Como seria de se esperar, após os assassinatos em massa em El Paso e Dayton, temos políticos e outros culpando os “doentes mentais” pelos assassinatos. Ouvimos isso repetidamente, e acho que é hora de chamar isso o que de fato é: discurso de ódio.
Aqui está como o dicionário de Oxford descreve o discurso do ódio:
“Discurso ou escrita abusiva ou ameaçadora que expressa preconceito contra um grupo em particular, especialmente com base em raça, religião ou orientação sexual.”
Culpar os “doentes mentais” por assassinatos em massa se encaixa nessa descrição. É a fala que afirma que há um grupo de pessoas em nossa sociedade que são perigosas e são em grande parte responsáveis por assassinatos em massa em nossa sociedade, e é discurso que implica que precisamos identificar os “doentes mentais” e que de uma maneira ou de outra se restrinja seus direitos de cidadania. Em sua forma mais extrema, essa restrição pode envolver a sua colocação sob uma ordem judicial que os obrigue a tomar medicamentos antipsicóticos.
O último rumo é o que E. Fuller Torrey pediu em um editorial publicado no domingo no Wall Street Journal.
E por conseguinte, discurso de ódio. Culpabilizar os “doentes mentais” está ameaçando um grupo em particular e expressa o preconceito contra esse grupo. E como pode ser facilmente visto, essa acusação nos impede de reconhecer a verdade óbvia: a presença regular de assassinatos em massa em nossa sociedade precisa ser vista como um fracasso social. Dizer que o culpado são os “doentes mentais” – quem quer que seja esse grupo mítico – simplesmente ajuda a perpetuar esse fracasso.
O bode expiatório é uma forma de discurso de ódio
Na segunda-feira, o presidente Trump comentou – reconhecidamente em seu inimitável estilo de salada de palavras – sobre os assassinatos em massa em El Paso e Dayton. “A doença mental e o ódio puxaram o gatilho”, anunciou ele. “Não a arma.”
Trump, evidentemente, estava repetindo um ponto típico do discurso republicano. No entanto, a parte referente à doença mental ecoa como uma crença bipartidária.
Nós todos sabemos o contexto político para a declaração de Trump. Embora possa haver muitos fatores que levaram nossa sociedade a este lugar muito obscuro, o primeiro fator é o seguinte: nós, como sociedade, temos possibilitado que as pessoas possuam armas para cometer assassinatos em massa.
O Partido Republicano, é claro, tornou a oposição ao controle de armas parte central de sua estratégia para atrair um bloco de votação, e nós temos uma organização de lobbying, a NRA, que fornece fundos para os líderes daquele partido. Assim, quando ocorre um assassinato em massa, o Partido Republicano tem necessidade, dada a sua oposição a medidas de controle de armas, de colocar a culpa em outro lugar, e assim mostra o desviante como “mentalmente doente”.
Em outras palavras, os republicanos estão destacando os “doentes mentais” para fins de bodes expiatórios. Isso satisfaz os critérios para o discurso do ódio: ele está ameaçando um grupo específico (aqueles vistos como mentalmente doentes), e os rotula como “perigosos” para a sociedade, estabelecendo a possível tramitação de leis que restringiriam seus direitos de cidadania. E tudo isso está sendo feito para fins políticos, para desviar a culpa de sua própria política.
Preconceito Bipartidário
Enquanto os democratas podem ser a favor de medidas de controle de armas, sob o presidente Obama os “deficientes” mentalmente doentes foram apontados como um grupo perigoso. Sua razão para emitir um regulamento pode ter sido diferente do uso dos “doentes mentais” pelos republicanos para fins de bode expiatório, mas, após um exame atento, o próprio regulamento se enquadra na categoria de “discurso do ódio”.
Após o massacre de crianças na Escola Secundária Sandy Hook em 2012, Obama emitiu um regulamento de “bandeira vermelha” destinado a evitar que os chamados “deficientes” doentes mentais – aqueles que receberam do governo cheques de invalidez por causa de um transtorno psiquiátrico – comprassem armas. O regulamento exigia que a agência da Previdência Social submetesse os nomes de tais adultos ao banco de dados federal para verificação de antecedentes. No entanto, o regulamento não entrou em vigor até pouco antes do governo Trump ser inaugurado, e então Trump rapidamente cancelou.
Obama sugeriu que isso adicionaria 75.000 nomes ao banco de dados de verificação de antecedentes e, assim, evitaria que esse grupo de pessoas com deficiência comprasse armas. No entanto, esse número de 75.000 é muito baixo. Atualmente, existem mais de 4,5 milhões de adultos com deficiência devido a um transtorno mental, e outros milhões de pessoas com deficiências do governo que, embora incapacitadas por outro motivo, têm um diagnóstico psiquiátrico. Assim, parece que a regulamentação de Obama, se já tivesse sido implementada, teria adicionado milhões de nomes ao banco de dados de verificação de antecedentes.
Eu não estudei a lista de assassinos em massa, mas não conheço nenhum estudo que tenha descoberto que pessoas que recebem do governo uma pensão devido a um distúrbio psiquiátrico estejam mais propensas a usar uma arma para cometer um assassinato em massa do que a população em geral, quer dizer, mais provável do que os homens brancos com idades entre 18 e 45 anos.
De fato, para comparação, imagine o seguinte cenário. O assassino no genocídio de Sandy Hook foi Adam Lanza, que é um homem branco de 20 anos de idade. Se Obama houvesse então emitido um regulamento “bandeira vermelha” para homens brancos com idade entre 18 e 45, tornando mais difícil para eles comprar armas, eu tenho certeza que ele teria sido amargamente atacado por seu “preconceito” contra os homens brancos e por promover “o discurso de ódio” contra os brancos. Isso seria assim mesmo – dada a lista de assassinatos em massa que temos – “com base nas evidências” os homens brancos de 18 a 45 anos de idade estão mais propensos assassinatos em massa do que aqueles que recebem pensão do governo por incapacidade devida a algum distúrbio psiquiátrico.
Com este exemplo em mente, é evidente que havia um elemento de “discurso de ódio” no regulamento de Obama. Sendo de fato “ameaçador” para um grupo específico (os “deficientes” mentalmente doentes), e submete esse grupo ao “preconceito” social. Fica evidente que está havendo a substituição de “homens brancos” por “deficientes por doenças mentais” na equação da bandeira vermelha, havendo o elemento aí do discurso de ódio, inconsciente como pode ter sido a intenção do governo Obama.
Quem são os doentes mentais?
Como o Washington Postescreveu em um de seus artigos sobre os comentários de Trump, a acusação de doença mental feita por ele poderá fornecer suporte para leis de “bandeira vermelha” que venham tornar mais difícil para os doentes mentais obterem armas. A regulamentação de Obama visava pessoas com deficiência; o mantra da doença mental da “culpa” implica que a sociedade deve lançar uma rede muito mais ampla.
É dito que um em cada cinco adultos americanos sofra de uma doença mental em qualquer ano. Esta cifra surge de inquéritos populacionais que usam o Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Americana de Psiquiatria para definir as linhas limítrofes para determinar quem é “mentalmente doente”.
Isso significa que há 46 milhões de adultos que são considerados “doentes mentais” nos Estados Unidos. Mais uma vez, não conheço nenhum estudo que tenha descoberto que esse grande grupo de pessoas em nossa sociedade seja mais violento ou tenha maior probabilidade de cometer assassinatos em massa do que a população em geral. Mas quando temos políticos e outros culpando a doença mental como a causa raiz do assassinato em massa, trata-se de um discurso que destaca essa população como a “mais perigosa” do que o resto da população dos EUA.
Agora, o que nossa sociedade poderia fazer em resposta a essa crença? Deveríamos, com base nesses números, aprovar leis que examinariam toda a população com doenças mentais e impedir que os 46 milhões de adultos que são considerados doentes mentais comprem armas, enquanto permitem que o resto da população faça isso?
Eu duvido que faremos isso. Essa ampla rede de escaneamento captaria muitas pessoas que possuem armas, o que tornaria politicamente inaceitável. Nesse sentido, a acusação de “doença mental” é apenas conversa vazia, de natureza diversa, e não pretende ser a base para qualquer mudança legislativa.
No entanto, já temos uma agenda legislativa que focaliza um subgrupo menor de “doentes mentais” – aqueles que estiveram em um hospital psiquiátrico. Para aqueles que têm essa experiência em seus currículos, aonde nos leva E. Fuller, o Flautista do Discurso de Ódio?
Culpando o assassinato em massa no doente mental “não medicado”
Durante vinte anos, E. Fuller Torrey tem usado o espectro da violência dos doentes mentais “sem tratamento” para defender as leis estaduais que autorizem seu tratamento forçado na comunidade. Por exemplo, em uma entrevista para o 60 Minutes.
em 2013, Torrey disse que sem essa legislação, o país precisaria aceitar ocorrências regulares de assassinatos em massa, como o que aconteceu em Tucson, Arizona, e na Virginia Tech.
Seu editorial no Sunday Wall Street Journal, intitulado Doença Mental e Assassinato em Massa, não passou de repetição do que costuma dizer. Ele afirmou que havia um milhão de pessoas nos Estados Unidos que no passado teriam sido institucionalizadas em hospitais públicos, mas que agora viviam na comunidade, e que talvez metade dessa população não estivesse sendo tratada por sua doença. Ele então sugeriu que este é o grupo responsável pela maioria dos assassinatos em massa. Ele escreveu:
“O que fica claro em todos os bancos de dados é que esses assassinatos em massa estão aumentando em frequência e ocorrendo desde os anos 80. Não por coincidência, foi quando o esvaziamento dos hospitais mentais do estado esteva em seu auge ”.
Tendo posto a culpa pela maioria dos assassinatos em massa aos doentes mentais “não tratados”, Torrey argumentou que o tratamento ambulatorial forçado poderia ajudar a eliminar a ameaça que essas cerca de 500.000 pessoas apresentavam à nossa sociedade. Uma vez que os doentes mentais são tratados, ele disse, eles não são mais propensos a cometer violência do que a população em geral.
“Nós sabemos o que fazer para reduzir o número de assassinatos em massa associados à doença mental”, concluiu ele. “A questão é se temos a vontade de fazê-lo.”
O discurso de ódio, é claro, conta mentiras sobre o grupo-alvo e usa essa informação para provocar preconceito em relação ao grupo. A acusação de Torrey aos doentes mentais não tratados pela maioria dos assassinatos em massa faz exatamente isso. Aqui estão apenas alguns dos fatos que desmentem seu argumento:
- Vários de nossos assassinos em massa estavam tomando drogas psiquiátricas quando cometeram seus atos assassinos. Os antidepressivos, em particular, são objeto de uma possível culpabilidade; estudos descobriram que eles podem atiçar impulsos homicidas.
- Torrey não forneceu evidências de que a maioria dos assassinatos em massa nos últimos 25 anos tenha sido cometida por pessoas que tiveram alta de hospitais psiquiátricos, e ainda assim suas leis de tratamento forçado visam esse grupo. Pessoalmente, gostaria de ver um estudo que tenha avaliado a porcentagem de nossa lista de assassinos em massa nos últimos 25 anos que passou um tempo em um hospital psiquiátrico; estou disposto a apostar que a porcentagem é muito baixa.
- Na era anterior à introdução de drogas antipsicóticas, os pacientes que receberam alta dos hospitais psiquiátricos cometeram crimes na mesma proporção ou em uma taxa menor do que uma coorte combinada (nível de educação e renda) na população em geral. O risco de violência por parte dos “doentes mentais graves”, apesar de muito exagerado na mente do público hoje, subiu acima da taxa geral da população durante nossa era moderna de uso generalizado de drogas psicotrópicas.
- O número de pessoas tratadas para transtornos psiquiátricos aumentou drasticamente desde os anos 80, com 20% da população adulta tomando diariamente uma droga psiquiátrica diariamente. Se aplicarmos o raciocínio de Torrey, podemos concluir que “a frequência de assassinatos em massa” aumentou com a expansão da empresa psiquiátrica no país.
Então, o que Torrey está fazendo em seu editorial? Ele está incitando o ódio social para quase meio milhão de pessoas – esse número é sua estimativa – que estiveram em hospitais psiquiátricos e pararam de tomar drogas psiquiátricas. Ele está colocando um grande rótulo vermelho de PERIGO neste grupo, e os culpando pelo aumento dos assassinatos em massa e pedindo que sua liberdade seja tirada, como se isso fosse um remédio para essa violência que regularmente irrompe em nossa sociedade. Ele está usando um argumento alarmista para promover sua própria agenda política.
E assim, por favor: que não mais se culpe os “doentes mentais” por essa violência horrível em nossa sociedade. É um tipo de discurso de ódio, por todas as razões listadas acima, e tudo o que ele faz é provocar um profundo preconceito social contra as pessoas diagnosticadas com um distúrbio psiquiátrico, e impedir que façamos algo que possa realmente reduzir a frequência de tais horríveis e vergonhosos eventos.
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Nota dos Editores do Mad in Brasil:
Aguardem as próximas edições. Serão duas postagens nas quais Robert Whitaker mostra, a partir das evidências científicas, o quanto a Psiquiatria baseada no modelo biomédico é falaciosa, quando defende o “tratamento involuntário” para o tratamento psicofarmacológico.