que ele baseou sua avaliação em um modelo biopsicossocial. O segundo psiquiatra ouviu a história de John, observou John para identificar possíveis sinais de doença, avaliou-o por meio de uma entrevista específica e, levando em conta sua avaliação clínica e os resultados da entrevista, disse a John que ele estava doente por causa da abstinência da Paroxetina, e sugeriu a ele o que fazer para melhorar – isto é, não voltar a tomar Paroxetina, já que estava claro que a Paroxetina havia desencadeado a síndrome de abstinência atual, e fosse feita uma intervenção psicológica visando educar John sobre o que estava acontecendo e como administrar os sintomas diários.

 

As síndromes de abstinência que ocorrem após a redução da dose ou a interrupção dos antidepressivos são transtornos psiquiátricos iatrogênicos, isto é, transtornos psiquiátricos desencadeados por um tratamento farmacológico. Como a maioria dos transtornos psiquiátricos não pode ser reconhecida e diagnosticada com base em evidências probatório físico-químicas ou biológicas, apesar das inúmeras tentativas dos neurocientistas de fornecer evidências, síndromes de abstinência semelhantes, por sua natureza de transtornos psiquiátricos, não podem ser reconhecidas, diagnosticadas, e tratados com base no modelo biomédico. No entanto, a retirada do antidepressivo não é mais um distúrbio desconhecido, já que o conhecimento sobre esse assunto cresceu o suficiente para ser traduzido em prática. Conforme proposto por George Engel, médicos, incluindo psiquiatras, podem observar e ouvir seus pacientes e desenvolver um programa para tratar a retirada e restaurar a saúde. Segundo o que tenho visto em minha prática clínica, o que Engel propôs em 1977 ainda é em 2019 a abordagem que funciona e produz saúde.

Bibliografia:

(1)Engel, George. The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science. 1977;196(4286):129–136

(2) Cosci F, Chouinard G, Chouinard VA, Fava GA. Riv Psichiatr. 2018;53(2):95-99. doi: 10.1708/2891.29158.

(3) Fava GA, Gatti A, Belaise C, Guidi J, Offidani E. Psychother Psychosom. 2015;84(2):72-81.

(4) Cosci F, Chouinard G. The monoamine hypothesis of depression revisited: could it mechanistically novel antidepressant strategies? In Neurobiology of Depression, edited by de Quevedo JL, Carvalho AF, Zarate CA. Elsevier, in press

(5) Chouinard G, Chouinard VA. Psychother Psychosom. 2015;84(2):63-71

Representantes das Nações Unidas chamam a atenção para as violações dos direitos humanos na psiquiatria

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Crédito da foto: Flickr

Uma nova edição da World Psychiatry apresenta um importante comentário do Dr. Dainius Pūras e do Dr. Piers Gooding sobre a coerção na psiquiatria e nas leis internacionais de direitos humanos. O Dr. Pūras, Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à saúde, já havia solicitado uma mudança radical nas abordagens e políticas globais de tratamento da saúde mental. Neste novo comentário, Pūras e Gooding exigem ação e recursos para abordar a coerção e as violações dos direitos humanos no tratamento da psiquiatria e da saúde mental.

“A coerção na psiquiatria e nos serviços de saúde mental está aumentando em todo o mundo”, escrevem eles. “Esse fato exige não apenas discussão, mas ação”.

Crédito da foto: Flickr

Pūras e Gooding argumentam em favor de uma abordagem baseada em direitos para a saúde que priorize a dignidade humana, a vontade e as escolhas de tratamento feitas pelos pacientes e usuários dos serviços. Eles argumentam que ao contrário, a psiquiatria e os serviços de saúde mental de forma mais ampla têm se concentrado na implementação de práticas coercitivas e na imposição de tratamento.

Os proponentes dessa abordagem tradicional argumentam que tais práticas, incluindo a hospitalização involuntária e o tratamento forçado, não excluem a possibilidade de se preservar a autonomia, a dignidade e o direito à vida dos indivíduos. Outros, no entanto, afirmam o oposto e tomam a posição de que os dois lados são incompatíveis:

“Aqueles que são contra argumentam que a imposição não consensual de drogas que alteram a mente e o corpo, com base em concepções restritas de deficiência, com alegações sobre ‘risco’ e ‘necessidade’ com poucas evidências para sustentá-las e com uma gama limitada de alternativas, é incompatível com a dignidade e autonomia”, escrevem Pūras e Gooding.

Os autores propõem uma alternativa ao status quo, exortando as partes interessadas a “repensar os conhecimentos convencionais, a lidar com os desequilíbrios de poder que vem de longa data e a implementar práticas inovadoras.” A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), um tratado internacional de direitos humanos estabelecido pela ONU, em 2008, proporcionou um caminho para o diálogo e abriu possibilidades de ação política.

“A CDPD oferece uma oportunidade única para liberar não apenas usuários de serviços de saúde mental, mas todo o campo da saúde mental, de um legado de estigma, desesperança e de discriminação”, eles escrevem. “Isso é feito com a defesa de um modelo social de deficiência que favoreça a consideração dos direitos humanos, em vez de um modelo médico que tem perpetuado as violações dos direitos humanos e as incapacidades sociais.”

“A diretriz da CDPD de abraçar um modelo social ou de ‘direitos humanos’ com relação à deficiência e de afastar-se de um ‘modelo médico’ de deficiência tem vantagens estratégicas, incluindo lançar luz sobre os muitos fatores sociais, políticos e econômicos que criam graves disparidades para pessoas com problemas de saúde mental ou deficiência psicossocial. ”

Além disso, ao implementar um modelo médico que obscurece o impacto das disparidades sociais, os desequilíbrios sociais e a opressão são perpetuados e aprofundados, argumentam Pūras e Gooding.

“De fato, a CDPD desafia séculos de preconceitos legalmente sancionados. No entanto, as ‘exceções’ permanecem no nível doméstico, na lei, na política e na prática, e se transformam em norma, promovendo assimetrias de poder, o uso excessivo de intervenções biomédicas e o desempoderamento de uma população já marginalizada. Violações sistêmicas seguem ocorrendo. Esse status quo, que pode ser observado em escala global, não é mais aceitável ”.

Eles concluem que uma abordagem baseada em direitos pode ser implementada como um novo caminho a seguir:

“Uma abordagem baseada em direitos pode fornecer um caminho para o futuro dos cuidados de saúde mental que queremos para todos. A CDPD pode ser usada para promover o investimento de recursos humanos e financeiros em um amplo espectro de apoio para reduzir drasticamente as medidas não consensuais com vistas à sua eliminação ”.

Leia o relatório completo aqui: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/wps.20599

Diálogo-Aberto: os dados atuais de pesquisa apoiam mais investimento?

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A Psychiatric Services, uma importante revista norte-americana, publicou dois importantes artigos sobre o Open DialogueFreeman e seus colegas fizeram uma extensa revisão de literatura e análise das pesquisas atualmente disponíveis. Seu artigo é acompanhado por um comentário de Kim Mueser, PhD, diretor do Centro Universitário de Boston para Reabilitação Psiquiátrica e um dos especialistas do mundo em seu campo. Freeman e seus colegas começam seu artigo com uma explicação detalhada dos critérios para inclusão em sua investigação. Eles identificaram 23 estudos para revisão. Os artigos selecionados foram publicados em inglês e avaliaram a eficácia do Diálogo-Aberto por meio de estudo de caso, métodos qualitativos, quantitativos ou mistos. Os estudos foram conduzidos na Finlândia, Noruega, Suécia e nos EUA. Como os autores apontam, a maior parte da pesquisa disponível vem do grupo da Lapônia Ocidental que desenvolveu o Diálogo-Aberto (DA). Isso representa uma fonte fundamental de fraqueza na base de evidências. Seus estudos tiveram pequenas amostras, não houve grupo controle e as avaliações não foram cegadas. Além disso, não havia métodos consistentes para definir ou avaliar o DA. Muitos de nós aprendemos sobre o Diálogo-Aberto porque relataram excelentes resultados para indivíduos que experimentaram um primeiro episódio de psicose. Estamos ansiosos para ver se esses resultados podem ser replicados em outros lugares. Mas há outras questões importantes. DA é uma maneira de trabalhar com indivíduos e suas redes sociais, mas também é uma maneira de estruturar um sistema de saúde mental. Existe informação inadequada sobre a implementação bem-sucedida fora da Lapónia Ocidental. Os autores tentaram abordar estas várias questões no documento e identificaram os seguintes tópicos para revisão: resultados de tratamento para DA, estudos qualitativos sobre o emprego do DA, implementação de princípios de DA, os princípios-chave e sua aplicação em reuniões de rede, bem como a aceitabilidade do usuário do serviço e o aumento da confiança nos serviços. Os estudos concluídos na Lapónia Ocidental compreendem a maior parte dos dados quantitativos. Os autores forneceram um suplemento on-line com detalhes desses estudos; isso é extremamente valioso, dada sua importância fundamental para os estudantes do Diálogo-Aberto. No artigo principal, eles resumem as três coortes principais que foram estudadas e apontam alguns desafios para aceitar sem críticas suas conclusões sobre o resultado: os tamanhos das amostras são pequenos, parece haver diferentes tamanhos de amostras em diferentes artigos que relatam sobre a mesma coorte, parecem haver variações na gravidade dos sintomas entre cada coorte, e há uma escassez de informações sobre a adesão aos critérios de fidelidade para cada coorte. Os estudos qualitativos têm suas próprias limitações, incluindo amostras pequenas e falta de transparência em relação à amostragem. Isso é crítico, pois introduz uma importante fonte de viés; se aqueles que têm experiências favoráveis ​​são mais propensos a ser incluídos no estudo, isso forneceria conclusões excessivamente otimistas. Houve também grandes diferenças entre os estudos em relação à forma como relataram a implementação, dificultando o uso desses estudos para orientar futuras implementações. Dois estudos de qualidade superior relataram alguns dos desafios enfrentados por aqueles que implementaram OD e os autores mencionam em particular o problema de algumas experiências ao questionar hierarquias profissionais. Em alguns estudos, o foco esteva nas reuniões da rede e não na mudança sistêmica. Estes oferecem alguns insights sobre quais aspectos parecem estar correlacionados com o resultado ideal. No que diz respeito à aceitabilidade do usuário do serviço, eles apontam que os estudos qualitativos relatam que essa abordagem parece ser aceitável para usuários que, junto com famílias e clínicos, apreciam o estilo e a transparência das reuniões. Sua conclusão enfatiza as limitações da pesquisa existente e aponta várias áreas que requerem mais investigação. Isso inclui a necessidade de estudos conduzidos no “mundo real” para avaliar a eficácia do DA. Eles sugerem uma investigação adicional não apenas se, mas também como e por quê o DA é eficaz. Eles apontam a necessidade de mais pesquisas sobre implementação e ‘escalabilidade’. Juntamente com isso – e isso é crítico em sistemas financiados publicamente e com orçamento apertado – é a necessidade de uma avaliação da relação custo-eficácia. Além disso, eles apontam a necessidade de um melhor entendimento das mudanças estruturais necessárias para implementar totalmente esse modelo. Este é um artigo valioso e importante. Suas conclusões não devem ser uma surpresa para qualquer estudante de Diálogo Aberto, mas não se pode subestimar o esforço necessário e o significado desse tipo de empreendimento acadêmico. Sua publicação em uma importante revista reflete o fato de que muitos fora do mundo DA estão prestando atenção a este trabalho. Os autores argumentam que os resultados promissores da Finlândia precisam ser replicados e, considerando os desafios tanto no nível sistêmico quanto no nível individual (o treinamento exige muito tempo, por exemplo), essa é uma tarefa assustadora. Portanto, talvez também não deva surpreender que o comentário de Mueser, embora concordando essencialmente com as limitações articuladas no artigo original, conclua que talvez a tarefa à frente seja muito assustadora. Seu comentário conclui com estas palavras solenes: “Os dados atuais sobre o Diálogo Aberto são insuficientes para justificar chamadas para mais pesquisas sobre o programa, além daqueles que estão atualmente em andamento”. Em uma primeira leitura, fiquei frustrada. O Dr. Mueser é influente e isso parece criar um problema: a base atual de evidências não é forte o suficiente para formar conclusões definitivas sobre a eficácia, portanto, precisamos de mais pesquisas. No entanto, como a evidência não é robusta, não devemos colocar mais recursos no estudo do DA. Mas até certo ponto, eu entendo seu ponto mesmo se eu não concorde. Enquanto eu estava refletindo sobre isso, fiquei surpresa ao perceber que eu fui uma estudante do Diálogo-Aberto por quase sete anos. Junto com alguns colegas locais, tive o privilégio de estudar no Instituto de Prática Dialógica . Continuamos desenvolvendo uma adaptação dentro do setor público de Vermont que chamamos de Abordagem de Rede Colaborativa.. Estamos atualmente em nosso terceiro ano de treinamento. Cerca de 25 alunos foram matriculados em cada um dos nossos primeiros três anos e a maioria deles completou dois anos de treinamento. Temos uma coorte menor que está treinando para ser instrutores, para que possamos levar isso adiante e sustentar nossos esforços. Queremos manter esse custo efetivo com sustentabilidade inerente. Isso é crítico em um sistema apertado em recursos e com uma força de trabalho constantemente agitada. Mas, por mais grata que eu seja, há desafios. A implementação é assustadora. As pessoas da minha agência que frequentam o treinamento quase invariavelmente retornam ao trabalho com um profundo entusiasmo para levar isso adiante. Eu sou uma líder nesta iniciativa e uma líder na minha agência, por isso sinto a pressão de suas expectativas, mas me encontro na posição desconfortável de algumas vezes ter que lembrá-los de que ainda não sabemos se isso é útil, como é útil, ou como podemos implementar este sistema de atendimento. E há demandas concorrentes. Existem outras iniciativas promissoras. E há a rotina diária – as necessidades diárias urgentes que surgem e exigem nossa atenção. Perdoe a analogia (minha filha insistiu em ver o Titanic cerca de 50 vezes quando era jovem), mas quando o iceberg está bem em frente é difícil mudar de rumo. Eu me pergunto se é responsável gritar pela necessidade de mudar nessa direção específica antes de termos mais dados. No entanto, compartilho o entusiasmo de meus colegas e me uno a eles para seguir em frente. De certa forma, a implementação pode ser simples. Existem pequenos passos. Essa maneira de trabalhar me ajudou a incorporar princípios que na verdade não são muito controversos. O núcleo do trabalho é que ele esteja “centrado na pessoa”. Que a tomada de decisões seja compartilhada. Não é difícil se convidar as pessoas para tragam suas famílias ou outros aliados importantes para as visitas. E espero que isso também não seja controverso: o Diálogo-Aberto me convida a permanecer humilde e a respeitar a voz de todos. Isso não me obriga a repudiar meus conhecimentos, mas a tentar diminuir um pouco (mais ou menos ou muito) e continuo a acreditar que isso é bom para minha profissão. E há sobretudo o engajamento. Há muitas pessoas – e muitas vezes suas famílias – que estão lutando, mas que saem pela porta porque não gostam da nossa mensagem. DA oferece uma maneira de atendê-los sem insistir que eles concordem com a nossa maneira de entender o problema. Eu participei do Estudo de tratamento precoce RAISE financiado pelo NIMH de indivíduos que experimentaram primeiro episódio de psicose. Engajamento foi tudo e, pelo menos na minha experiência, o caminho para o engajamento não foi abordado diretamente no protocolo RAISE. O DA oferece um caminho que não encontrei no RAISE. E, em qualquer caso, tudo incorporado no RAISE pode ser trazido para o DA. DA é o centro da atividade; a TCC e/ou outras práticas Terapêuticas, o emprego / educação apoiada, são atividades que podem ser introduzidas. Medicamentos podem ser oferecidos. Até mesmo a psicoeducação tradicional pode ser convidada; simplesmente não é dado aqui todo o peso da autoridade epistêmica que é dada nos sistemas mais tradicionais. Mas fico me perguntando sobre a sentença final do Dr. Mueser. Eu entendo que, a longo prazo, poderia demandar enormes recursos para avançar, mas, até agora, muito pouco foi dado a esse esforço. Embora exista amplo interesse internacional, ele não se encontra no contexto de recursos mundiais. A maior parte do financiamento nos EUA veio através da Fundação para a Excelência em Saúde Mental(Foundation for Excellence in Mental Health Care – FEMHC – da qual eu sou a presidente de seu conselho. O FEMHC está em processo de oferecer outros subsídios para financiar um projeto de pesquisa internacional. Embora eu tenha orgulho do que os donatários anteriores e atuais conseguiram, esses esforços estão começando. Talvez, o Dr. Mueser tenha em mente o dilema de que a pesquisa psicossocial em geral é subfinanciada. Espero, no entanto, que os outros escutarão a ampla gama de vozes – clínicos, consumidores, familiares – que encontram algo de valor aqui. Sim, há mais trabalho a ser feito, mais a ser aprendido, mas deixem-nos tentamos levar isso adiante.  

De Perto Ninguém é Normal

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Post164Matéria do Jornal El País mostra que cientistas da Universidade de Yale (EUA) confirmaram que a pessoa normal só existe nas estatísticas, mas não é de carne e osso. No artigo, eles criticam a história de que nossa espécie seguiu um caminho unidirecional que nos levou ao ideal, na verdade, a evolução nos levou a ter uma enorme quantidade de comportamentos, e não um padrão único. Sendo assim, o ideal é um mito. Todos temos características que nos tornam diferentes uns dos outros, porque ninguém é normal.

Leia a matéria na íntegra → Link

O envolvimento cultural pode proteger contra a depressão?

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jjanzeUm novo estudo longitudinal, liderado por Daisy Fancourt, pesquisadora da University College London, explora o engajamento cultural como uma ferramenta preventiva para a depressão em adultos mais velhos. Os resultados do estudo, publicado no British Journal of Psychiatry, encontraram uma associação entre o envolvimento cultural e os níveis de sintomas depressivos em adultos idosos.

“Ir a locais culturais é uma forma de reduzir o comportamento sedentário, que está associado à depressão, em parte por meio do aumento de respostas inflamatórias. Além disso, descobriu-se que a resposta emocional a atividades culturais, como a música, envolve regiões importantes do cérebro para o processamento de emoções positivas e recompensas ”, escrevem Fancourt e colegas.

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Embora as taxas gerais de depressão sejam difíceis de serem medidas,  acredita-se que os sintomas depressivos aumentam com a idade e são mais propensos a não serem diagnosticados e tratados. Como a depressão está ligada a um aumento da demênciaacidente vascular cerebral e mortalidade , é evidente a necessidade de intervenções sobre a depressão entre os idosos. No entanto, como Fancourt e colegas destacam, “há uma reconhecida falta de intervenções psicossociais multimodais que sejam efetivas para a prevenção da depressão em idosos”.

Um corpo crescente de literatura sugere que envolvimento cultural em atividades como cantar, dançar, fazer arte e visitar um museu, podem ajudar na recuperação e no tratamento da depressão. Menos trabalho tem sido dedicado para explorar os aspectos preventivos que essas atividades podem proporcionar à saúde mental do indivíduo. O engajamento cultural é frequentemente composto por interações sociais, redução do comportamento sedentário e resposta emocional positiva, que contribuem para o bem-estar e podem servir para proteger contra a depressão.

“A saúde mental é um determinante importante do envelhecimento bem-sucedido e da longevidade. É, no entanto, propenso a declinar com a idade por causa de eventos e circunstâncias de vida comumente vivenciados por idosos como luto, vida solitária, interações sociais empobrecidas, problemas de saúde, aposentadoria e piora da condição econômica”, escrevem os autores.

Fancourt  e  colegas usaram dados de mais de uma década do Estudo Inglês Longitudinal de Envelhecimento para conduzir o primeiro estudo longitudinal utilizando escalas de depressão validadas para examinar a relação do envolvimento cultural em sintomas depressivos em adultos mais velhos. O estudo trabalhou com uma amostra de 2.148 participantes com uma idade média de 62,9 anos (faixa etária = 52-89).

Os pesquisadores coletaram a frequência de atividades de engajamento cultural por meio de autorrelato e utilizaram a Escala de Depressão dos Estudos Epidemiológicos (CES-D) para medir os sintomas de depressão entre os participantes. No início do estudo, todos os participantes estavam abaixo do limiar de depressão. As covariáveis sociodemográficas, posição socioeconômica, situação de emprego e dados de saúde física foram coletados. A escala de personalidade Midlife Development Inventoryfoi usada para controlar a receptividade como um fator de proteção associado ao envolvimento cultural.

Depois de analisar uma década de dados e empregar cinco testes de sensibilidade para garantir a medição precisa das variáveis, o estudo constatou que um aumento no engajamento cultural estava associado a taxas reduzidas de depressão entre os idosos.

“Houve evidências da associação de uma relação dose-resposta e maior frequência de participação com um menor risco. Para modelos totalmente ajustados, isso equivalia a um risco 32% menor de desenvolver depressão para pessoas que compareciam em intervalos de alguns meses e um risco 48% menor para pessoas que frequentavam uma vez por mês ou mais”, relatam os autores.

“Notadamente, essa descoberta foi independente de fatores sociodemográficos, fatores de saúde e comportamentais e outras formas de engajamento social e cívico, incluindo outros hobbies, interações sociais, grupo comunitário e engajamento cívico. Também foi independente do tipo de personalidade mais aberta.”

Este estudo fornece fortes evidências para o uso do envolvimento cultural na promoção da saúde mental positiva entre adultos idosos. Como observado pelos pesquisadores, o estudo de Fancourt foi observacional e não intervencionista. Portanto, estudos de intervenção poderiam ser feitos para explorar mais os efeitos do envolvimento cultural na sintomatologia depressiva entre esta população.

Os autores concluem:

“Descobrimos que o envolvimento com atividades culturais (incluindo ir ao cinema, museus ou galerias ou teatro, concerto ou ópera) parece ser um fator independente de redução de risco para o desenvolvimento da depressão na velhice. Levando em consideração que nossas análises testaram especificamente a contribuição potencial da causalidade reversa, mas não encontraram nenhuma mudança nos resultados, essa associação pode ser atribuída a múltiplos componentes do envolvimento cultural, incluindo interação social, criatividade mental, estimulação cognitiva e atividade física suave. ”

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Fancourt, D., & Tymoszuk, U. (2018). Envolvimento cultural e depressão incidente em adultos mais velhos: evidências do Estudo Longitudinal Inglês do Envelhecimento. O British Journal of Psychiatry , 1-5. (Link)

Indivíduos com sintomas de psicose mais propensos a serem vitimizados

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bruizUma revisão publicada recentemente no Schizophrenia Bulletin demonstrou que pessoas com um transtorno psicótico diagnosticado têm maior probabilidade de sofrer vitimização do que a população em geral. Além disso, os fatores de risco associados à vitimização foram encontrados para incluir: delírios, alucinações, sintomas maníacos, uso de drogas, uso de álcool, perpetração de um crime, desemprego e falta de moradia.

 “Na realidade”, escrevem os autores, “pessoas com doença mental grave são mais comumente vítimas do que perpetradoras de violência”.

Embora os indivíduos diagnosticados com um distúrbio psicótico sejam muitas vezes retratados como perigosos, a maioria das pessoas diagnosticadas com psicose nunca se envolve em comportamento violento. Os autores deste estudo destacam que as pessoas com doença mental grave são mais frequentemente vítimas do que autores de violência . Além disso, a vitimização mostrou aumentar o risco de experiências psicóticas.

Crédito da foto: Flickr

A Teoria da Atividade de Rotina do Estilo de Vida (L-RAT) sugere que o risco elevado de vitimização resulta quando um alvo adequado é exposto a um agressor motivado na ausência de um guardião capaz. Além disso, a experiência de sintomas psicóticos, fatores sociodemográficos e outras variáveis clínicas pode tornar os indivíduos mais vulneráveis à vitimização.

As taxas atuais de vitimização em pessoas com diagnóstico de doença mental grave variam de 2 a mais de 100 vezes a da população em geral. Observando essa ampla gama, resultante de diferenças metodológicas, os autores deste estudo objetivaram revisar as taxas de prevalência de vitimização violenta, não violenta e sexual, em indivíduos com diagnóstico de transtorno psicótico.

Os autores fizeram uma busca na literatura para identificar artigos que avaliaram as taxas de prevalência e / ou fatores de risco da vitimização na idade adulta. Vinte e sete artigos foram incluídos na análise final e revisão. A vitimização foi definida como “um evento em que um indivíduo é alvo de um ato criminoso por um outro indivíduo”. Foram identificadas quatro categorias de vitimização:

  • Vitimização violenta: crimes que envolvem violência física, ameaças com arma, roubo, agressão e vitimização sexual.
  • Vitimização sexual: ofensas sexuais como penetração sexual forçada, toque sexual sem consentimento ou assédio sexual.
  • Vitimização não violenta: crimes sem contato físico, incluindo ameaças, roubo de propriedade ou dinheiro, roubo de identidade e fraude.
  • Vitimização não especificada de outra forma: quando os estudos não diferenciavam os tipos de vitimização ou davam uma pontuação total baseada em mais de um tipo.

Os fatores de risco também foram divididos em quatro categorias:

  • Fatores clínicos de risco: características clínicas associadas à vitimização, tais como sintomas positivos, comorbidade, fatores relacionados ao tratamento, etc.
  • Fatores comportamentais de risco: isso pode incluir o uso de substâncias e ser um perpetrador de um crime.
  • Fatores de risco sociodemográficos: podem incluir idade, sexo, etnia, nível educacional, situação de vida, renda e contatos sociais.
  • Experiências negativas de vida: como vitimização prévia e abuso infantil.

Os resultados mostraram que, em estudos com um tempo máximo de 3 anos, 20% dos participantes relataram vitimização violenta, 19% vitimização não violenta e 19% vitimização sem outra especificação. Dois estudos relataram vitimização sexual e deram taxas de 15% e 24%. Quando os estudos analisaram toda a vida adulta, as taxas de vitimização foram 66% de vitimização violenta, 39% de vitimização não violenta e 27% de vitimização sexual.

Os resultados dos fatores de risco na metanálise mostraram que, nas quatro categorias, as seguintes variáveis foram significativamente associadas à vitimização:

Fatores clínicos : menor satisfação das necessidades básicas, menor satisfação das necessidades sociais, hostilidade, conteúdo incomum de pensamento, sentimento de grandiosidade, desorganização conceitual, excitação, maior escore de desorganização, maior retraimento emocional, maior escore de afeto, maior escore geral de sintomas, maior dificuldade de experiências de gratificação, transtorno de personalidade, maior escore de labilidade afetiva, maior escore de raiva, maior escore de ansiedade, maior escore de depressão, comportamento auto-lesivo deliberado, ideação suicida, maior escore de transtorno de estresse pós-traumático e não adesão à medicação.

Fatores comportamentais : esteve preso pelo menos 1 noite nos últimos 6 meses e condenação não violenta.

Fatores sociodemográficos: não ter pensão por incapacidade, morar em bairro carente, prejuízo no funcionamento social e ocupacional, não morar com a família, sem contato diário com a família, ter relação íntima a menos que 10 anos, menor que 1 contato social por mês associados a menos vitimização, e as mulheres relataram maior vitimização não violenta e maior vitimização sexual

Experiências negativas na vida: vitimização prévia e abuso na infância

Este estudo esclareceu as taxas de prevalência de vitimização em pessoas com um transtorno psicótico diagnosticado, bem como os fatores de risco associados à vitimização. Os autores concluem que um risco aumentado de vitimização está presente neste grupo. O risco estava especialmente presente para indivíduos que apresentavam sintomas e / ou comportamentos que prejudicam o funcionamento social e para pessoas com um estilo de vida que as expõe a possíveis ofensores.

Os autores explicaram que os fatores clínicos aumentam a atratividade do alvo e fazem com que os criminosos vejam a pessoa como um alvo fácil. Indivíduos com pior funcionamento social são colocados em maior risco, pois podem ter menos apoios sociais para protegê-los, como são a falta de moradia e o desemprego, colocando a pessoa em um ambiente no qual é mais provável que encontre um agressor.

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de Vries, B., van Busschbach, J. T., van der Stouwe, E. C., Aleman, A., van Dijk, J. J., Lysaker, P. H., … & Pijnenborg, G. H. (2018). Prevalence rate and risk factors of victimization in adult patients with a psychotic disorder: a systematic review and meta-analysis. Schizophrenia Bulletin(Link)

Como o Amor pode reformatar as nossas vidas

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Peter BregginQuase cinquenta anos atrás, conheci Ginger quando saía de um avião no aeroporto de Detroit e a vi esperando por mim. Ela pegou carona até ao meu hotel. Para se identificar, ela estava segurando meu segundo romance com uma foto grande minha nas costas do livro. Eu não sabia que ela já havia se apaixonado por mim através do livro e da foto.

Era 1972 e eu estava em Detroit, não como romancista, mas como psiquiatra e especialista médico em um dos julgamentos mais importantes da história da psiquiatria, o famoso caso Kaimowitz. Eu iria testemunhar contra experimentos de psicocirurgia em um hospital estadual de Michigan, e a decisão do painel de três juízes acabaria com a psicocirurgia e a lobotomia em instalações estaduais e federais em todo o país. No instante em que vi Ginger pela primeira vez, ela era apenas o que eu via, e havia desaparecido tudo entre mim e o julgamento. Com apenas vinte anos, ela era uma visão de intensa beleza e espírito, esbelta, com grandes olhos verdes e cabelos ruivos.

Eu me apaixonei por Ginger, passei cinco gloriosos dias com ela, imprensado pelo julgamento, e depois retornei para casa. Parecia que entendíamos os pensamentos e sentimentos um do outro, os valores e sonhos um do outro, como ninguém jamais havia feito em nossas vidas. Nós não apenas sentíamos o mesmo comprimento de onda espiritual e intelectual, mas ajudávamos a esclarecer e a promover os pensamentos, sentimentos e esperanças um do outro. Conversávamos e nos dávamos as mãos e nos sentíamos tão física e espiritualmente íntimos quanto duas pessoas poderiam ser capazes.

Eu estava tão apaixonado e tão cheio de esperança que decidi que havia apenas uma saída – nunca mais vê-la outra vez!

Foi assim que fiquei com medo de amar e ainda mais uma vez perder. Minha mente inconsciente estava gritando para mim: “Você acha que doeu quando você foi rejeitado antes? Essa mulher é tão maravilhosa que vai destruí-lo!

Se tivesse atendido ao meu coração oprimido, eu nunca teria visto Ginger novamente. Ginger era mais corajosa e arriscou tentar se comunicar comigo, mas eu estava tão confuso com o tumulto interno que não respondia.

Doze anos depois, apenas um piscar de olhos em uma história de amor, tudo isso mudou. Novamente nós nos encontramos, miraculosamente. Foi totalmente não planejado: eu estava em uma viagem promovida pela mídia, indo de onde eu morava, na área de Washington DC, para Los Angeles, aonde, sem eu saber, Ginger agora vivia. No meu quarto de hotel, recebi uma mensagem telefônica de uma amiga que explicou que conhecera alguém que eu havia conhecido anos atrás, uma mulher chamada Ginger, que ficaria feliz em me rever, se eu tivesse tempo.

“Minha Ginger?” Eu soltei em voz alta para mim mesmo; e imediatamente liguei para o número. Nos reunimos naquele dia e descobrimos que ambos nos havíamos divorciado recentemente. Também descobrimos que nossa confiança em nós mesmos havia crescido, nos dando mais segurança em nosso amor um pelo outro que estava instantaneamente sendo revivido.

Menos de duas horas depois de nossa primeira reunião após doze anos, pedi a Ginger que se casasse comigo; e sem hesitação, Ginger disse que sim. Estamos casados há trinta e quatro anos – quase três vezes desse infeliz hiato de doze anos. A vida, claro, continua a vir para nós e, por sua vez, nós continuamos a ganhar vida, enquanto amadurecemos em nossa capacidade de amar um ao outro, excedendo qualquer coisa que qualquer um de nós tenha ousado esperar. Sentimo-nos rodeados de amor em nossas vidas pessoais e no trabalho de reforma do mundo que juntos fazemos.

Vivenciando o amor

O que é essa coisa que chamamos de amor e que me apavorou tanto?

O amor limpa a lousa. Ele reformata nossas vidas. Ele nos dá um novo começo.

Se estamos prontos para isso, o amor nos faz conhecer um conjunto de valores, aspirações e objetivos completamente novos e mais elevados. Pode ser como mudar magicamente de uma tela de TV velha e preta para uma com som e cor de alta definição. Ou pode se aproximar de nós como que um reconhecimento gradual de que estamos nos apaixonando por um velho amigo, mas o resultado é o mesmo – nossas vidas se tornam renovadas e melhores. De qualquer forma, o amor traz fontes brilhantes e irresistíveis de significado e alegria em nossas vidas.

Tudo isso é verdade não apenas ocorre no amor romântico, mas em relação a qualquer pessoa ou qualquer coisa que realmente amamos, desde membros da família e amigos especiais ou mentores a heróis que admiramos e amamos à distância. Nosso amor pode ser por um lugar ou lar, pela natureza, pelo nosso trabalho, pela arte ou música, por esportes, pelo país ou humanidade e por Deus. Quando amamos, nós mudamos. Por meio de nossa devoção a alguém ou por algo fora de nós mesmos, envolvemos a vida de uma maneira nova, mais vitalizada e significativa.

Seja quando encontramos alguém para amar ou quando encontramos um empreendimento criativo que amamos, quase que inevitavelmente passamos por um período de luta contra a pessoa que costumávamos ser antes de encontrarmos a coragem de amar. Muitas vezes, precisamos superar a nossa armadura habitual, as defesas psicológicas, a irritabilidade e a raiva espontâneas, o desejo urgente de se retirar, as dúvidas, os medos e a falta de fé no amor e nas outras pessoas, na vida ou em um poder superior.

Nessa luta para se livrar ou transcender nosso passado, o amor pode nos ajudar a centrar nossa mente e coração como sendo um. O amor cria uma completa falta de contradição ou oposição entre nossos pensamentos e sentimentos, e entre nossos desejos por nós mesmos e para o que e quem amamos. Quando nos permitimos experimentar o amor, talvez, pela primeira vez em nossas vidas estamos livres de ambivalência ou contradições internas.

Uma vez que tenhamos estabelecido um relacionamento de confiança e amor com uma pessoa ou com um empreendimento, podemos começar a resolver qualquer conflito crescente ou ameaçador, lembrando-nos de nossos sentimentos de amor e deixando-nos revivê-los. No momento em que nosso conflito com um ente querido parece impossível de de ser resolvido, e quando nos balançamos à beira da indignação ou do desespero, lembrar-nos de reviver nosso amor pode rapidamente nos fazer mudar de opinião.

Quando experimentamos o amor – quando a outra pessoa parece ser um tesouro e um presente bom demais para se merecer, quando a mera presença da outra pessoa nos traz alegria, quando simplesmente pensar no outro nos faz felizes – mergulhamos na pura realidade do amor. Nessa realidade, o amor pode resolver quase qualquer conflito. O trabalho, geralmente trabalho muito duro, é necessário para evitar que nossas inevitáveis falhas humanas minem ou destruam as novas e grandes oportunidades em um relacionamento amoroso ou em nosso amor por qualquer aspecto significativo da vida. Mas o esforço necessário para abrir caminho para o amor pode se tornar o esforço espiritual mais valioso de nossas vidas.

Abrindo caminho para o amor

O amor que sentimos nos faz nutrir a pessoa ou a atividade que amamos, colocando seus interesses ou necessidades em pé de igualdade com os nossos e às vezes à frente dos nossos. Como podemos permanecer atolados em maus sentimentos ou recriminações, como podemos nos reter e permanecer egocêntricos, quando o amor nos ordena a manter o bem-estar de outra pessoa pelo menos igual ao nosso?

O amor oblitera os limites e restrições familiares dentro dos quais nós e aqueles que nos rodeiam vivemos e imaginamos. Ao fazê-lo, produz turbulência em nossas vidas pessoais e, muitas vezes, na vida de outras pessoas. O amor pode derrubar instituições e filosofias e mudar o curso da humanidade. Essas mensagens estão no cerne da história de Romeu e Julieta, um conflito entre jovens imaturos e ainda intensamente amorosos e os preconceitos e restrições de suas famílias rivais. Seu amor e suas mortes trágicas inspiraram a união de suas famílias.

Nas vidas dos grandes reformadores e revolucionários que eu admiro, de George Washington a Lincoln, de Frederick Douglass a Harriet Tubman, e de Gandhi a Martin Luther King Jr., o amor venceu qualquer ódio ou desejo de vingança que esses heróis possam ter abrigado para aqueles a quem eles confrontaram ou lutaram. Em seu esforço para criar um mundo melhor, cada um deles se recusou a ser motivado por raiva, ódio ou vingança contra aqueles a quem se opunham em nome da liberdade. Cada um deles trouxe uma atitude de perdão e amor aos seus esforços, mesmo quando eles persistiram em arriscar suas vidas lutando pela liberdade. Muitos atribuíram sua determinação de substituir o ódio com amor pelos ensinamentos das Bíblias hebraica e cristã.

Originalmente, meu próprio trabalho de reforma foi motivado por um emaranhado de idealismo, empatia de ressentimento egocêntrico e raiva pelas injustiças da vida. O ressentimento e a raiva me esgotaram e às vezes me levaram a más escolhas, especialmente em dar voz ou agir sob a frustração e o ultraje que eu sentia. Eu finalmente percebi que eu só poderia sustentar e guiar uma vida inteira de trabalho de reforma, voltando-me cada vez mais para a empatia e o amor como minha motivação e como meu ideal para influenciar outras pessoas.

Tornando-se uma fonte de amor

Do amor romântico ao trabalho de reforma idealista, o amor tem muitas expressões, mas sua fonte é sempre a mesma. O amor brilha a partir de nossos recursos internos mais profundos, nosso núcleo humano, nossa essência, nossa identidade, nosso eu, espírito ou alma. É como se estivéssemos dotados de uma lâmpada interna com um transformador que pudéssemos virar e desligar – ou desligar completamente, arruinando nossas próprias vidas e as vidas que tocamos. Nós somos essa fonte de luz; a chave liga / desliga está sempre em nossas mãos.

Nós somos, no nosso melhor, uma fonte de amor. Em nossos piores momentos, geramos ódio. Mas podemos estar ainda mais perdidos quando nos esgotamos e nos tornamos indiferentes e apáticos. Nesse estado sombrio de inércia espiritual, geramos pouco ou nada de valor. Como buracos negros no universo, podemos implacavelmente atrair todos ao nosso redor para o nosso abismo.

No entanto, mesmo em nossos dias mais sombrios, há boas razões para ter esperança. O grau de sofrimento que sentimos, incluindo a nossa ‘depressão’ e ressentimento, reflete a intensidade do nosso desejo de uma vida melhor para nós e para os outros. Se não desejássemos e vislumbrássemos algo melhor para nós mesmos e para o mundo, algo muito melhor, não sofreríamos tão profundamente quanto sofremos com os fracassos, decepções e conflitos em nossas vidas.

Nisto, o que há de melhor da religião e da ciência está unido – os seres humanos prosperam quando sentem e agem sobre o amor. Charles Darwin, que muitas vezes é falsamente descrito como materialista e proponente do determinismo, descreveu como nós, seres humanos transcendemos as limitações da evolução biológica e dos instintos sociais. Darwin concluiu que a evolução biológica por si só não poderia ter criado nossa compreensão do amor e a nossa realização monumental na criação da Regra de Ouro – fazer aos outros como gostaríamos que os outros fizessem a nós. Essas conquistas exigiram Razão e uma compreensão espiritual do Amor.

Há amor romântico, que pode ocorrer à primeira vista ou com crescente familiaridade. Há amor pelas crianças, que pode florescer na gravidez e atingir o pico quando uma nova mãe leva o bebê ao peito. Há amor à natureza, amor à música ou à arte, amor ao nosso trabalho ou à criatividade, ou amor à vida. Há amor a Deus, ao Criador ou a qualquer força ou valor que identificamos como “Maior que Eu”.

Nossos animais de estimação podem se tornar nossos melhores lembretes sobre a pureza do amor incondicional, sem as ambivalências e condições que os humanos impõem a ele. Nossos cães expressam especialmente alegria pura à vista de nós e a pura alegria é provavelmente a expressão final do amor. Às vezes tenho definido o amor como uma consciência alegre. O amor como uma consciência alegre talvez não seja em nenhum outro lugar expresso com mais fervor e beleza do que em formas de arte como drama, poesia, hinos e cânticos espirituais. A arte como uma expressão de amor talvez seja insuperável, exceto, talvez, pela alegre cacofonia de latidos e uivos com os quais nossos três cães cumprimentaram a minha esposa Ginger hoje em seu retorno para casa depois de apenas duas horas de ausência.

Na minha vida profissional como psiquiatra, como amigo e membro da família, e em relação a mim mesmo também, descobri que, mesmo quando sofremos das mais terríveis reações emocionais, podemos começar a nos recuperar lembrando quem somos ou como podemos nos tornar uma fonte de amor.

Quase tudo o que chamamos de sofrimento emocional ou ‘distúrbios psiquiátricos’, independentemente de quão severos eles sejam, envolvem uma falha em dar e em receber amor. A experiência me ensina que é impossível ser amoroso e louco no mesmo momento. É igualmente impossível ser grato e deprimido ao mesmo tempo.

O sofrimento que aparentemente esmaga o espírito humano geralmente ocorre em reação a um profundo trauma, negligência ou perda. Quando entendemos o que esses indivíduos suportaram, muitas vezes começando na infância, seu sofrimento em retrospecto parece inevitável. Mas essa inevitabilidade não precisa determinar o futuro. Digo isso sobre mim mesmo e sobre todos que conheço em minha vida e trabalho: não importa o quanto nos sentimos sobrecarregados e desesperados, a recuperação e o crescimento dependem de nos tornarmos abertos a amar e ser amados, e milagres aparentes ocorrem quando os indivíduos mudam suas vidas em reconhecimento destas verdades.

Algo maior que nós mesmos?

Desde o ensino médio, eu era um orgulhoso agnóstico. Muitos anos depois, quando eu estava em atividade profissional há pelo menos uma década, um cliente me perguntou se eu sabia alguma coisa sobre Deus. Ainda sendo agnóstico na época, tudo o que pude fazer foi gracejar a respeito de Deus: “Eu sei que eu não sou Deus”. Meu cliente sorriu calorosamente e disse: “Peter, esse é um bom começo”.

A renovação da minha vida espiritual se intensificou quando encontrei Ginger novamente e desta vez encontrei a coragem de agir de acordo com meu amor por ela. Desde então, Ginger e eu sentimos que amar e ser amado inspira-nos continuamente com a crença em algo maior que nós mesmos. O amor pode tirar as pessoas de sua preocupação com os corpos e a existência material rumo a um alegre plano espiritual. Quer acreditemos na evolução ou em Deus como a fonte suprema de nossa natureza humana, quando amamos nos sentimos mais felizes em contato conosco e com o melhor que a vida pode oferecer.

O amor é o engajamento alegre da nossa alma com a vida e o amor em sua essência é inteiramente bom. O amor pode sentir-se como extático ou eufórico, excitante ou como aventureiro. Pode sentir-se alegre e feliz. Pode sentir-se seguro e protegido – como voltar para casa depois várias vezes ter sido tentado, ou encontrar simplesmente o sentido da vida.

Embora muitas vezes pareçamos confusos sobre isso, o amor em si não nos faz sentir miseráveis e desamparados. O amor não requer inevitavelmente sofrimento e sacrifício, perda e rejeição. Toda a dor e sofrimento associados ao amor tem a ver com a sua inibição, perversão e perda, e com todo o conflito que inevitavelmente desperta em nossas mentes conflituosas. O amor em si torna todas as coisas suportáveis e todas as esperanças possíveis.

Podemos triunfar sobre nosso legado de emoções negativas para nos tornarmos livres para amar. Uma chave é a nossa vontade e a determinação de nunca desistir do amor, apesar das ameaças e das perdas catastróficas. Quando em contato com nós próprios como fonte de amor, podemos manter a racionalidade e a força moral para administrar nossas vidas através dos maiores desafios.

Tendo vivido mais de oito décadas nesta Terra e tendo atravessado pelo desespero na maior parte de suas manifestações, tenho isto a recomendar: Atreva-se a reconhecer o amor. Atreva-se a dar e receber amor. Em seguida, faça o trabalho necessário para construir relacionamentos amorosos e uma vida baseada no respeito mútuo, na razão e no comportamento ético sadio. Deixe seus propósitos e sua vida serem infundidos pelo amor.

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