Memórias de um Psiquiatra Dissidente

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bfurmanQuando comecei a me especializar em psiquiatria na Finlândia no início dos anos 80, a cena psicológica parecia bem diferente da de hoje. A retórica dominante era a psicanálise, e todos nós, incluindo psicólogo(a)s, assistentes sociais e enfermeiro(a)s psiquiátricas, esperávamos aprender a falar ‘psicanalise’ e ver os pacientes individualmente uma vez por semana – às vezes duas vezes por semana – durante anos. Aqueles eram os dias.

Eu logo me tornei descrente. A terapia psicodinâmica levava anos e apenas uma minoria de pessoas parecia se beneficiar com isso. Muitos pacientes reclamavam que seus terapeutas permaneciam sentados silenciosamente em suas cadeiras durante as sessões. Muitos ficavam tão dependentes de seus terapeutas que precisavam de hospitalização quando seu terapeuta estava em férias de verão. Outros cortavam sua relação com os pais porque aprendiam com seus terapeutas que todos os seus problemas eram causados por seus pais. A maioria das pessoas que entrava em terapia individual por causa da insatisfação conjugal acabava se divorciando de seus cônjuges. Alguns podiam dar palestras longas e chatas sobre por que eles tiveram seus problemas, mas não tinham a menor ideia sobre como tornar sua vida melhor. Além disso, as crianças eram forçadas a ir à terapia de longo prazo e quando seus pais se queixavam da falta de progresso, ou até da piora da situação, os pais eram criticados por sabotar a terapia de seus filhos e orientados a obter terapia individual para resolver seus próprios problemas.

Para mim, a psicanálise parecia um culto pseudocientífico que, de algum modo, conseguira infiltrar-se no establishment médico. Eu me sentia intrigado como eles haviam conseguido fazer isso. Representantes do movimento haviam conquistado uma posição na sociedade em que não apenas doutrinavam os profissionais de saúde mental nas crenças freudianas, mas também outros médicos, educadores e até professores de educação infantil. Eles eram inflexíveis em conseguir que o mundo todo engolisse suas crenças infundadas sobre as origens dos problemas de saúde mental.

Eu não gostava de psicanálise. Sugeri ao meu professor – que queria que eu fizesse um doutorado – que eu viesse a estudar os efeitos adversos da psicoterapia. Ele era um psicanalista – não muito diferente de todos os outros professores de psiquiatria e psiquiatria infantil da época – e, é claro, ele imediatamente rejeitou a ideia. Naquela época, era tabu sugerir que a psicoterapia poderia causar efeitos adversos. Todos deveriam acreditar que a terapia psicodinâmica era superior a qualquer outra forma de terapia. Se os sintomas de um paciente piorassem, durante o curso da terapia, não era porque havia algo errado com a terapia, mas porque a terapia revelara que o paciente estava, de fato, mais seriamente perturbado do que era evidente no início. Eu detestava a lógica distorcida e egoísta de meus colegas psicodinâmicos.

Eu era um dissidente. Passei a me interessar por terapia familiar em geral, e em particular pela terapia breve focada em soluções. Essas eram abordagens promissoras para ajudar os pacientes e suas famílias, onde o foco não estava no passado, mas no futuro. O terapeuta não era um ouvinte passivo, mas um participante ativo, cuja tarefa não era ajudar os pacientes a descobrir as raízes subjacentes presumidas de seu sofrimento, mas apoiá-los na busca de soluções, na descoberta do que poderiam fazer para melhorar suas vidas. Terapia breve fazia muito mais sentido para mim do que terapia psicodinâmica e em vez de manter o paciente em terapia por anos, nesse tipo de terapia, o número de sessões era reduzido ao mínimo e os pacientes não eram levados a acreditar que todos os seus problemas na infância eram ruins.

Eu tentei questionar o sistema de crença psicanalítico, mas não era possível argumentar com os crentes. A argumentação deles não seguia qualquer lógica conhecida por mim. Um colega disse que a psicanálise deve ser um sistema válido porque já está aí faz muitos anos. Um outro disse que a minha crítica à psicanálise deve ser provocada por algum problema mental meu. Ele disse que eu provavelmente tinha alguns problemas com apego, o que tornava difícil para mim me comprometer com o tipo de relações em longo prazo que são exigidas em uma terapia de longo prazo. Um terceiro disse que eu não estava em nenhuma posição para criticar a psicanálise, porque eu não havia sido o suficientemente analisado. Dois colegas, ambos psiquiatras psicanalistas de crianças, apresentaram uma queixa a meu respeito ao comitê ético da Associação Médica Finlandesa, acusando-me de um comportamento contra o sistema escolar, na medida em que eu havia publicamente criticado os métodos de tratamento psiquiátrico infantil sem ser eu mesmo um psiquiatra infantil. De acordo com a queixa – que foi derrubada pelo comitê de ética – psiquiatras de adultos como eu não estavam qualificados para apresentar críticas à psiquiatria infantil. A crítica dirigida ao campo da psiquiatria infantil, de acordo com eles, apenas poderia ser apresentada por psiquiatras infantis, não por psiquiatras de adultos.

Foi uma batalha frustrante. Eu não penso que tenha sido bem-sucedido em trazer qualquer mudança. Só consegui irritar meus colegas ocupados com a psicanálise. Acho que até me tornei por vários anos uma persona non grata dentro da minha profissão. Mas, felizmente, eu não me importei muito. Eu já havia colocado meu pé em um caminho diferente. Fiquei emocionado com a terapia breve e naqueles dias muitas outras pessoas no campo da saúde mental passaram a compartilhar do meu entusiasmo com esses métodos inovadores.

Eu focalizei em difundir informação acerca da terapia breve a profissionais que pensavam como eu, assim como ao público através de um talk show relacionado à saúde mental na tv nacional e que ocorreu em mais de 200 episódios. Hoje, a terapia focalizada em soluções (também conhecida como terapia colaborativa ou orientada aos recursos) é em meu país um método terapêutico oficialmente reconhecido, e os pacientes podem ser reembolsados pelo seguro nacional de saúde.

Enquanto eu estava ocupado espalhando a boa notícia sobre a terapia focalizada na solução e evitando criticar as convenções psiquiátricas, a psiquiatria estava passando por grandes mudanças. O sistema de crenças psicanalíticas foi descartado e substituído pelo DSM e pela doutrina biomédica: todos deveriam ter um diagnóstico, e todos deveriam ter medicação. Todas as condições anteriormente tratadas com terapia passaram a ser tratadas com medicação, que se tornou o tratamento de escolha para quase todas as condições de saúde mental, independentemente de o paciente ser adulto, adolescente ou criança. Um paciente sem medicação tornou-se uma raridade. O sistema de dados dos serviços de saúde mental passou a exigir que os médicos diagnosticassem quem procurava ajuda. Durante anos, esperei que a psiquiatria se libertasse da doutrina psicanalítica e, quando meu desejo finalmente se concretizou, minha profissão saiu da frigideira para a fogueira.

Mas eu estou lutando. Eu sou um membro da rede internacional de psiquiatria crítica. Ao longo dos anos, escrevi várias cartas ao editor que foram publicadas em nosso jornal principal, sou ativo no site fechado do Facebook da Associação Psiquiátrica Finlandesa e às vezes falo diretamente com os formuladores de políticas, como o chefe do nosso Instituto de Seguro Nacional de Saúde.

Meu principal objetivo, atualmente, é convencer os profissionais e o público de que a maioria dos problemas psiquiátricos infantis pode ser tratada de forma eficaz sem medicação. Juntamente com meus colegas, desenvolvemos nos anos 90 um método que chamamos de habilidades para crianças. É um método simples que qualquer um pode aprender, baseado na ideia de que os problemas das crianças não precisam ser considerados como distúrbios psiquiátricos, mas como a falta de algumas habilidades psicossociais que as crianças ainda não aprenderam.

O Kids Skills fornece um protocolo para descobrir que habilidade a criança precisa aprender e um meio de engajar os pais e amigos da criança para ajudar a criança a desenvolver a habilidade que está faltando, de uma maneira divertida e recompensadora. Livros e outros materiais sobre esse método já apareceram em mais de 20 idiomas e há treinadores de habilidades para crianças sendo treinados em vários países do mundo. Eu até criei um aplicativo sobre o método que foi traduzido por um tradutor voluntário para vários idiomas, incluindo russo, espanhol e chinês. Eu gosto de pensar que as pessoas vão perceber que chegamos ao fim da corda. Não faz sentido medicalizar toda a população. Vamos começar a tornar o mundo um lugar melhor, ajudando nossos filhos a superar seus problemas, não com drogas, mas com o apoio e a ajuda de seus colegas e pais.