Injeção de longa ação não é melhor do que antipsicótico oral

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Um estudo com resultados de 5 anos para pessoas que tomam um antipsicótico oral comum ou uma injeção de ação prolongada de um antipsicótico não encontrou diferenças entre os dois. Em ambos os grupos, mais de 80% dos participantes interromperam o uso dos medicamentos, citando principalmente os efeitos colaterais ruins e a falta de eficácia.

Pesquisadores da Faculdade de Farmácia e Ciências Farmacêuticas da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, acompanharam quase 200 pacientes no início do estudo que estavam tomando uma injeção de ação prolongada (RLAI) de risperidona ou aripiprazol. No quinto ano, havia apenas 50 pacientes que ainda não haviam sido descontinuados e estavam disponíveis para acompanhamento.

“Quinze pacientes de cada grupo continuaram durante 5 anos”, escreveram eles. “Destes, quatro receberam RLAI e três que estavam recebendo aripiprazol foram submetidos à coprescrição de outros antipsicóticos no ponto final do estudo. As razões para a interrupção do RLAI e do aripiprazol respectivamente foram a falta de efeito (n = 4; n = 4), efeitos adversos (n = 3; n = 1), não conformidade ou escolha do paciente (n = 2; n = 4) e morte do paciente (n = 2; n = 0)”.

“Não houve diferença significativa entre as proporções de pacientes que continuaram RLAI ou aripiprazol durante os 5 anos”, os pesquisadores concluíram. “As taxas de continuação foram relativamente baixas (18% e 16% das coortes originais RLAI e aripiprazol respectivamente), enquanto que a coprescrição de outros antipsicóticos no ponto final foi relativamente comum. A falta de eficácia foi a razão mais comum para a descontinuação de ambos os compostos. Estas descobertas sugeriram que a eficácia clínica foi um tanto decepcionante…”.

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Deslandes, Paul Nicholas, Matthew Dwivedi, and Robert D. E. Sewell. “Five-Year Patient Outcomes with Risperidone Long-Acting Injection or Oral Aripiprazole.” Therapeutic Advances in Psychopharmacology, April 30, 2015, 2045125315581997. doi:10.1177/2045125315581997. (Abstract)

“Somos todos desatentos?” – Revisitando o TDAH 17 anos depois

O livro “Somos todos desatentos?”, publicado no ano de 2005, com a autoria do Dr. Rossano Cabral Lima, surgiu trazendo importantes questionamentos acerca de um transtorno que cada vez mais se popularizava, denominado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.  À época de sua publicação, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade tinha como referência diagnóstica os manuais psiquiátricos DSM-IV-TR e CID 10, neste último o quadro era designado como Transtorno Hipercinético.

Este livro marcou fortemente um lugar de resistência aos excessos produzidos pelo discurso hegemônico biomédico, produzindo efeitos que perduram até os dias de hoje. Entretanto, desde que foi publicado, há dezessete anos, muita coisa se passou.

Nos dias de hoje, com o advento do DSM-5 e da CID-11, houve um incremento do TDAH que passou a integrar o hall dos transtornos do neurodesenvolvimento.

Ao longo dos últimos anos, temos observado que, tanto no panorama nacional como no internacional, a produção e o consumo mundial de metilfenidato cresceram exponencialmente, bem como outras drogas (psicofármacos) foram lançadas no mercado. Redes de serviços hiper especializados em TDAH despontaram e se proliferam cada vez mais para compor o quadro das terapêuticas e serviços associados à condição enquanto “doença”.

O diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade se tornou mais frequente do que nunca, sendo a escola e o desempenho escolar o seu eixo nevrálgico.

Podemos pensar que o “fenômeno TDAH” se ampliou e se tornou mais complexo, mas, seus críticos também se multiplicaram e ganharam força. No Brasil, o Dr. Rossano Cabral Lima, autor deste livro e diversos artigos na área, se destaca por suas críticas contundentes e atuais que orientam o debate.

Luciana: Dr. Rossano, quais as mudanças que considera mais importantes desde a publicação do seu livro em 2005, no que se refere ao TDAH?

Rossano: Naquela época, aqui no Brasil, já existiam vozes críticas ao diagnóstico de TDAH, mas ainda tinham pouca visibilidade. O livro, apesar da tiragem limitada, ajudou a dar destaque a esse debate e publicizá-lo. De lá para cá, o cenário ficou mais complexo: de um lado surgiram movimentos como o braço nacional do STOP DSM, o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, o Despatologiza, e uma boa literatura crítica. Por outro lado, o lobby do TDAH também se fortaleceu, com a expansão da ABDA (Associação Brasileira do Déficit de Atenção), a criação de grupos online de familiares e portadores de TDAH, e a consolidação de grupos de pesquisa, com destaque para o do Hospital das Clínicas da UFRGS – todos ou quase todos associados com a indústria farmacêutica. Tanto num polo quanto no outro, um elemento decisivo foi a influência da internet e suas redes sociais na articulação, troca de experiências e na mobilização política, dando origem, por exemplo, a diversas leis ou projetos de leis em torno do TDAH pelo Brasil afora. Isso para não falar no aumento do consumo de psicoestimulantes, seja para tratamento do quadro, seja para “aprimoramento” cognitivo em vestibulandos, universitários e “concurseiros”.

Luciana: Houve modificação na ênfase dada ao TDAH, tendo em vista que outros diagnósticos adquiriram maior visibilidade? Quais diagnósticos concorrem hoje com o TDAH?

Rossano: Sim, o TDAH abriu o caminho para a chegada de outros diagnósticos, alguns bastante associados a ele, como o de Transtorno de Oposição Desafiante (TOD). Além disso, há a expansão dos Transtornos do Espectro Autista, a penetração do Transtorno Bipolar na faixa etária infantil e o surgimento do controverso diagnóstico de TDDH – Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor. Neste caso, quando me refiro a controvérsias não falo apenas dos críticos, mas aos dois sistemas diagnósticos mais utilizados no mundo. O TDDH surgiu nas páginas do DSM-5, mas a CID 11 não faz referência a ele, o substituindo por um subtipo do TOD. Esse exemplo deixa explícitas as engrenagens da construção de diagnósticos em psiquiatria, revelando as frágeis bases de sustentação científica de muitas entidades nosológicas, que dependem de consensos entre especialistas para existirem ou não. E como as relações e fronteiras entre esses quadros não são totalmente claras, o resultado é uma inflação de comorbidades psiquiátricas – com frequência a mesma criança recebe mais de 1 deles, somados a outros como depressão e transtornos de ansiedade.

Luciana: Vemos uma incidência maior de TDAH nos dias de hoje do que há 17 anos. A que se deve esse aumento? Haveria, atualmente, dispositivos tecnológicos de diagnóstico mais eficientes disponíveis no mercado?

Rossano: O aumento tem pouco a ver com o avanço das tecnologias médicas, até porque o anúncio de um marcador biológico é sempre adiado para um futuro incerto. Hoje há maior uso de escalas diagnósticas, que dão uma sensação de maior objetividade na detecção, e avaliações neuropsicológicas, que até podem ser úteis se seus resultados forem interpretados no contexto de vida da criança e não tomados como uma medida fixa e definitiva do seu funcionamento mental. Na verdade, o aumento na incidência se dá por outros caminhos, nem sempre fáceis de rastrear: o diagnóstico passa a ser feito, ou pelo menos sugerido, por outros especialistas médicos, como pediatras, e por não médicos, como psicólogos – neste caso, associado a maior penetração das terapias cognitivo-comportamentais; a própria escola passa a levantar a suspeita de TDAH em alunos com problemas comportamentais ou dificuldades de aprendizagem, muitas vezes sem antes avaliar o problema do ponto de vista pedagógico.

Luciana: Os manuais diagnósticos de hoje (DSM-5 e CID-11) têm maior precisão metodológica e descritiva das condições tidas como patológicas? Estariam eles mais alinhados com as recentes descobertas neurocientíficas?

Rossano: Apesar das neurociências terem ocupado o lugar de outros saberes, como a psicanálise, como referencial epistêmico da psiquiatria, continua sendo muito difícil aplicar o conhecimento gerado nas pesquisas neurocientíficas ao contexto da clínica. O principal exemplo disso é o grupo dos “Transtornos do Neurodesenvolvimento”, introduzido no DSM-5 e a CID 11. Mesmo com o aval científico do radical “neuro”, os critérios continuam sendo fenomênicos (no sentido fraco do termo), descritivos. E estes mudam no decorrer das edições, mas não necessariamente por aprimoramento metodológico ou avanço do conhecimento científico. No caso do TDAH, é difícil enxergar rigor epistêmico ou metodológico em critérios do DSM como “Com frequência ‘não para’, agindo como se estivesse ‘com o motor ligado’”, que incorporam lugares comuns e vocabulário coloquial naquilo que – supostamente – deveria primar pela objetividade científica.

Luciana: Com o suposto “avanço” na detecção e a disseminação cada vez maior de tratamentos associados ao TDAH não seria de se esperar uma redução no número de casos? Como podemos pensar esse enigma?

Rossano: Esse é um dilema da clínica psiquiátrica como um todo, e não apenas no caso do TDAH: a introdução de diversas modalidades de tratamento, incluindo os psicofármacos, não foi acompanhada de redução na prevalência de transtornos mentais. Mesmo a intervenção precoce, que tem sido proposta para diversos transtornos, como o autismo, não resulta na redução do número de crianças afetadas. Essa foi uma das razões das críticas feitas à proposta de inclusão da “Síndrome Psicótica Atenuada” no DSM-5 (que acabou entrando no capítulo de” Condições para estudo posterior”), que daria margem a uma vasta farmacologização de quadros supostamente “pré-psicóticos” ou de psicose incipiente, com pouca sustentação científica ou clínica. Mas voltando ao TDAH, de fato o número de casos só faz aumentar, na medida em que o diagnóstico se expande globalmente e em direção a outras faixas etárias. Dada a visão do TDAH como um transtorno ao longo da vida e sua associação quase automática com o uso de psicoestimulantes, a tendência é a criação de novos crônicos, pois o tratamento farmacológico acaba se estendendo por tempo indeterminado. Isso reforça a importância de recorrer a outras estratégias de cuidado que não se limitem à medicação.

Luciana: A infância continua sendo o alvo principal desta categoria diagnóstica?

Rossano: Não, desde a época da publicação do meu livro se intensificou a expansão do diagnóstico de TDAH para os adultos, fenômeno que já era detectado fora do Brasil, especialmente nos EUA. Isso se reforçou com a publicação do DSM-5, que reduziu de 6 para 5 o número de critérios mínimos para o diagnóstico em adultos em cada dimensão (desatenção e hiperatividade/impulsividade), e ampliou a idade máxima para o início do quadro de 7 para 12 anos. Esse afrouxamento dos requisitos teve como objetivo reduzir os obstáculos ao diagnóstico em adultos, dado que alguns dos sintomas da infância podem ter se atenuado ou desaparecido com o tempo, e que muitas vezes essas pessoas não conseguem informar com precisão a presença dos sintomas na idade pré-escolar ou início da escola. Para reforçar essa tendência, é possível observar na clínica que pais de crianças e adolescentes que receberam o diagnóstico passam a identificar em si próprios características do quadro, geralmente recorrendo a uma visão simplista da causalidade genética, e buscam um neurologista ou psiquiatra para confirmá-lo.

Luciana: As consequências com o uso a médio e longo prazo das drogas de tratamento do TDAH são, em geral, negativas. A literatura científica é abundante em apresentar os diversos danos para a saúde, muitas vezes irreversíveis. Será que essa epidemia de drogas para o tratamento do TDAH apenas pode ser controlada na medida em que os prescritores passem a ser responsabilizados na Justiça? Trata-se do consentimento informado e esclarecido.

Rossano: De fato, a maior parte dos estudos sobre eficácia dos estimulantes se concentram nos efeitos de curto prazo, e as pesquisas de médio e longo prazo, quando existem, geralmente não apontam resultados favoráveis. Isso também é verdade para outras classes de psicofármacos, mas no caso dos remédios usados no TDAH há um efeito de longo prazo específico, que exige ainda mais cautela e acompanhamento clínico, ainda que não apareça na maior parte dos casos, que é a desaceleração da curva do crescimento.

Tudo isso poderia servir como estímulo para que fossem priorizadas, como estratégias iniciais, as abordagens não farmacológicas, fazendo com que a prescrição de metilfenidato (Ritalina, Ritalina LA e Concerta) ou lisdexanfetamina (Venvanse) se tornasse recurso complementar e de curto a médio prazo, mas na prática o que se vê é o inverso. Nos pacientes que eu medico, quase sempre proponho aos pais que a criança inicie o período letivo seguinte (já que o alvo da medicação é quase sempre a escola) sem o remédio, como modo de reavaliar a persistência (ou não) de sua indicação e seus impactos positivos e negativos.

O controle da prescrição desses estimulantes, quando comparado com os medicamentos vendidos com receituário branco especial (antidepressivos, antipsicóticos, estabilizadores do humor, indutores do sono) e com receituário azul (benzodiazepínicos), é até mais rigoroso, pois exige cadastro da vigilância sanitária, que disponibiliza o talão amarelo. Sabemos, porém, que isso não impede que se tenha acesso a ele por outras vias. No campo da atenção psicossocial, vale lembrar do protocolo das prefeituras de Campinas e São Paulo, na década passada, para regulamentar a prescrição de metilfenidato na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) desses municípios, que tiveram papel importante no controle ou prevenção dessa epidemia.

O termo de consentimento pode ser um dispositivo útil, especialmente para justificar o uso por médio e longo prazo – eu mesmo não teria problemas em assiná-lo! (risos) Mas não acho que o foco dessas medidas deva recair exclusivamente nos estimulantes. Os antidepressivos e antipsicóticos, hoje fartamente utilizados na faixa infantojuvenil na rede pública e nos consultórios privados, têm efeitos colaterais até mais graves (no caso dos antipsicóticos, alterações metabólicas e endócrinas como aumento de glicose, colesterol, triglicérides, insulina, prolactina). Acredito ser necessário um amplo debate e repactuação, na própria RAPS, sobre o papel dos psicofármacos no tratamento de crianças, jovens e adultos. Minha posição é que eles têm um lugar (e um tempo) nas estratégias do Projeto Terapêutico Individual, desde que ponderadas as potenciais vantagens e desvantagens, mas que não devem se tornar o principal recurso ou o eixo do tratamento, dada a existência de outras formas seguras e efetivas de cuidado, que muitas vezes acabam subutilizadas quando a prioridade é dada à psicofarmacologia.

Estimulantes não melhoram o desempenho acadêmico em crianças com TDAH

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Um novo estudo descobriu que as drogas estimulantes não ajudavam as crianças com TDAH a ter um melhor desempenho em seus trabalhos escolares. Embora as drogas tenham melhorado o comportamento das crianças nas aulas, elas não tiveram um desempenho acadêmico melhor quando estavam tomando as drogas do que quando não estavam.

“Não houve nenhum efeito detectável da medicação no aprendizado do material ensinado durante as aulas”, escrevem os pesquisadores. “As crianças aprenderam a mesma quantidade de conteúdo do assunto e vocabulário, quer estivessem tomando [Ritalina] ou placebo durante o período de instrução”.

O estudo, publicado no Journal of Consulting and Clinical Psychology, foi conduzido por William E. Pelham, Jr. da Universidade Internacional da Flórida. Também incluiu pesquisadores da Universidade da Califórnia, San Diego; da Universidade da Califórnia, Irvine; da Florida State University; e do Penn State College of Medicine.

Os pesquisadores recrutaram 173 crianças (entre 7 e 12 anos de idade) que preenchiam os critérios do DSM-5 para TDAH e estavam inscritas em um curso de verão. O estudo foi projetado para que um grupo de crianças recebesse o estimulante Ritalina (metilfenidato) por três semanas (enquanto o outro grupo recebia um placebo). Então os grupos trocariam – com o primeiro grupo agora sendo colocado no placebo e o segundo grupo tomando Ritalina por três semanas.

Com este projeto, os pesquisadores podiam comparar como os mesmos estudantes se desempenhavam com o placebo versus o fármaco estimulante. Além disso, a troca dos dois grupos ajudaria a explicar outros efeitos, como os efeitos de retirada e os efeitos do tempo (como por exemplo, se todos os estudantes estavam mais nervosos mais cedo – ou mais tarde).

Este estudo é único porque os estudos sobre os efeitos dos estimulantes não avaliam o desempenho real na escola. (Os pesquisadores escrevem que este é o primeiro estudo desse tipo.) Em vez disso, os estudos geralmente se concentram no comportamento (se as crianças estão melhor sentadas em uma sala de aula, por exemplo) conforme avaliado pelos professores ou pelos pais. No entanto, o desempenho acadêmico é uma das razões críticas pelas quais os pais querem que seus filhos tomem drogas.

Os pesquisadores escrevem:

“Embora se tenha acreditado durante décadas que os efeitos de medicamentos na produtividade do trabalho acadêmico e no comportamento em sala de aula se traduziriam em um melhor aprendizado do material acadêmico novo, não encontramos tal tradução”.

Eles acrescentam: “A medicação não teve impacto detectável sobre o quanto as crianças aprenderam das unidades acadêmicas de ciência, estudos sociais e vocabulário”.

Os pesquisadores descobriram que, ao tomar o medicamento, as crianças eram capazes de completar cerca de um a dois problemas matemáticos a mais por minuto e “cometiam” cerca de duas “violações de regras” em menos de uma hora.

Os pesquisadores observam que os estudantes que tomavam a droga também faziam um pouco melhor em seus testes por 1,7 a 3 pontos em uma escala de 100 pontos. Entretanto, eles acrescentam que esta melhoria é menor do que a melhoria que as crianças conseguem obter se dormirem uma boa noite antes de um teste.Em conclusão, os pesquisadores escrevem que os pais e pediatras acreditam que os estimulantes levarão à melhoria acadêmica e que a realização acadêmica é um objetivo principal para o tratamento da TDAH. Os pesquisadores sugerem que se este é o objetivo, os estimulantes não devem ser prescritos. Ao invés disso, a pedagogia e o apoio acadêmico devem ser melhorados:

“Nosso insucesso em encontrar um efeito de medicação estimulante no aprendizado de unidades curriculares acadêmicas individuais levanta questões sobre como a medicação estimulante levaria a um melhor desempenho acadêmico ao longo do tempo. Isto é importante, dado que muitos pais e pediatras acreditam que a medicação melhorará o desempenho acadêmico; é mais provável que os pais procurem medicação (em comparação com outras opções de tratamento) quando identificam o desempenho acadêmico como um objetivo principal para o tratamento. As descobertas atuais sugerem que esta ênfase pode ser mal orientada: Os esforços para melhorar o aprendizado em crianças com TDAH devem se concentrar na obtenção de orientação e apoio acadêmico efetivo (por exemplo, Planos Educacionais Individualizados) em vez do uso de medicamentos estimulantes”.

O estudo mais bem considerado e altamente citado sobre TDAH na infância, o estudo MTA da NIMH, encontrou resultados iniciais promissores sobre os sintomas e o comportamento do TDAH, que foram amplamente publicados nos meios de comunicação de massa e que levaram à crença de que os estimulantes seriam extremamente eficazes para o tratamento do TDAH. Entretanto, os resultados posteriores do estudo MTA tên sido desanimadores: o acompanhamento de três anos constatou que aqueles que receberam tratamento não estavam em melhor situação do que aqueles que não receberam, enquanto o acompanhamento de seis a oito anos constatou que aqueles que receberam tratamento tiveram pior desempenho do que o grupo de controle em 91% das medidas que testaram.

Outro estudo recente descobriu que a ingestão de estimulantes tornava as crianças 18 vezes mais propensas a experimentar depressão. Entretanto, uma vez que as crianças deixavam de tomar o medicamento, seu risco de depressão caia de volta para a situação de seus colegas saudáveis. Estudos similares apoiam este efeito.

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Pelham III, W. E., Altszuler, A. R., Merrill, B. M., Raiker, J. S., Macphee, F. L., Ramos, M., . . . & Pelham Jr, W. E. (2022). The effect of stimulant medication on the learning of academic curricula in children with ADHD: A randomized crossover study. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 90(5), 367-380. (Link)

O DSM é um Manual de Diagnóstico Cientificamente Confiável?

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Artur Cardoso é psicólogo com bacharelado pela Universidade Estácio de Sá, atualmente mestrando em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pós-graduando em Gestão em Saúde Mental pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Coordena o Grupo de Estudos em Byung-Chul Han (GEPEB), atua como psicólogo clínico atendendo especialmente de forma online e como colaborador do CRP/RJ na Comissão de Direitos Humanos, no Eixo de Política Sobre Álcool e Outras Drogas (EPAD).

É um dos autores de “O Neoliberalês: um ensaio filosófico sobre o idioma da sociedade do desempenho”, livro que está em pré-venda e que fala sobre a linguagem do discurso neoliberal utilizada como um meio de dominação em diversos contextos sociais.

Para além do trabalho como psicólogo e da produção acadêmica, Artur Cardoso compartilha nas redes sociais reflexões e fatos pouco divulgados a respeito da psiquiatria, com foco em seu Manual de Diagnósticos (DSM). Recentemente trouxe uma postagem informativa sobre as mudanças contidas na nova versão da nosografia, que passará a incluir o Transtorno do Luto Prolongado, entre outras modificações. Um de seus textos, “A problematização dos diagnósticos psiquiátricos: Negacionismo ou bom senso?” costuma ser bastante compartilhado por quem é crítico da prática psiquiátrica, por trazer uma explicação direta e de fácil compreensão a respeito de como esses diagnósticos são criados e de como negar essa forma de compreender as questões humanas é o exato oposto do que se entende como “negacionismo”.

Gabriela Mahle: Em primeiro lugar, obrigada por se dispor a encontrar um tempo para responder essas perguntas. Em segundo: em que momento da graduação você passou a enxergar que o DSM não era uma verdade absoluta, como muitas vezes nos é ensinado? O que te motivou a entender o processo por trás da criação do manual?

Artur: Em primeiro lugar, eu também agradeço o convite e me sinto muito honrado; o site Mad in Brasil é um dos veículos mais importantes que temos aqui no Brasil quando se trata de falar, de forma mais crítica, sobre práticas e epistemologias em Saúde Mental.

Agora respondendo a pergunta de fato, olha… Para ser bastante sincero, o DSM e eu nunca nos comunicamos muito bem. Nos primeiros semestres de faculdade, eu não tinha uma opinião crítica, fundamentada e articulada sobre o manual psiquiátrico, eu apenas o considerava bastante presunçoso. Eu pensava: “como pode um manual se propor a sistematizar todas as formas de ser e existir? Sei lá, esquisito isso”. Naquele momento, eu imaginava que minha posição apreensiva com relação ao DSM se dava por não conhecer de maneira mais aprofundada, mas que isso mudaria caso eu o estudasse mais a fundo. Só que não era psicopatologia que eu queria estudar. Meu interesse nos primeiros semestres era conhecer o pensamento de intelectuais como Bauman, por exemplo. Então meu receio ao manual permaneceu colado em mim.

Tudo se transforma quando chego no meio da graduação. Duas coisas aconteceram. A primeira foi que comecei a ter aulas específicas de Psicopatologia, e uma coisa me incomodava nas categorias diagnósticas que íamos conhecendo e estudando: a quantidade de pessoas que se identificavam com elas. Era muito comum sair de uma aula de Psicopatologia e ver os alunos e alunas comentando: “Caramba, eu tenho TDAH! Eu tenho Transtorno de Ansiedade! Eu tenho características de uma Borderline! Eu tenho isso… Eu tenho aquilo…”. Aquilo me incomodava de sobremaneira e eu ficava me questionando se todos nós somos doentes mesmo ou se tinha algo errado com esse sistema, já que ele alcançava todo mundo, as vezes até, com várias categorias diagnósticas diferentes. Mas até então essas percepções seguiam apenas “como coisas da minha cabeça”, até que…

A segunda coisa que aconteceu no meio da graduação foi ter tido aulas com uma professora que veio, a princípio, nos ensinar sobre Pesquisa em Psicologia. Ela era bastante provocadora e perguntava coisas que nós, alunos e alunas, nunca tínhamos pensado sobre. Pelo menos era a minha impressão. Em uma de suas aulas essa professora apresentou o conceito de medicalização e aí, minha cabeça “explodiu”.

Tanto em aula como fora de aula, conversávamos bastante sobre medicalização, processos medicalizantes, como isso alcançava e atravessava a psiquiatria e a própria psicologia, qual era o lugar do DSM nisso tudo, a influência que a Indústria Farmacêutica exercia sobre as práticas e epistemologias em Saúde Mental e etc. Começamos a entrar em contato com leituras sobre o assunto, com artigos e com histórias. Conhecemos, conversamos e fizemos amizade com grandes referências em estudos sobre medicalização, como Paulo Amarante e Fernando Freitas, ambos da Fiocruz. Foi-se formada uma iniciação científica na universidade que acabou se transformando no que hoje é chamado de Coletivo Desmedicalização da Vida.

Entrar em contato com toda essa temática acabou materializando todos os meus receios acerca do DSM e de suas categorias diagnósticas. Entendi ali algumas coisas: 1) esse era um assunto urgente e que precisava ser falado, debatido e encarado de frente, sem diplomacia ou “meias-palavras”; 2) que se posicionar de maneira crítica ao saber hegemônico em Saúde Mental gera resistências, sejam de pessoas que te acham “negacionista” ou de saberes institucionalizados que fazem o possível para que tais problematizações não venham a tona para que impérios não caiam ou sejam confrontados; 3) que pessoas sofrem, são violentadas, são engolidas e mortas, dia após dia, pelas mãos da psiquiatria que está suja de sangue inocente desde sua fundação, quando ainda se chamava Alienismo; 4) e que eu, enquanto profissional, cientista, humano e cidadão político do mundo, precisava ser um braço nessa luta e contribuir o máximo que pudesse, seja falando, seja escrevendo, seja estudando e seja agindo de maneira diferente daqueles e daquelas aos quais me oponho.

Meu primeiro passo nessa direção, ainda na graduação, foi estudar os DSM’s: como eles se apresentam, com quais finalidades, como foram construídos, os seus impactos, a serviço de quem e etc. Esse meu esforço resultou em uma monografia da qual me orgulho muito. Um recorte dessa monografia foi publicado em 2020 como capítulo de livro e se chama A Liquefação da Psicopatologia Psiquiátrica: uma estratégia psicopolítica de estimulação ao consumo de psicofármacos. Existe até uma resenha desse texto que foi publicada aqui no Mad in Brasil.

Gabriela: Qual é o principal objetivo da tua produção acadêmica que diz respeito ao DSM?

Artur: Invalidá-lo!

Tento mostrar com aquilo que escrevo e falo, que o DSM não é nada do disso ele se propõe ser. Esse manual é vendido como uma importante ferramenta clínica e científica que serve para mapear estados, emoções e comportamentos humanos, e depois tratá-los. Mas quando a gente estuda a história e os bastidores de cada edição do manual, principalmente do DSM-III de 1980 em diante, a gente percebe que na verdade esse manual é um dispositivo, no sentido foucaultiano da coisa, político e econômico de controle e dominação social. A ciência passa muito longe deste dispositivo, embora o marketing em torno do DSM e de suas categorias diagnósticas insistam no oposto.

Dessa maneira, os principais objetivos da minha produção acadêmica que diz respeito ao DSM é expor o que o marketing farmacêutico e psiquiátrico não expõe acerca de suas categorias diagnósticas: os resultados burlados, os artigos comprados, a influência da Indústria Farmacêutica sobre a criação de categorias diagnósticas psiquiátricas e sobre a prescrição de determinadas drogas, o projeto psiquiátrico de se estabelecer como poder hegemônico acerca da existência humana.

Tudo isso a fim de alertar quem me lê e quem me escuta, de que se o DSM tem alguma utilidade, essa utilidade serve aos poderosos única e exclusivamente. A nós, que estamos na parte de baixo da pirâmide, o DSM só traz prejuízo, seja identitário, existencial e/ou econômico, em níveis individuais; seja reafirmando desigualdades sociais, políticas de exclusão e morte, ou seja, validando o discurso e racionalidade neoliberal de desresponsabilização das instituições sociais e políticas sobre o sofrimento ao mesmo tempo em que culpabiliza o sujeito por sofrer, em níveis coletivos.

Gabriela: Você acha que a epidemia de jovens se identificando com transtornos mentais pode ser atribuída somente à internet, ou que o próprio DSM é o responsável por essa “diagnosticação” em massa?

Artur: A forma como o DSM começou a se organizar a partir de sua terceira versão em 1980 serviu, justamente, ao propósito da popularização. Sua forma de diagnosticar através de critérios específicos e “precisos” universalizou as categorias diagnósticas pela primeira vez na história. Assim, através do DSM-III, aquilo que era considerado um transtorno psiquiátrico nos EUA, poderia facilmente ser considerado um transtorno psiquiátrico nas grandes metrópoles do Japão ou na zona rural de alguma cidade da África do Sul. Esse modelo de diagnóstico também serviu para que o DSM transcendesse a psiquiatria. Enquanto o DSM-I e II dependiam da interpretação de um médico ou médica psiquiatra, o DSM-III em diante pode ser lido e executado por qualquer profissional médico, já que ele é autoexplicativo.

Com o avanço da internet, o DSM e suas categorias diagnósticas se popularizam ainda mais. Agora além de universalizado, o manual é também globalizado. Assim, você não precisa mais ser um médico ou médica de qualquer área para diagnosticar. Você próprio pode fazer o download do manual, ler em casa e se diagnosticar. O médico e a médica entram nessa dinâmica apenas para dar “canetada” e oficializar. Aliás, não é preciso nem o download do manual: a internet disponibiliza a descrição de categorias diagnósticas por todos os lados e existem também plataformas que fornecem diagnósticos mediante a disponibilização de algumas informações suas. Me lembro de a Associação Americana de Psiquiatria (APA) disponibilizar na internet uma plataforma em 2020, no ano da pandemia, para pré-diagnósticos. A plataforma fazia perguntas superficiais sobre você, pedia algumas informações e no fim, você recebia um pré-diagnóstico, junto com uma orientação de procurar algum médico ou médica para confirmar isso.

Então, acho que o DSM, a partir de 1980, adquire essa função de “diagnosticação” em massa, por toda a forma como ele se organiza; e a internet vem como uma ferramenta útil a esse processo.

Gabriela: Pergunta que talvez esteja relacionada ao tema do seu livro: você acha que as alterações na linguagem, como por exemplo, “hoje estou deprimido” ao invés de “hoje estou triste” foram estimuladas de forma proposital pela instituição da psiquiatria? 

Artur: Sim, está muito relacionado ao nosso livro!

A linguagem, a verbal de sobremaneira, tem uma função estruturante sobre as consciências individuais e coletivas. Nós trabalhamos em nosso livro com a ideia de que a consciência humana é um artefato mais sócio-ideológico do que ontológico. Isso significa dizer que aquilo que você pensa, fala e elabora é uma construção adquirida do seu meio histórico, cultural e social imediato. As palavras e expressões carregam ideologias que são estabelecidas e reproduzidas por grupos estabelecidos, e a difusão delas contribuem para que determinadas ideologias se espalhem. Em suma, somos seres pensantes porque nos comunicamos, e aquilo que pensamos é estruturado pela ideologia que aquilo que comunicamos e que nos é comunicado reproduz. Essa é a ideia que o livro carrega e que me faz bastante sentido, particularmente.

A psiquiatria dá aula nesse sentido. Suas palavras e expressões são emprenhadas de ideologias específicas que servem para reproduzir a sua racionalidade psiquiátrica. Essa coisa de substituir o “estou triste” pelo “estou deprimido” é uma ilustração ótima. Teoricamente, as duas expressões deveriam se referir a estados emocionais parecidos, mas não. Tristeza é uma condição inerente da vida humana, todos e todas ficamos tristes vez ou outra, em mais ou menos intensidade. Depressão é uma condição psiquiátrica. Quando você fala que está deprimido ou deprimida, você está se colocando como alguém que está sofrendo de ordem psiquiátrica e que é por essas vias que você deve se “curar”. E isso nos estrutura subjetivamente porque altera nosso olhar sobre nós mesmos. Se eu entendo que estou triste, sei que isso é desagradável, mas sei que isso vai mudar em algum momento e que ocasionalmente isso vai ocorrer de novo. Se eu entendo que estou deprimido, eu passo a me olhar como alguém doente, que precisa de tratamento e intervenção e que isso que estou sentindo precisa ser eliminado de qualquer maneira.

E a questão é que cada vez menos pessoas enxergam sua tristeza como tal e cada vez mais pessoas entendem essas manifestações como depressivas. Dessa forma, a epistemologia e a racionalidade psiquiátrica se instauram.

A medicina moderna se estabeleceu assim: desenvolvendo uma linguagem médica sobre a dor e sobre o sofrimento; o neoliberalismo tem seu idioma do desempenho e da produtividade; e a psiquiatria, especificamente, não é diferente, ela tenta – e consegue – estabelecer uma linguagem própria que estimula a racionalidade psiquiátrica. Para além desse binômio tristeza-depressão, dá para citar rapidamente a transformação psiquiátrica que a criança sapeca passa ao se tornar uma “opositora-desafiante”, ou o mal-estar menstrual que a psiquiatria transforma em Transtorno Disfórico Pré-Menstrual e agora, mais recentemente, a tristeza profunda por perder alguém para a morte que surge no novo DSM-5-TR, lançado agora em março, como o Transtorno do Luto Prolongado.

Eu parto do princípio de que discussões sobre psiquiatria, medicalização e patologização precisam partir sempre do campo da linguagem, ou pelo menos, leva-la em consideração em algum momento, pois isso fornece uma base fundamental para entendermos como o poder psiquiátrico se estabelece na sociedade e como as diretrizes psiquiátricas vão se tornando verdades absolutas nas vidas das pessoas.

Gabriela: O que você pensa sobre tantas postagens de psicólogos e psicólogas divulgando diagnósticos, usando os termos do DSM, e se colocando em posição de “pessoa que pode tratar doentes”? Pode ser considerada uma forma de tentar se aproximar do poder médico?

Artur: Não tenho informações suficientes para falar acerca do cenário da Psicologia em outros países, mas no Brasil eu vejo uma psicologia que tenta se aproximar e se adequar ao saber médico de forma escancarada. E ela faz isso de uma forma semelhante à psiquiatria do fim dos anos 60 e 70 que queria ser reconhecida como uma especialidade médica que estava dentro dos cânones da medicina, e não apenas como um saber metafísico ou social: incorporando conhecimentos da neurologia para o seu próprio campo. A psiquiatria fez isso através da falsa teoria dos desequilíbrios químicos.

Eu vejo um movimento muito parecido por parte da psicologia brasileira. Há uma vontade de “neurologizar” constantemente as coisas, tanto é que a tal da neuropsicologia é uma das áreas dentro da psicologia que mais crescem hoje no país.

Tenho para mim – mas aí é uma opinião exclusivamente minha, baseada em minhas percepções apenas – que há uma vontade por parte de psicólogos e psicólogas que a psicologia fosse reconhecida como uma especialidade médica, como a neurologia, cardiologia e etc. Isso fica refletido no crescimento do campo neuropsicológico e nessas postagens absurdas de psicólogos e psicólogas nas redes sociais que ficam divulgando diagnósticos, se apropriando de termos e metodologias provenientes do DSM e se colocando como alguém que “cura” estados psicológicos e emocionais.

Você chega numa rede social de um profissional assim e vai encontrar os mesmos perfis: uma logo que articula o símbolo da psicologia com a imagem de um cérebro; na bio tem uma descrição acerca de como aquela pessoa vai te ajudar a se livrar de determinada questão; as postagens são sempre algo como “você conhece ou já ouviu falar do Transtorno de ‘alguma coisa’”? Ou ainda “3 passos para você tratar sua ansiedade”, e ainda tem os que adoram divulgar os “aspectos neurológicos de suas emoções”. Fora os profissionais e as profissionais que ficam fazendo propaganda de medicamento psiquiátrico…

Nesses perfis você aprende sobre vias serotoninérgicas, sistema límbico, curiosidades sobre a amígdala, psicofarmacologia, a neurologia dos transtornos mentais, instruções “estilo médico” para melhorar determinada condição, enfim, aprende um monte de coisas, só não se vê falar sobre psicologia de fato.

Essa realidade é reforçada por grades curriculares de cursos de psicologia de universidades privadas – e algumas públicas também – que te ensinam tudo sobre neuropsicologia, psicopatologia, neurofisiologia, neuroanatomia e etc., e cada vez menos sobre sociedade, cultura e história. Disciplinas filosóficas, antropológicas e sociológicas estão ficando escassas nas grades de universidades específicas. Uma vez eu dei uma palestra sobre a psicologia ser uma ciência das humanidades e a galera ficou espantada, porque passam tanto tempo estudando cérebro que saem da faculdade achando que a psicologia é uma ciência biológica.

É muito importante reforçar sempre que nós, psicólogos e psicólogas, não somos médicos e médicas. O modelo biomédico não nos serve, seja em termos de epistemologias, de ferramentas ou de práxis. Nesse aspecto aqui, especificamente, nem se trata de uma crítica ao modelo biomédico, mas se de afirmar que nosso campo é outro, nossas ferramentas são outras é nossa prática é outra. Se eu quisesse tratar corpos biológicos eu tinha feito medicina. Eu fiz psicologia para lidar com seres históricos, culturais e sociais, inseridos e atravessados por estruturas complexas que formam suas subjetividades. Mas isso parece ser cada vez mais irrelevante dentro do nosso campo, infelizmente.

É importante reforçar que não estou jogando “o bebê fora junto com a água do banho”. Falo de uma tendência que vejo, sobretudo em grades curriculares e perfis de internet. Mas isso está longe de ser a totalidade da situação, e sim, um recorte. Tem muita gente boa na psicologia brasileira e se você caçar direito, encontra perfis ótimos na internet, como o Psicologia sem Psiquiatrismo no Instagram.

Gabriela: Qual é o maior desafio de um psicólogo e ou acadêmico que, se definindo ou não como anti-psiquiatria, defende alternativas de cuidado contrárias ao que a psiquiatria prega?

Artur: Olha, eu acredito que o maior desafio hoje é permanecer forte na luta e na militância sem ter sua imagem associada, de forma definitiva, a posicionamentos “negacionistas”, “psicofóbicos” ou “terraplanistas”, pois quem defende alternativas de cuidado contrárias ao que a psiquiatria prega, se definindo ou não como anti-psiquiatra, vai sofrer, em algum momento, alguma crítica dessa. Portanto, é muito importante ter uma base forte de estudos e estar ancorado ou ancorada em referências importantes e sérias para poder ter possibilidades de argumentação, porque assim, as críticas até surgem, mas não conseguem se sustentar.

Estamos em uma luta contra-hegemônica e numa luta dessas é importante se manter forte e não desistir, pois o poder hegemônico que oprime e que violenta é forte e não desiste nunca. Um exemplo claro disso é a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que mesmo depois de tantos anos de Reforma Psiquiátrica, segue mais incansável do que nunca em seu esforço de invalidar as políticas que a reforma construiu.

Eu, particularmente, acredito muito que nós, psicólogos e psicólogas, acadêmicos e acadêmicas, cientistas e profissionais de áreas diversas que nos posicionamos de forma crítica ao modelo psiquiátrico e farmacêutico de assistência em saúde mental, precisamos estar unidos e unidas. Nossa trajetória de luta é sempre assombrada por um fantasma de desânimo e tristeza. É comum que vez ou outra, a gente caia. Mas, uma vez unidos e unidas, conseguimos nos apoiar, nos dar força, segurar na mão de quem está caído ou caída, assim como temos em quem segurar quando for nossa vez de cair.

É com medo da resistência e da força que nossa união pode gerar que os poderosos da psiquiatria tentam nos isolar. Se unir é um ato político fundamental!

Gabriela: O que você pensa que aconteceria com a profissão de psiquiatra se o processo de criação do DSM e todas as informações verdadeiras já registradas sobre psicofármacos fossem divulgadas?

Artur:Como citei brevemente antes, isso aconteceu com a psiquiatria norte-americana no fim dos anos 60 e início dos anos 70. Os DSM’s I e II, as críticas e denúncias que pipocavam de todos os lados sobre violências manicomiais e as experiências que revelaram as imprecisões diagnósticas psiquiátricas, enterraram a psiquiatria em uma crise que ela nunca tinha visto. A psiquiatria norte-americana começou a ser questionada pela comunidade científica e acadêmica e crescia o apelo Antipsiquiátrico popular. Se ela não tivesse se apropriado, de forma tendenciosa, de preceitos neurológicos, inventado e perpetuado teorias neuroquímicas mentirosas e sido apoiada pela indústria farmacêutica, não sei se os EUA teriam hoje algum psiquiatra para contar história.

Se as críticas e denúncias verdadeiramente embasadas e registradas ao modelo psiquiátrico e farmacêutico de assistência fossem amplamente divulgadas como as mentiras o são, acredito que aconteceria algo parecido com o que houve nos EUA no período já citado: médicos e médicas psiquiatras seriam bastante desvalorizados e desvalorizadas e o próprio saber psiquiátrico seria descredibilizado.

Se a instituição psiquiátrica acabaria? Difícil dizer… Se tem uma coisa em que essa galera é boa, é em dar a volta por cima e refinar e aprimorar suas formas de violência e opressão. Uma coisa que a história da psiquiatria nos ensina é que o saber psiquiátrico se assemelha bastante à Hidra de Lerna, o dragão mitológico que tinha várias cabeças de serpente que se regeneravam quando cortadas. Se posicionar de forma anti-psiquiátrica e lutar pelo fim de uma instituição da violência como é a psiquiatria, é um verdadeiro trabalho de Hércules.

Gabriela: Qual é a sua visão sobre o papel do DSM na manutenção do neoliberalismo?

O DSM é extremamente útil ao neoliberalismo. Ele perpetua uma racionalidade econômica ao mesmo tempo em que é um produto dela.

No livro que estou para lançar agora em junho – O Neoliberalês: um ensaio filosófico sobre o idioma da sociedade do desempenho –, escrito em parceria com o Lucas Gonçalves e a Victoria Gutiérrez, essa questão é brevemente citada. A hipótese central do livro é que o neoliberalismo passa de uma simples filosofia econômica para uma poderosa instância política de poder através da criação e consolidação de um vocabulário próprio, de um idioma, que no livro foi chamado de Neoliberalês.

As categorias diagnósticas presentes no DSM são consideradas por nós, neste ensaio, como expressões desse idioma neoliberal, tendo em vista que a existência delas movimenta um mercado gigantesco e poderoso de terapias, medicamentos e formas e estilos de vida.

De que maneira o neoliberalismo tem acesso a uma criança agitada e/ou desatenta? Diagnosticando-a. Uma criança sapeca é uma preocupação imediata de quem está ali por perto fornecendo amparo, cuidado e atenção. Se houver uma mínima insinuação de que esta criança tem um transtorno psiquiátrico, como o TDAH, por exemplo, a vida dela já vira de cabeça para baixo e ela passa a ser uma preocupação imediata não mais de quem está por perto, mas de uma série de técnicos, saberes e produtos que se debruçam sobre ela. A insinuação de que uma criança tem TDAH é suficiente para que ela faça avaliações neuropsicológicas, vá a psicopedagogos e psicopedagogas, entre em terapias, consuma medicamentos que são vendidos como “produtos a serem usados por toda a vida”.

Falo de crianças para exemplificar, mas essa dinâmica se aplicam todas as categorias diagnósticas, tendo em vista que elas alcançam gêneros, sexos, faixas etárias, comportamentos, atitudes, sensações e percepções diferentes. O Neoliberalês tem transformado formas de ser e existir em questões médicas/psiquiátricas; tudo a fim de inserir o sujeito sofredor na dinâmica do mercado. Bauman era um sociólogo que falava muito disso. Ele afirmava que o neoliberalismo existia para levar as políticas de  mercado a todos e todas, independente da classe social, da cor, do sexo, do gênero, da idade e tudo o mais. O importante era todos e todas se transformarem em consumidores.

O DSM insere indivíduos nas dinâmicas do mercado pela via dos “problemas mentais”. E a cada nova edição, seu alcance aumenta, o que acaba por inserir cada vez mais pessoas nas dinâmicas do mercado, e assim como o neoliberalismo na perspectiva de Bauman, o manual psiquiátrico também se organiza para alcançar cada vez mais tipos de pessoas diferentes. Sendo assim, o DSM é sim uma importante ferramenta de manutenção – embora longe de ser a única – do neoliberalismo.

Gabriela: O que você pensa sobre tantas postagens de psicólogos e psicólogas divulgando diagnósticos, usando os termos do DSM, e se colocando em posição de “pessoa que pode tratar doentes”? Pode ser considerada uma forma de tentar se aproximar do poder médico?

Não tenho informações suficientes para falar acerca do cenário da Psicologia em outros países, mas no Brasil eu vejo uma psicologia que tenta se aproximar e se adequar ao saber médico de forma escancarada. E ela faz isso de uma forma semelhante à psiquiatria do fim dos anos 60 e 70 que queria ser reconhecida como uma especialidade médica que estava dentro dos cânones da medicina, e não apenas como um saber metafísico ou social: incorporando conhecimentos da neurologia para o seu próprio campo. A psiquiatria fez isso através da falsa teoria dos desequilíbrios químicos.

Eu vejo um movimento muito parecido por parte da psicologia brasileira. Há uma vontade de “neurologizar” constantemente as coisas, tanto é que a tal da neuropsicologia é uma das áreas dentro da psicologia que mais crescem hoje no país.

Tenho para mim – mas aí é uma opinião exclusivamente minha, baseada em minhas percepções apenas – que há uma vontade por parte de psicólogos e psicólogas que a psicologia fosse reconhecida como uma especialidade médica, como a neurologia, cardiologia e etc. Isso fica refletido no crescimento do campo neuropsicológico e nessas postagens absurdas de psicólogos e psicólogas nas redes sociais que ficam divulgando diagnósticos, se apropriando de termos e metodologias provenientes do DSM e se colocando como alguém que “cura” estados psicológicos e emocionais.

Você chega numa rede social de um profissional assim e vai encontrar os mesmos perfis: uma logo que articula o símbolo da psicologia com a imagem de um cérebro; na bio tem uma descrição acerca de como aquela pessoa vai te ajudar a se livrar de determinada questão; as postagens são sempre algo como “você conhece ou já ouviu falar do Transtorno de ‘alguma coisa’”? Ou ainda “3 passos para você tratar sua ansiedade”, e ainda tem os que adoram divulgar os “aspectos neurológicos de suas emoções”. Fora os profissionais e as profissionais que ficam fazendo propaganda de medicamento psiquiátrico…

Gabriela: O que você ouvia, principalmente de professores, ao longo da graduação enquanto trazia contrapontos ao modelo biomédico?

Nesse aspecto eu me considero um psicólogo de sorte. Tive os melhores professores e professoras que um aluno ou aluna de psicologia poderia ter. Sou amigo de quase todos e todas e ainda hoje “trocamos figurinhas”. Como eu disse anteriormente, houve um movimento em minha graduação de estudar uma psicologia de caráter mais crítico e que abordava medicalização, farmacologização e problematizava a atuação psiquiátrica e farmacêutica. Apesar deste movimento ter sido iniciado com uma professora, praticamente todo o corpo docente acabou apoiando isso de alguma forma, com exceção de um professor ou outro. Nas aulas os professores e professoras traziam por fora da grade curricular conteúdo sobre o assunto, indicavam leituras e até os que não dominavam bem a temática davam bastante abertura para que nós abordássemos a questão. Não vou saber dizer se foi em 2018 ou 19, não lembro bem, mas conseguimos em algum desses anos, organizar inclusive, uma semana de psicologia na universidade, que abordava apenas questões de caráter crítico. Foi uma semana cheia de eventos que discutiam medicalização, psicologia histórico-cultural, modelo biomédico, crimes psiquiátricos e farmacêuticos e tudo o mais. Tenho ótimas recordações nesse sentido.

Gabriela: 4. Por que você acha que as categorias diagnósticas do DSM se tornaram tão respeitadas e indiscutíveis, ainda que sofram alterações constantes, principalmente na expansão de seus critérios?

Artur: Já falei brevemente sobre isso, mas vale reforçar: o marketing psiquiátrico e farmacêutico é bastante eficiente, tem um alcance global e sabe a maneira certa de atingir cada pessoa.

O DSM-I de 1952 e o DSM-II de 1968 não presenciaram os “benefícios” dessa união entre psiquiatria e indústria farmacêutica, e a psiquiatria pagou um preço alto. Os dois manuais foram largamente questionados e experiências como aquela organizada por David Rosenhan entre 1969 e 1972 que serviram para mostrar a fragilidade dos diagnósticos psiquiátricos, o movimento de problematização dos manicômios que se inicia na Itália e acaba alcançando países europeus e o próprio EUA, mais o avanço do movimento anti-psiquiátrico, serviram para colocar a psiquiatria em uma crise sem precedentes. Sem a falsa teoria dos desequilíbrios químicos, o apoio da indústria farmacêutica e sem a criação e publicação do DSM-III em 1980, não sei se a psiquiatria teria escapado para o futuro.

Mas o marketing que se organizou a partir do DSM-III mostram que a psiquiatria aprendeu bem sua lição, e ver que categorias diagnósticas são constructos tão respeitados e indiscutíveis é o principal indício disso.

Mas eu gostaria de reforçar uma coisa importante acerca das constantes alterações que os manuais e suas categorias diagnósticas sofrem: essa não é uma informação amplamente divulgada e se você não parar para pesquisar sobre ela, isso não chega até você. Você não vê uma notícia do tipo em algum programa de jornalismo ou fofoca: “Urgente, após decisão de médicos e médicas psiquiatras, a depressão deixa de ser uma categoria diagnóstica isolada e agora se torna um espectro fragmentado composto por 8 categorias diagnósticas diferentes” ou “Urgente, após decisão de médicos e médicas psiquiatras, o TDAH para ser diagnosticado depende de menos critérios do que dependia antes”. Essas informações só são alcançadas através de pesquisas. Ao grande público, depressão é e foi considerada a mesma coisa a vida inteira, assim como o autismo, a ansiedade, a esquizofrenia e etc.

Portanto, por mais frequentes que sejam as transformações que essas categorias diagnósticas sofram, isso acaba não servindo como critério crítico popular para invalidá-las, muito pelo contrário, quando alguma dessas alterações chega no grande público, o marketing psiquiátrico e farmacêutico as vende como um “aprimoramento” da máquina diagnóstica.

Gabrieal: Comente sobre as críticas ao movimento anti-psiquiatria que se baseiam em argumentos como “trata-se de negacionismo”, “medicação é ciência”, “transtornos mentais não tem cura e precisam de tratamento medicamentoso”, “doenças da mente são como qualquer doença” etc.

Artur: Além destas críticas ainda tem o tal do “psicofóbico” também, que estão usando bastante.

Mas olha, como eu disse anteriormente, ainda na graduação eu já percebi a resistência que essa perspectiva gera. Falei de um grupo, que assim como eu, se envolveu na causa e começou a se dedicar mais a conhecer do assunto, mas na própria graduação encontramos alunos e alunas, dentro da Psicologia, que faziam o possível para descredibilizar o movimento que estávamos nos envolvendo naquele momento. Eu já imaginava que fora da graduação, quanto mais pessoas escutassem nossa voz, maior seria as críticas que receberia. Não dá para fugir disso!

Mas sobre as críticas que você citou, especificamente… Elas fornecem um material muito bom para comprovar aquilo que denunciamos todos os dias, então se elas acabarem um dia, significa que nosso trabalho estará concluído. Ver pessoas que chamam uma crítica ao modelo psiquiátrico/manicomial/medicamentoso de “negacionismo”, ou dizerem que estados de humor, formas de existir, se comportar e sofrer são “doenças” e ainda afirmar que essas “doenças” não tem cura, evidenciam o sucesso obtido pelo marketing psiquiátrico e farmacêutico após tantos anos de propaganda.

Me permita uma digressão rápida…

Apesar de a psiquiatria se insinuar a uma vertente mais biológica desde o século XIX, é apenas depois da segunda metade do século XX que isso se materializa de maneira mais forte e ampla. Isso ocorre através da hipótese mentirosa dos desequilíbrios neuroquímicos, onde aquilo que se entende como psicopatológico passa a ser considerado como uma manifestação de uma química cerebral que se encontra desregulada. Digo mentirosa porque desde os anos 70 que essa hipótese vem sendo estudada, mas nunca comprovada. Só que apesar de ser uma falácia, essa hipótese foi útil para a psiquiatria, sobretudo a norte-americana, recuperar a dignidade perdida entre os anos 60 e 70. Essa hipótese também foi, e continua sendo, útil à Industria Farmacêutica que conseguiu, a partir dela, desenvolver o que entendemos hoje como psicofarmacologia e estabelecer um mercado de drogas psicoativas, que para serem comercializadas, dependiam que “questões mentais” fossem consideradas como problemas de ordem neuroquímica, pois é nessa instância que tais drogas agem.

Levando em consideração seus interesses políticos e econômicos em comum, psiquiatria e indústria farmacêutica se uniram para começar uma propaganda em torno de suas hipóteses mentirosas. A falsa teoria dos desequilíbrios químicos começou a ser veiculada em artigos científicos que eram comprados e falsificados, começou a ser apresentada e congressos de psiquiatria e de saúde mental, médicos apareciam em programas de TV e rádio e a própria existência de um “remédio para depressão” já sugere que tal condição é um problema de ordem cerebral. Em suma, a indústria farmacêutica divulga as hipóteses psiquiátricas acerca de suas categorias diagnósticas e em troca a psiquiatria prescreve aquilo que a indústria vende como solução. Tudo isso se inicia nos EUA, mas a globalização permitiu que toda essa dinâmica se espalhasse pelo mundo.

O resultado de anos de propaganda e marketing psiquiátrico-farmacêutico nos trouxe até o atual cenário, onde a opinião hegemônica entende que problematizar a epistemologia psiquiátrica e o campo da psicofarmacologia é ser negacionista, que “transtornos mentais” são doenças da mesma forma que a diabetes ou a hipertensão, que não existe tratamento para questões de ordem psíquica fora da terapêutica medicamentosa e etc.

Vemos essas teorias falsas em memes da internet, por exemplo. É comum encontrar memes que sugerem de alguma forma que pessoas depressivas dependem de “moléculas” de serotonina para se alegrarem. Você senta no seu sofá domingo a noite para descansar, liga em determinado programa famoso de domingo a noite e vê um determinado médico, também famoso, reforçando tais ideias mentirosas e por aí vai.

Uma pessoa que não está inteirada do discurso contra-hegemônico que produzimos, vai ver uma publicação no meu instagram e seu primeiro comportamento é tentar me refutar ou me repudiar. E isso sempre vem acompanhado de defesas à epistemologia e práxis psiquiátrica e à tratamentos medicamentosos. Algumas pessoas chegam ao ponto defender um medicamento exclusivo como se ele fosse alguma entidade espiritual. Afinal, quem sou eu na “fila do pão” para ir contra ao que o famoso médico, que está no famoso programa de TV da famosa emissora, diz?

Essas manifestações mostram a força da psiquiatria e da indústria farmacêutica, não como saberes científicos, mas como dispositivos propagandísticos

Estudo de Caso de Abordagem Libertária inspiradora da Saúde Mental Internacional

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Um artigo publicado no New England Journal of Medicine [NEJM] usa um estudo de caso em um contexto brasileiro para explorar por que tantos jovens se sentem culpados e estigmatizados pela assistência à saúde mental. Os autores do estudo, Dominique Béhague, Raphael Frankfurter, Helena Hansen e Cesar Victora, criticam uma abordagem puramente cognitivo-comportamental e consideram como os médicos podem lidar com a opressão estrutural através da terapia. Com base em insights da reforma da saúde mental brasileira, os autores mostram como os terapeutas podem abordar este problema usando princípios de “praxis dialógica”, uma teoria de aprendizagem e mudança social extraída das obras do filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire.

“A práxis dialógica”, explica Béhague em uma entrevista de podcast com o NEJM, “não é uma abordagem clínica ou mesmo um método pedagógico, mas sim um compromisso de aprender com a teoria social e trazer o domínio social de forma bastante central para as iniciativas clínicas e de saúde pública”.

“Normalmente, quando a dimensão social é considerada na medicina e na política de saúde, é um acréscimo, recorrido quando um modelo mais biológico e clínico não está funcionando bem. Mesmo assim, as forças sociais tendem a ser entendidas como fatores de risco para doenças mentais, como no caso da pobreza, desigualdade, discriminação, e assim por diante. Isto é importante, mas o que Freire nos encoraja a fazer também é imaginar como o envolvimento ativo e a recriação do campo social – como nos interrelacionamos, que tipo de sociedade e instituições-chave queremos – pode ser terapêutico em si mesmo”.

Os autores definem praxis dialógica como “um processo extraído da teoria educacional freireana, no qual clínicos e pacientes se envolvem em análise crítica bidirecional e aprendizagem”. É um processo pelo qual se estabelece uma aliança terapêutica com ênfase na colaboração. Através da comunicação bidirecional de experiência e conhecimento, os pacientes são encorajados a tomar medidas para alterar os sistemas que contribuem para as suas experiências de sofrimento e opressão.

Em comparação com abordagens mais populares de mudança de comportamento potencialmente limitadas pela minimização das complexas forças externas que influenciam a experiência diária, Béhague e a equipe relatam que a prática dialógica dá mais importância ao papel dos estressores externos, promovendo a agência do cliente e o empoderamento na alteração desses estressores. Não se trata de um pacote nem de uma abordagem manualizada, mas sim de uma orientação.

“Na clínica, a práxis dialógica revê a relação terapêutica como uma experiência educacional bidirecional que se concentra em uma definição de “insight” diferente daquela utilizada na psiquiatria convencional. Enquanto o insight geralmente se refere à consciência do paciente sobre seus processos psicológicos internos, a práxis dialógica enfatiza o processo de aprendizagem do clínico e […] incentiva o paciente a se tornar uma importante fonte de conhecimento sobre as causas situacionais de seu sofrimento e as formas de modificá-las”.

A noção de práxis dialógica tem suas raízes na teoria do educador e filósofo brasileiro Paulo Freire sobre aprendizagem e mudança social. Embora os termos e expressões específicos utilizados para descrever este conceito variem, não são novos os apelos a esforços de reforma nos campos da psicologia, psiquiatria, medicina, educação, além de integrar melhor os determinantes sociais e estruturais do sofrimento individual. No entanto, a valorização desta idéia nos últimos anos se reflete na recente declaração do Relator Especial das Nações Unidas sobre a necessidade urgente de iniciativas de saúde mental com foco nos direitos humanos.

Modelos de treinamento foram projetados para preparar os profissionais para compreender as formas diretas e matizadas que as forças externas influenciam a saúde individual. Algumas pesquisas indicaram que o “treinamento de competência estrutural”, para promover a compreensão das estruturas que contribuem para as disparidades nas facetas da saúde, bem-estar e oportunidade, pode aumentar a empatia entre os residentes de psiquiatria.

Em outubro de 2019, os pesquisadores Rochelle Ann Burgess e colegas escreveram um comentário na Lancet Psychiatry promovendo a mensagem de que “chegou a hora do movimento global de saúde mental reconhecer a importância dos determinantes socioestruturais do sofrimento mental, e trabalhar ao lado das comunidades e dos formuladores de políticas em seus esforços para enfrentá-los”.

Entretanto, os detalhes de como a competência estrutural pode funcionar na prática ainda não foram totalmente explorados. Este artigo sugere que uma postura clínica chave é que a relação terapêutica seja guiada pela humildade e pelo aprendizado fundamentado. No estudo de caso delineado por Béhague e colegas, um clínico, o Dr. M estabelece uma relação terapêutica com um cliente de 16 anos, J, fundada no reconhecimento precoce de que o clínico não sabe o que é ser J. Esta transparência aliada à curiosidade em torno das percepções de J sobre as estruturas que impactam suas experiências cotidianas se presta à colaboração, capacitando J a influenciar seu ambiente para o construtivo.

Os autores descrevem a história de ansiedade e os comportamentos problemáticos de J na escola, levando até a sua conexão com um profissional fora da escola. Antes de conectar-se ao Dr. M, J se encontrou com a psicóloga de sua escola e não estava satisfeito com as circunstâncias de sua indicação para seus serviços, bem como com suas percepções de seu caso. Sua interpretação foi que ela se concentrou mais em seus déficits (ou seja, agressão e questões atencionais), enfatizando mudanças individuais que ele deveria fazer ao invés de questões de maior escala que impedissem seu progresso (por exemplo, seu status socioeconômico).

Tendo declinado os serviços contínuos do psicólogo da escola, J concordou em ver um profissional externo principalmente para expressar as suas frustrações. Embora inicialmente hesitante em se envolver, J descobriu que a abordagem do Dr. M, integrando características de praxis dialógica, ressoava.

Com o tempo, os dois trabalharam para desembaraçar e explorar as fontes contextuais e sociais de sofrimento que J havia experimentado ao longo de sua vida. J aplicou estas novas percepções ao ativismo escolar de nível comunitário, envolvendo-se no conselho estudantil de sua escola. Enquanto estava no conselho estudantil, ele “advogou por melhores relações professor-aluno e trabalhou ao lado do pessoal da escola que dirigia iniciativas para promover a participação dos alunos e práticas democráticas de ensino”.

Embora possa haver muitas características opressivas das circunstâncias fora do seu domínio de controle, Béhague e a equipe demonstram como um senso de propósito pode ser apoiado na terapia através de abertura, análise crítica e incentivo ao engajamento no ativismo de nível comunitário.

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More information on this article can be accessed in a podcast interview featuring the first author hosted by the New England Journal of Medicine.

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Béhague, D. P., Frankfurter, R. G., Hansen, H., & Victora, C. G. (2020). Dialogic Praxis — A 16-Year-Old Boy with Anxiety in Southern Brazil. New England Journal of Medicine, 382(3), 201–204. DOI: 10.1056/nejmp1909864 (Link)

Pesquisa Utiliza Fotos e Narrativas de Usuários da Saúde Mental sobre suas Vidas no Território

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O artigo “Eu fui no peito e na raça”: fotografias e narrativas da vida no território de usuários da saúde mental se utiliza do método fotovoz que faz parte do campo da pesquisa-ação, e é bastante influenciada pelo pensamento de Paulo Freire. Os participantes produziram fotos e narrativas individuais que depois foram discutidas em grupo. Tal método permite um maior protagonismo dos participantes, ao possibilitar que eles tomem as rédeas da pesquisa, decidindo os tópicos que serão trabalhados e dando autonomia para a produção do material a ser discutido nos grupos.

A pesquisa começou com nove participantes e terminou com oito. Destes foram seis homens e três mulheres, com média de idade de 58 anos. Sete se autodenominaram pardos, um branco e um negro. Todos com uma longa trajetória na saúde mental.

“Thornicroft aponta que ser alvo de comportamento discriminatório pode trazer um prejuízo maior do que a condição de saúde mental em si, com consequências diretas em vários domínios: relações interpessoais, educação, trabalho e moradia.”

Os autores entendem a descriminação como uma consequência comportamental do estigma. O tema da descriminação foi o primeiro escolhido pelos participantes da pesquisa, talvez por ter um impacto direto na vida deles. Os participantes fotografaram representações da discriminação que eles experimentam em suas vidas e trouxeram para a discussão no grupo. Uma participante fotografou um carrinho de mão de brinquedo sem um braço.

“[…] É o preconceito da pessoa ser discriminada de alguma forma, por apresentar um defeito. […] Mas nós não temos deficiência, nós temos transtorno mental, aí o único que me lembrou assim foi o carrinho. […] que era da minha irmã […] mas a minha irmã ainda não se desfez dele. Está lá. Assim é a gente, quando dá problema, deixa pra lá, não tem conserto mesmo. A gente antes tinha opinião, agora não faz mais valer a nossa opinião, não sabe de nada. A gente tem problema mental, é discriminado.”

Os autores destacam que a fala da participante pode ser compreendida através do conceito de injustiça epistêmica, visto que se refere a uma injustiça feita a uma pessoa que se confere um grau menor de credibilidade do seu testemunho. Pessoas diagnosticadas com algum transtorno psiquiátrico tendem a receber mais esse tipo de injustiça pois seus relatos tendem a ser encarados como falsos e suas narrativas escutadas com desconfiança, o que tende a isolar o sujeito em sofrimento psíquico.

A narrativa de alguns participantes demonstram como a pessoa em sofrimento psíquico é lida através do seu diagnóstico, qualquer comportamento é interpretado a partir da doença.

“Ah, o Guilherme tá [sic] ouvindo muita música e tá [sic] passando a madrugada aí orando. […] Ah, eu vou falar pro seu irmão.” Quando ela [mãe] fala isso, ai meu Deus! Meu irmão é novo, então tem muita voz ativa, né, se meu irmão falar, então, “Tem que internar ele, mãe, vamos internar” [usa uma voz de vilão], aí eu fico a-pa-vo-ra-do!”

As narrativas que aparecem na pesquisa são cheias de metáforas exemplificam a capacidade de trazer novos significados para palavras que inicialmente estava carregada de um significado negativo.

“Essa bolsa que está aqui, sabe o que que é? É porque, além de tudo que eu ouvi na vida, eu ouvi também: “Eu vou ter que carregar essa mala o resto da minha vida!” E eu me coloquei dentro da mala. Eu não consigo ficar sem bolsa e eu fico com medo de perder. E tudo, tudo que tem em volta na minha vida foi minha conquista. […] Eu me coloquei dentro da mala, eu me carrego e me sinto bem leve.”

Na outra etapa da pesquisa, os participantes tiraram fotos que representavam seu território e suas relações. São diferentes realidades, alguns moram sozinhos, outros com familiares. Alguns tem condição de contratar uma “colaboradora” e outros contam com a ajuda de vizinhos ou familiares. Mas todos parecem desejar criar laços com as pessoas de sua comunidade e nesse processo se deparam com o preconceito, dificuldades, mas também experimentam a sensação de pertencimento e conexão em determinados contextos. O serviço de saúde mental aparece aqui como um elemento importante, além da família, associação de moradores, igreja, vizinhança, Academia da Terceira Idade…dispositivos que favorecem a troca comunitária.

“Luiz Eduardo fotografou a Academia da Terceira Idade (aparelhos para a prática de exercícios disponibilizados em praças públicas). Segundo Barnabé, esse espaço funciona como um ponto de convivência, onde não há exclusão. […] Existe dia do aniversariante, […] o grupo de pessoas, né, promovia passeios. Ali rola uma familiarização, não é só o exercício. […].”

O território e as relações aparecem como elementos significativos para a vivência dos participantes, por isso é importante que os profissionais não se atentem apenas ao sinais e sintomas, mas também para as relações que os usuários travam com seu entorno. Os autores destacam que não basta a inserção de serviços de saúde mental, é necessário a mudança das mentalidades, pois é no plano sociocultural que acessamos a dimensão existencial dos sujeitos. É necessário um novo lugar social para a loucura.

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Peixoto, M. M. e Serpa, O. D. de . “Eu fui no peito e na raça”: fotografias e narrativas da vida no território de usuários da saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 03, 2022. (Link)

A palavra “Florescimento” usada pela psiquiatria reflete o mundo real?

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Um novo artigo publicado na SSM-Mental Health, uma revista internacional interdisciplinar de saúde mental, oferece perspectivas críticas sobre o que significa “florescimento” e o que impede o florescimento nos Estados Unidos. Os autores defendem que a palavra “florescer” é entendida de forma diferente pelo público do que como é usada em espaços acadêmicos, filosóficos e midiáticos.

Eles escrevem: “Antes que os esforços corajosos para promover florescimento possam ser justificados, devemos primeiro perguntar: De quem são as definições de florescimento que fornecem o roteiro? Que suposições sustentam estas definições? De quem é o florescimento que eles são projetados para dar apoio”?

Eles acrescentam: “As definições eruditas de florescimento têm ressonância com os usos cotidianos e reais do termo, ou qualquer dimensão essencial está sendo negligenciada ou deixada de fora? Acima de tudo, devemos perguntar: as concepções predominantes de bem-estar mental estão bem adaptadas à tarefa de enfrentar os problemas mais urgentes na pesquisa, política e cuidados clínicos atuais – ou, alternativamente, podem elas correr o risco de nos desencaminhar”?

Em 2021, um artigo no The New York Times discutiu a saúde mental de uma nova maneira – em um espectro que vai do definhamento ao florescimento da saúde mental. “Flourishing” representa “o auge do bem-estar”. Entretanto, pesquisas têm demonstrado que quando operacionalizamos palavras em nome de um sentido para a saúde mental, como resiliência, podemos estar fazendo mais mal do que bem.

Os autores do estudo atual procuraram entender se o The New York Times conseguiu captar corretamento o florescer, realizando um projeto de pesquisa antropológica em Cleveland, Ohio. Os pesquisadores incluíram Sarah S. Willen, Abigail Fisher Williamson e William Tootle Jr. da Universidade de Connecticut, Colleen C. Walsh, da Universidade Estadual de Cleveland, e Mikayla Hyman, uma pesquisadora independente.

Primeiro, a equipe começou uma avaliação crítica das principais concepções de florescimento em psicologia positiva e comparando-as aos entendimentos de florescimento nas ciências sociais críticas da saúde, teoria jurídica crítica, bioética, estudos sobre deficiência e saúde pública crítica. Através desta avaliação, os autores destacam que, naturalmente, “a capacidade das pessoas de florescer depende muito das circunstâncias em que vivem”, de modo que “qualquer relato que se limite ao domínio psicológico ficará necessariamente aquém”.

Então os autores apoiam sua afirmação de que o conceito de florescimento, ainda que seja uma alternativa interessante aos entendimentos mais medicalizantes do que consiste o bem-estar mental, ele ainda falha na forma como as pessoas comuns entendem o seu próprio bem estar pessoal.

Seu estudo de métodos mistos foi concebido com a ajuda do Northeastern Ohio’s Health Improvement Partnership-Cuyahoga (HIP-Cuyahoga). Os pesquisadores entrevistaram 80 membros da comunidade da região de Cleveland. Eles perguntaram aos participantes se eles se descreveriam, pessoalmente, como florescendo, assim como o que eles achavam que as pessoas precisavam, em geral, para florescer.

Cinqüenta e um por cento dos participantes disseram que estavam florescendo. Catorze por cento estavam se aproximando do florescimento, 15% se sentiam confusos para escolher a resposta adequada, 4% se afastavam do florescimento, e 16% dos participantes responderam que não estavam florescendo. As mulheres ricas, brancas, mais velhas e instruídas responderam que estavam florescendo.

“As diferenças por raça e status socioeconômico foram particularmente acentuadas”, observam as autoras.

Menos da metade dos entrevistados negros relataram estar florescendo, em comparação com mais de dois terços de seus pares brancos.

“Em termos de renda, 88% daqueles com renda familiar acima de US$ 100.000 relataram estar florescendo (14/16), comparado com menos da metade daqueles com renda familiar inferior a US$ 30.000 por ano (46%; 24/11)”.

Com relação às respostas quanto sobre o que as pessoas precisam para prosperar, dois dos fatores mais comuns mencionados foram uma renda estável e os determinantes sociais da saúde.

Os autores terminam o artigo com o seguinte resumo:

“O que é surpreendente – e o que queremos enfatizar aqui – é a persistente e problemática desatenção a essas questões na maioria das pesquisas sobre o florescimento. Do ponto de vista da saúde da população, não há dúvida de que as principais abordagens ao florescimento desempenham um papel importante para facilitar a comparação entre grandes grupos, com efeitos clínicos e políticos significativos. Mas o que aprendemos – e o que perdemos – quando fazemos comparações no agregado usando índices que podem perder aspectos vitais do que as pessoas reais, em cenários do mundo real, vêem como necessário para prosperar? De quem são os indicadores de florescimento que existem, projetados para medir, melhorar e avançar – e que podem ser menos bem capturados, ou não ser capturados de forma alguma”?

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Willen, S. S., Williamson, A. F., Walsh, C. C., Hyman, M., & Tootle, W. (2022). Rethinking flourishing: Critical insights and qualitative perspectives from the US Midwest. SSM-mental Health2, 100057. (Full text)

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Nota do Editor: O termo “medicalização” é bem conhecido por nós. O termo “florescimento” começa a estar integrado ao vocabulário da psiquiatria. Vale a pena começarmos a estar atento ao sentido que o termo vem ganhando no campo da saúde mental e as suas implicações. Confira esta matéria publicada na Revista Galileu 

De que modo Conceitos como Trauma e Resiliência reforçam o Neoliberalismo no Sul Global

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Um novo artigo publicado no Journal of Theoretical and Philosophical Psychology argumenta que o entendimento geral de trauma e resiliência compreende profundamente mal o sofrimento dos refugiados e órfãos no Sul Global. O artigo é escrito pelo escritora do MIA Ayurdhi Dhar, da Universidade de Mount Mary, e Sugandh Dixit do Bapu Trust em Maharashtra, Índia.

As autoras utilizam uma análise autorreflexiva e compartilham histórias familiares e pessoais de movimento, migração, busca de refúgio e orfandade para argumentar que os entendimentos atuais de “refugiado” e “órfão” se baseiam na ideologia neoliberal.

Desde seu início, o movimento global de saúde mental tem procurado situar concepções universais de saúde mental e sofrimento psíquico entre culturas diversas. Este processo de universalização da saúde mental tem sido bem sucedido, mas somente na medida em que ele tem tomado como referência as práticas e a compreensão do bem-estar mental e da saúde do Norte Global (Estados Unidos, Canadá, Europa, Austrália e Nova Zelândia) e o tem exportado para o Sul Global, incluindo os seus povos originários.

Central para a crítica deste movimento é o argumento de que a globalização dos sistemas da psicologia norte-americana e europeia não leva em conta a variação transcultural das emoções e das práticas de cura tradicionais.

“A psicologia nunca foi e ainda não é livre de valores e, além disso, tem negado veementemente a sua natureza política”, escrevem Dhar e Dixit. “…o sujeito da Psicologia continua sendo o sujeito neoliberal… Em sua fidelidade ao capitalismo neoliberal, este sujeito associa a felicidade (que ele fetichiza) à produtividade. O que afirmamos é que o capitalismo neoliberal também associa o sofrimento à produtividade, e através de uma análise autorreflexiva da orfandade e da condição de refugiado, nós propomos o conceito de sofrimento aprodutivo, e a forma(menos) de sofrimento psíquico que age como uma prática revolucionária e como um antídoto para esta recuperação”.

A psicologia, como é entendida pelo Norte Global, tem permeado o nosso dia-a-dia como uma espécie de verdade universal que localiza nossos sucessos, nossas alegrias e, o que é importante, nossos fracassos e sofrimentos de forma única dentro de nós mesmos – e isto é intencional – Dhar e Dixit. A psicologia é incapaz de identificar os sistemas de opressão que “negligenciam a violência política e o racismo sistêmico que perpetua seus sofrimentos”, porque é fundada dentro deles. A psicologia nomeia os refugiados e as identidades e narrativas dos órfãos como inerentemente sujeitos heroicos ou prejudicados, nada mais e nada menos.

“Mas, se momentaneamente elevarmos estas duas narrativas, estamos encalhados em uma terra incerta e desconfortável, onde o imenso sofrimento destes dois sujeitos não tem significado imediato”.

De fato, Dhar, através de sua narrativa sobre a sua experiência enquanto refugiada, identificou que enquanto o que aconteceu com sua família foi devastador, não foi “traumatizante” no modo como a psicologia apresenta os sujeitos traumatizados – sua interioridade como para sempre marcada por seu horror. Em vez disso, ela argumenta que a traumatização da experiência aconteceu no pós-deslocamento – e que a psicologia europeia-americana dificilmente tem ajudado os refugiados a entender as suas experiências e, em vez disso, ajudado os nacionalistas xenófobos.

Sua família inteira tinha duas identidades: refugiada e resiliente. O “refugiado” só precisa ser descritivo, mas, argumenta ela, a psicologia torna a identidade prescritiva – com suas raízes no neoliberalismo, ser refugiado é ter sofrido e o neoliberalismo dita que se deve sofrer por algo.

Este sofrimento neoliberal só pode ser linear, mas Dhar observa que “esta simplificação através de narrativas lineares é um dos efeitos adversos da Psicologia, e não é um acidente“. Esta simplificação atende ao fundamentalismo que precisa de narrativas simples sustentadas por respostas médias que dizem: “Veja o que todos os muçulmanos de Caxemira fizeram a estas pessoas; eles agora têm TEPT e baixo ajuste social. Não há lugar para respostas contraditórias ou sentimentos confusos“.

Enquanto isso, onde os refugiados são construídos como resilientes, os órfãos são construídos como heróicos, como Dixit compartilha:

“As histórias de órfãos muitas vezes se tornam anedotas de sucesso e fazem parte de um sistema de valores econômicos que capitaliza o sofrimento. Uma linguagem de sucesso através de histórias de ações e proezas romantizadas e heróicas é enxertada na realidade do sofrimento humano. É somente depois de comer o fruto do sofrimento que uma história de sucesso pode ser vivida; traumas passados se tornam uma moeda de troca. Que estas interpretações heroicas passaram a desfrutar de tal predominância tem menos a ver com testemunhos de sobrevivência, e menos ainda com a coragem e inspiração para nós mesmos, do que com o pavor e a tentativa de esperança de que não acabemos lá, ‘mas pela graça de Deus’, como diz um ditado popular. Há uma qualidade adicional ao heroísmo destas histórias, que são os temas da liberdade sobrehumana, da vontade e da agência do indivíduo, muito parecido com as histórias sobre o refugiado”.

Estas identidades prescritivas dadas aos refugiados e órfãos definem a linguagem que eles devem usar para interagir e se envolver com sua experiência, mesmo que não seja a linguagem que eles escolheriam para si mesmos, mesmo que nunca se sentissem traumatizados, resilientes ou heroicos.

“Assim, a Psicologia”, argumentam Dhar e Dixit, “não apenas dá uma voz autoritária e prescritiva à própria integridade (enquanto prioriza a própria interioridade), mas também define a linguagem que se deve usar para dialogar com esta interioridade, forçando por sua vez o órfão, o refugiado, o paciente a desconfiar da própria voz”.

Portanto, Dhar e Dixit formulam uma nova forma de entender o sofrimento, que não tem para onde ir; um sofrimento que não foi concebido para produzir um heroi. Em vez disso, eles cunham o termo “sofrimento aprodutivo”.

“Este sofrimento, seu sofrimento, nosso sofrimento, que por um relâmpago se torna significante (menos) torna estes sujeitos revolucionários porque é a antítese do capitalismo neoliberal, na medida em que é marginal, significando (menos), e o mais importante, é aprodutivo. Ele não cria excelentes trabalhadores, gênios torturados, grandes escritores, cientistas famosos ou executivos brilhantes – ele não pode ser comoditizado. Este sofrimento aprodutivo em seus próprios termos não é congelado ou interiorizado para se tornar uma cicatriz interna que se deve carregar no corpo enquanto ele festeja em nossa mente e se aninha em algum inconsciente, eventualmente transformando-se em trabalho produtivo ou conflito intrapsíquico. Em oposição ao eterno, é transitório; em oposição ao individual, é coletivo; em oposição ao interiorizado, é compartilhado”.

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Dhar, A., & Dixit, S. (2021). Making of a crisis: The political and clinical implications of psychology’s globalization. Journal of Theoretical and Philosophical Psychology(Link)

Risco de picos de depressão quando as crianças tomam Ritalina

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Em um novo estudo, pesquisadores descobriram que quando as crianças estavam tomando Ritalina (metilfenidato), seu risco de depressão aumentava. Uma vez que pararam de tomar a droga, o risco de depressão voltou aos níveis normais.

“Nossas descobertas sugerem que o uso do medicamento metilfenidato em jovens com TDAH está associado temporariamente com o surgimento da depressão. Com o aumento do uso generalizado de medicamentos para TDAH, os benefícios do metilfenidato devem ser cuidadosamente avaliados contra o risco potencial de depressão em crianças e adolescentes”, escrevem os pesquisadores.

Os pesquisadores foram Yunhye Oh e Yoo-Sook Joung no Centro Nacional de Saúde Mental da Coréia do Sul, e Jinseob Kim na Universidade Nacional de Seul, Coréia do Sul. Suas análises incluíram os registros médicos de toda a população da Coréia do Sul.

Os participantes incluíram 2.330 jovens (de 6 a 19 anos) que receberam um diagnóstico de TDAH e prescrição de metilfenidato entre julho e dezembro de 2007. Eles incluíram dados sobre medicação para TDAH, diagnósticos de depressão e medicação antidepressiva. Os pesquisadores utilizaram um projeto de caso-controle para estabelecer quando, em relação à prescrição de estimulantes, o risco de depressão aumentava.

Eles descobriram que o risco de depressão aumentava primeiramente pouco antes da prescrição de Ritalina às crianças, indicando possivelmente as mesmas lutas em casa e na escola que levaram a um diagnóstico de TDAH. Nos 90 dias anteriores à prescrição de Ritalina, as crianças tinham cerca de 12 vezes mais chances de receber um diagnóstico de depressão do que seus pares “saudáveis”.

As crianças receberam então Ritalina, presumivelmente com a esperança de que ela controlaria os sintomas de TDAH, e assim melhoraria a qualidade de vida geral das crianças.

Mas a prescrição parece ter tido o efeito oposto. Enquanto tomavam a droga estimulante, as crianças corriam o risco de depressão 18 vezes maior do que os seus pares “saudáveis”.

No entanto, isto ainda poderia ser impulsionado pelo risco de depressão subjacente que continuaria a aumentar, apesar da droga. Entretanto, uma vez que as crianças pararam de tomar Ritalina, seu risco de obter um diagnóstico de depressão caiu para um nível igual ao de seus pares “saudáveis”.

Os pesquisadores descobriram que uma vez que as crianças não estavam mais tomando o medicamento estimulante, seu risco de depressão começou a cair. Em 30-60 dias após a interrupção, eles não estavam mais sujeitas a depressão do que seus colegas que não tinham problemas de saúde mental.

Embora seus resultados ainda pudessem teoricamente ser impulsionados por fatores confusos, o sólido case-control e a descoberta de que o risco de depressão caiu após a interrupção da droga tornam mais provável uma relação causal entre a Ritalina e a depressão.

Embora estudos anteriores tenham encontrado evidências mistas, com alguns não encontrando nenhuma conexão, mas outros apoiando este efeito, é possível que o desenho mais forte do estudo atual tenha sido mais capaz de capturar o quadro completo. Estudos com animais também apoiam esta descoberta da depressão induzida pela Ritalina, como em um estudo que concluiu que roedores expostos à Ritalina “eram significativamente menos sensíveis a recompensas naturais como açúcar, atividade induzida pela novidade e sexo“.

O estudo mais conceituado e altamente citado sobre TDAH na infância, o estudo MTA da NIMH, encontrou resultados iniciais promissores, que foram amplamente publicados na grande mídia e levaram à crença de que os estimulantes eram extremamente eficazes para o tratamento da TDAH. Entretanto, os resultados posteriores do estudo MTA foram desanimadores: o acompanhamento de três anos constatou que aqueles que receberam tratamento não estavam em melhor situação do que aqueles que não receberam, enquanto o acompanhamento de seis a oito anos constatou que aqueles que receberam tratamento apresentaram resultados piores do que o grupo de controle em 91% das medidas que testaram.

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Oh, Y., Joung, Y. S., & Kim, J. (2022). Association between attention deficit hyperactivity disorder medication and depression: A 10-year follow-up self-controlled case study. Clinical Psychopharmacology and Neuroscience, 20(2), 320-329. (Full text)

É necessária uma psiquiatria diferente para descontinuar os antidepressivos

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Um médico da atenção primária me procurou para obter o meu conselho. Ele havia se auto-prescrito paroxetina 20 mg/dia, em um momento em que estava passando por um divórcio doloroso. Ele relatou seu caso da seguinte forma:

“Eu tinha visto muitos pacientes meus receberem muitos benefícios deste medicamento e pensei que eu poderia ser um desses. Isso realmente me ajudou: Senti algum alívio e após algumas semanas passei a experimentar um sono tranquilo. Mas meus problemas com minha ex-mulher não tinham acabado e tentar salvar nossos filhos de nossa luta não foi fácil. Portanto, eu achei melhor continuar tomando paroxetina, como uma espécie de proteção.

“Depois de alguns anos, as coisas estavam um pouco mais claras e eu decidi que era hora de parar. Eu sabia que tinha que fazer isso gradualmente, então dividi o comprimido de 20 mg. Foi um pesadelo: um surto de sintomas somáticos com perda total de concentração (eu não podia nem mesmo trabalhar como médico). Voltei à dose original e as coisas melhoraram. Lembrei-me que isto também aconteceu com alguns pacientes meus; eu havia procurado conselhos a alguns psiquiatras que conhecia para alguns pacientes que tinham problemas similares aos meus, e eles apenas me sugeriram que esses pacientes simplesmente tivessem que voltar aos medicamentos que tomavam antes.

“Então eu pensei que talvez eu não estivesse pronto e esperei alguns meses. Mas o mesmo aconteceu novamente. Voltei a verificar com um dos dois psiquiatras e ela me disse: “Você está simplesmente tendo uma recaída. Continue a tomar a sua pastilha”. Eu sabia que não era verdade: recaída de quê? Eu nunca tinha experimentado o tipo de depressão que eu havia visto em meus pacientes. Percebi que estava em uma terra de ninguém, que tinha uma doença, mas que não tinha para onde ir. Como médico da atenção primária, eu me tornei bastante bom em encaminhar os meus pacientes a cuidados especializados adequados. Mas eu não podia fazer nada para mim mesmo”.

Este caso, que descrevi em meu último livro, exemplifica um grande problema de saúde mundial que é atualmente ignorado. Uma em cada seis pessoas nos Estados Unidos está tomando drogas psicotrópicas. Em 80% dos casos, é para uso a longo prazo e envolve predominantemente antidepressivos da nova geração, tais como ISRS (por exemplo, fluoxetina) e ISRN (por exemplo, venlafaxina). Quando os pacientes querem tirar esses medicamentos e/ou seus médicos decidem que é hora de parar, surgem problemas substanciais. Cerca de um paciente em cada duas experiências apresenta sintomas de abstinência, que não necessariamente desaparecem após alguns dias ou semanas e que podem ser graves e ameaçadores. Os pacientes, como o médico da atenção primária, não sabem o que fazer.

Espera-se que os especialistas ou centros especializados tenham melhores ferramentas para avaliação e tratamento. Mas também, os psiquiatras muitas vezes não sabem o que fazer, devido à negação maciça do problema por parte das sociedades científicas e os periódicos científicos (“os medicamentos antidepressivos não causam dependência; é apenas uma questão de afunilá-los lentamente; o que os pacientes experimentam são inofensivas síndromes de descontinuação”). Grandes interesses financeiros (empurrando as prescrições para as doses mais altas e as administrações mais prolongadas) estão por trás dessa negação.

O que muitos psiquiatras aprenderam foi a fazer um diagnóstico de acordo com o DSM e a escrever de forma automática uma ou mais prescrições. Um problema é que o DSM se aplica a pacientes que já não existem mais (sujeitos livres de drogas): a maioria dos pacientes que veem à observação clínica hoje já estão tomando drogas psicotrópicas e esta ocorrência é susceptível de afetar a apresentação e o resultado dos sintomas. No entanto, a perspectiva iatrogênica é mais do que simplesmente ignorada: ela é proibida.

Ajudar os pacientes a superar as suas dificuldades requer excelentes habilidades no diagnóstico diferencial; conhecimento profundo não apenas dos benefícios potenciais dos tratamentos (os medicamentos antidepressivos permanecem medicamentos que salvam vidas em depressão grave), mas também de suas vulnerabilidades; e consciência dos avanços em psicoterapia que permitem a terapia do eu. Também precisamos de psiquiatras que sejam capazes de entender que cada caso individual pode ser diferente (um mesmo tamanho não cabe em todos) e de usar o julgamento clínico para uma melhor compreensão dos fenômenos.

Reações de abstinência são apenas parte do quadro que pode ser desencadeada pelo uso de medicamentos antidepressivos (a ponta do iceberg). Outros problemas podem estar associados: efeitos colaterais médicos muito graves (por exemplo, distúrbios gástricos e hipertensão), perda de eficácia durante a manutenção que não responde ao aumento da dose, efeitos paradoxais (apatia profunda), mudança para um estado maníaco em pacientes sem histórico de transtorno bipolar, resistência (um medicamento que era útil no passado não é mais eficaz após um intervalo), refratariedade ao tratamento. Todas essas manifestações, que são expressão de um estado de toxicidade comportamental que pode ocorrer com o uso de antidepressivos, são sutis e exigiriam uma perspectiva unificadora.

Nos anos setenta, quando eu era estudante de medicina na Itália, tive a oportunidade de passar um verão eletivo em Rochester, NY, vendo pacientes com George Engel e John Romano. Eles treinaram gerações de psiquiatras que teriam sido capazes de lidar com os principais problemas de saúde ligados ao uso de antidepressivos. Mas para onde foram todos esses psiquiatras? Precisamos renovar a abordagem psicossomática de Engel e Romano.

O progresso da neurociência nas últimas duas décadas nos levou muitas vezes a acreditar que os problemas clínicos na psiquiatria seriam provavelmente resolvidos por esta abordagem. Tais esperanças são compreensíveis em termos de propaganda maciça operada pela Big Pharma. Um número crescente de psiquiatras está se perguntando, no entanto, por que as curas e os insights clínicos que a neurociência prometeu não aconteceram.

É evidente que os problemas relacionados ao uso de antidepressivos não podem ser resolvidos por uma psiquiatria excessivamente simplificadora, submetida a uma lavagem cerebral pela indústria farmacêutica. Uma psiquiatria diferente é necessária para resolver os problemas e dificuldades relacionados aos medicamentos antidepressivos. Esta é a psiquiatria que tentei descrever em um manifesto no último capítulo do meu livro e que foi disponibilizado pela Oxford University Press usando este link: https://oxfordmedicine.com/view/10.1093/med/9780192896643.001.0001/med-9780192896643-chapter-13.

Os problemas de saúde associados ao uso de antidepressivos precisam se tornar uma prioridade para a pesquisa e o financiamento. Sabemos tão pouco sobre uma série de questões. Faltam-nos investigações neurobiológicas que possam esclarecer por que, com o mesmo tratamento durante o mesmo período de tempo, certos pacientes desenvolvem síndromes de abstinência e outros não. Faltam-nos investigações de longo prazo explorando a ocorrência, características clínicas e correlatos neurobiológicos de transtornos persistentes pós-retirada e grandes estudos que possam esclarecer as relações entre síndromes de abstinência e outras manifestações de toxicidade comportamental (por exemplo, refratariedade, perda de efeitos).

A hipótese de que o afilamento muito gradual pode produzir uma menor probabilidade de fenômenos de abstinência tem muito poucos dados disponíveis para apoiá-la e contraria a desvantagem de prolongar a exposição tóxica aos antidepressivos. Há a necessidade premente de ensaios controlados aleatórios comparando diferentes métodos de gerenciamento de síndromes de abstinência, incluindo estratégias psicoterapêuticas.

Como contribuintes, não podemos mais tolerar que o dinheiro público seja desperdiçado em estradas que não levam a lugar algum e projetos que nunca terão impacto na prática clínica e no sofrimento. É hora de dizermos aos formuladores de políticas e líderes de opinião pública: ” Seu tempo acabou. Temos sérios problemas e precisamos de uma psiquiatria diferente”.

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Mad in Brasil publica blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

[trad. e edição Fernando Freitas]

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