Petição dos Cidadãos para Advertências sobre os Efeitos Sexuais Colaterais

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hemersonUm novo estudo, publicado no International Journal of Risk and Safety in Medicine, examina os relatos clínicos de disfunção sexual pós-ISRS (após o uso de antidepressivos), síndrome pós-finasterida (PFS, usado para o tratamento para queda de cabelo ou hiperplasia prostática) e disfunção sexual como um efeito colateral após o término do tratamento com isotretinoína (usado para tratar a acne nodular grave, mais comumente conhecido como Accutane). Os pesquisadores Healey, Le Noury e Mangin examinaram 300 casos de disfunção sexual duradoura em 37 países.

“Embora os relatos de determinados problemas fossem exclusivos dos antidepressivos, como o início da ejaculação precoce e transtorno da excitação genital persistente, houve também uma sobreposição significativa no perfil dos sintomas entre os grupos de medicamentos, com características comuns incluindo anestesia genital, orgasmo sem prazer ou fraco, perda de libido e impotência ”, escrevem os autores. “As consequências secundárias incluíram a ruptura do relacionamento e a qualidade de vida prejudicada.”

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Os medicamentos inibidores da recaptação de serotonina(ISRS) podem afetar o funcionamento sexual, e as bulas com os dados atualizados do produto relatam que isso pode ocorrer após a primeira dose. A finasterida e a isotretinoína têm sido relacionadas como tendo efeitos agudos no funcionamento sexual. Enquanto a Finasterida fornece essa informação em seu rótulo, isotretinoína não.

Os primeiros relatos de efeitos colaterais sexuais duradouros dos antidepressivos inibidores de recaptação de serotonina (SSRIs) foram documentados em 2006. Em 2011, as informações do produto dos EUA para o Prozac (fluoxetina) advertiram: “Os sintomas de disfunção sexual ocasionalmente persistem após a interrupção do tratamento com fluoxetina”. Mais tarde, a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) publicou advertências semelhantes, observando que a disfunção sexual pode persistir após a descontinuação do ISRS “em alguns casos”.

Em 1997, Finasteride foi licenciado para tratar a calvície masculina, mas os primeiros relatos de disfunção sexual não apareceram até 2011. Naquele mesmo ano, a FDA atualizou as informações do produto, alertando para uma disfunção erétil após parar o Proscar e Propecia. Um ano depois, a diminuição da libido foi adicionada aos efeitos colaterais após a interrupção do Proscar, e os distúrbios da libido, distúrbios da ejaculação e distúrbios do orgasmo foram acrescentados aos riscos após a descontinuação do Propecia. Finalmente, um relatório de 1994 sobre a desordem ejaculatória resultante da isotretinoína documentou mais de 150 relatos de disfunção sexual masculina.

A fim de analisar a disfunção sexual pós-tratamento relacionada aos inibidores da recaptação de serotonina, inibidores da 5α-reductase e isotretinoína, Healy e colaboradores utilizaram dados do RxISK.org. O site é “um site independente sobre segurança de medicamentos criado pelos autores e colegas, que oferece um serviço de notificação de eventos adversos, que começou a coletar dados sobre todos os medicamentos e todos os eventos adversos em 2012”. O site requer relatos voluntários para responder a um conjunto de questões demográficas, seguido de uma avaliação de causalidade, baseada no algoritmo de Naranjo, para determinar se o medicamento relatado é o responsável pela reação. As seguintes pontuações denotam significância: 0-4 mais informações são necessárias, 5-8 uma provável ligação entre medicação e efeito colateral, e 9+ uma forte possibilidade de uma conexão entre medicação e efeito colateral. Por último, os relatores classificaram o impacto dos efeitos colaterais em sua vida cotidiana, isto é, físico, mental, trabalho e social. Os dados de junho de 2012 a dezembro de 2015 e de abril de 2016 a agosto de 2017 foram analisados (os dados em falta estavam indisponíveis devido à manutenção do site).

Os resultados indicam um escore de causalidade médio de “8,9 para inibidores de recaptação de serotonina, 8,8 para inibidores de 5α-redutase e 8,5 para isotretinoína”, de “37 países em seis continentes: Europa (137), América do Norte (126), Oceania (15 ), Ásia (14), América do Sul (6) e África (2). ”A faixa etária dos participantes variou de 15 a 66 anos, incluindo 16 casos que relataram o início da condição com menos de 18 anos de idade. A duração variou de uma dose única para mais de 16 anos. Em muitos casos, a disfunção sexual apareceu apenas quando a medicação foi interrompida ou passou a estar exacerbada após o término. Mais detalhes foram descritos da seguinte forma:

  • 17 casos ISRS relatam o desenvolvimento de ejaculação precoce
  • 6 Casos de ISRS relatam transtorno persistente da excitação genital (sensação contínua de excitação e desconforto nos genitais, sem sentimentos de desejo)
  • 16 casos de testosterona diminuída (potencialmente ligada a uma pré-condição)
  • 5 casos relatam a glande do pênis permanecendo flácida quando o eixo estava ereto (4 para ISRS, 1 para isotretinoína)
  • 2 casos ISRS de começo do aparecimento da curvatura peniana (desconhecido se ligado ao tratamento ou incidental)
  • 6 casos de redução da sensibilidade do mamilo
  • 15 casos de redução de outras sensações em todo o corpo
  • 3 casos ISRSI de perda crescente da função sexual durante o processo de redução das drogas
  • 25 casos de fim de relacionamento devido ao rompimento de um relacionamento romântico, 9 dos quais eram casamentos
  • 90 casos de interrupção do trabalho, 12 dos quais perderam o emprego
  • 17 casos suportaram a síndrome por pelo menos dez anos após a interrupção do tratamento (8 SSRI, uma finasterida, oito isotretinoína)
  • Casos de fadiga (9%), fraqueza muscular (3%) e problemas cognitivos (19%), especificamente deficiência de memória (11%), particularmente com finasterida.

Os pesquisadores estão iniciando os próximos passos, incluindo uma investigação de síndromes sexuais tardias, bem como uma abordagem sistemática de grupos de pacientes com conjuntos específicos de sintomas. Entrevistas estruturadas são necessárias para explorar as idiossincrasias dos casos, e as histórias de tratamento podem ser usadas para informar melhor a relação causal (ou falta dela) entre os medicamentos e os efeitos colaterais.

Healy e seus colegas avançam solicitando uma mudança nas atuais práticas de consentimento informado para esses medicamentos. Eles afirmam que enquanto os ISRSs são comumente conhecidos por reduzir a sensação genital, “não se sabe quantas pessoas recuperam totalmente sua sensação genital original, libido e outros domínios do funcionamento sexual depois de usar um inibidor de recaptação de serotonina”. Confirmando o trabalho de outros que revelaram essa conexão ou que foram pessoalmente impactos, Healy e outros peticionários pedem formas mais explícitas de consentimento.

Em 23 de abril de 2018, Healey e 21 psiquiatras, psicólogos, neurologistas, profissionais e outros profissionais da área submeteram uma petição “para solicitar ao Comissário de Alimentos e Medicamentos (FDA) que imediatamente exigisse a inclusão de advertências no rótulo do produto para todos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) e inibidores da recaptação da serotonina-noradrenalina IRSN), incluindo formulações de marca e genéricos. Alguns destes incluem, mas não estão limitados a, citalopram (Celexa), desvenlafaxina (Pristiq), duloxetina (Cymbalta), escitalopram (Lexapro), fluoxetina (Prozac), paroxetina (Paxil), sertralina (Zoloft), venlafaxina (Effexor) e vortioxetina (Trintellix). ”

As petições exigem o acréscimo de advertências, precauções e realces da informação de prescrição, em um esforço para realizar o seguinte:

  1. “Informa que o uso e a retirada dos ISRSs e ISRNs podem resultar em anestesia genital, orgasmo fraco ou sem prazer, orgasmo atrasado ou ausente, perda da libido, disfunção erétil, lubrificação vaginal diminuída, sensibilidade mamilar reduzida, glande peniana flácida durante a ereção, redução da resposta ao estímulo sexual, e o decréscimo da capacidade para experimentar prazer sexual”
  2. “Informa que o uso e a retirada de ISRSs e SNRIs podem resultar em distúrbio persistente da excitação genital (PGAD) ”
  3. “Informa que os efeitos colaterais sexuais podem persistir por anos ou indefinidamente após a descontinuação do medicamento; podem surgir durante o tratamento e permanecer depois, senão surgir ou piorar quando a droga é interrompida ”.
  4. “Enviar a todos os fabricantes de ISRSs e SNRIs uma carta de notificação da necessidade de um Plano Estratégico de Avaliação e Mitigação de Riscos”, exigindo que os fabricantes enviem cartas ao provedor de saúde sobre as reações adversas e desenvolvam um “Guia de Medicação e Plano de Comunicação” para pacientes.

Os signatários usam exemplos de casos para ilustrar o porquê as atuais advertências são insuficientes. Eles concluem:

“ Sem advertências adequadas a respeito dos riscos de potenciais danos permanentes para o funcionamento sexual, os pacientes ficam desprovidos do consentimento informado. É atualmente impossível para os pacientes e para os profissionais de saúde pesar custos e benefícios do tratamento. Por conseguinte, nós reivindicamos que advertências claras sejam imediatamente acrescentadas aos produtos ISRS e ISRN.”

………

Healey, D., Le Noury, J., & Mangin, D. (2018). Enduring sexual dysfunction after treatment with antidepressants, 5α-reductase inhibitors, and isotretinoin: 300 cases. International Journal of Risk & Safety in Medicine, 29(3-4), 125-134. doi: 10.3233/JRS-180744 (Link)

Healey, D. (2018). Citizen petition: Sexual side effects of SSRIs and SNRIs. International Journal of Risk & Safety in Medicine, 29(3-4), 135-147. doi: 10.3233/JRS-180745 (Link)

Os excelentes resultados da Abordagem do ‘Diálogo Aberto’ no tratamento de Psicose Aguda

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CAMILAO artigo, The open dialogue aproach to acute psychosis: its poetics and micropolitics (“A abordagem do Diálogo Aberto para a psicose aguda: sua poética e micropolítica”), escrito conjuntamente por um dos idealizadores da abordagem finlandesa, Jakko Seikkula, e pela pesquisadora americana Mary Olson, pretende trazer dois níveis de análise do Diálogo Aberto, uma que seria a “poética” e o outro  que seria a “micropolítica”. O nível da “poética” inclui três princípios desta abordagem: tolerância a incerteza, dialogismo e polifonia na rede social. Já a “micropolítica” são as amplas práticas institucionais que dão suporte a este tratamento. O artigo é especialmente relevante ao apresentar ferramentas importantes, e não usuais, utilizadas no tratamento da psicose, além de demonstrar através de evidências os incríveis resultados apresentados pelo tratamento do Diálogo Aberto.

O artigo começa com uma trajetória histórica, os autores mostram como a equipe que desenvolveu a abordagem passa primeiramente pela experiência da Terapia de família sistêmica, antes de chegar ao que é hoje. A equipe do Hospital de Keropudas começou  atendendo famílias em 1980 com o modelo de terapia sistêmica da equipe de Milão, porém alguns dilemas práticos, como a dificuldade de envolver as famílias, levaram o grupo a modificar suas ideias e práticas. Então, em 1984, a equipe começou a organizar um encontro de tratamento antes de qualquer tipo de terapia. Com o tempo, essa forma de encontros evoluiu até chegar a ser a principal linha terapêutica da abordagem, apoiando-se na ideia de dialogismo de Bakhtin, Voloshinov e Vygotsky.

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Após esse rápido percurso histórico, o artigo aprofunda mais sobre as características do Diálogo Aberto. O formato básico dessa abordagem é o já mencionado encontro de tratamento, o qual deve ocorrer 24 horas depois do primeiro contato da família do psicótico. O encontro é organizado por equipe de crise móvel, especificamente por aquele profissional primeiramente contatado pela família, participam dela a equipe de ambulatório e internação, e se possível acontece na casa dessa família. Reunindo a pessoa em angústia profunda além da equipe,  com todas as pessoas importantes (familiares, amigos, outros profissionais, etc.) e que estão conectados com a situação. Todas as decisões sobre o andamento da terapia, medicação e hospitalização são discutidas e feitas enquantos todos estão presentes. Além disso, é essa mesma equipe que continua envolvida no processo terapêutico ao longo do tempo.

Como dito anteriormente, os autores separam o nível “poético” do Diálogo Aberto em três princípios. A primeira delas, a tolerância à incerteza, se manifesta na prática pelos encontros frequentes e pela qualidade do diálogo. Mas, acima de tudo, a  incerteza só é capaz de ser tolerada se a terapia é experimentada como segura, para que isso ocorra é dada uma grande atenção ao estabelecimento de um contexto terapêutico confiável, de maneira que a ansiedade e o medo decorrentes da crise possa ser mediados e contidos, através da escuta e resposta a cada voz, portanto, legitimando cada participante do encontro. Por fim, os terapeutas evitam criar hipóteses sobre o caso, que podem acabar sendo silenciadoras,  sendo assim, eles chegam ao encontro sem uma definição preliminar do problema, na esperança que o diálogo em si traga à luz novas ideias e histórias.

Entrelaçado à ideia de tolerância à incerteza, está o dialogismo e a polifonia na rede social. O dialogismo está ligada a ideia Bakhtiniana do diálogo, que vê a linguagem e comunicação como construturas da realidade social. Dessa forma, o processo da escuta para o Diálogo Aberto é mais importante do que a entrevista. Por isso, o encontro de tratamento é tão aberto quanto possível, para dar a máxima oportunidade para que a rede social da pessoa em sofrimento fale sobre quaisquer problemas mais relevantes naquele momento. A equipe não decide temas antecipadamente. Já a polifonia na rede social, se dá nas múltiplas vozes e múltiplos assuntos que surgem desse encontro de tratamento, sem nenhuma tentativa de tentar descobrir uma verdade particular. A meta do encontro é gerar compreensão conjunta, ao invés de se esforçar por um consenso entre todos.

Entrando no segundo nível de análise, a “micropolítica” do Diálogo Aberto, ou seja, as práticas institucionais, o artigo considera que a efetividade dessa abordagem está intrinsecamente ligada ao contexto institucional e de treinamento. Para todo o pessoal da equipe, incluindo psiquiátricas, psicólogos, enfermeiras, assisntente sociais, existem um curso de 3 anos do programa de treinamento em terapia familiar. Vendo por esse lado, a abordagem do Diálogo Aberto não é um modelo que é aplicado mas uma série de práticas que são estabelecidas em toda a rede assistencial.

Como discussão final e conclusiva, são apresentadas as estatísticas de resultados de um estudo quasi-experimental, parte de um projeto nacional na Finlândia, onde a Lapônia Ocidental era uma dos três centros de pesquisa que participavam do projeto. A Lapônia Ocidental teve a tarefa de iniciar o tratamento dos pacientes em primeiro surto, que chegavam até o Hospital de Keropuda, sem ao mesmo tempo iniciar a medicação neuroléptica, enquanto os outros dois centros de pesquisa utilizavam o tratamento padrão, utilizando medicamento logo no início do tratamento. Ao comparar o centro de pesquisa da Lapônia Ocidental com os outros dois centros, os resultados diferem significativamente:

Apenas 35% dos pacientes do Diálogo Aberto necessitaram medicação neuroléptica ao longo do tratamento, em contraste com os 100% dos pacientes que foram medicados no grupo comparação;

  • Nos dois anos de acompanhamento, 82% dos pacientes tratados com o Diálogo Aberto não tiveram sintomas psicóticos, ou só tiveram sintomas psicóticos leves não visíveis. Enquanto isso só aconteceu com 50% do grupo comparação;
  • Os pacientes da Lapônia Ocidental tem maior índice de emprego, com apenas 23% de seus pacientes vivendo com auxílio do governo. Enquanto 57% dos pacientes do grupo comparação vivem de auxílio do governo;
  • A reincidência da doença aconteceu em 24% dos casos do Diálogo Aberto, comparado aos 71% do grupo comparação

Uma razão apontada pelos pesquisadores para esse melhor resultado no grupo do Diálogo Aberto, foi a resposta terapêutica rápida à psicose, abreviando o tempo que o paciente fica sem tratamento e evitando a cronificação da mesma.

Por conseguinte, o Diálogo Aberto mostra ser uma abordagem potente, consequência de uma transformação de um sistema psiquiátrico inteiro, acompanhado pelo suporte administrativo do Hospital, engajado com os médicos da atenção básica e psiquiátricas e promovendo o treinamento da equipe. Essa potência se faz clara nos dados acima citados, mas também no fato, de que a abordagem do Diálogo Aberto não trabalha com a medicação como primeira linha de tratamento, e ainda sim,  obteve os melhores resultados em relação o grupo de comparação que utilizava a medicação com todos os pacientes, desde o início do tratamento. Como resultado, desde que a abordagem foi institucionalizada, a incidência de novos casos de esquizofrenia na Lapônia Ocidental diminuiu, dado realmente impressionante e significativo.

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SEIKKULA, J.; OSLON M.E. The open dialogue aproach to acute psychosis: its poetics and micropolitics, Family Process, v. 42, nº3, 2004. → (link)

Biomarcadores ou o Santo Graal para a Psiquiatria

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FreitasResultados de uma pesquisa que sugere haverem sido identificados ‘marcadores biológicos’ para melhor diagnosticar a esquizofrenia, conduzida por pesquisadores brasileiros, foi objeto de uma recente reportagem da  Folha de São Paulo.  O título da matéria traz ao leitor uma esperança: “Estudo brasileiro pode ajudar a indicar melhor tratamento para a esquizofrenia”. E o subtítulo reforça a expectativa: “Pesquisa determinou biomarcadores que podem predizer qual o melhor remédio para cada paciente.”

Tal informação não pode deixar de ser recebida com entusiasmo por todos aqueles que alimentam expectativas de que o modelo biomédico em psiquiatria finalmente mostre bons resultados. E mais ainda, a notícia desperta um orgulho nacional, na medida em que são pesquisadores brasileiros os que estão descobrindo ‘algo’ que pode contribuir para que se solucione um dos enigmas da vida psíquica: a chamada ‘esquizofrenia’.

O estudo em questão tomou como amostra 54 pessoas com diagnóstico de esquizofrenia em estado agudo, que tiveram seu sangue colhido para o nível lipídico ser analisado, antes de iniciar o tratamento psicofarmacológico com três antipsicóticos e ao longo de seis semanas do tratamento com tais antipsicóticos.

Na verdade, testes de sangue em esquizofrênicos com a promessa de ajudar a detectar a esquizofrenia, não é um procedimento novo. E tampouco que a imprensa anuncie com grande entusiasmo que dessa vez finalmente foi descoberto o ‘algo’ mais que irá ajudar o tratamento biomédico. Dois exemplos. O primeiro, remonta a maio de 2010, em que o periódico científico Biomarker Insights publicou um estudo com o título Validation of a Blood-Based Laboratory Test to Aid in the Confirmation of a Diagnosis of Schizophrenia. O estudo foi realizado por 24 autores. A grande maioria com fortes conflitos de interesse, não pode deixar de ser lembrado.  Esse estudo foi divulgado pela grande mídia com um grande estardalhaço. Por exemplo, a NBC online News, em 15 de outubro de 2010, coloca como manchete New blood test may help detect schizophrenia (“Novo teste de sangue pode detectar a esquizofrenia”). O subtítulo da matéria é “Pesquisadores afirmam que 83% de precisão é alcançada na identificação das pessoas que são esquizofrênicas”). A matéria assinada pela jornalista Natasha Allen começa mencionando o filme “A Beautiful Mind” (no Brasil, “Mente Brilhante”), de 2001, que conta a história do matemático e vencedor do Prêmio Nobel John Nash que lutou contra a esquizofrenia por anos. A jornalista escreve, “para muitos indivíduos e famílias com lidam com essa doença, a intervenção precoce é algo desafiador”. Portanto, a matéria da Folha não é propriamente original, aliás até mesmo é ilustrada com uma foto do ator Russel Crowe interpretando John Nash.

O segundo exemplo, uma publicação no The Guardian, em 21 de janeiro de 2001, com o mesmo título da matéria que quase uma década depois seria publicada em NBC online News: “Blood Test May Detect Schizophrenia”  (“Teste de Sangue Pode Detectar a Esquizofrenia”). A matéria afirma que “Picadas de sangue podem revelar em breve se uma pessoa está sofrendo de esquizofrenia, a mais debilitante de todas as doenças mentais. Os cientistas revelaram que podem detectar diferenças nos níveis da dopamina química do cérebro – intimamente ligada à esquizofrenia – nos fluxos sanguíneos dos indivíduos. Os pesquisadores afirmam que o teste é suficientemente preciso para identificar se esse sangue veio de um indivíduo esquizofrênico ou saudável.”

A busca por biomarcadores para ajudar a Psiquiatria com o seu modelo biomédico de tratamento, portanto, não vem de hoje.  Tampouco as promessas que desta vez sim, está se chegando perto.  Biomarcadores são como que o Santo Graal para a Psiquiatria.

Antes de fazermos uma análise mais detalhada do conteúdo do artigo original que foi publicado no periódico científico Frontiers Psychiatry,  para que melhor nos situemos na problemática vale a pena colocar como destaque o que é dito na Folha por um dos autores do artigo científico , que é o Daniel Martins-de-Souza:

“Hoje os psiquiatras conseguem diagnosticar relativamente bem a esquizofrenia, mas eles não possuem nenhuma ferramenta molecular, nenhum teste, que os ajude a escolher a medicação mais adequada para um paciente tomar. Eles optam, praticamente, ao acaso.”

O que está sendo dito? Literalmente é que os psiquiatras sabem relativamente bem como diagnosticar. O que é fato, pois afinal de contas os critérios de diagnóstico utilizados para a esquizofrenia estão codificados, descritos objetivamente, aliás disponíveis ao público em geral. Basta uma consulta ao DSM ou ao CID – que são os manuais de diagnóstico oficiais. Para o bem da verdade, não é necessário ser psiquiatra para diagnosticar ‘transtornos mentais’, como ‘esquizofrenia’ por exemplo, já que é suficiente seguir os critérios do DSM/CID.  Mas como os critérios de diagnóstico clínico propriamente dito devem ir além do que um leigo é capaz de observar e descrever, portanto além dos sintomas, espera-se haver ‘algo’ que apenas um médico – e muito em particular um psiquiatra – seja capaz de identificar e o que prescrever para tratar. Ainda que tantas e tantas vezes na história da nossa civilização ocidental, médicos gostem de transformar o que, na vida cotidiana é um incômodo, em termos supostamente médicos, como o filósofo francês Voltaire satirizou em sua peça “O Doente Imaginário”!

Hoje em dia, há muitas pessoas com diagnóstico de ‘esquizofrenia’. Porém, igualmente se sabe que a maioria daqueles tratados como ‘esquizofrênicos’, pela psiquiatria – melhor dito, pelo modelo biomédico-, não tem bons resultados com o tratamento que recebem. E levando-se em consideração que a grande maioria deles, ‘esquizofrênicos’, são hoje tratados fora dos tradicionais manicômios. O que significa que a Psiquiatria pós-asilar, com os seus supostos avanços biomédicos, na era pós-asilar continua a buscar por bons resultados. Seus resultados desde a introdução dos primeiros antipsicóticos no final dos anos 50 e início dos anos 60, são resultados não superiores ao que podiam ser alcançados mesmo em tratamento num hospital psiquiátrico, como demonstra o estudo longitudinal de Vermont. O que esse estudo revelou? No fim da década de 1950 e início da década de 1960, o Hospital Estadual de Vermont deu alta a 269 esquizofrênicos crônicos, a maioria de meia-idade, liberando-os para o convívio na comunidade. Vinte anos depois, Courtenay Harding entrevistou 168 pacientes desse grupo (os que ainda estavam vivos) e constatou que 34% tinham se recuperado, o que significava que eram “assintomáticos e levavam vida independente, tinham relacionamentos íntimos, estavam empregados ou eram cidadãos produtivos de outras maneiras, eram capazes de cuidar de si, e de modo geral, levavam uma vida plena, conforme o estudo longitudinal feito. E o que tinham em comum?  Harding afirma ao APA Monitor:  “haviam parado de tomar medicamentos, fazia muito tempo”.

Por conseguinte, não é por falta de medicamentos. Com os ‘transtornos mentais’, para que o êxito do tratamento ocorra não é necessário ter acesso a medicamentos. Não custa ser lembrado a série de estudos transculturais da própria Organização Mundial da Saúde (OMS), a mostrar que as populações com diagnóstico de ‘esquizofrenia’ em países ‘em desenvolvimento’ tinham uma probabilidade muito maior de estarem assintomáticos durante o período de acompanhamento, comparadas com as populações de ‘esquizofrênicos’ que foram investigadas em países ‘desenvolvidos’.

Para a “esquizofrenia”, p.e., o mercado brasileiro de saúde dispõe hoje de um conjunto de antipsicóticos denominados atípicos, considerados internacionalmente como os mais avançados, como são a clozapina, risperidona, olanzapina e a quetiapina; e ainda, as benzamidas substituídas (sulpirida e amisulprida) e a tioridazina. São os chamados antipsicóticos atípicos, porque supostamente promovem ação antipsicótica em doses que não produzem, de modo significativo, os chamados sintomas extrapiramidais evidentes nos antipsicóticos da primeira geração. Hoje, os medicamentos mais em uso são os da ‘segunda geração’. Que são considerados como melhores do que os da ‘primeira’, porque supostamente produzem menos efeitos colaterais desagradáveis. Não obstante, sabe-se que todos os ‘antipsicóticos’ agem sobre os receptores da dopamina, reduzindo a sua atividade, e que a maioria igualmente age igualmente sobre outros receptores. As pessoas diferem entre si. A combinação da ação de cada tipo de antipsicótico e a singularidade de cada usuário significa que os efeitos colaterais de um antipsicótico pode ser diferente de um indivíduo para outro.

É por isso que Daniel Martins-de-Souza reconhece o que já é óbvio e ululante na literatura científica, quer dizer, que embora o diagnóstico da esquizofrenia não esteja em questão, o que está em questão mesmo é que os psiquiatras prescrevem ‘ao acaso’. Ou seja, os psiquiatras sabem diagnosticar ‘esquizofrenia’, conforme os critérios ‘objetivos’, que é sinônimo do que é descrito e classificado no DSM/CID. Porém, ao contrário da medicina em geral, a medicina mental (quer dizer, a Psiquiatria) carece de indicadores biomédicos para orientar o seu diagnóstico e tratamento. Com outras palavras: não é difícil transformar alguém em um paciente com diagnóstico psiquiátrico, na medida em que até mesmo um programa de diagnóstico num computador pode diagnosticar, segundo os critérios ali fixados. O difícil mesmo é oferecer ao paciente um ‘tratamento’ adequado, já que existem diversas opções de drogas psicoativas a serem prescritas.

E não podemos deixar de considerar que o que ocorre com a ‘esquizofrenia’ igualmente é o que se passa com os demais ‘transtornos mentais’ – diagnosticados e tratados psiquiatricamente.  Ainda que repetidamente, o médico, em particular o psiquiatra, sabe diagnosticar, porque os critérios já estão descritos, estão à mão. E sabem prescrever seguindo os protocolos, mesmo que tal procedimento seja ‘ao acaso’ com relação aos resultados em médio e longo prazos.

Daniel Martins-de-Souza usa a expressão ‘loteria’ farmacológica. Como o pressuposto do ‘modelo biomédico’ é que exista um fármaco para agir sobre uma determinada doença, biologicamente identificada, como é possível que um ‘antipsicótico’ (sendo anti-psicótico) não age sobre a ‘esquizofrenia’? Na clínica, o que se observa é que uma parcela significativa dos pacientes tratados com ‘antipsicóticos’ não têm os seus sintomas melhorados com a medicação. O que acarreta a troca do remédio. Em busca de qual será a droga mais adequada. Assim sendo, o tratamento psicofarmacológico hoje vigente não passa de um ‘processo de ensaio e erro’, uma ‘loteria’.

As evidências científicas mostram que entre as diversas síndromes produzidas ‘iatrogenicamente’ pelos antipsicóticos, como são os níveis de açúcar alterados, e muito em particular as alterações dos níveis de lipídeos, colocam os indivíduos em alto risco de complicações cardiovasculares, etc.  Por essa razão, o recomendável é que pacientes com antipsicóticos sejam regularmente submetidos a exames da saúde em geral. [i]

Antes de fazermos uma leitura cuidadosa da pesquisa que a Folha toma como referência, a pergunta essencial que se deve fazer com a leitura da matéria jornalística é: mensurar os níveis de lipídios em pacientes que estão tomando antipsicóticos é para identificar o que?

Meia-resposta está na própria matéria jornalística, dada pelo Sidarta Ribeiro, neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ele assim considera:

“Trata-se de um trabalho muito bem feito e com uma abordagem bastante promissora. Ele tenta entender como os efeitos colaterais do tratamento podem, na verdade, ajudar a encontrar os caminhos para a melhor terapia, e propõe que, antes de iniciar o tratamento, você possa descobrir como é o seu paciente. É uma medicina muito mais inteligente que a atual.”

O que Sidarta afirma está focado conforme as lentes de leitura proposta pela pesquisa: os efeitos colaterais da droga psicoativa prescrita (no caso, ‘antipsicóticos’).

A pesquisa em tela

A pesquisa é apresentada como sendo o primeiro estudo a identificar marcadores lipidômicos em plasma associados com resposta de pacientes esquizofrênicos agudos a tratamentos com antipsicóticos específicos. A população estudada incluiu 54 pacientes com diagnóstico de esquizofrenia tratados com antipsicóticos por 6 semanas.

A amostra foi constituída por pacientes com diagnóstico de esquizofrenia em estado agudo, que tiveram os níveis de lipídio monitorados durante as seis semanas, em tratamento com três antipsicóticos da segunda geração: olanzapina, risperidona e quetiapina.

A observação mais imediata, que trata de algo crucial, é a seguinte. Os pesquisadores parecem não haver se preocupado em distinguir aqueles que nunca estiveram em tratamento com antipsicóticos, aqueles que tiveram e que abandonaram o tratamento por uma razão ou outra, e aqueles que estavam em tratamento com antipsicótico no “tempo zero da pesquisa”.  Resulta que tal distinção é fundamental. Primeiramente, porque como os próprios autores reconhecem na introdução do artigo, que não é novidade para a literatura científica serem observados efeitos colaterais da segunda geração dos antipsicóticos, como respostas metabólicas, tais como hiperglicemia, resistência insulínica, ganho de peso, e níveis alterados de lipídios na corrente sanguínea, com as suas inúmeras consequências para o bem-estar e a saúde de seus usuários.  Portanto, uma coisa é observar tais indicadores naqueles pacientes que ainda não foram submetidos a drogas antipsicóticas, e outra coisa bem diferente é monitorar tais indicadores ao longo do tratamento com os antipsicóticos. Em particular, incluindo aqueles que interromperam o uso de antipsicóticos de forma abrupta, sem um cuidadoso processo de redução gradual do seu uso. Os autores ignoram a literatura científica que mostra os resultados obtidos com aqueles diagnosticados com ‘esquizofrenia’ e que não foram submetidos a ‘antipsicóticos’.  Como a experiência pioneira de Soteria, nos anos 60 e 70, sob a liderança do psiquiatra Lauren Mosher, ex-diretor do Centro de Estudos de Esquizofrenia no National Institute of Mental Health (NIMH). Os resultados de Soteria são espetaculares, demonstrados em várias publicações científicas. Aqui no Mad in Brasil há várias publicações a respeito. Descrevendo e apresentando a literatura a respeito dessa experiência original. Senão, o que atualmente vem sendo feito, com a experiência em Israel. Ou ainda, uma rigorosa revisão da literatura científica sobre os ‘antipsicóticos’, que foi feita por Robert Whitaker.

Na verdade, o que a pesquisa busca é atender um dos graves problemas hoje enfrentados pela aliança da corporação psiquiátrica e a indústria farmacêutica: os efeitos colaterais de tais medicamentos superam na maioria dos casos os possíveis benefícios. Como os autores afirmam: “Esses problemas têm levado a recomendações para que os clínicos monitorem cuidadosamente os pacientes psiquiátricos tratados com antipsicóticos para a identificação dos primeiros sinais de tais efeitos colaterais”.

Por isso os biomarcadores passam a ser de vital importância para a aliança entre a indústria farmacêutica e a corporação psiquiátrica.

Não obstante o gigantesco investimento de recursos financeiros, humanos e tecnológicos na descoberta de biomarcadores, os resultados têm sido muito pouco animadores, como os próprios autores reconhecem. No caso, o foco é biomarcadores que possam prever respostas em pacientes tratados com diferentes antipsicóticos.

O objetivo principal do estudo foi “identificar proteínas e caminhos percorridos pelas proteínas envolvidas em uma resposta efetiva para antipsicóticos ativos”.

A metodologia empregada foi tomar amostragens de sangue colhidas em 54 pacientes com esquizofrenia aguda que foram tratados com olazanpina (n=17), risperidona (n=23) ou quetiapina (n=14). O diagnóstico foi conforme os critérios do DSM-IV e da Entrevista Clínica Estruturada (SCID-I).  As amostragens de sangue foram coletadas na clínica psiquiátrica da Universidade de Magdeburg, Alemanha, sem medicação por pelo menos 6 semanas antes da inclusão. Amostras do plasma foram colhidas antes do início da investigação, com os pacientes em crise aguda de esquizofrenia. E após as 6 semanas do período de tratamento, os pacientes foram agrupados conforme aqueles que responderam bem ao tratamento ou não, fazendo uso da Escala de Síndrome Positiva e Negativa(PANSSS).

Os resultados da resposta dos pacientes ao tratamento foram registrados. Do total de 54 pacientes 34 mostraram uma boa resposta ao tratamento.

O estudo é uma abordagem do perfil de lipídios em uma tentativa de detectar as moléculas de lipídio em amostragens de plasma dos pacientes antes do tratamento, o que pode ser usado para prever a resposta a tratamentos com antipsicóticos específicos.

Em busca do Santo Graal

Em maio de 2013, David Kupfer, chefe da força-tarefa do DSM-5, lança uma declaração no jornal da Associação da Psiquiatria Americana(APA), discutindo o futuro da pesquisa em saúde mental. Ele diz textualmente:

A promessa da ciência dos transtornos mentais é grande. No futuro, nós esperamos ser capazes de identificar transtornos usando marcadores biológicos e genéticos para fornecer diagnósticos precisos que possam ser dados com completa confiança e validade. Ainda que essa promessa, que nós antecipamos desde os anos 1960, permaneça desapontadoramente distante. Nós temos dito aos nossos pacientes há décadas que nós estamos esperando por biomarcadores. Nós ainda estamos esperando.”

Como se estivessem em busca do Santo Graal, enquanto o único objeto com capacidade para devolver a credibilidade da aliança entre a corporação psiquiátrica e a indústria farmacêutica, com o seu paradigma biomédico para o tratamento dos transtornos psíquicos, a identificação de biomarcadores continua a contar com vultuosas somas de dinheiro para financiar pesquisas que vão nesse sentido. Não obstante, o fracasso tem sido impiedosamente o resultado.

Uma recente publicação, publicada em 2016, no periódico Annals of Neurosciences, é eloquente. Trata-se de uma pesquisa que realizou uma revisão sistemática e qualitativa dos biomarcadores clinicamente significativos para a psicose examinou mais de 3.200 estudos e que descobriu que apenas um estudo passou pelo limiar dos autores de aplicabilidade clinica.  Seus dois autores observam que os esforços para identificar biomarcadores em pessoas diagnosticadas com transtornos psiquiátricos têm sido esmagadoramente sem sucesso.  Com destaque comentários feitos por eles.

“Embora, esforços ‘concertados’ de pesquisa na ‘década do cérebro’ e nos anos que se seguiram tenham descoberto insights críticos na patogênese dos transtornos psiquiátricos, biomarcadores clinicamente traduzíveis em psiquiatria estão ainda a ser identificados”.

Os autores lembram que um biomarcador ou marcador biológico é um aspecto de uma doença que pode de forma confiável e repetitiva ser medido quantitativamente. Que, portanto, eles estão em contraste com ‘sintomas, que são aspectos de doença que são experiências dos pacientes e que podem por eles ser relatados.  Mesmo em áreas onde têm ocorrido substancial pesquisa investigando a presença de biomarcadores, como na doença de Alzheimer e Autismo, a busca por identificar um biomarcador significativo e com valor clínico tem sido sem sucesso.

“O que reitera o fato que o status corrente dos biomarcadores em psiquiatria tem ficado significativamente para trás em comparação com outras especialidades médicas.”

Quais as razões para tal fracasso? Uma das razões por detrás desses fracassos, eles escrevem, é que “os sistemas classificatórios atuais não são especificamente projetados para abrir caminho para a identificação de marcadores biológicos válidos e, por outro lado, apesar da vasta quantidade de estudos biológicos, um sistema alternativo clinicamente viável baseado em parâmetros neurobiológicos robustos ainda não foi desenvolvido.”  Um parêntese. Quem lê este artigo pode bem observar que os autores apostam em um modelo biomédico de classificação, como está dito nesse trecho que acabo de citar.  Quando se sabe que na literatura científica abunda as críticas a essa teimosia em considerar o modelo biomédico como a ser necessariamente hegemônico, em detrimento do contexto social do que é referido como “doença mental”, o que por consequência direciona o foco para processos centrados no cérebro.

Outros fatores que os autores destacam como os que contribuem para o fracasso da descoberta de biomarcadores são “os limites metodológicos dos estudos existentes” (como o uso de pequenas amostras e a falta de replicação). Assim como a “falta de validade dos modelos animais de doença mental”, e “os problemas relacionados com a conceptualização dos paradigmas patogênicos” (o que quer dizer, a hipótese das teorias do desequilíbrio químico).

 Nota bibliográfica:

[i]Baldessarini RJ, Cohen BM, Teicher MH. Significance of antipsychotic doses and plasma levels in the pharmacological management of the psychoses. Arch Gen Psychiatry 1988; 45:79-91.

Healy D, Howe G, Mangin D. Sudden cardiac health and the reverse dodo verdict. Int J Risk Saf Med 2014; 26:71-9

Psicoterapeutas Fazem uma Reflexão sobre os Fracassos na Terapia

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ZenobiaUm estudo recente, conduzido pelo Dr. Andrzej Werbart, entrevistou sete terapeutas psicanalíticos sobre suas experiências em terapia com pacientes adultos jovens que não melhoraram. Os resultados, publicados na Psychotherapy Research, demonstram que os terapeutas experimentam um “retrato dividido” do paciente “não melhorado” e, em sua confusão, lutam para encontrar um equilíbrio entre distância e proximidade que resulta em um sentimento geral de controle perdido no processo terapêutico.

“Quanto mais o terapeuta tentava aprofundar o relacionamento para ajudar o paciente a alcançar suas experiências não formuladas, mais o paciente se retirava, aumentando a confusão do terapeuta, relataram os terapeutas. Com o tempo, os terapeutas ficaram frustrados e incapazes de encontrar uma maneira de avançar com seus pacientes, ficando presos em uma luta”.

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Há uma extensa evidência sugerindo que a psicoterapia é eficaz para uma ampla gama de preocupações com a saúde mental. Ainda assim, um número substancial de clientes não experimenta melhora na psicoterapia. Pior ainda, alguns experimentam o que é chamado de “deterioração” durante o tratamento, ou um agravamento de sua angústia.

Embora as evidências sugiram que os terapeutas possam melhorar os resultados identificando casos de tratamento malsucedido, as pesquisas também demonstram que é difícil para os terapeutas detectar suas falhas no tratamento. Werbart e colegas destacam a importância de compreender os fatores específicos que levam à melhoria do tratamento, estagnação ou deterioração, justificando, assim, o mérito deste projeto que examina experiências de terapeutas de casos “não melhorados” com psicoterapia.

Utilizando critérios quantitativos de inclusão e técnicas de análise qualitativa, os pesquisadores levantam as seguintes questões neste estudo:

  • “Como os terapeutas descrevem seu trabalho nesses casos particulares e a si mesmos enquanto terapeuta desse tipo de paciente?”
  • “Como os terapeutas descrevem seus pacientes, a relação terapêutica e o resultado da terapia?”
  • “Quais fatores e processos parecem ter sido cruciais para o resultado malsucedido do ponto de vista do terapeuta?”

Eles também investigaram “se há alguma característica particular das experiências dos terapeutas já observáveis no início do tratamento, conforme relatado nas entrevistas”.

Dados de arquivo do Young Adult Psychotherapy Project(YAPP) foram utilizados. Este estudo apresentou dados naturalistas, longitudinais com psicoterapia psicanalítica em adultos jovens (que foram em grande parte por demanda pessoal) em Estocolmo, na Suécia. Os pacientes participaram da terapia por uma média de 22,3 meses, e os dados do desfecho foram avaliados no término, em 1 1/2 ano e em um acompanhamento de 3 anos.

Os pesquisadores usaram critérios de seleção para estudar exclusivamente casos de não-melhora, definidos como “pacientes que relataram um nível de sintomas antes do início do tratamento propriamente dito, com nenhuma redução confiável dos sintomas ou mesmo com deterioração ao final do tratamento”. O corte entre casos “não-melhorado” e “clinicamente-melhorado” foi feito tomando como referência a medida de desfecho do Índice de Gravidade Global (GSI). Os psicoterapeutas foram recrutados de um estudo anteriorque examinou as perspectivas dos pacientes a respeito da sua experiência de psicoterapia que não levou a melhora da sua saúde mental.

Neste estudo, oito pacientes trabalharam com sete psicoterapeutas. Quatro dos sete terapeutas eram do sexo feminino e três do sexo masculino. A idade média da amostra do terapeuta foi de 52,9 anos.

Depois de participar de entrevistas semiestruturadas com terapeutas e de codificar os relatos dos terapeutas através dos fundamentos de sua teoria, os pesquisadores identificaram uma categoria central que conectava subcategorias e domínios adicionais. Esta categoria central, intitulada “ter a metade do paciente em terapia”, foi criada com base em citações diretas dos terapeutas entrevistados.

A categoria central “Ter metade do paciente em terapia” capturou um processo no qual o terapeuta experimentou partes do paciente que no início da terapia se apresentavam como obscuras ou ausentes – que partes essenciais de suas circunstâncias ou problemas de vida foram excluídas em suas entrevistas iniciais. Apesar de inicialmente se sentir atraído pelo paciente e por sua história, o terapeuta sentia-se incapaz de diminuir a distância. Isso acabou resultando em um senso percebido da perda de controle do terapeuta no processo terapêutico e a incapacidade de alcançar um equilíbrio favorável de proximidade e distância.

Nove subcategorias são mapeadas em torno dessa categoria principal. Essas nove subcategorias foram agrupadas em dois domínios temáticos: 1) Experiências do processo terapêutico e 2) Experiências de resultados terapêuticos.

Experiências do processo terapêutico

Os terapeutas inicialmente descreveram estar interessados e envolvidos no trabalho com o paciente. Eles não se esforçaram por ganhar empatia do paciente e experimentaram o paciente como extraordinariamente verbal, capaz e apreciador de terapia, apesar de ter um histórico traumático. Werbart e co-autores escrevem:

“A terapeuta se sentiu incomumente alerta, livre ou criativa, e poderia descrever um sentimento libertador de que as coisas acabariam e se esclareceriam com o tempo e que ela e o paciente estavam funcionando com sucesso. Era fácil gostar do paciente e sentir empatia, e o terapeuta sentiu-se importante, pois o paciente ousou se abrir e demonstrar confiança de uma maneira incomum”.

Desde o começo, os terapeutas sentiram uma distância do paciente, ou de partes do problema do paciente, que foi aumentando com o tempo. Os terapeutas entenderam os pacientes como tendo dificuldades em permitir a proximidade em seu relacionamento terapêutico e em relações interpessoais fora da terapia. Um participante terapeuta declarou: “Ela mantém uma certa distância; ela tem dificuldade em deixar seus sentimentos fluírem e não expressa nada forte sobre sua ligação comigo também.”

Além disso, eles descreveram o paciente como exibindo uma crescente aversão à proximidade, conforme descrito pela declaração deste terapeuta:

“Quanto mais a terapia significava para ela, e quanto mais eu significava para ela, pior, mais perigosa a terapia se tornava para ela e mais ela precisava me transformar em um não-corpo. Durante esse tempo eu estava funcionando como uma extensão dos móveis da sala, eu fazia parte da montagem, por assim dizer, eu não era uma pessoa viva”.

Os terapeutas perceberam os pacientes como se tornando cada vez mais ameaçados por questões, confrontos e intervenções, resultando em “batalhas infrutíferas” e tentativas frustradas de colaboração. Em última análise, o terapeuta relata ter perdido o controle no processo, sentindo-se perplexo, envolvido demais e mais propenso a abandonar a sua postura profissional.

Experiências com resultados de terapia

Os terapeutas da amostra descreveram acreditar que o paciente adquiriu maior percepção de sua vida, apesar do resultado não melhorado do caso. Eles sentiram que os sintomas do paciente diminuíram em força e que os pacientes adquiriram novas maneiras de administrar sua vida.

Além disso, eles relataram alguns resultados favoráveis da terapia, como a percepção da melhor confiança do paciente no relacionamento terapêutico, bem como uma mudança no funcionamento interpessoal. No entanto, os terapeutas entenderam que os problemas centrais do paciente permaneciam no término e que as melhorias percebidas não haviam levado a mudanças substanciais.

Esses resultados foram interpretados pelos pesquisadores juntamente com os resultados de seu estudo anterior, no qual eles examinaram as perspectivas dos pacientes de psicoterapia não melhorada, capturada pelo título “Girando as Rodas”. Enquanto os pacientes experimentaram um terapeuta muito passivo, os terapeutas descreveram como um paciente presente pela metade.

“Assim, há uma diferença marcante entre as experiências dos pacientes e a dos terapeutas a respeito do processo terapêutico em casos de não-melhoria. Interpretamos as experiências de pacientes sem melhorias como uma aliança terapêutica desequilibrada, com um vínculo emocional suficientemente bom, porém sem concordância suficiente em relação aos objetivos e tarefas da terapia”, escrevem os pesquisadores.

Werbart e seus colegas continuam a descrever que os pacientes provavelmente vivenciaram dificuldades em abordar e trazer à tona assuntos emocionalmente sobrecarregados, e, no final, os terapeutas não conseguiram ajudá-los a lidar com isso. Dessa forma, os pesquisadores discutem como os terapeutas podem ter superestimado o funcionamento do paciente enquanto subestimavam o escopo dos problemas do paciente.

Tanto o paciente quanto o terapeuta descreveram, a partir de seus diferentes pontos de vista, que o terapeuta não compreendia o paciente, o que poderia ter acrescentado à experiência do paciente a sensação de um relacionamento artificial”.

Além disso, o terapeuta se esforçou para adaptar sua abordagem às necessidades personalizadas e ao nível de funcionamento do paciente, apesar de suas tentativas ativas de se metacomunicar, talvez como resultado de superestimar o funcionamento do paciente. Os terapeutas, convencidos de que precisavam apenas de mais tempo, ou de mais trabalho, mas que geralmente estavam no caminho certo, podem não ter considerado a adoção de um novo entendimento ou foco.

Werbart e co-autores explicam como essa falsa convicção leva os terapeutas a potencialmente interpretar a terapia malsucedida como resistência do paciente:

“Eles não atribuem o limitado progresso na terapia à sua própria compreensão limitada dos problemas do paciente, mas sim à falta de vontade do paciente de se abrir e se esforçar mais. Em conjunto, isso resultou na incapacidade de adaptar sua técnica e abordar suas intervenções para os problemas centrais dos pacientes”.

Embora o paciente tenha descrito seu interesse e envolvimento no caso, isso pode ter comprometido sua capacidade de manter um equilíbrio efetivo de proximidade e distância com sucesso. Os pesquisadores levantam a hipótese de que “é possível que a percepção restrita dos terapeutas sobre sua contratransferência tenha contribuído para as dificuldades de se tomar uma ‘terceira posição’ junto com o paciente e desafiar a pseudo-mentalização do paciente”.

Existem várias implicações desta pesquisa. Dois destaques notáveis de Werbart e colegas concentram-se na prevenção de resultados de terapia que ficam abaixo do esperado. Primeiro, eles afirmam que os terapeutas devem estar atentos às contradições e incompatibilidades na avaliação inicial dos pacientes, na relação terapêutica e no processo terapêutico.

Especificamente, quando os terapeutas experimentam uma colaboração positiva e estimulante em conjunto com o distanciamento do paciente, isso pode ser uma indicação de que o terapeuta não está totalmente em contato com o funcionamento e as experiências do paciente.

“Se o terapeuta se concentra unilateralmente nas partes que funcionam melhor, existe o risco de nenhuma mudança terapêutica. Esse tipo de incompatibilidades e tendências divididas nas experiências do terapeuta pode ser difícil de reconhecer por terapeutas novatos e igualmente por terapeutas, e deve ser abordado no treinamento e supervisão de psicoterapia ”, escrevem Werbart e pesquisadores.”

Finalmente, eles encorajam a avaliação contínua do funcionamento do paciente durante todo o processo de terapia para informar e orientar as abordagens e adaptações das intervenções dos terapeutas. O terapeuta também deve estar disposto a reconsiderar sua avaliação inicial.

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Werbart, A., von Below, C., Engqvist, K., & Lind, S. (2018). “It was like having half of the patient in therapy”: Therapists of nonimproved patients looking back on their work. Psychotherapy Research, 1-14. (Link)

Eficácia do Antidepressivo não Depende da Gravidade da Depressão

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FreitasUm novo estudo, que foi publicado em Acta Psychiatrica Scandinavica, descobriu que a eficácia do antidepressivo não depende da gravidade da depressão. Os pesquisadores analisaram os dados em nível individual (IPD) de pesquisas radomizadas, duplo-cego, controladas com placebo, com antidepressivos da nova geração, para o tratamento da fase aguda da depressão maior. E os resultados são impactantes, na medida em que o que a meta-análise feita revelou que os antidepressivos aparecem como não sendo mais efetivos para a depressão maior do que para a depressão suave.

Depresssão maior

Esse estudo foi realizado por alguns dos mais destacados pesquisadores em antidepressivos: Toshi Furukawa, da Universidade de Kyoto, Stefan Leucht, da Techische Universität Muchen, e Andrea Cipriani, da Universidade de Oxford, entre outros. Esses três autores estiveram igualmente envolvidos no recente estudo publicado na Lancet Psychiatric que sugere que os antidepressivos são efetivos.

Os critérios escolhidos para a meta-análise foram: ensaio clínico duplo-cego randomizado e controlado (ECR); tratamento da fase aguda de adultos diagnosticados com transtorno depressivo maior; a intervenção feita com antidepressivos da nova geração, implementados como monoterapia, prescritos conforme a dose oficialmente recomendada; o controle foi com placebo; os ensaios clínicos foram realizados no Japão.  E a estratégia da pesquisa consistiu em examinar 11 ECRs de seis empresas farmacêuticas do Japão à espera da aprovação regulatória. Dessas, quatro empresas concordaram em fornecer os dados solicitados, o que resultou em apenas 6 estudos para constituir a amostra.  Um total de 2.464 participantes foram incluídos. Os estudos compararam seis antidepressivos com placebo. Os antidepressivos examinados foram duloxetina (Cymbalta), escitalopram (Lexapro), mirtazipina (Remeron), Paroxetina (Paxil) e bupropion (Wellbutrin).

Os autores usaram os dados individualizados dos participantes ao invés de dados agregados, isto porque tal metodologia de meta-análise tem revelado ser a que apresenta melhores vantagens, tanto estatísticas quanto clínicas.

Os autores observam que os resultados dessa meta-análise contrariam estudos anteriores que sugerem que os antidepressivos são mais eficazes na depressão grave. Eles verificaram que, como a eficácia antidepressiva sobre o placebo é um efeito tão pequeno, a melhora pode ser facilmente confundida com outros fatores. Medicamentos antidepressivos geralmente são apenas um pouco melhores que o placebo em estudos de eficácia – o suficiente para ser estatisticamente significativo. Entretanto, o significado clínico dessa pequena diferença tem sido questionado.

Esse estudo confirma investigações concluídas há mais de uma década por Irving Kirsch e colegas.

Algumas das limitações deste último estudo foram: ter apenas estudos do Japão; apenas metade dos estudos identificados foram os incluídos nos dados; muitos tipos de antidepressivos não foram examinados; e pacientes muito graves ou suicidas não foram incluídos nos estudos. De fato, os pesquisadores descrevem os participantes como “altamente selecionados”. Isso significa que o estudo não pode responder a perguntas sobre se os antidepressivos poderiam prevenir a tendência suicida na depressão grave.

Os autores assim concluem:

“Clinicamente, as implicações das descobertas atuais podem ser resumidas da seguinte forma. Os pacientes deveriam igualmente se beneficiar em todo o espectro de gravidade, na medida em que sofrem de depressão maior. O mito do benefício especificamente menor dos antidepressivos para o espectro mais moderado do transtorno, em comparação com seu espectro mais severo, deve agora ser expelido. Dadas as amplas implicações clínicas dos presentes achados, vale a pena examinar sua generalização, isto é, se a gravidade inicial modifica a eficácia de intervenções de tamanhos variáveis de efeito em amostras menos restritas de pacientes com depressão maior, em outros transtornos em psiquiatria e fora da psiquiatria.”

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Artigo: Furukawa, T. A., Maruo, K., Noma, H., Tanaka, S., Imai, H., Shinohara, K., . . . Cipriani, A. (2018). Initial severity of major depression and efficacy of new generation antidepressants: Individual participant data meta-analysis. Acta Psychiatrica Scandinavica, 137(6)450-458. doi: 10.1111/acps.12886 (Link)

Novas Diretrizes para a Atenção Primária do Canadá envolvendo a Desprescrição de Benzodiazepínicos

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CAMILASaiu recentemente um artigo sobre novas diretrizes para a atenção básica do Canadá, envolvendo os benzodiazepínicos (ARBs). Alguns médicos da University of Ottawa, em Ontário (Canadá), publicaram uma série de diretrizes clínicas, com o objetivo de auxiliar médicos a desprescrever, de forma segura, benzodiazepínicos. As diretrizes baseadas em evidências, foram publicadas na edição de maio do periódico Canadian Family Physician, onde observam que os benzodiazepínicos ainda são largamente prescritos para o tratamento a longo prazo da insônia em adultos.

Apesar dos benefícios a curto prazo, como maior rapidez em iniciar o sono e uma hora a mais na duração do sono, o uso crônico dos ARBs pode levar à dependência física e psicológica. Além de novas evidências mostrarem que sua eficácia diminui após 4 semanas e os efeitos adversos permanecem. Isso acontece porque agonistas de receptores de benzodiazepínicos se ligam a receptores de ácido y- aminobudírico tipo A, mas com seu uso excessivo por um prolongado período de tempo o receptor pode mudar fisicamente, diminuindo seu potencial para sedação. Pelos efeitos adversos – quedas, demência, acidentes automobilísticos, dependência física, entre outros –  e alta prescrição no tratamento da insônia, foi consenso entre familiares, médicos, enfermeiras e geriatras, que os ARBs são a classe de medicamentos mais importantes para o desenvolvimento de diretrizes de desprescrição.

O objetivo do artigo foi revisar sistematicamente os benefícios e danos da desprescrição de ARBs, usando a opinião dos pacientes e a literatura sobre o assunto, e assim  desenvolver um guia baseado em evidências que assista profissionais da saúde e usuários na tomada de decisão e na redução de ARBs. Essa iniciativa é de grande relevância, principalmente quando 13% da população do Canadá tem insônia, uma das mais numerosas demandas da atenção primária daquele país.

A equipe de desenvolvimento do guia (EDG) consistiu em 8  profissionais da saúde, 1 médico da família, 2 psiquiatras, 1 psicólogo clínico, 1 farmacologista clínico, 2 farmacêuticos clínicos, 1 geriátra e 1 metodologista. A equipe usou o sistema GRADE* para o desenvolvimento do guia e a lista de Schünemann e colegas, para orientar a construção de métodos para o desenvolvimento de diretrizes de descontinuidade. O EDG também formulou a principal questão de manejo clínico, da seguinte forma, utilizando a abordagem ‘PICO’ (população, intervenção, comparação e resultado): quais são os efeitos (benefícios e danos) da desprescrição de ARBs comparado com o uso continuado em adultos com insônia.

Antes de executar a pesquisa, a equipe realizou uma revisão sistemática para avaliar os efeitos das diferentes abordagens de desprescrição das ARBs, além de investigar os efeitos comparativos de diferentes intervenções de desprescrição, que incluíam interrupção abrupta, “afunilamento”, troca ou substituição de terapia, entre outros. Resultados primários incluíram qualidade de sono, efeito na cognição (melhora ou piora), eventos adversos de retirada de drogas, taxa de cessação (proporção de pacientes que pararam completamente as ARBs) e danos (sedação diurna, equilíbrio, acidentes com veículos motorizados, quedas, mortalidade, dependência). Já os resultados secundários incluíram a carga (burden) de pílula benzodiazepínica (média da dose de ARBs) e satisfação dos pacientes.

O público alvo do guia de desprescrição de benzodiazepínicos são adultos que tomam ARBs para tratamento de desordem de insônia: insônia primária e insônia por comorbidade (onde comorbidades subjacentes são gerenciados), com idades entre 18 e 64 anos, que tomam ARBs a maioria dos dias da semana, por mais de 4 semanas, e adultos idosos com mais de 65 anos que tomam ARBs, independente do tempo. O guia não é recomendado para outros tipos de desordem do sono, ansiedade não tratada, depressão ou condições físicas ou mentais que poderiam estar causando ou agravando a insônia. Esses pacientes devem ser tratados apropriadamente pelas suas condições primárias antes de considerar a desprescrição ou serem encaminhados ao psicólogo ou psiquiatra.

O resultado da revisão sistemática demonstra que muitos pacientes podem interromper com sucesso os ARBs , com aproximadamente 60% a 80% dos pacientes capazes de interromper o uso, como resultado de uma intervenção de desprescrição. Em relação ao ‘afunilamento’ das doses, a taxa média de sucesso é entre 25% a 80%, em comparação com taxas de cessação de 10% a 20% do cuidado usual quando a deprescrição não é iniciada.

A equipe que desenvolveu o guia de desprescrição percebeu que envolver o paciente na discussão sobre os ARBs e saber sobre os objetivos e preferências no uso de ARBs foi um importante primeiro passo, o que foi confirmado pelos médicos que participaram da implementação do projeto. Os pacientes indicaram que seriam mais suscetíveis a desprescrição se houvesse um plano claro de redução gradual e eles sabiam o que esperar. A justificativa para a desprescrição deve ser claramente explicado, um plano de afunilamento deve ser negociado, e as seguintes evidências devem ser discutidas: riscos de uso contínuo de ARBs (por exemplo, quedas, acidentes automobilísticos) e potenciais benefícios de descontinuação (por exemplo, redução do risco de queda, menos sedação, melhora no pensamento e na memória); efeito terapêutico de ARBs pode ser perdido dentro de 4 semanas devido a alterações do receptor (mas os efeitos amnésicos persistir); e  Efeitos adversos leves de abstinência de drogas podem ser esperados durante o afunilamento a curto prazo (alguns dias a semanas).

No entanto, a revisão sistemática não identificou estudos que compararam diferentes estratégias de redução por afunilamento. Além disso, foi constatado que Pacientes em uso de doses mais baixas no início do estudo e usando ARBs por um período mais curto, tendem a ter maiores taxas de abandono e menor risco de reiniciar o uso de seus ARBs. Sofrimento psicológico e pior estado geral de saúde no início do estudo parece aumentar o risco de precisar reiniciar o uso do ARBs. A equipe recomenda que ao decidir diminuir as doses e as taxas, considere usar uma taxa mais lenta com as pessoas com maior probabilidade de ter um risco maior de recaída (por exemplo, uso a longo prazo ou histórico de sofrimento psicológico).

Preocupação com o potencial de sintomas de abstinência costuma ser  a principal razão pela qual os prescritores muitas vezes não abordam os pacientes sobre a desprescrição de ARBs. Mas a  revisão sistemática constatou que não houve diferença nas pontuações gerais dos sintomas de abstinência de ARBs para redução gradual em comparação com os cuidados habituais ou a continuação de ARBs. No grupo de afunilamento desta pesquisa, foram relatados mais problemas para dormir aos 3 meses em comparação com a continuação de ARBs (diferença média de 16,1 maior em uma escala de 100 pontos de “problemas para dormir”, 95% CI 15,0 a 17,2), mas qualquer diferença em relatos de problemas para dormir não passava mais de 12 meses. O afunilamento gradual de agentes de ação curta não elimina os sintomas de abstinência, mas melhora sua gravidade, com os sintomas começando a aparecer quando as doses são reduzidas para cerca de 25% da linha de base.

Uma variedade de estratégias e intervenções de gestão de comportamento, como a TCC, tem sido usada para ajudar com insônia e pode ser considerada como alternativa não-medicamentosa se a insônia ocorrer durante ou após a desprescrição de ARBs. A revisão sistemática também constatou que, quando usada como parte de uma intervenção de desprescrição, a TCC combinada com o desmame, melhorou as taxas de cessação de ARBs pós-intervenção em comparação com o afunilamento sozinho. Isso é consistente com a atual base de evidências.

A equipe ressalta que o afunilamento gradual reduz, mas pode não eliminar, os sintomas de abstinência. Um plano de monitoramento deve ser desenvolvido em conjunto com o paciente. A cada passo do afunilamento (aproximadamente a cada 1 a 2 semanas durante a duração), monitore a gravidade e a frequência dos sintomas adversos de abstinência (ansiedade, irritabilidade, sudorese, sintomas gastrointestinais, insônia), benefícios potenciais (por exemplo, menos sedação diurna, melhor cognição, menos quedas) e humor, qualidade do sono e alterações no sono.

Outro dado importante para os profissionais de saúde é que ao oferecer desprescrição de ARBs é essencial estar atento para depressão pré-existente ou incidente ou transtornos de ansiedade. Comorbidades psiquiátricas são comuns na insônia. Em um estudo longitudinal de 6 anos, 76 indivíduos que tiveram insônia e estavam tomando benzodiazepínicos tiveram um aumento de 5 vezes risco de desenvolver depressão e um risco de 3 vezes de desenvolver um transtorno de ansiedade em comparação com indivíduos que não tinham insônia e não usavam benzodiazepínicos.

Como fruto dessa pesquisa foram criadas ferramentas: algoritmo de apoio à decisão e um panfleto de informações do paciente correspondente, ambos  destinam-se a apoiar os profissionais de saúde no envolvimento dos pacientes sobre este importante tópico e implementando planos de deprescrição com eles, e que será disponibilizada na atenção primária do Canadá. O trabalho do EDG para criação das diretrizes de desprescrição, foi um trabalho credível, desenvolvido com uma abordagem rigorosa e baseada em evidências. Oferece ao clínico, portanto, um argumento claro e confiável para  as discussões sobre a desprescrição de ARBs com os pacientes. Por que não fazer algo similar no Brasil?

*

*O sistema GRADE foi proposto pelo grupo Grading of Recommendations, Assessment, Development and Evaluation (GRADE) e é um sistema que fornece informação clara e concisa tanto sobre a qualidade da evidência, quanto sobre a força da recomendação. Fonte: Portal Ministério da Saúde. Para saber mais http://www.gradeworkinggroup.org/

……

Pottie, K., Thompson, W., Davies, S., Grenier, J., Sadowski, C. A., Welch, V., … Farrell, B. (2018). Deprescribing benzodiazepine receptor agonists: Evidence-based clinical practice guideline. Canadian Family Physician64(5), 339–351. (link)

Ensaios Clínicos Controlados Aleatoriamente com Drogas Psiquiátricas Falam dos Danos Causados

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robert-whitakerOs ensaios clínicos randomizados (ECRs) são vistos como o padrão ouro para orientar a ‘ medicina baseada em evidências’ e, até recentemente, eu não prestava muita atenção ao ‘tipo’ de evidências que eles forneciam. Mas depois de escrever recentemente a respeito de duas metanálises de antipsicóticos e antidepressivos que concluíram que essas drogas eram ‘eficazes’, comecei a pensar em ECRs com uma outra forma de olhar.

Os dados mais importantes em um ECR não são se o medicamento fornece um benefício estatisticamente significativo em relação ao placebo. O dado mais importante é o cálculo do ‘número necessário para tratar’ (NNT). Estes são os dados que devem ser usados para fornecer aos pacientes o consentimento informado sobre a probabilidade de que eles se beneficiarão do tratamento a curto prazo, ou, inversamente, serão prejudicados por ele. E são esses dados – e não os dados de eficácia – que devem informar os protocolos de prescrição.

No passado, escrevi sobre a corrupção nos ECRs das drogas psiquiátricas – o viés do projeto, o uso de um grupo de placebo composto de pessoas retiradas de suas drogas, a distorção dos resultados publicados e assim por diante. Mas este post é sobre algo diferente. Mesmo se tomarmos os ECRs de antipsicóticos e antidepressivos pelo valor de face, os dados do NNT das metanálises revelam que a esmagadora maioria dos pacientes não se beneficia do tratamento e, portanto, é prejudicada, pelo menos em algum grau, pela exposição deles à droga.

Em suma, os números do NNT fornecem evidências para a utilização dos fármacos de forma seletiva, evitando seu uso imediato nos pacientes do primeiro episódio.

Resultados de eficácia versus NNT

A descoberta de eficácia em um estudo de uma droga psiquiátrica vem do cálculo dos resultados agregados para os grupos de drogas e placebo. Se a redução dos sintomas, em média, é maior no grupo de drogas do que no grupo de placebo, e se essa diferença é estatisticamente significativa, então o julgamento é considerado positivo para a droga. O tratamento proporciona um benefício em relação ao placebo.

Esta é a evidência que é citada na psiquiatria para o uso de antipsicóticos e antidepressivos enquanto terapias de primeira linha para depressão e transtornos psicóticos. Essas drogas – e é assim que as descobertas são apresentadas ao público – podem ser consideradas que ‘funcionam’.

No entanto, os indivíduos em um teste de alguma droga psiquiátrica, tanto no placebo quanto nos grupos tratados com medicamentos, terão respostas variadas: alguns irão piorar, alguns permanecerão os mesmos, alguns ficarão um pouco melhores, e alguns podem ficar muito melhor. Se você mapear as respostas individuais nos dois grupos, as curvas na forma de sino para cada grupo se sobreporão em algum grau. O grau de sobreposição reflete o ‘tamanho do efeito’ e, por sua vez, leva a um cálculo do número de pessoas que devem ser tratadas para produzir uma pessoa adicional que recebe um benefício do medicamento (NNT).

Assim, o NNT fala da porcentagem de pessoas que estão sendo expostas aos efeitos adversos da droga, sem qualquer benefício adicional, e da porcentagem de pessoas que têm uma resposta terapêutica positiva que, de outra forma, não teriam. Pode-se dizer que o primeiro grupo foi prejudicado pelo tratamento, enquanto o segundo grupo poderia se beneficiar dele.

Por exemplo, um NNT de 10 significa que 10 pessoas devem ser tratadas para produzir uma pessoa adicional que tenha um resultado positivo, o que leva a essa equação benefício-dano: nove pessoas serão expostas aos efeitos adversos do tratamento sem qualquer benefício adicional (e, portanto, são prejudicadas), enquanto um terá uma resposta benéfica que ele ou ela não teria de outra forma.

Com um número NNT em mente, uma pessoa que está pensando em tomar um remédio pode avaliar se a probabilidade de ter uma resposta melhor que vem com o uso da droga vale o risco de ser exposta aos efeitos adversos da droga. Essa é a equação que os pacientes devem considerar ao considerar se devem ou não tomar um medicamento, em oposição ao achado de ‘eficácia’ em que geralmente nos concentramos.

É fácil se verificar a espantosa diferença no entendimento que surge ao ver os méritos de um medicamento através da lente NNT, em oposição à lente eficaz / não eficaz. O primeiro fornece uma compreensão sofisticada dos riscos que acompanham o uso do medicamento e lembra ao paciente e ao médico que os resultados individuais podem variar muito. Enquanto que a outra forma de olhar leva a uma conclusão simplista de ‘medicamentos’, que promove a falsa noção de que a maioria dos pacientes pode esperar se beneficiar do tratamento.

Em outras palavras, o NNT ilumina o impacto variável do medicamento, enquanto que os achados sobre a descoberta da eficácia levam a uma ocultação desse fato crítico. Pode-se dizer que os dados de eficácia, de fato, levam a um delírio clínico.

O NNT para os Antidepressivos

Irving Kirsch e outros calcularam que os antidepressivos, nos ECRs, têm um efeito do tamanho de 0.30. Aqui está uma visualização de um tratamento com um efeito de tamanho 0.30.

Graphic by Kristoffer Magnusson, http://rpsychologist.com/de/cohend/
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Neste gráfico, há uma sobreposição de 88% no espectro de resultados entre os dois grupos. Isso produz um NNT de 8. Uma em cada oito pessoas tratadas com um antidepressivo terá uma resposta positiva que, de outra forma, não teria; os outros sete terão sido expostos aos efeitos adversos do tratamento sem receber qualquer benefício adicional.

Assim, para a pessoa que está considerando tomar um antidepressivo, os dados do NNT fornecem a ‘matemática’ necessária para avaliar o benefício potencial de tomar o medicamento contra o possível dano de fazê-lo. O paciente saberá que tem uma chance em oito de se sair melhor do que sem o antidepressivo e, portanto, a pergunta para ele é: esse possível benefício vale os aspectos negativos da exposição ao medicamento?

Para completar esse consentimento informado, o paciente precisaria ter uma compreensão dos possíveis efeitos negativos da exposição a um antidepressivo. Os efeitos colaterais são muitos, começando com a disfunção sexual e um risco maior de ter uma reação maníaca, o que pode levar a um diagnóstico bipolar. Outros possíveis efeitos negativos incluem o sofrimento dos sintomas de abstinência quando se tenta abandonar o antidepressivo e, possivelmente, acabar com o antidepressivo a longo prazo, o que, por sua vez, muitas vezes leva a uma série de dificuldades físicas e emocionais.

Muitas pessoas deprimidas, quando apresentadas a essa informação, podem ainda escolher tomar um antidepressivo. Elas veriam isso como um risco que valeria a pena. Ao mesmo tempo, muitos provavelmente prefeririam deixar de tomar a droga e procurar uma alternativa não-medicamentosa.

Meu palpite é que a grande maioria das pessoas, quando confrontadas com o NNT de 8 encontrados, tomaria a segunda opção, particularmente ao sofrer um primeiro episódio de depressão. Infelizmente, poucos pacientes são apresentados com os dados do NNT quando estão considerando tomar um antidepressivo, e esses dados raramente informam o pensamento dos médicos.

Deve-se notar também que este NNT de 8 é derivado de ensaios conduzidos pela indústria de antidepressivos, e que em estudos com pacientes do ‘mundo real’, como o ensaio STAR * D, as taxas de resposta a medicamentos têm sido muito menores. Pode ser que, em pacientes do ‘mundo real’, os antidepressivos não proporcionem nenhum benefício a curto prazo de ‘eficácia’ sobre o placebo. O cálculo do NNT-8 é o melhor cenário possível para avaliar a relação benefício-dano para uso a curto prazo de um antidepressivo.

Com Antipsicóticos, o NNT é 6

Em um relatório de 2009, Leucht publicou uma meta-análise de 38 estudos de antipsicóticos de segunda geração e relatou uma taxa de resposta de 41% para os pacientes tratados com drogas versus 24% para o grupo placebo. Essas porcentagens, eles observaram, produzem um tamanho de efeito de 0,50, que se traduz em um NNT de seis.

Graphic by Kristoffer Magnusson, http://rpsychologist.com/de/cohend/
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Seis pessoas devem ser tratadas para produzir mais uma pessoa que tenha uma resposta favorável. Os outros cinco (80%) podem não ter recebido nenhum benefício adicional do tratamento, mas foram expostos aos efeitos adversos do tratamento antipsicótico, que, como se sabe, são muitos.

As porcentagens de resposta citadas por Leucht facilitam a visão da equação benefício vs. dano no uso de um antipsicótico. Os prejudicados são os não-respondedores ao medicamento (59%) e aqueles que teriam respondido sem o tratamento (24%), o que equivale a 83% (ou aproximadamente cinco em cada seis pacientes).

Os efeitos adversos dos antipsicóticos são quase numerosos demais para serem listados. Os antipsicóticos de segunda geração podem causar ganho de peso, diabetes, disfunção metabólica, sintomas parkinsonianos, desaceleração cognitiva, entorpecimento emocional e retração do cérebro. Pode ser difícil retirar-se de um antipsicótico, e o risco de uso a longo prazo inclui discinesia tardia e uma série de outros efeitos negativos.

Assim, a equação benefício versus dano que vem da meta-análise de Leucht: vale a pena para um paciente que é ‘psicótico’ tomar um antipsicótico para obter essa chance de um em seis de ter uma resposta favorável que, de outra forma não teriam, com este possível benefício vindo à custa da exposição aos efeitos adversos da droga?

Práticas de Prescrição informadas pelo NNT

Os dados do NNT revelam que a maioria dos pacientes será prejudicada em algum grau ao tomar um antidepressivo ou um antipsicótico, mesmo a curto prazo. Com antidepressivos, 88% se enquadram nessa categoria de exposição ao medicamento sem qualquer benefício adicional; com um antipsicótico, 80% se enquadram nessa categoria.

Dado esse fato, é fácil entender que os ECRs em psiquiatria não forneçam uma ‘base de evidências’ para práticas de prescrição ‘um tamanho serve para todos’. Em vez disso, eles fornecem provas convincentes de que os médicos precisam desenvolver protocolos de ‘uso seletivo’, que procurem identificar aqueles que poderiam melhorar sem o tratamento medicamentoso, e procurar interromper o tratamento em quem não responde ao medicamento.

Resposta ao placebo vs. resposta ao medicamento

Há ampla evidência de que a recuperação de um episódio depressivo ou psicótico sem exposição ao tratamento medicamentoso coloca o paciente em um caminho de longo prazo muito melhor. As taxas de recaída são menores para aqueles que se recuperam sem medicação, e seus resultados funcionais de longo prazo também são melhores.

Existe uma maneira bastante fácil de identificar aqueles que podem ficar bem sem tratamento medicamentoso, particularmente com depressão no primeiro episódio ou psicose no primeiro episódio. Os médicos, enquanto prestam assistência psicossocial, podem utilizar uma prática de observação e espera. Esperar por uma semana ou duas para ver se o paciente começa a melhorar sem a droga, e isso ajudaria a identificar aqueles que poderiam ficar bem sem a droga.

Este é o protocolo para os antipsicóticos usado no programa Open Dialogue desenvolvido na região oeste da Lapônia, na Finlândia, a partir dos anos 90. Eles relataram que dois terços de seus pacientes psicóticos em primeiro episódio se recuperam sem o uso de antipsicóticos e estão bem ao final de cinco anos. Seus resultados falam do extraordinário benefício para a saúde pública que pode advir de uma prática de observação e espera.

Quanto à depressão no primeiro episódio, antes da comercialização dos ISRS, entendia-se que a depressão era uma doença episódica e que a maioria das pessoas poderia se recuperar com o tempo sem qualquer intervenção somática. Por sua vez, nos primeiros anos da era dos antidepressivos, um pensamento comum passou a ser que as drogas eram úteis porque poderiam acelerar esse processo natural de cura.

Assim, o benefício que viria com um protocolo de observação e espera não é simplesmente o de que alguns pacientes evitariam os efeitos adversos da droga em curto prazo. A recuperação sem tratamento medicamentoso também coloca os pacientes melhor em um curso de longo prazo, como pode ser visto mais claramente nos resultados do Open Dialogue.

Os que não respondem aos medicamentos

Os ECRs de antipsicóticos e antidepressivos falam de uma porcentagem significativa de pacientes que não melhoram com a droga. Levando em consideração este fato, a segunda parte de um protocolo de uso seletivo seria parar de prescrever o medicamento a não-respondentes, e tentar outros métodos terapêuticos.

Isso parece bastante óbvio – não prescrever uma droga que não funciona – e, no entanto, a prática atual é dobrar o tratamento com drogas. Os médicos colocam os não-respondentes em medicamentos adicionais, e rapidamente esses pacientes estão em regime de polifarmácia, e lutando com uma carga crescente de efeitos colaterais.

Os números do NNT alertam os médicos que haverá muitos não respondentes. Se os médicos adotassem um protocolo de uso seletivo, eles tentariam identificar esses não respondentes rapidamente e mudá-los-ia para uma terapia não medicamentosa. Esse seria um aspecto essencial de um protocolo de prescrição que procuraria determinar ‘para quem’ o medicamento funciona e ‘por quanto tempo’, o que é entendido como a questão que é indispensável ser respondida para se fazer ‘o melhor uso’ de uma droga.

Um corpo robusto de evidências

Em Anatomia de uma epidemia, apresentei a base de evidências para drogas psiquiátricas dessa maneira: escrevi sobre como os ECRs forneciam evidências de seus benefícios de curto prazo (pelo menos até certo ponto), e então examinei evidências de muitos outros tipos – estudos epidemiológicos, estudos longitudinais, descobertas de ressonância magnética e assim por diante – que contavam como as drogas psiquiátricas pioravam os resultados em longo prazo.

Em outras palavras, nesse livro, contei sobre um paradoxo: drogas que ‘funcionavam’ no curto prazo, mas que causavam danos a longo prazo.

No entanto, se se concentra nos dados do NNT dos ECRs, o paradoxo desaparecerá. Os ensaios clínicos randomizados relatam a maioria dos pacientes que não se beneficiam das drogas e que, portanto, são prejudicados por práticas de prescrição de padrão único. Especificamente:

  • Os ECRs falam de uma porcentagem significativa de pacientes que se recuperariam no curto prazo sem o tratamento, mas que foram expostos à droga, e isso pode colocá-los em um caminho para o uso de longo prazo de um antidepressivo e outras drogas psiquiátricas, as quais acarretam possíveis efeitos negativos.
  • Os ECRs falam de uma porcentagem significativa de pacientes medicados que não respondem e entram de cabeça na toca do coelho da polifarmácia.

De fato, a literatura dos ECRs e a dos resultados a longo prazo agora se reúne para contar falar sobre um paradigma de cuidado que, como é atualmente praticado, leva desde o primeiro momento a mais danos do que benefícios aos pacientes. O maior risco para os pacientes no primeiro episódio é que o primeiro uso de uma droga se transformará em longo prazo, o que significa que, em troca de uma pequena chance – 1 em cada 8 para antidepressivos, 1 em cada 6 para antipsicóticos – que uma pessoa terá uma melhor resposta com a droga do que com o placebo, que essa pessoa está exposta a um risco significativo de se tornar um usuário de longa data de uma droga psiquiátrica.

Existem centenas de blogs pessoais que foram publicados no Mad in America e Mad in Brasil que falam sobre esse caminho de curto a longo prazo. Os autores falam de não responder às drogas em primeiro lugar ou piorar gradualmente com uma droga psiquiátrica, de cair no tormento da polifarmácia e, eventualmente, de vidas que se encontravam diminuídas ou mesmo arruinadas. Suas histórias pessoais atestam os próprios resultados que são visíveis nos ECRs e na literatura de resultados de longo prazo, se a profissão examinasse de perto suas próprias descobertas.

Na seção ‘soluções’ do Anatomia de uma epidemia, escrevi que a psiquiatria precisava adotar protocolos de uso seletivo, com base em dois preceitos: evitar o uso imediato de drogas para identificar aqueles que conseguem melhorar ‘naturalmente’ e tentar minimizar a longo prazo uso, o que inclui interromper o tratamento em não-respondentes.

Os números NNT dos ECRs de curto prazo argumentam para esse mesmo protocolo de uso seletivo, e esse foi o momento para mim de ‘olha aí’. Existe uma base consistente de evidências, começando com os ECRs que avaliam resultados de curto prazo, que exigem que a psiquiatria corajosamente reveja o uso desses medicamentos e adote protocolos de uso seletivo. Enquanto não conseguir fazê-lo e se apegar a seus protocolos de tamanho único, a psiquiatria usará as drogas de uma forma que causa – e não há outra maneira de dizer – UM GRANDE DANO.

Carta da Associação Americana de Psicologia sobre a Separação das Famílias promovida pelo Governo Trump

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A Associação Americana de Psicologia emitiu uma carta ao presidente Trump para expressar sua forte oposição à nova política de separar pais e crianças imigrantes que são detidos durante a travessia da fronteira.

“A política atual exige que as crianças sejam removidas de seus pais e colocadas por um período de tempo indeterminado na custódia do Escritório de Reassentamento de Refugiados. Décadas de pesquisa psicológica determinaram que é do melhor interesse da criança e da família manter as famílias unidas. As famílias que fogem de suas casas para buscar refúgio nos Estados Unidos já estão sob enorme quantidade de estresse. A separação repentina e inesperada da família, como a separação de famílias na fronteira, pode aumentar esse estresse, levando a um trauma emocional nas crianças. A pesquisa também sugere que, quanto mais tempo os pais e as crianças são separados, maiores são os sintomas de ansiedade e depressão relatados para as crianças. Experiências adversas na infância, como a separação entre pais e filhos, são importantes determinantes sociais dos transtornos mentais. Para crianças, eventos traumáticos podem levar ao desenvolvimento de transtorno de estresse pós-traumático e outros transtornos mentais que podem causar efeitos duradouros. Além disso, as políticas de imigração, como a separação de famílias na fronteira, também podem afetar negativamente os imigrantes que já estão nos Estados Unidos. Eles podem sofrer de sentimentos de estigmatização, exclusão social, raiva e desesperança, assim como medo pelo futuro”.

A carta →

Criança separada

Fabricantes de Doenças: Como as empresas farmacêuticas vendem tratamentos ao inventarem doenças

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Publicado em Huffington Post: A imagem da indústria farmacêutica tem sido significativamente prejudicada nos últimos anos, na medida em que o público começou a descobrir o papel que o seu marketing agressivo desempenhou para alimentar a epidemia de opiáceos. Mas o povo Americano, Brasileiro, e no mundo inteiro, ainda está em grande parte no escuro sobre o que pode ser a tática mais eficaz da indústria farmacêutica para empurrar as suas drogas – a comercialização de doenças.

Há um corpo substancial de literatura médica que remonta ao início dos anos 90 sobre a prática conhecida como “fabricação de doença” (“disease mongering“). As empresas farmacêuticas regularmente patologizam experiências cotidianas, convencem os médicos de que são problemas sérios, contam a um público hipocondríaco que há necessidade de ajuda e oferece a cura: um novo medicamento Contra o ataque de bilhões de dólares em campanhas de marketing feitas a cada ano, no entanto, os alertas dos pesquisadores sobre essas táticas têm sido amplamente ignorados.

Artigo →

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Pesquisadores exploram sexualidade e gênero no contexto da psicose

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Photo Credit: Kalypso, by Constantinos Th. Karentzos

ZenobiaUma equipe de pesquisadores publicou recentemente um estudo na revista Psychosis, explorando como o sexo e os conteúdos sexuais e de gênero se manifestam em experiências psicóticas. A equipe, liderada pelo Dr. Nev Jones, conduziu entrevistas e grupos focais com pessoas cujas vidas foram impactadas pela psicose, e seus resultados mostram que muitas pessoas experimentam conteúdo sexual como parte de suas experiências psicóticas que estão ligadas a dinâmicas de poder culturalmente carregadas.

Essas experiências também podem ser acompanhadas por sentimentos de vergonha que não são revelados em contextos terapêuticos. Os autores discutem identificar esses temas informalmente em seu trabalho:

“Ao comparar experiências anedóticas, percebemos que temas relacionados a sexo e gênero são comuns, mas associados as estigmas aditivos, que são sub-explorados e sub-reconhecidos na literatura da pesquisa atual.”

Photo Credit: Kalypso, by Constantinos Th. Karentzos
Photo Credit: Kalypso, by Constantinos Th. Karentzos

Nas últimas décadas, pouca ou nenhuma pesquisa explorou a conexão entre experiências de sexualidade e psicose. Embora alguns estudos tenham investigado o conteúdo sexual de sintomas psicóticos ou associações entre trauma sexual e sintomas posteriores, relatos pessoais das várias manifestações de sexo, sexualidade e gênero dentro do contexto da psicose ainda não foram incluídos na literatura de pesquisa. O objetivo deste estudo foi investigar como o sexo, a sexualidade e o gênero se manifestam na vida de indivíduos que foram impactados pela psicose.

Historicamente, a sexualidade tem sido destaque no debate em torno da psicose. A teoria freudiana, por exemplo, explorou os aspectos psicossexuais da ‘esquizofrenia’. As investigações contemporâneas sobre a sexualidade em relação à psicose parecem, contudo, ter parado nos anos 90. Jones e seus colegas entendem que isso possivelmente ocorreu concomitantemente ao aumento da proeminência do discurso psiquiátrico da psicose. Com isso, com o foco em uma abordagem biomédica, há o ofuscamento da teoria psicanalítica, assim como da fenomenologia e das experiências individuais.

Neste estudo, entrevistas qualitativas e grupos focais foram realizados com a intenção de obter uma compreensão e apreciação mais profundas dos vários modos como a sexualidade se manifesta na vida dos indivíduos. Entrevistas e grupos focais centrados em conteúdo relacionado a sexo ou gênero. Jones e seus colegas recrutaram indivíduos por meio de agências locais de saúde mental, ouvindo grupos de redes de vozes e grupos de defesa de direitos.

Um total de 49 pessoas participaram de grupos focais (n = 24) e de entrevistas individuais (n = 25). Todos relataram receber um diagnóstico de ‘transtorno do espectro da esquizofrenia’ em algum momento de suas vidas. O conteúdo das entrevistas foi analisado qualitativamente através de métodos fenomenológicos para desenvolver temas que emergem das experiências individuais.

Os resultados demonstraram que 68% dos entrevistados e 20,8% daqueles em grupos focais “descreveram conteúdo explícito ou aspectos de sua experiência de psicose envolvendo sexo, sexualidade ou gênero”. Os pesquisadores agruparam esses relatos em cinco grandes grupos temáticos.

1) Variedades de experiência. Houve um leque diversificado de maneiras em que os temas envolvendo sexo, sexualidade e gênero se manifestaram nas experiências dos indivíduos. Uma característica unificadora dessas histórias envolveu entrevistados a expressar uma falta de oportunidade para discutir e explorar essas experiências em outros lugares, incluindo nunca ter compartilhado esses tópicos com um profissional de saúde mental.

Por exemplo, alguns participantes descreveram persistências relacionadas a termos sexuais, fantasias eróticas, ouvir vozes com nomes fortemente sexualizados ou de gênero, alucinações de violência sexual aterrorizantes e experiências sensuais positivas. Além disso, alguns participantes falaram de experiências psicóticas que destruíam sua sexualidade (tornavam-nas assexuadas), vozes que os intimidavam sobre suas atrações ao mesmo sexo e vozes que incessantemente comentavam sobre seus atos sexuais.

Alguns desses temas foram discutidos na medida em que se relacionavam com as suas experiências passadas concretamente sofridas, e outras pessoas descreveram apenas terem se envolvido com essas questões ou ideias após uma experiência delirante. Outro grupo de participantes negou qualquer conexão direta com suas experiências da vida real.

2.) Vergonha e perseguição. Em muitos casos, os entrevistados descreveram ouvir vozes ou ver sinais em sua vida diária que eram carregados de vergonha e os lembravam de experiências socialmente marginalizadas (por exemplo, abuso sexual passado ou trabalho sexual de sobrevivência) ou identidades (por exemplo, LGBTQ).

3.) Violência sexual ou sexualizada. As experiências de psicose frequentemente incluíam temas de violência sexual que diferiam entre as identidades de gênero. Isso foi verdade tanto para os participantes que tiveram experiências passadas de violência sexual quanto para aqueles que não as tiveram. Homens descreveram casos de psicose envolvendo-os como perpetradores de violência sexual, enquanto mulheres descreveram vitimização. Para outros, a violência sexual tornou-se um tema crítico que surgiu continuamente em relação a grupos mais amplos à parte deles mesmos. Por exemplo, aqueles relacionados a ideias de homofobia.

Os participantes expressaram uma série de reações sobre essas experiências, incluindo vergonha, culpa e constrangimento. Alguns expressaram preocupações de responsabilidade por essas experiências ou que podem estar ligadas a elas em um sentido “mais profundo, psicológico”.

4.) Gênero, sexualidade, agência e poder. Este tema centrou-se em torno da interseção entre experiências pessoais de dinâmicas diretas de poder que se manifestaram em experiências sexuais e dinâmicas de poder social que se manifestaram simbolicamente também. Os pesquisadores escrevem:

“Embora a maioria das experiências envolvendo violência sexual (sexualizada) certamente impliquem em claras dinâmicas de poder, incluindo ameaças físicas e emocionais, dinâmicas relacionais envolvendo ou baseadas em poder simbólico, social ou cultural também se manifestaram de formas não violentas em termos de gênero ou sexualizadas.”

Os pesquisadores discutem esse tema enquanto experiências complicadas e culturalmente carregadas da sexualidade, as quais ocorrem dentro do contexto da psicose. Isso envolve a compreensão de como alguém ‘se importa’ e funciona como capaz de agir sobre os outros e de agir sobre si mesmo. Alguns indivíduos narraram processos de empoderamento e redenção relacionados a essas experiências.

5.) Experiências positivas do erótico. Embora algumas das experiências de sexualidade acima tenham sido descritas como violentas, muitos participantes descreveram manifestações positivas de excitação que, às vezes, estavam associadas a estados espirituais ou criativos.

Notavelmente, a prevalência de experiências carregadas de vergonha se conecta a pesquisas que exploraram a vergonha como um fator no potencial desenvolvimento da psicose, bem como a vergonha como um mediador entre experiências traumáticas e a gravidade da sintomatologia pós-traumática. Jones e colaboradores observam que “o trabalho fenomenológico adicional é crucial para desmembrar a relação entre a vergonha e as experiências de marginalização social na psicose”.

Os achados deste estudo destacam a prevalência de conteúdo sexual ou de gênero nas experiências psicóticas da amostra, bem como a forma como essas experiências são interpessoais, de desenvolvimento e significativas em termos socioculturais. A construção de significado em que os participantes se envolveram apresentou religiões individuais / crenças espirituais, atitudes culturais, lutas pessoais relativas a identidades, assim como experiências relacionadas a agressão sexual ou a falhas românticas percebidas.

Os autores enfatizam que “a psicose é um termo amplamente genérico” e que, portanto, as experiências de indivíduos afetados pela psicose são “profundamente heterogêneas”. O trabalho deles foi exploratório, não confirmatório, e merece futuras investigações sobre variações transculturais. Pesquisas futuras também são necessárias para desmembrar o que esses achados significam para as relações terapêuticas e o processo social de recuperação. Os pesquisadores concluem:

“Embora não esteja focado especificamente em sexo / sexualidade, nosso trabalho contribui de maneira singular para um crescente corpo de literatura sobre influências culturais ou transculturais na fenomenologia das experiências psicóticas.”

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Jones, N., Rosen, C., Kamens, S., & Shattell, M. (2018). “It was definitely a sexual kind of sensation”: sex, sexual identity, and gender in the phenomenology of psychosis. Psychosis, 1-10. (Link)

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