O Holocausto, a psiquiatria biológica e uma mudança para uma psiquiatria mais humana hoje

Compreender o legado dos assassinatos nazistas de pacientes psiquiátricos é essencial para a construção de serviços mais humanos hoje.

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O homicídio dos “inaptos” da Alemanha nazista começou com o assassinato sistemático de pacientes psiquiátricos, que foram considerados como portadores de genes defeituosos. Em um exame aprofundado desta história publicada na Ethical Human Psychology and Psychiatry, John Read e Jeffrey Masson apresentam uma argumentação que, reconhecendo este passado – e vendo uma conexão com elementos da psiquiatria biológica hoje – se deveria apressar uma mudança em direção a um paradigma de cuidado humano, informado pelo trauma.

Eles escrevem:

“O campo da saúde mental parece haver estado, durante décadas, cada vez mais próximo de uma mudança de paradigma, de um ‘modelo médico’ simplista, pessimista e biogenético do sofrimento humano para uma abordagem mais matizada e baseada em evidências, psicossociais e trauma-informado. Mas para os autores deste artigo, que, assim como milhares de outras pessoas têm defendido por muitos anos um maior foco no abuso, adversidade e trauma, parece que o progresso em direção a essa mudança de paradigma tem sido excruciantemente lento . . . . Alguns podem argumentar que o que aconteceu na Alemanha há 80 anos tem pouco a ver com a forma como a psiquiatria funciona, internacionalmente, hoje. No entanto, documentamos e discutimos estes trágicos e terríveis acontecimentos, mais uma vez, precisamente porque eles ilustram tão claramente temas presentes ao longo da história do tratamento de pessoas consideradas loucas e que permanecem operantes hoje: controle social em prol do interesse dos que detém poder; ‘tratamentos’ prejudiciais e às vezes até violentos; e a capacidade dos especialistas de camuflar o que realmente está acontecendo como sendo do melhor interesse dos destinatários dos tratamentos”.

Nursing staff at Hadamar Euthanasia Centre, a psychiatric hospital in Germany

As afirmações de que a esquizofrenia e outros grandes transtornos mentais eram devidos a maus genes levaram primeiro a programas de esterilização nos Estados Unidos, países escandinavos e Alemanha, e depois a que os “doentes mentais” fossem o primeiro grupo alvo da extinção no Holocausto.

Os psiquiatras lembrados hoje como fundadores da psiquiatria biológica, incluindo Emil Kraepelin e Eugen Bleuler, ajudaram a promover ideias eugenistas. As afirmações de que a esquizofrenia e outros grandes distúrbios mentais eram devidos a maus genes levaram primeiro a programas de esterilização nos Estados Unidos, países escandinavos e Alemanha, e depois a que os “doentes mentais” fossem o primeiro grupo alvo da extinção no Holocausto.

Os Estados Unidos foram os primeiros a transformar ideias eugênicas em política social. Em 1907, Indiana se tornou o primeiro estado a autorizar a esterilização compulsória dos doentes mentais, e em 1927 a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que tais leis estaduais eram constitucionais.

Um dos principais autores de tal legislação na Alemanha foi Ernst Rudin, professor de psiquiatria na Universidade de Munique e Basiléia. A Alemanha promulgou a sua lei de esterilização em 1933; seis anos depois, 350.000 alemães haviam sido esterilizados, sendo que cerca de um terço deste grupo foi diagnosticado com esquizofrenia.

Pelo menos alguns psiquiatras falavam em matar os doentes mentais antes da ascensão de Adolph Hitler ao poder. Em 1920, o psiquiatra alemão Alfred Hoche escreveu que as instituições psiquiátricas estavam cheias de “cascas humanas vazias … Sua vida não vale a pena; portanto, sua destruição não só é tolerável, mas humana”.

Em 1939, um grupo de importantes psiquiatras das escolas médicas mais prestigiadas da Alemanha ajudou a desenvolver um plano para matar os doentes mentais. Seis hospitais psiquiátricos foram equipados com câmaras de morte, com monóxido de carbono sendo o gás de escolha. No final da guerra, cerca de 250.000 pacientes mentais na Alemanha haviam sido assassinados, e um número desconhecido de pacientes em hospitais psiquiátricos franceses, poloneses e austríacos também morreram de fome durante este período.

Depois de rever esta história, Read e Masson concluem: “Assim, o assassinato em massa de pacientes mentais por psiquiatras forneceu a fundamentação ‘científica’, os profissionais e o equipamento, para o Holocausto”.

Enquanto os oficiais do Terceiro Reich enfrentavam processo criminal nos julgamentos de Nuremberg, a maioria dos psiquiatras que promoveram o assassinato de pacientes de asilo “escaparam da censura ou punição”. De fato, muitos voltaram à prática e adquiriram à proeminência no campo, observam os autores. Três dos primeiros 12 presidentes da Sociedade Alemã de Psiquiatria e Neurologia haviam sido os organizadores do programa de “eutanásia”. Um professor alemão de psiquiatria envolvido na matança de crianças, Werner Villinger, foi convidado para uma conferência na Casa Branca sobre crianças.

Durante décadas, esta história não foi encontrada em nenhum lugar nos livros ou histórias de psiquiatria e, em sua maioria, tais textos continuam a evitá-la hoje em dia. Algumas vezes, os textos até citam Rudin e outros psiquiatras alemães desta época por seu “trabalho pioneiro” na “genética dos distúrbios psiquiátricos”. Estudos sobre gêmeos que remontam à era nazista ainda são citados por fornecerem evidências de que existe um forte componente genético para a “esquizofrenia”.

Teorias genéticas sobre esquizofrenia e outros transtornos mentais, Read e Masson escrevem, permanecem ainda hoje “uma pedra angular da psiquiatria biológica”. Após a guerra, tais noções foram promovidas na psiquiatria americana e no exterior. De 1947 a 1956, o American Journal of Psychiatry publicou atualizações anuais de “progresso psiquiátrico” sobre o tema “Hereditariedade e Eugenia”, que foram escritas por Franz Kallmann, que tinha argumentado nos anos 30, enquanto vivia na Alemanha, que não só os “esquizofrênicos”, mas também seus parentes deveriam ser esterilizados.

Nos anos 50, Kallmann começou a defender o “aconselhamento genético” como um método para remover genes defeituosos da esquizofrenia do pool genético. Essa prática permanece viva e bem viva. A esquizofrenia é ainda hoje considerada como tendo uma forte base genética, apesar da falta de identificação de genes específicos para o distúrbio e da descoberta de que a genética, de fato, é responsável por apenas uma porcentagem muito pequena dos fatores de risco. No entanto, uma pesquisa de 2008 informou que os psiquiatras americanos “expressavam uma visão fortemente positiva dos testes genéticos”, com um site líder nos EUA, schizophrenia.com, afirmando que “o aconselhamento genético para doenças psiquiátricas como a esquizofrenia está se tornando mais difundido e o seu uso está sendo demonstrado com sucesso”.

Read e Masson escrevem:  “Esta prática, de informar as pessoas diagnosticadas com ‘esquizofrenia’ e seus parentes que seus descendentes podem herdar a suposta doença, desencorajando assim a reprodução, ainda está conosco”.

Além disso, eles observam que hoje em dia há o tratamento forçado de pacientes mentais com “drogas que encurtam a vida e causam estupor e disfunção sexual” e a promoção de “choques elétricos que muitas vezes causam perda de memória e danos cerebrais”. Estas são práticas que, pelo menos para alguns, ecoam os abusos da era eugênista.

Esta é uma conexão do passado com o presente que não é bem-vinda na psiquiatria de hoje. Read e Masson submeteram primeiro o seu artigo à revista History of Psychiatry, que o rejeitou porque “não era adequado aos objetivos atuais e ao equilíbrio temático da Revista”.

Read e Masson exploraram este capítulo sombrio com a esperança de se reformar os cuidados hoje em dia. Conhecendo este passado, eles escrevem, podem ajudar-nos a produzir uma mudança de paradigma em direção a um modelo de cuidado mais humano e informado sobre o trauma.

“Cabe a todos os trabalhadores da saúde mental, a todos nós, de fato, estar constantemente atentos às nossas próprias falhas em perceber as inúmeras maneiras pelas quais os humanos são prejudicados por outros humanos, incluindo – talvez o mais difícil de reconhecer pelo próprio pessoal da saúde mental”.

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Read, J., Masson J. (2022). Biological psychiatry and the mass murder of “schizophrenics”: From denial to inspirational alternative. Ethical Human Psychology and Psychiatry 24(2). https://doi.org/10.1891/EHPP-2021-0006. Link

[trad. e edição Fernando Freitas]