1º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Robert Whitaker

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Nota do editor: Nessa série, estamos relembrando todas as mesas do Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas” realizadas entre 2017-2023. 

 

Robert Whitaker é um jornalista americano, criador do site Mad in America e autor de vários livros, entre eles o livro Anatomia de uma Epidemia, publicado pela editora Fiocruz.

A fala de Robert foi realizada durante a primeira edição do Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, danos e alternativas”, no ano de 2017, no auditório da ENSP, na Fiocruz. Disponível no Youtube da VídeoSaúde Distribuidora da Fiocruz.

 

Mesa: A Epidemia das Drogas Psiquiátricas – Robert Whitaker

Holanda Autoriza Eutanásia em Mulher de 29 anos por Sofrimento Mental

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No dia 18 de maio de 2024, o site O Globo realizou uma publicação sobre a história da  holandesa Zoraya ter Beek que optou pela eutanásia. A entrevista aponta os fortes impactos associados a saúde mental, impactos esses que percorrem desde a infância de Zoraya, quando ela foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno da Personalidade (não sendo especificado durante a entrevista qual era), depressão crônica, ansiedade e trauma. Mesmo sendo realizado tratamentos ao longo de 10 anos, ela continuou “sentindo-se suicida”.

Com o passar dos anos foram realizados inúmeros tratamentos através de medicamentos, tratamentos intensivos, incluindo psicoterapia, e mais de 30 sessões de eletroconvulsoterapia – ECT (tratamento que é feito por meio de sessões nas quais são colocados eletrodos na cabeça do paciente de acordo com as necessidades de seu tratamento).

A história de Zoraya ganhou mais visibilidade após ser publicada pela rede The Free Press, em abril, aonde ela relata que decidiu pela morte assistida após seu psiquiatra afirmar que havia tentado de tudo, mas que não havia mais nada que pudessem fazer por ela.

“Na terapia, aprendi muito sobre mim mesma e sobre os mecanismos de enfrentamento, mas isso não resolveu os problemas principais. No início do tratamento, você começa esperançoso. Achei que iria melhorar. Mas, quanto mais o tratamento dura, a esperança começa a se perder– Refletiu.

Depois de 10 anos de tratamento, ela afirmou que “não sobrou nada” em que pudesse apostar. logo após o fim das sessões de eletroconvulsoterapia (ECT) que ocorreu em agosto de 2020, foi tomada a decisão. Ter Beek teve inicialmente esperança, no entanto, o tratamento duro faz a esperança se dissipar, passando assim por um período “aceitando” que não havia mais opções antes de solicitar a morte assistida ao governo em dezembro daquele ano.

‘Nunca hesitei’

A Holanda foi o primeiro país do mundo a legalizar a eutanásia ativa que na prática é quando se administra diretamente uma substância letal na pessoa que deseja morrer e geralmente é realizada por um médico, já o suicídio assistido é quando a própria pessoa auto administra uma dose letal de um fármaco, prescrita por um médico. Ambas as práticas possuem considerações éticas, legais e culturais que varia entre países e jurisdições, tanto que algumas regiões permitem uma prática ou ambas sob certas condições, enquanto outras proíbem completamente.

Na Holanda uma pessoa pode solicitar a eutanásia quando “passa por um sofrimento insuportável, sem perspectiva de melhora”, pontuando que o pedido deve ser feito “com seriedade e plena convicção”. O texto prevê que um médico e um especialista independente determinem que o paciente sobre insuportavelmente e sem esperança de melhora.

Crianças a partir dos 12 anos que sofrem por conta de doenças graves e incuráveis, cujos cuidados paliativos não são mais suficientes para aliviar o sofrimento, é autorizada a eutanásia por meio da legislação, permitindo mortes misericordiosas para jovens menores que sofrem “insuportavelmente e sem esperança”.

Todo o procedimento é realizado por diversas etapas, entre elas estão: uma longa lista de espera para a avaliação do caso, ser avaliado por uma equipe, ter uma segunda opinião sobre sua elegibilidade, e mesmo após a decisão essa mesma decisão será revisada por outro médico independente. Sendo um processo “longo e complicado” podendo levar anos, e mesmo sendo legal ainda há muitos médicos que não estão dispostos a se envolverem com a morte assistida de pessoas com sofrimento mental.

Ter Beek recebia uma grande quantidade de mensagens tanto negativas quanto mensagens pedindo para que ela não finalizasse com o processo, chegando ao ponto de ser necessário a desativação das suas redes sociais. Após conhecer a sua equipe médica, sua morte assistida deve ocorrer dentro de algumas semanas (data não revelada).

Como que para anunciar sua desesperança, ter Beek tem uma tatuagem de uma “árvore da vida” na parte superior do braço esquerdo, mas “ao contrário”.

“Enquanto a árvore da vida representa crescimento e novos começos”, ela enviou uma mensagem, “minha árvore é o oposto. Ela está perdendo suas folhas, está morrendo. E quando a árvore morreu, o pássaro voou para fora dela. Não vejo isso como se minha alma estivesse indo embora, mas sim como se eu estivesse me libertando da vida.” – Zoraya ter Beek

Leia a matéria completa: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/05/17/holanda-autoriza-eutanasia-em-mulher-de-29-anos-por-sofrimento-mental-sera-como-adormecer.ghtml

 

Explorando os Efeitos a Longo Prazo dos Medicamentos para TDAH no Risco de Doenças Cardiovasculares

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante.

No início do ano, um estudo revelador foi publicado no JAMA Psychiatry, abordando os efeitos a longo prazo dos medicamentos para Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no risco de doenças cardiovasculares. As descobertas desta pesquisa são de grande relevância, especialmente no atual contexto de sobrediagnóstico e medicalização, em que o recurso aos medicamentos são a principal via de tratamento escolhida e a prevalência das prescrições (e do uso não prescrito) de estimulantes e dos não estimulantes segue em ascensão.

Vale ressaltar que o JAMA Psychiatry é uma publicação renomada e influente no campo da Psiquiatria e da Neurociência, conhecida por sua rigorosa seleção de pesquisas e artigos. Como parte da família de periódicos do JAMA (Journal of the American Medical Association), fundado em 1883, o JAMA Psychiatry compartilha do prestígio e da tradição que caracterizam a marca JAMA.

O artigo intitulado Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Medications and Long-Term Risk of Cardiovascular Diseases (em tradução livre: Medicamentos para Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade e o Risco a Longo Prazo de Doenças Cardiovasculares) resulta de uma pesquisa liderada por um time internacional de pesquisadores. Eles utilizaram extensas bases de dados suecas do registro nacional de saúde para acompanhar pessoas diagnosticadas com TDAH ou que iniciaram tratamento medicamentoso entre os anos de 2007 e 2020. Os medicamentos utilizados incluíam todos aqueles aprovados para o TDAH na Suécia durante o período do estudo e abrangiam tanto estimulantes (metilfenidato, anfetamina, dexamfetamina, lisdexamfetamina) quanto não estimulantes (atomoxetina e guanfacina).

A análise buscou entender se o uso dessas medicações está associado ao aumento no risco de desenvolver problemas cardiovasculares ao longo do tempo. Para examinar essa hipótese, foi realizado um estudo de caso-controle, abordagem de pesquisa que compara dois grupos de pessoas: aqueles que têm uma condição específica (os casos) e aqueles que não têm (os controles). Então, foram selecionadas e acompanhadas ao longo dos anos pessoas diagnosticadas com TDAH ou que começaram a usar medicamentos para TDAH. Durante o acompanhamento, quando alguém desenvolvia uma doença cardiovascular, era considerado um caso.

Para cada caso, os pesquisadores escolhiam até cinco controles, ou seja, pessoas sem doenças cardiovasculares, mas que eram semelhantes em idade, sexo e período de acompanhamento. Isso garantiu que casos e controles tivessem a mesma duração de
acompanhamento desde a linha de base (ou seja, entrada na coorte) até a data do índice
(data do surgimento de uma doença cardiovascular). Além disso, os períodos de uso dos
medicamentos para TDAH foram categorizados em 6 faixas de duração, como 0 a ≤1 ano,
1 a ≤2 anos, 2 a ≤3 anos, 3 a ≤5 anos, e mais de 5 anos. Essas faixas de tempo foram
usadas para avaliar a associação entre a duração do uso de medicamentos para TDAH e
o risco de incidentes cardiovasculares.

No estudo, o fator de interesse investigado foi o período total de uso de medicamentos para TDAH pelos participantes. Esse período, chamado de ‘duração cumulativa’, corresponde à soma de todos os dias em que os pacientes estiveram sob tratamento com esses medicamentos, desde o início do acompanhamento (linha de base) até três meses antes da data de índice. A decisão de excluir os últimos três meses antes da data do índice teve o objetivo de minimizar o risco de que alterações na prescrição de medicamentos, feitas em resposta a sinais precoces de problemas cardíacos, pudessem distorcer os resultados.

Para analisar a relação entre o uso prolongado de medicamentos para TDAH e o risco de doenças cardiovasculares, foi utilizada a técnica de regressão logística condicional. Trata-se de um tipo de análise estatística que permite estimar as Razões de Chances (Odds Ratios), ajustando por diversas variáveis que poderiam influenciar os resultados (como idade, sexo, tempo de calendário e histórico de comorbidades).

Em conclusão, nesse estudo com 278.027 pessoas diagnosticadas com TDAH, de idades entre 6 e 64 anos, descobriu-se que 10.388 delas desenvolveram doenças cardiovasculares (DCV). Essas pessoas foram comparadas com outras 51.672 pessoas que não tinham problemas cardiovasculares. Os tipos mais comuns de DCV foram hipertensão (4.210 casos – 40,5%) e arritmias (1.310 casos – 12,6%). Ademais, o metilfenidato foi o tipo de medicamento mais dispensado, seguido pela atomoxetina e lisdexanfetamina.

O estudo também demostrou que as pessoas em uso de medicamentos para TDAH
por mais tempo tinham maior chance de ter problemas cardiovasculares, principalmente
hipertensão e doença arterial. Nesse sentido, ao longo de todo o acompanhamento, para
cada ano adicional de uso de medicamentos para TDAH, o risco de DCV aumentava em
4%, com um risco ainda maior nos primeiros três anos de uso, chegando a 8%. Pessoas que tomaram medicamentos para TDAH por 3 a 5 anos ou mais tiveram um risco
significativamente maior de desenvolver hipertensão e doença arterial em comparação
com quem não tomou esses medicamentos.

Especificamente, o risco de hipertensão aumentou entre 72% e 80%, e o risco de doença arterial aumentou entre 49% e 65%. Logo, o uso mais longo dos medicamentos
estava ligado a um maior risco. Essa tendência foi observada tanto em crianças e jovens
menores de 25 anos quanto com adultos com 25 anos ou mais, e foi consistente entre
homens e mulheres. Além disso, o estudo identificou que o risco de DCV aumentava com
doses mais altas dos medicamentos. O uso prolongado de metilfenidato e lisdexanfetamina também foi associado a um maior risco de doenças cardiovasculares em geral. No entanto, o aumento do risco com o uso de atomoxetina foi notado apenas no primeiro ano.

Assim, a pesquisa de Zhang et al. (2024) conduzida com base em dados de sujeitos
suecos ao longo de 14 anos ressalta a necessidade de avaliar com cautela o tratamento
medicamentoso para o TDAH a longo prazo, pois isso está associado a um risco
aumentado de doenças cardiovasculares.

É importante ressaltar que a pesquisa científica tem produzido resultados mistos em relação ao assunto aqui discutido. Há estudos que afirmam não encontrar uma associação significativa entre o uso de medicamentos para TDAH e um aumento no risco de DCV. Inclusive, alguns deles sugerem uma ligação de base causal absolutamente biológica (ancorada em explicações reducionistas) entre TDAH e DCV (AHMAD BANDAY E LOKHANDWALA, 2006; COROMINAS et al., 2012; HOEKSTRA, 2019).

Apesar dessa confusão, cresce o número de estudos que encontram uma associação
positiva significativa entre o uso de medicamentos para TDAH e o desenvolvimento de
DCV, a exemplo de Hennissen et al. (2017), Liu et al. (2019), Zhang et al. (2022;
2024). Eles assinalam a necessidade de mais pesquisas sobre este assunto pouco estudado
– o que constitui uma limitação importante, pois pessoas com diagnósticos psiquiátricos
em geral são tratadas prioritariamente com psicofármacos – e, no caso específico do diagnóstico de TDAH, a terapia farmacológica é recomendada como tratamento de primeira linha em muitos países.

Os medicamentos para TDAH são amplamente utilizados para ‘melhoramentos’ (desempenho cognitivo, concentração, atenção, controle de comportamento impulsivo)
por parte de pessoas com ou sem diagnostico de TDAH. Cresce cada vez mais o uso não
prescrito para melhorar o desempenho acadêmico, laboral ou para recreação (BRANT E CARVALHO, 2012; CERQUEIRA et al., 2021; SCHUINDT et al., 2021). A lista de medicamentos mais comuns incluem estimulantes, cujo princípio ativo é o metilfenidato
(como a Ritalina e o Concerta) e anfetaminas (como o Venvanse e o Adderall), além dos
medicamentos não estimulantes cuja base é a atomoxetina (como o Atentah) e guanfacina
(Intuniv).

A prescrição destes medicamentos levanta questões preocupantes relativas ao sobrediagnóstico e medicalização da atenção e do comportamento. Isso é alarmante em
perspectiva geral e especialmente arriscado em populações infantis, cujo processo de desenvolvimento pode ser nocivamente e irremediavelmente influenciado pelo
tratamento farmacológico prolongado (ESPADAS TEJERINA, 2018; MAURILIO et al.,
2023).

A pesquisa de Zhang et al. (2024) também sugere que a prescrição de medicamentos para TDAH deve ser acompanhada de monitoramento cardiovascular consistente. Isso está de acordo com as diretrizes clínicas, que recomendam a avaliação da saúde cardiovascular antes de iniciar o tratamento com medicamentos para TDAH, especialmente em pacientes com fatores de risco para doenças cardiovasculares. Além disso, o monitoramento contínuo da pressão arterial e da frequência cardíaca é recomendado durante o tratamento. Também no Brasil essas orientações estão presentes no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (BRASIL, 2022). Tais recomendações corroboram a pressuposição de potencial risco de doenças cardiovasculares (DCV) associado ao uso prolongado desses medicamentos. Ainda, todas as bulas dos medicamentos para TDAH alertam sobre possíveis reações adversas cardiovasculares.

É preciso notar que, na prática, quem recebe tratamento farmacológico para TDAH não costuma receber acompanhamento cardiológico, tampouco recebe informações transparentes sobre os riscos cardiovasculares associados à terapêutica medicamentosa antes de ser submetido a elas – conforme recomendam as diretrizes. A realidade é semelhante nos tratamentos psicofarmacológicos direcionados a outros diagnósticos psiquiátricos. Ficam evidentes as lacunas no tratamento e na comunicação.

O estudo de Zhang et al. (2024) demonstra a importância de um olhar crítico para a medicalização globalmente presente. A ênfase na farmacoterapia, além de trazer problemas significativos em relação à segurança cardiovascular, ofusca as opções de tratamento não farmacológicas disponíveis para o cuidado da saúde mental, como o suporte psicossocial, mudanças ambientais e relacionais, atenção psicológica, mudanças de estilo de vida, entre outros. Desse modo, os achados do artigo trazem à tona a importância da conscientização sobre os problemas do tratamento medicamentoso e a iatrogenia daí resultante. Pesquisas sobre os efeitos nocivos dos medicamentos psicofármacos são fundamentais para melhor esclarecimento e resolução de problemas de Saúde Pública, tal como o discutido neste texto.

 

REFERÊNCIAS:

AHMAD BANDAY, A.; LOKHANDWALA, M. F. Defective renal dopamine D1 receptor function contributes to hyperinsulinemia-mediated hypertension. Clinical & Experimental Hypertension, 28(8), 695–705, 2006. BRANT, L. C.; CARVALHO, T. R. F.. Metilfenidato: medicamento gadget da contemporaneidade. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 16, n. 42, p. 623–636, jul. 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção especializada a saúde. Portaria conjunta no14, de 29 de julho de 2022. Aprova o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Brasília, 2022.

ESPADAS TEJERINA, M. et al. Efectos secundarios del metilfenidato en población
infantil y juvenil. Rev Neurol, 66:157, 2018.

HENNISSEN, L., BAKKER, M. J., BANASCHEWSKI, T. et al. Efeitos cardiovasculares de medicamentos estimulantes e não estimulantes para crianças e adolescentes com TDAH: uma revisão sistemática e meta-análise de ensaios de metilfenidato, anfetaminas e atomoxetina. Drogas do SNC 31 , 199–215, 2017.

HOEKSTRA, P. J. Attention-deficit/hyperactivity disorder: Is there a connection with the immune system? European Child & Adolescent Psychiatry, 28(5), 601–602, 2019.

COROMINAS, M. et al. Cortisol responses in children and adults with attention deficit hyperactivity disorder (ADHD): A possible marker of inhibition deficits. ADHD Attention Deficit and Hyperactivity Disorders, 4(2), 63–75, 2012.

LIU, H.; FENG, W.; ZHANG, D. Association of ADHD medications with the risk of cardiovascular diseases: A meta-analysis. European Child and Adolescent Psychiatry, 28(10), 1283–1293, 2019.

ZHANG, L.; YAO, H. et al. Risk of cardiovascular diseases associated with medications used in attention-deficit/hyperactivity disorder: A systematic review and meta-analysis. JAMA Network Open, 5(11), 2022.

ZHANG, L.; LI, L.; ANDELL, P. et al. Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Medications and Long-Term Risk of Cardiovascular Diseases. JAMA Psychiatry. 81(2):178–187, 2024.

SCHUINDT, A.; MENEZES, VitóriaC..; ABREU, C. R. de C. As consequências do uso da ritalina sem prescrição médica . Revista Coleta Científica , Brasil, Brasília, v. 5, n. 10, p. 28–39, 2021.

MAURILIO, M. M.; CAMARGO, R. W. de .; BITENCOURT, R. M. de. Uso do metilfenidato em crianças e adolescentes com TDAH: uma revisão sobre riscos e benefícios. Revista Neurociências, [S. l.], v. 31, p. 1–20, 2023.

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Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Opioides: Como a Dor Enriqueceu a Big Pharma

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Recentemente o livro O triunfo da Dúvida, de David Michaels ganhou destaque através do site outras palavras, o lançamento ocorreu no dia 5 de março, pela editora Elefante. O Livro aborda apontamentos referenciais e críticos em relação ao marketing de corporações nos EUA, a ciência falsa e médicos gananciosos que estão impulsionando uma epidemia de drogas sem precedentes.

David Michaels produziu um livro de extrema importância e relevância que investiga a fundo, com comprovação consistente, as ações de corporações gigantes em busca de limpar a própria imagem e maximizar os lucros – deixando um rastro de destruição na saúde das populações.

“(…). Uma investigação do Los Angeles Times revelou que os próprios estudos da Purdue descobriram que os comprimidos de OxyContin liberam aproximadamente 40% dos ingredientes ativos de forma imediata; depois disso, a liberação é lenta. Como resultado, o efeito do medicamento se esgota em menos de doze horas para a maioria dos pacientes, deixando-os desesperados por mais. Para alguns, o efeito acaba em menos de seis horas. O resultado é um duplo golpe: a dor subjacente retorna, e o paciente entra em uma abstinência aguda do medicamento. A soma de tudo isso obriga o indivíduo a procurar por mais medicação, muitas vezes por uma dose maior. É claro que a Purdue estava ciente, mas continuou a vender o medicamento alegando sua eficácia por doze horas, impulsionando o uso e o vício — além dos lucros. (…)”

“(…). As evidências são simplesmente avassaladoras: fabricantes de opioides suprimiram alguns estudos, deturparam e valorizaram outros, alegaram que suas drogas não eram viciantes nem levavam facilmente ao uso abusivo e afirmaram que a abordagem mais eficaz para lidar com a dor do paciente era aumentar continuamente a dose da substância. Mas não se preocupe! Essas drogas não são particularmente causadoras de dependência. Você não acredita em nós? Basta perguntar à nossa campanha de relações públicas. Como demonstraram outras indústrias, com origens no auge do tabaco, a campanha de incerteza e desinformação sobre os impactos nocivos de determinado produto precisa unir ciência questionável a uma ampla pressão de relações públicas multissetorial. (…)”

“É muito fácil argumentar que tais medicamentos não são viciantes quando se escolhe a dedo os estudos e depois se interpreta mal os resultados. ”

Trechos retirados do capitulo 6 – O uso de opioides, disponibilizado pelo site, demonstra como essa epidemia está enraizada no abuso da ciência que os fabricantes dessas drogas praticam.

Para ter acesso ao capitulo completo acesse ao site: https://outraspalavras.net/outrasaude/opioides-como-a-dor-enriqueceu-a-big-pharma/

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Quatro)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute como as pílulas para a depressão não funcionam nas crianças e aumentam o risco de suicídio. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

As pílulas para depressão não funcionam em crianças e dobram o risco de suicídio delas

Um dos manuais didáticos mencionou uma meta-análise de 34 ensaios randomizados de pílulas para depressão administradas em crianças e adolescentes e afirmou que a fluoxetina foi a única droga que apresentou um efeito significativo e também a maior tolerabilidade [19:215].

Tais alegações pertencem à seção de ficção científica. É praticamente impossível para uma droga ser tanto mais eficaz quanto menos prejudicial do que drogas semelhantes da mesma classe. Embora este manual didático tenha referências, não havia nenhuma para essa alegação implausível, mas acredito que a fonte só possa ser a meta-análise em rede de 2016 de Andrea Cipriani e colegas [297].

Para aumentar o poder das análises, os autores incluíram tanto ensaios controlados por placebo quanto comparações diretas, mas não foram suficientemente cuidadosos. Eles usaram principalmente relatórios de ensaios publicados (apenas 7 dos 34 ensaios incluídos não foram publicados), que são substancialmente tendenciosos [2,7,8].

Como exemplo, o estatístico Hans Melander e colegas, trabalhando para a agência de medicamentos da Suécia, mostraram que os ensaios controlados por placebo de ISRSs eram mais frequentemente publicados quando os resultados eram estatisticamente significativos, e que muitas publicações ignoravam os resultados das análises por intenção de tratar e relatavam as análises por protocolo mais favoráveis, onde apenas os pacientes que não abandonam o estudo são retidos na análise [314]. Isso criou uma concepção errônea sobre quão eficazes são as drogas [6:137]. Além disso, faltavam referências cruzadas para várias publicações do mesmo ensaio e, às vezes, não tinham nomes de autores em comum e, portanto, pareciam ensaios separados.

Como outro exemplo, o psiquiatra Erick Turner, que trabalhou para a FDA, e colegas notaram que 31% dos ensaios realizados como parte de um pedido de licença para ISRSs e drogas relacionadas, vistos pela FDA como negativos ou questionáveis, foram publicados como positivos, e o tamanho do efeito nos artigos publicados foi 32% maior do que nas revisões da FDA de todos os ensaios [315].

Fluoxetina é insegura e ineficaz, e os ensaios são manipulados

A fluoxetina foi aprovada nos Estados Unidos em 2002 para depressão em crianças e adolescentes com base em dois ensaios controlados por placebo, X065 e HCJE, com 96 e 219 participantes, respectivamente, embora o revisor estatístico da FDA tenha observado que não houve um benefício estatisticamente significativo para a droga no desfecho primário em nenhum dos ensaios [316]. Como ambos os ensaios pareciam ter sido relatados incorretamente na literatura, David Healy e eu decidimos restaurá-los de acordo com a iniciativa RIAT (Restoring Invisible and Abandoned Trials, que em tradução livre para o português seria Restaurando Ensaios Invisíveis e Abandonados)[317].

Revisamos as 3557 páginas de relatórios de estudos clínicos que a Eli Lilly havia enviado aos reguladores e encontramos sérias manipulações com os dados, tanto nos relatórios quanto nas publicações [279]. Informações essenciais estavam faltando; havia informações contraditórias, inclusive relacionadas a tentativas de suicídio; havia inconsistências numéricas inexplicadas, que incluíam uma impossibilidade matemática; havia exclusões inexplicadas de pacientes e dados, e análises eram chamadas de intenção de tratar mesmo que alguns pacientes com dados fossem excluídos; novos desfechos surgiram que não estavam previamente especificados no protocolo do ensaio; escalas de avaliação e análises foram alteradas; os protocolos do ensaio foram violados de outras maneiras; e resultados que eram inconsistentes com a conclusão de que a fluoxetina é segura e eficaz foram ignorados ou explicados de maneira perturbadora.

Os desfechos de eficácia estavam fortemente enviesados a favor da fluoxetina por meio de descontinuações diferenciais e dados ausentes no final do ensaio. No ensaio X065, 6 pacientes haviam interrompido o uso de fluoxetina e 12 de placebo após quatro semanas; no ensaio HCJE, nenhum havia abandonado o uso de fluoxetina versus 10 de placebo após duas semanas. A maioria das análises usava o método de última observação carregada para a frente (Last Observation Carried Forward – LOCF), mas a Lilly não alertou seus leitores sobre o grande viés que isso causava: mais pacientes usando o placebo do que a fluoxetina tinham pontuações elevadas de depressão carregadas para a frente.

O revisor médico da FDA observou que consideravelmente mais pacientes usando placebo do que a fluoxetina abandonaram o estudo e que o padrão era “bastante incomum” no ensaio HCJE porque havia mais abandonos no placebo do que na fluoxetina devido a eventos adversos (9 vs 5), decisão do paciente (11 vs 3) e perda de acompanhamento (7 vs 1).280 Em contraste, o ensaio X065 não teve abandonos devido a eventos adversos em placebo versus 5 em fluoxetina, e não houve perda de acompanhamento.

Como nenhum ajuste estatístico pode substituir dados ausentes de forma confiável, nos concentramos em pacientes com sintomas mínimos e aqueles que se recuperaram após oito semanas no ensaio X065 de acordo com os critérios próprios da Lilly. Não encontramos diferenças em relação ao placebo.

No ensaio HCJE, a análise da Lilly do Índice de Eficácia das Impressões Clínicas Globais, que compara os benefícios e os danos para cada paciente, também foi enganosa. Os psiquiatras usaram um índice com oito categorias para “avaliar o efeito terapêutico global em conjunto com os efeitos colaterais para cada paciente”. Eles avaliaram, para cada paciente, se a melhora na depressão superava quaisquer danos da droga em termos de interferência nas atividades diárias. Esse processo subjetivo não foi definido. A Lilly afirmou que os resultados indicavam que os efeitos terapêuticos superavam quaisquer danos porque 58% versus 40% tiveram uma pontuação favorável. No entanto, quando combinamos os dados das oito categorias subtraindo os resultados ruins dos bons resultados, o que era mais apropriado, descobrimos que 59% versus 55% tiveram um bom resultado (P = 0,58).

Apesar de todos os enviesamentos e manipulações que identificamos, os efeitos relatados pela Lilly não eram clinicamente relevantes. O efeito na Escala de Avaliação da Depressão Infantil – Revisada, que é avaliada pelos psiquiatras ou seus assistentes de pesquisa, em relação aos valores basais foi de apenas 4% em ambos os ensaios para casos observados e de 16% e 9%, respectivamente, se o método LOCF for usado. Em comparação, o efeito menos reconhecível na escala adulta equivalente, a Escala de Avaliação de Depressão de Hamilton,267 corresponde a 28% de uma mediana basal de 25,4 em 35 ensaios controlados por placebo [269].

É mais importante o que os pacientes pensam sobre o efeito do que o que os psiquiatras e a Eli Lilly pensam, e as avaliações dos pacientes não atestaram a fluoxetina como eficaz. O Inventário de Depressão Infantil (Children’s Depression Inventory – CDI) foi usado para aqueles abaixo de 13 anos de idade e o Inventário de Depressão de Beck (Beck Depression Inventory – BDI) foi usado para aqueles com 13 anos ou mais. No ensaio X065, os dados foram agrupados na publicação e P = 0,58. No ensaio HCJE, as crianças até preferiram o placebo: “Os pacientes tratados com placebo apresentaram maiores reduções numéricas na mudança em relação a linha de base para os escores totais de CDI e BDI em comparação com os pacientes tratados com fluoxetina”.

Os eventos suicidas estavam ausentes, tanto nos relatórios do estudo quanto nas publicações. O relatório publicado para o ensaio X065 não mencionou que dois pacientes usando fluoxetina tentaram suicídio, e os eventos adversos em quatro pacientes adicionais que interromperam a fluoxetina foram chamados de “mínimos”, mesmo que três deles tenham desenvolvido sintomas de mania e o quarto tenha tido uma erupção cutânea grave. O relatório interno da Lilly mostrou que 32 pacientes em uso de fluoxetina versus 18 em uso de placebo experimentaram pelo menos um evento adverso (P = 0,008), 19 versus 6 experimentaram agitação (P = 0,005), 9 versus 1 tiveram pesadelos (P = 0,02), e 7 versus 4 se sentiram tensos por dentro. Estes são danos graves. Agitação, incluindo a sensação de tensão interna, e pesadelos aumentam o risco de suicídio e violência[2,7].

Uma publicação subsequente feita pela equipe da Lilly também foi pouco confiável [318]. Ela abordava a segurança no ensaio HCJE e apresentava números diferentes de eventos suicidas do que aqueles no relatório de estudo enviado aos reguladores de medicamentos [279,318].

Para o ensaio HCJE, apenas os resultados de 9 semanas foram totalmente publicados, enquanto os resultados menos positivos de 19 semanas não foram. A Lilly falsamente concluiu que “a fluoxetina de 20 a 60 mg/dia é segura” e também que “a escalada de doses pode beneficiar alguns pacientes”, mesmo que tenham relatado apenas quatro resultados para os quais não houve diferenças significativas.

Uma meta-análise de 2007 da Lilly sobre eventos violentos, que incluiu todos os estudos controlados por placebo de fluoxetina realizados em crianças e adolescentes, também foi pouco confiável [319]. É totalmente implausível que eventos relacionados à agressão ou hostilidade tenham sido experimentados por menos crianças e adolescentes tratados com fluoxetina, 2,1%, do que por aqueles tratados com placebo, 3,1%.

Os resultados da Lilly contradiziam nossas descobertas e também a avaliação da FDA sobre a aplicação da Lilly. A FDA criou uma tabela de interrupções devido a eventos adversos em X065, HCJE e HCJW (um ensaio de transtorno obsessivo-compulsivo comparando fluoxetina 10-60 mg diários com placebo por 13 semanas em 71 versus 32 pacientes).280 Houve 14 interrupções versus 3 (P = 0,02, nosso cálculo) entre os 228 versus 190 pacientes por motivos relacionados a suicídio e violência (tentativa de suicídio, euforia, reação maníaca, agitação, hipercinesia, nervosismo, transtorno de personalidade, hostilidade e depressão). Nestes ensaios, houve três tentativas de suicídio com fluoxetina e uma com placebo, e outro paciente em fluoxetina foi hospitalizado por causa de tendências suicidas. Seis pacientes (2,6%) em uso de fluoxetina desenvolveram mania ou hipomania versus nenhum em uso de placebo (P = 0,03).280

Em nossa restauração dos ensaios X065 e HCJE, descobrimos que os precursores de tendências suicidas ou violência ocorriam mais frequentemente com a fluoxetina do que com o placebo. Para o ensaio HCJE, o número necessário para dano foi apenas 6 para eventos do sistema nervoso, 7 para danos moderados ou graves e 10 para danos graves. A fluoxetina reduziu altura e peso ao longo de 19 semanas em 1,0 cm e 1,1 kg, respectivamente, e prolongou o intervalo QT.

Lilly afirmou em seu relatório de estudo para o ensaio HCJE que “a depressão é uma doença orgânica que responde prontamente ao tratamento” e que “a introdução de tratamentos antidepressivos eficazes mais cedo na progressão do estado da doença tem o potencial de tratar e controlar efetivamente a doença, bem como melhorar o funcionamento diário e a qualidade de vida geral.”[279] Não há evidências de que qualquer uma dessas afirmações seja verdadeira [7,8] e parece que as pílulas para depressão pioram a qualidade de vida [8].(Veja abaixo)

Se extrapolado dos dados do estudo, o dano que a fluoxetina causa no crescimento em crianças corresponde a uma perda anual de altura de 2,7 cm e uma perda no aumento de peso de 3,0 kg [279]. A FDA solicitou que a Lilly realizasse um estudo de um ano sobre o efeito da fluoxetina no crescimento, mas a empresa se recusou a fazê-lo [280]. Não sabemos se a fluoxetina também tem efeitos deletérios no cérebro em desenvolvimento, mas dado o que sabemos sobre substâncias psicoativas, incluindo o álcool, isso é provável.

Com base em nossa reanálise dos dois ensaios fundamentais, concluímos que a fluoxetina é insegura e ineficaz [279]. É uma droga horrível.

Um manual descreveu as seguintes prioridades de tratamento para crianças com transtornos afetivos: 1) psicoeducação e apoio; 2) terapia cognitivo-comportamental; 3) medicamentos [19:214]. No entanto, também afirmou que a terapia de primeira linha em casos de depressão grave é uma combinação de fluoxetina e terapia cognitivo-comportamental e que, para pensamentos suicidas pronunciados, a internação hospitalar deve ser considerada devido ao risco de piorar os pensamentos e planos suicidas e à diminuição da inibição psicomotora causada pelo aumento da dose da droga.

É ilógico que um aumento na dose seja recomendado em crianças que estão com tendências suicidas quando os autores reconhecem que isso aumenta o risco de suicídio e quando sabemos que as pílulas nem sequer têm um efeito benéfico sobre a depressão.

Isso é uma má prática médica, mas a falta de lógica é ubíqua. Na Nova Zelândia [8], o regulador de medicamentos não aprovou o uso de fluoxetina em pessoas com menos de 18 anos de idade. No entanto, isso não impediu o uso de pílulas para depressão, que aumentou 78% entre 2008 e 2016 [320], e um relatório da UNICEF de 2017 mostrou que a Nova Zelândia tinha a maior taxa de suicídio do mundo entre adolescentes de 15 a 19 anos, duas vezes maior do que na Suécia e quatro vezes maior do que na Dinamarca [321].

Visitei John Crawshaw, Diretor de Saúde Mental, Psiquiatra-Chefe e Principal Consultor do Ministro da Saúde da Nova Zelândia, em fevereiro de 2018, e pedi a ele para tornar ilegal o uso dessas drogas em crianças para prevenir alguns dos muitos suicídios [8]. Ele respondeu que algumas crianças estavam tão gravemente deprimidas que as pílulas para depressão deveriam ser tentadas. Quando perguntei qual era o argumento para empurrar algumas das crianças mais deprimidas para o suicídio com pílulas que não funcionavam para sua depressão, Crawshaw ficou desconfortável, e a reunião terminou logo depois.

“Empurrando crianças para o suicídio com pílulas da felicidade” é o título de um dos capítulos do meu livro de 2013 sobre crime organizado na indústria farmacêutica [6]. Os médicos não podem fazer pior do que isso: dizer às crianças e aos seus pais que as pílulas da felicidade são úteis quando não funcionam e empurrar algumas crianças para o suicídio.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Disfunção Sexual pós-ISRS é Matéria no Jornal The Guardian

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O jornal inglês The Guardian publicou uma matéria informando sobre as consequências sexuais dos antidepressivos. Embora os primeiros relatos de efeitos colaterais sexuais persistentes depois do uso de antidepressivos tenham começado a surgir no início dos anos 90, essa condição não foi reconhecida pela Agência Européia de Medicamentos até 2019, alerta a matéria.

O psiquiatra David Healy, fundador e CEO da empresa Data Based Medicine, que se dedica a tornar os medicamentos mais seguros, demonstra preocupação com a forma como os antidepressivos têm sido distribuídos, segundo ele, sem muita reflexão.

“Tilli descreve a si mesma como “completamente quebrada” devido aos efeitos da PSSD (Disfunção Sexual Pós-ISRS) e, como muitos portadores da doença, teme ficar perpetuamente sozinha, pois a intimidade sexual e os relacionamentos românticos se tornaram impossíveis. Outra pessoa que sofre da doença disse ao Observer que a sensação é semelhante à de ter sido “lobotomizada”.”

A matéria aponta que quando os ISRS foram lançados clinicamente, os seus rótulos afirmavam que menos de 5% dos pacientes que participaram de estudos clínicos relataram disfunção sexual. Porém em outros estudos não publicados dos medicamentos, cerca de 50% dos participantes desenvolveram disfunções sexuais graves, que em alguns casos persistiram mesmo após a interrupção do antidepressivo. Já um estudo realizado pós-comercialização constatou que entre 5% a 15% desenvolveram deficiências sexuais após o uso de ISRSs.

“Quando Tilli começou a apresentar os sintomas, foi chamada de neurótica por seu médico de família, que insistiu que os SSRIs não poderiam causar disfunção sexual e a mandou para casa para fazer exercícios de respiração profunda. Mas o pior viria depois.”

“Quando procurei ajuda no serviço local de saúde mental, fui internada e colocada involuntariamente em tratamento psiquiátrico, pois o psiquiatra disse que eu tinha ‘transtorno delirante’ e tentou me dar antipsicóticos”, diz ela. “Isso abalou minha confiança em procurar ajuda para minha saúde mental novamente.”

Agora Healy e pesquisadores de todo mundo tentam entender porque a Disfunção Sexual Pós-ISRS ocorre.

→Leia a matéria completa aqui

Economia Solidária e Saúde Mental: Relato de Experiência de Práticas Virtuais

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reaching and touching hands, non verbal communication and symbol for solidarity

O artigo Economia solidária e saúde mental: relato de experiência de práticas virtuais traz um relato de experiência interprofissional sobre o projeto de extensão universitária de economia solidária e saúde mental, a partir dessa interlocução, é possível absorver novas perspectivas para um processo educacional critico. Um trabalho que é descritivo e desenvolvido com base na observação participante e analisado à luz de Mikhail Bakthin e Paulo Freire, sendo de suma importância na construção de saberes múltiplos.

Nesse sentido, refletindo sobre o campo educacional na formação de futuros profissionais, percebe-se a importância de desenvolver formas de articulação dos saberes, para que haja uma interdisciplinaridade dos conhecimentos. A interdisciplinaridade surge como uma proposta de articulação entre áreas visto que “produz um deslocamento na formação de origem de cada uma dessas áreas, o que gera uma partilha, um espaço de contaminação e composição”.

Assim, buscando descrever a atuação interdisciplinar em um projeto de extensão do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) intitulado Rede Gerar de Economia Solidária e Saúde Mental, localizado em Salvador/BA, a Rede Gerar se fundamenta nos preceitos da economia solidária, visando à inclusão social pelo trabalho de pessoas em sofrimento psíquico, usuárias da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa atuação envolve usuários da RAPS, docentes, alunos de graduação e pós-graduação e profissionais das mais diversas áreas, no período da pandemia entre dezembro de 2020 e julho de 2021.

O trabalho a partir da economia solidária busca a emancipação das pessoas, seu bem-estar na produção e expressão de sentidos pela arte e a inclusão social por meio do trabalho no território. Singer  define a economia solidária como uma corrente sustentável e social centrada na produtividade coletiva e de divisão justa e cooperada, sendo uma “resposta organizada à exclusão pelo mercado, por parte dos que não querem uma sociedade movida pela competição”. Significando que mediante a solidariedade, constroem-se formas de produzir, trocar e criar espaços sem exclusão. Contudo, para a efetiva consolidação desses projetos, são necessárias as políticas públicas e a participação social.

A Rede Gerar surgiu em 2014, ainda sem local físico, utilizando espaços cedidos para suas atividades. Em 2018 foi inaugurado a Casa Gerar, cedida pela UFBA, que passou a comportar uma loja, espaços para as oficinas, reuniões de coletivos e atividades culturais. A ações são sempre construídas pelos mais diversos atores sociais, compreendendo a importância da amplitude dos saberes na construção da economia solidária. Sendo fundamental destacar a resistência que se estabelece na busca por manter ativas iniciativas de economia solidária e saúde mental no Brasil, considerando as crescentes tentativas de desmonte e os retrocesso vivenciados no país no que diz respeito a economia solidária e à saúde mental.

O presente artigo traz esse relato de experiência como forma de buscar expor e refletir acerca da atuação interdisciplinar que permeou as ações do projeto de extensão universitária Gerar Virtual, da Rede Gerar de Economia Solidária e Saúde Mental, as atividades do projeto foram todas desenvolvidas em formato virtual em decorrência da pandemia da Covid-19. Sendo realizadas reuniões semanais para o planejamento e discussão das atividades entre a equipe.

Durante o projeto, foram realizadas 5 oficinas virtuais com aulas semanais, alocando o total de 55 alunos, 4 lives com empreendimentos de economia solidária de outros estados do Brasil, 1 encontro com 8 iniciativas locais, entre outras atividades complementares.  Um estudo descritivo e de abordagem qualitativa acerca das ações realizadas no período de dezembro de 2020 a julho de 2021 e se desenvolve com base na análise documental de 8 relatórios, sendo 7 mensais e 1 final, observação participante semanal e 28 diários de campo. Os dados coletados foram organizados em dois momentos. No primeiro momento as ações descritas enquanto articulação e intercâmbio em rede, oficinas virtuais e Rede Gerar na internet. No segundo momento, será realizada a análise por meio das categorias práxis em Freire e dialogismo em Bakhtin.

O artigo aponta que diante da pandemia da Covid-19 e da necessidade de se adequarem às medidas sanitárias, a Rede Gerar adaptou suas práticas e desenvolveu novas ações que contemplassem as necessidades advindas do seu contexto social, tendo em vista possíveis dificuldades de comunicação, pois parte das pessoas se encontravam em vulnerabilidade social.

Segundo Singer:

[…] a autogestão exige um esforço adicional dos trabalhadores na empresa solidária: além de cumprir as tarefas a seu cargo, cada um deles tem de se preocupar com os problemas gerais da empresa.

Surge então o Gerar Virtual, realizando ações pautadas por seus trabalhadores e trabalhadoras em conjunto com as necessidades elencadas pelas RAPS de Salvador. Com o objetivo de promover a articulação e o intercâmbio de ideias no campo da saúde mental, ocorreram algumas atividades que objetivaram atravessar o espaço do projeto. Sendo realizadas lives transmitidas pelas redes sociais com participação de iniciativas de outros lugares suas experiências.

Um dos pilares da Rede Gerar são as práticas artesãs. Foram ofertadas oficinas de tecelagem, costura, fuxico, pintura e ambiente virtual. Participaram da oficina de tecelagem 4 educandos, e teve como intuito desenvolver a criatividade por meio da transformação de linhas em tecidos com desenhos diversos. A oficina de costura foi um espaço importante de acolhimento para os 14 educandos que participaram. Já a oficina de fuxico, que já é ofertada há alguns anos, contou nessa etapa com 7 participantes. A pintura teve como proposta estimular a criatividade e a produtividade artística dos 10 educandos que participaram. E por último, a oficina de ambiente virtual, uma proposta que surgiu a partir da demanda dos usuários da RAPS quanto à dificuldade de inserção digital para comunicação. Todos produtos confeccionados durante as oficinas fizeram parte da nova linha da Rede Gerar, composta por peças de vestuário, acessórios e decoração.

O encontro entre a saúde mental e a economia solidária se estabelece por meio de uma série de propostas coletivas, considerando que ambas promovem o estar no mundo perante a sua diversidade de crenças e culturas, almejando a mudança social para uma forma mais justa e solidária. É a partir da práxis transformadora, concebida na ação-reflexão, no modo como o sujeito compreende o mundo ao seu redor e a prática estabelecida, que a possibilidade da educação libertadora emerge.

Sendo assim, por meio das oficinas e interações virtuais, viu-se a potencialidade da construção coletiva, percebendo o processo educador como múltiplo, mútuo, como vemos na fala de Paula seguir:

[…] a gente tanto ensina como aprende e o aprendizado que a gente tem agora como online, […] tô aprendendo fazendo as coisas pela internet, pelo celular, pra mim isso tá sendo um aprendizado muito importante tanto pra mim quanto para as pessoas.

O artigo ainda aponta a importância nos diálogos referentes às atividades das oficinas, que eram frequentes as falas sobre possibilidades e formas de provocar a participação ativa nos processos de aprendizagem. Abordando o quanto a educação é uma interação entre teoria e prática, e que constitui-se como dialógico-dialética, ou seja, “ninguém educa ninguém, tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Sendo assim, a educação parte da premissa transformadora, crítica, libertária, almejando desses futuros profissionais essa mesma dinâmica em suas vivências.

“Uma importante forma de construção social, a economia solidária pode e deve ocupar espaços múltiplos enquanto possibilidade de construção coletiva”

Por fim, a Rede Gerar se consolida como uma iniciativa importante na saúde mental de Salvador, buscando firmar os preceitos da desinstitucionalização a partir da inclusão pelo trabalho, potencialização da autonomia e emancipação das pessoas em sofrimento mental. Compromete-se potencialidades dos usuários no território e a desconstrução do estigma da loucura, a partir da interação do projeto com a sociedade. Idealizando alcançar tais objetivos, a Rede Gerar desenvolve ações com atores de diversos campos do saber, articulando e mobilizando a rede e sendo uma referência para os usuários, trabalhadores da RAPS e estudantes no que tange à economia solidária e à saúde mental.

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SANTOS, C.; PORTUGAL, C.; NUNES, M.. Economia solidária e saúde mental: relato de experiência de práticas virtuais. Saúde em Debate, v. 46, n. spe6, p. 251–260, 2022. (Link do artigo)

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Três)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a moda mais recente, a ketamina, e como os comprimidos para depressão causam dependência e abstinência. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

Esketamina, a última moda na psiquiatria, é o S-enantiômero ou imagem espelhada da ketamina, um alucinógeno dissociativo usado como anestésico geral há mais de 50 anos.

A esketamina induz anestesia dissociativa, um estado semelhante ao transe que proporciona alívio da dor, sedação e amnésia. A ketamina é comumente usada como droga ilícita [294], muitas vezes chamada de droga recreativa, embora não seja particularmente recreativo ser viciado em drogas.

Em 2019, dois psiquiatras elogiaram o uso da esketamina para o tratamento da depressão resistente no British Medical Journal (BMJ) [295]. Junto com colegas, respondemos que o bom senso nos diz que uma droga não pode ter um efeito drástico sobre a depressão no primeiro dia de tratamento a menos que algo esteja terrivelmente errado.[296]

A esketamina foi aprovada pela FDA em março e pela EMA em dezembro de 2019. Ela não foi mencionada em nenhum dos manuais didáticos, nem mesmo no de 2021.[20] Mas o livro de 2018 mencionava a ketamina  na parte de alucinógenos em uma seção sobre abuso de drogas.[18:77]

A ketamina parece funcionar principalmente através da estimulação dos receptores opióides. Em um ensaio cruzado com 12 pacientes muito gravemente deprimidos (pontuação de Hamilton de 27.4), foi observado um “efeito” enorme no primeiro dia pós-infusão de ketamina, uma redução de 22.3, que corresponde a um tamanho de efeito de 7.0.[294] Um tamanho de efeito dessa magnitude é totalmente inédito na psicofarmacologia e também na medicina em geral. Para ensaios controlados por placebo de pílulas para depressão o tamanho do efeito é apenas de 0.2 a 0.3 e leva semanas antes que isso possa ser medido.[268,271,273]

Quando a ketamina foi suplementada com naltrexona (um antagonista opióide), a redução foi menor, de 5.6. Enquanto o uso prolongado de opióides pode causar depressão,[298] o uso prolongado de esketamina pode aumentar o risco de depressão crônica.

Os dois psiquiatras excessivamente entusiasmados escreveram que os efeitos da ketamina e da esketamina se encaixam na “teoria moderna de que a depressão surge de uma rede neural empobrecida em vez de deficiência de serotonina.”[295] Não está claro o que eles queriam dizer com isso e a novidade não torna uma teoria mais confiável do que a hipótese descartada sobre um desequilíbrio químico causando depressão (ver Capítulo 4).

Escrevemos que estamos convencidos de que poderia ser demonstrado que álcool, morfina, cocaína e ecstasy também exercem um “efeito” sobre a depressão no primeiro dia, mas isso não torna essas substâncias aceitáveis. Elas podem ter efeitos eufóricos agudos, mas o uso frequente e prolongado muitas vezes resulta em estados de humor disfóricos.

O sonho de uma solução rápida para a depressão nunca para. Tornou-se popular discutir sobre outros alucinógenos para depressão, a psilocibina, produzida por fungos, e até mesmo o LSD (dietilamida do ácido lisérgico) está sendo ressuscitado. Em 2020, os autores de uma revisão sistemática relataram resultados positivos e concluíram que o LSD é “um agente terapêutico potencial em psiquiatria.” [299]

Isso é incrível. Será que os psiquiatras aprenderão alguma vez com seus erros? Drogas psicodélicas não são a resposta para os distúrbios psiquiátricos. Elas pioram as coisas.

 

As pílulas para depressão levam à dependência

Depois que as autoridades na década de 1980 finalmente, mais de 20 anos depois de ser documentado que as benzodiazepinas causam dependência, admitiram que o enorme consumo de benzodiazepínicos era um desastre de saúde pública e começaram a alertar contra eles, o uso diminuiu.[264] Ao mesmo tempo, a Associação de Psiquiatria Americana endureceu os critérios para dependência de substâncias, muito convenientemente pouco antes dos ISRSs aparecerem no mercado.[304]

Eu frequentemente me perguntei quanto de corrupção estava envolvido, já que essa mudança nos critérios deve ter valido bilhões de dólares para as empresas.

As mudanças foram significativas. Antes de 1987, dependência significava o desenvolvimento de tolerância a uma substância ou sintomas de abstinência, que é como a maioria das pessoas definiria. Mas a partir de 1987, pelo menos três critérios de nove eram necessários e um critério de tempo também foi adicionado.[304] De algo muito simples, tornou-se altamente complicado, arbitrário e tendencioso e ninguém consegue lembrar de todos esses critérios ou aplicá-los consistentemente de caso a caso.[7:239]

Por exemplo: “Muito tempo” (quanto tempo?); “Substância frequentemente utilizada” (com que frequência?); “Atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes abandonadas” (o que é importante e quem decide isso?); “Intoxicação ou sintomas de abstinência frequentes” (com que frequência?); “Substância frequentemente utilizada para aliviar ou evitar sintomas de abstinência” (este critério é sem sentido; se um paciente perde apenas uma dose de paroxetina, pode desencadear sintomas de abstinência[305] — “frequentemente” para paroxetina significa tomar três comprimidos de paroxetina por dia? Dificilmente).

Os novos critérios retiraram o poder dos pacientes decidirem por si mesmos se se tornaram dependentes das pílulas para depressão. O critério de tempo também é insensato. Os sintomas deveriam ter persistido por pelo menos um mês ou deveriam ter ocorrido repetidamente por um período mais longo. Muitos pacientes são dependentes de drogas psiquiátricas sem cumprir o critério de tempo. Eles podem ter tentado parar algumas vezes, mas rapidamente retomaram o tratamento e decidiram nunca mais tentar novamente por causa dos sintomas de abstinência que experimentaram. De acordo com o critério de tempo, tais pacientes não são dependentes, embora sejam os mais dependentes.

Os novos critérios são uma cortina de fumaça que serve para desviar a atenção do fato de que ISRSs e SNRIs causam dependência. Descobrimos em nossa pesquisa que os sintomas de abstinência foram descritos com termos semelhantes para benzodiazepínicos e ISRSs e eram muito semelhantes para 37 de 42 sintomas identificados.[304] Quando a Lundbeck, que vende várias pílulas para depressão, foi entrevistada sobre nossas descobertas, a empresa disse que não tinha sentido a ideia de que as pessoas poderiam se tornar dependentes de ISRSs.[306]

O pior argumento que ouvi — também de professores de psiquiatria — é que os pacientes não são dependentes porque não têm um desejo intenso por doses maiores. Se isso fosse verdade, fumantes não seriam dependentes de nicotina porque não aumentam seu consumo de cigarros e todo fumante poderia parar de fumar da noite para o dia, sem efeitos adversos.

Descrever problemas semelhantes como dependência de benzodiazepínicos como “reações de abstinência”, ou o termo ainda mais suave, “sintomas de descontinuação,” inventado pela Eli Lilly,[307:65] para ISRSs é irracional, e para os pacientes é a mesma coisa. Pode ser muito difícil para eles pararem com qualquer um dos dois tipos de droga. Uma pesquisa mostrou que 57% de 493 pacientes dinamarqueses concordaram com a frase: “Quando você toma antidepressivos por um longo período de tempo, é difícil parar de tomá-los,”[89] e em outra pesquisa, 55% de 1.829 pacientes na Nova Zelândia que tomavam pílulas para depressão mencionaram efeitos de abstinência, dos quais 25% descreveram como severos.[308]

Uma revisão sistemática mostrou que metade dos pacientes sentem sintomas de abstinência; metade daqueles com sintomas experimentam o grau de gravidade mais extremo disponível; e algumas pessoas sentem abstinência por meses ou até anos.[136] Uma pesquisa com 580 pessoas relatou que em 16% dos pacientes, os sintomas de abstinência duraram mais de três anos.[136]

De acordo com a Lundbeck, pacientes que dizem ter dificuldade em parar de tomar as drogas estão falando bobagem,[306] e de acordo com o professor de psiquiatria Lars Kessing, tais pacientes são ignorantes.[89] Não há muito respeito pelos pacientes na psiquiatria.

O Manual Didático de Psiquiatria da Associação de Psiquiatria Americana de 1999 afirmava que, não muito tempo atrás, a maioria dos pacientes se recuperaria de um episódio depressivo grave, enquanto agora “a depressão é um transtorno altamente recorrente e pernicioso.”[5:161] Mas o fato é que a doença não mudou. Os psiquiatras e outros médicos falharam em entender que eles mesmos criaram um desastre iatrogênico por causa do uso de pílulas para depressão.[7:256] A “cronicidade” aparente nos transtornos mentais é um artefato dos medicamentos utilizados.

Isso foi demonstrado em um estudo com 172 pacientes com depressão recorrente que estavam em remissão há pelo menos 10 semanas desde seu último episódio.[309] Dos que continuaram a tomar drogas, o que eles deveriam fazer de acordo com as diretrizes, 60% recaíram em dois anos. A taxa de recaída foi semelhante para usuários intermitentes (64%), enquanto foi de 46% para aqueles que não tomaram drogas e apenas 8% para aqueles que não tomaram drogas e receberam psicoterapia. Diferenças na gravidade da doença não explicavam esses resultados, então não foram devido a confusão por indicação.

Outro artigo mostrou que pessoas com episódios não complicados de depressão (com duração não superior a dois meses e sem incluir ideação suicida, ideação psicótica, retardo psicomotor ou sentimentos de inutilidade) mal eram mais propensas a ter outro episódio dentro de 12 meses do que pessoas sem histórico de depressão, e as taxas de recaída são muito baixas (3.7% versus 3.0%).[103] Outros dados mostram o mesmo.[7:256] No artigo “Medicalising Unhappiness” (Medicalizando a Tristeza, em tradução livre), Allen Frances escreveu: “Observar atentamente ao longo de várias visitas pode permitir que os médicos vejam se os problemas serão resolvidos sem intervenção.”[103] Isso é verdade para todos os principais transtornos psiquiátricos.

Sabemos há mais de 50 anos que as pílulas para depressão causam dependência, e os pacientes também sabiam, mas mesmo 50 anos depois de saber disso, o problema de dependência ainda estava sendo trivializado pelo Royal College of Psychiatrists do Reino Unido e pelo National Institute for Health and Care Excellence (NICE).[7:76] O Royal College of Psychiatrists priorizou os interesses da instituição e da profissão que representa em detrimento do bem-estar dos pacientes quando retiraram uma pesquisa incriminadora que contradizia totalmente o que eles postulavam assim que enviamos uma reclamação. O que eles afirmaram falsamente foi que, “Sabemos que na grande maioria dos pacientes, quaisquer sintomas desagradáveis experimentados ao interromper os antidepressivos se resolvem dentro de duas semanas após a interrupção do tratamento.”

Quando o Royal College of Psychiatrists se recusou a corrigir o erro, tornamos nossa reclamação pública e o programa da BBC Radio 4 – Today, cobriu isso em 3 de outubro de 2018. A instituição se recusou a participar do programa.

Posteriormente, a Royal Society of Medicine lançou uma série de podcasts onde o tópico de abertura era sobre pílulas para depressão e abstinência. Um dos dois entrevistados foi o psiquiatra Sir Simon Wessely, presidente da Royal Society of Medicine (e recentemente presidente do Royal College of Psychiatrists). Wessely rejeitou qualquer ligação entre pílulas para depressão e suicídio e afirmou, categoricamente, que pílulas para depressão não são “viciantes.”

Apesar da negação obstinada dos fatos pelos psiquiatras, as coisas mudaram. Em setembro de 2019, a Public Health England publicou uma revisão de evidências de 152 páginas fazendo recomendações importantes, incluindo serviços para ajudar pessoas a pararem de tomar pílulas para depressão e outros drogas psiquiátricas, e sobre pesquisas melhores e diretrizes nacionais mais precisas.[310] O NICE atualizou suas diretrizes de acordo com as evidências no mês seguinte.[136]

As empresas farmacêuticas não se importam com a segurança do paciente se isso puder prejudicar as vendas.[6,7] Os líderes psiquiátricos não se importam com a segurança do paciente se isso puder ameaçar sua própria reputação, a corporação que representam ou o fluxo de dinheiro que recebem das empresas farmacêuticas. Essa corrupção de uma especialidade médica também permeia nossas autoridades, que dependem muito de especialistas ao emitir diretrizes e só fazem mudanças se os críticos fizerem muito barulho público sobre as irregularidades.

Quando a profissão não pode evitar lidar com críticas públicas, as respostas frequentemente são reveladoras. Eu descrevi[7:16,311] como fui recebido com ataques ad hominem e argumentos científicos falsos e altamente enganosos[302] dos escalões superiores da psiquiatria convencional do Reino Unido depois que dei uma palestra inaugural em 2014 na reunião de abertura do Conselho para Psiquiatria Baseada em Evidência na House of Lords (Câmara dos Lordes), presidida pelo Earl of Sandwich: Por que o Uso de Drogas Psiquiátricas Podem Estar Fazendo Mais Mal do que Bem. Os outros palestrantes, a psiquiatra Joanna Moncrieff e o antropólogo James Davies, deram palestras semelhantes e escreveram livros críticos da psiquiatria convencional.[3,4,312,313]

 

O Número Necessário para Tratar (NNT) é altamente enganoso.

Quando os psiquiatras querem elogiar suas drogas, muitas vezes se referem ao Número Necessário para Tratar (NNT) para beneficiar um paciente, mas isso é tão enganoso para as drogas psiquiátricas que tal informação deve ser ignorada.

Tecnicamente, o NNT é calculado como o inverso da diferença de benefício. Se 60% melhoraram com a droga e 50% com o placebo, o NNT = 1/(0,6-0,5) = 10. Aqui estão os principais problemas:

  • O NNT é derivado de ensaios com falhas, com retirada abrupta no grupo do placebo, cegamento insuficiente e patrocínio da indústria com manipulação de dados e publicação seletiva. [6-8]
  • O NNT leva em conta apenas os pacientes que melhoraram em uma certa medida. Se um número similar de pacientes piorou, não há NNT, pois seria infinito (1 dividido por zero é infinito). Se uma droga for inútil e apenas tornar a condição após o tratamento mais variável, de modo que mais pacientes melhorem e mais pacientes piorem do que no grupo de placebo, a droga pareceria eficaz com base no NNT.

 

  • O NNT abre espaço para viés adicional. Se o ponto de corte escolhido para retratar a melhora não produz o resultado desejado, outros pontos de corte podem ser tentados até que os dados digam o que se quer. Tais manipulações com os dados durante a análise estatística, onde os resultados pré-especificados são alterados após os funcionários da empresa terem visto os dados, são muito comuns, também em psiquiatria.[6,7,137,279,300]
  • O NNT trata apenas de um benefício e ignora completamente que as drogas têm efeitos nocivos, que são muito mais certos de serem experimentados do que seus possíveis benefícios. Assim, em um sentido matemático, o NNT deveria ser negativo, mas nunca vi um NNT negativo na literatura. O NNT é -2 para danos sexuais de pílulas para depressão (como discutirei mais adiante), o que significa que para cada duas pessoas que não tratamos, poupamos uma de ser prejudicada sexualmente.
  • Se benefícios e danos são combinados em uma medida de preferência, é improvável que um NNT possa ser calculado porque as drogas psiquiátricas fazem mais mal do que bem. Só podemos calcular o número necessário para dano (Number Needed to Harm – NNH). As desistências durante os ensaios com pílulas para depressão ilustram isso. Como 12% a mais de pacientes abandonam o tratamento com a droga do que com o placebo,[301] o NNH é 8.

Quando os principais psiquiatras do Reino Unido em 2014 tentaram convencer o mundo de que as pílulas para depressão são altamente eficazes, eles não levaram em conta nenhuma dessas falhas.[302] Eles afirmaram que as pílulas para depressão têm um efeito impressionante na recorrência, com um NNT de cerca de 3 para prevenir uma recorrência.[302] Não era recorrência, mas sim sintomas de abstinência no grupo do placebo. Como apenas dois pacientes são necessários para obter um com sintomas de abstinência,[136] não pode existir um NNT para prevenir recorrência, apenas um NNH, que é 2.

Não pode existir um NNT em outros ensaios clínicos de depressão também, já que a diferença entre droga e placebo em ensaios defeituosos é de cerca de 10%,[303] ou um NNT de 10, o que é muito menor do que o NNH.

Essas questões se aplicam a todas as drogas psiquiátricas. Assim, os NNTs em psiquiatria são fraudulentos. Eles não existem.

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Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

O Fetichismo Psicofármaco como Estratégia de Controle Social

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Gaslighting people and social Manipulator concept as a puppet master influencing a society on strings controlled by someone that manipulates and wants to gaslight for exploitation or domination as psychological control in a 3D illustration style.

O artigo, Medicalização da subjetividade e fetichismo psicofármaco: uma análise dos fundamentos, faz uma reflexão teórica à luz da análise do discurso e identifica que a epidemia das drogas psiquiátricas é uma expressão da medicalização da vida. A análise demonstrou que a forma capitalista de consumo e da prescrição de psicofármacos, impõe os sujeitos uma terapêutica fetichizada.

A Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM) de 2016 mostrou que medicamentos psicotrópicos figuravam entre os mais consumidos pelos usuários da atenção primária à saúde. Os mais utilizados eram os antidepressivos, antilépticos e ansiolíticos. Outra pesquisa, realizada pela consultoria IQVIA, a pedido do Conselho Federal de Farmácia (CFF) verificou que em 2020 houve um crescimento de quase 14% nas vendas de antidepressivos e estabilizadores de humor no Brasil, em comparação com o o mesmo período de 2019.

O consumo em escala crescente de psicofármacos tem preocupado diversos pesquisadores e entidades nos últimos anos, configurando o que o jornalista Robert Whitaker denominou como uma “epidemia das drogas psiquiátricas”. O artigo assume a tese que a forma como a sociedade capitalista lida com o uso dos psicotrópicos é epidêmica.

A epidemia das drogas psiquiátricas é estruturada sobre a concepção de que as formas de sofrimento psíquico possuem causa biológica, causada por uma suposta alteração de um padrão neuroquímico normal, ainda que já existam várias pesquisas desmontando as hipóteses biologicistas dos ditos transtornos mentais. Vários autores apontam as determinações políticas e econômicas exercidas pela indústria farmacêutica e setores do Estado moderno como fator condicionante para a criação e manutenção dessa epidemia.

O crescente consumo de drogas psiquiátricas, de forma a ser pensado como uma epidemia, se localiza em um fenômeno ainda mais amplo denominado medicalização da vida.

“De acordo com Freitas e Amarante (2017) medicalizar não se resume a cuidar(se) por medicamentos. De modo geral, a medicalização da vida se configura como um processo de “[…] transformar experiências consideradas indesejáveis ou pertubadoras em objetos de saúde, permitindo a transposição do que originalmente é da ordem moral ou político para os domínios da ordem médica e práticas afins.”

O artigo faz um rápido percurso pela história da psiquiatria, desde Pinel e seu tratamento moral até chegar à psiquiatria organicista e reducionista contemporânea. Essa mudança se deve principalmente a crise financeira e de legitimidade que a psiquiatria tradicional passou em meio ao desenvolvimento científico de outras áreas da medicina. Como não foi possível comprovar a hipótese das causas biológicas, a indústria farmacêutica desponta para lucrar com a angústia da crise psiquiátrica e dos sujeitos por ela atendidos. Essa relação firmada entre indústria farmacêutica e psiquiatria chega ao ponto dos médicos transformarem-se em uma espécie privilegiada de vendedores das farmacêuticas. Baseado agora em bases neuroquímicas, a indústria farmacêutica cria novas “doenças”, produzindo a versão contemporânea do fenômeno da medicalização: a medicalização da subjetividade. Esse fenômeno se manifesta na educação, saúde, economia e em vários outros campos da sociedade do capital.

O capital se utiliza da ciência positivista porque ela serve aos seus interesses, uma vez que este permite a ampliação de técnicas e tecnologias que garantam o aumento da produtividade econômica. O positivismo exclui a análise da totalidade social e aposta na fragmentação, consequência do reducionismo que é característico desse saber. Os autores denominam esse funcionamento no campo da psiquiatria como fetichismo psicofármaco.

O fetiche se caracteriza pelo fenômeno de trocar o todo pela parte. Escolhe-se uma parte do todo para se universalizar e virar o denominador comum redutivo da complexidade em questão. O fetichismo psicofármaco opera restringindo a subjetividade humana a um simples funcionamento de redes neurais.

Conforme o artigo aponta, citando Coser (2010), a forma mais eficiente de simbolizar os interesses corporativos da indústria farmacêutica e da psiquiatria é por meio do poder das metáforas. Nesse sentido a redução da subjetividade humana às suas redes neuronais, é uma tentativa de criar uma narrativa metafórica para o corpo humano como uma espécie de máquina neuroquímica e os psiquiatras são transformados em uma espécie de “engenheiros neuronais”.

Seguindo essa linha de reflexão, a fetichização dos medicamentos psicotrópicos produz um silenciamento da dimensão sócio simbólica, buscando esconder as determinações sociais das formas de sofrimento psíquico. Isto é, utiliza-se de uma antiga estratégia burguesa: culpabilizar a vítima. Dessa forma parte da psiquiatria serve aos propósitos de conservação do capital.

“(…) essa parte da psiquiatria serve aos propósitos de conservação da sociedade do capital, uma vez que seu proceder implica na limitação da capacidade de apreender a complexidade das relações sociais contraditórias nesse sistema e assim contestá-los.”

Outra forma do uso fetichizado do psicofármaco é a caracterizada por gerar estranhamento. Nesse tipo de funcionamento, as sinapses neurais se projetam contra o sujeito, como uma força hostil que o controla e o sujeito perde-se nesse movimento “autônomo”.

Já o papel social que o psicofármaco exerce na sociedade capitalista se dá em duas esferas: a econômica e a ideológica. A econômica se alinha aos imperativos de reprodução e acumulação do capital, enquanto a ideológica decorre da necessidade de estabelecer um conjunto de discursos orientados à reprodução e a manutenção da forma capitalista da sociedade, a partir de estratégias de controle. O fármaco é a nova alternativa para o silenciamento e controle, antes exercidos de maneira hegemônica pelo manicômio.

Em função disso, o fetichismo psicofármaco é estruturado em outro fetiche ainda mais embrionário: o de mercadoria. A mercadoria-medicamento alivia momentaneamente certos sintomas de sofrimento psíquico, satisfazendo as necessidades (terapêuticas ou imaginárias) de seus usuários, e por isso sua demanda é crescente.  Mas a maneira capitalista de seu consumo desloca seu efeito de aliviador de sintomas, para o núcleo da terapêutica, dotando-o de um poder maior do que ele realmente tem, o poder de incidir sobre a causa do suposto transtorno.

Nem mesmo a abordagem psicossocial da saúde mental, objeto da Reforma Psiquiátrica, é capaz de superar sozinha a hegemonia da abordagem medicamento-centrada, e vem sendo paulatinamente secundarizada e tomada como complementar à terapêutica farmacológica. Sendo assim, o cuidado em saúde mental tem sido focado, quase que exclusivamente, nos psicofármacos, segundo alguns autores, sendo reduzida à busca da receita-consulta-dispensa da medicação.

O artigo conclui que, afinal, não somos somente nosso cérebro, mas o somos em certa medida. Logo, não teve por finalidade construir um entendimento negativo do desenvolvimento e aperfeiçoamento farmacológico. Mas o que se buscou foi criticar a forma capitalista de consumo e prescrição de psicofármacos, mostrando que os fármacos são produtos sociais e que o sujeito é mais que sua dimensão biológica. Espera-se dessa maneira, contribuir com as práticas daqueles que lutam pelo legado do movimento antimanicomial, somando esforços para a produção de práticas efetivamente humanizadas e críticas.

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Oliveira, J., Cavalcanti, F., & Ericson, S.. (2024). Medicalização da subjetividade e fetichismo psicofármaco: uma análise dos fundamentos. Saúde E Sociedade, 33(1), e220833pt. https://doi.org/10.1590/S0104-12902024220833

 

Síndrome de Abstinência Pós-Aguda: Como o último passo para a recuperação se tornou o último passo da vida

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Como o sofrimento persistente e insuportável, devido à abstinência prolongada de antipsicóticos prescritos como medicamento para dormir, levou à eutanásia.

 

Nota do editor: Esta entrevista de Anniek Lemmens por Monique Timmermans, do Mad in Netherlands (Holanda),  foi publicada pela primeira vez em 24 de fevereiro de 2024. Traduzido por Camila Motta.

“Estou feliz em ver Anniek, de 40 anos, novamente. Ela parece mais frágil do que na primavera passada, e posso ver que ela está sofrendo. Quando a abraço, sinto nossos sistemas nervosos se conectarem com um suspiro de alívio. Ela poderia ter sido eu, e eu poderia ter sido ela. Há quatro anos, estávamos enfrentando de forma semelhante os horrores decorrentes da abstinência de antipsicóticos após a redução muito rápida da medicação e, no caso de Anniek, também de um antidepressivo. Hoje, como editora do Mad in Netherlands, livre da medicação, ainda sofrendo de sintomas persistentes de abstinência, mas também desfrutando de qualidade de vida, estou visitando uma de minhas amigas de abstinência para escrever sua história antes que ela, devido ao sofrimento persistente, recorra à eutanásia. Não porque ela tenha escolhido morrer, mas porque não pode continuar a viver a vida como ela se tornou.

Essa história mostra como a orientação psiquiátrica inadequada, especialmente a orientação inadequada sobre o ajuste da medicação, pode causar imensa dor e sofrimento aos pacientes. Certamente, há alguma responsabilidade em relação aos prescritores, mas sua história é principalmente de reconciliação e um chamado para trabalharmos juntos. É verdade que as consequências são mais drásticas para Anniek e seus entes queridos, com sua morte iminente, do que para os prescritores, que terão de aceitar a ideia de que não foram informados corretamente e, portanto, muitas vezes forneceram informações incorretas aos pacientes e não os trataram com o devido cuidado. Mas pode-se dizer que todos fazem parte e estão presos no mesmo sistema sufocante. Continuaremos presos até que, juntos, tenhamos a coragem de decidir fazer as coisas de forma diferente. Escrevo isso para Anniek e todas as vítimas de drogas psicotrópicas prescritas e seus entes queridos.

Monique Timmermans: Eu só a conheci no contexto da abstinência, tendo-a encontrado depois que sua redução de medicamentos deu errado. Como era sua vida antes?

Anniek Lemmens: Por natureza, sou aventureira. Sempre procurei uma ampla gama de atividades, apesar das dificuldades que encontrei em minha vida. Gostava de interação social, variedade, e um pouco de agitação. Em 2009-2010, passei por um período muito difícil. Foi nessa época que fui medicada com quetiapina (Seroquel) e citalopram (Cipramil) depois de experimentar vários medicamentos psiquiátricos. Mas logo após, retomei minha vida. Sinto muita falta da minha vida antes da redução gradual e, principalmente, de todos os diferentes aspectos dela. Eu gostava de ser tia, adorava estudar e trabalhar, sair com os amigos, correr ao ar livre, fazer música com outras pessoas e fazer longas caminhadas com os cachorros dos quais eu era babá. Adorava cozinhar e fazer bolos, tirar fotos….

Fizemos uma colagem com as lembranças daqueles dias. Ela está exposta na sala. No começo, achei difícil olhar para ela. É muito difícil ver a vida que eu poderia ter tido…

De vez em quando, ainda tiro fotos. Todas as outras coisas, mesmo as pequenas coisas que faziam minha vida valer a pena, eu não consigo mais fazer. Eu gostava muito de lavar a louça com meu marido. Agora, fico deitada na minha poltrona reclinável com fones de ouvido com cancelamento de ruído, enquanto ele limpa a cozinha.

Foto de Anniek Lemmens: Infinito

Monique: Esse é, de fato, um grande contraste com a Anniek que conheço. Você poderia nos contar um pouco sobre como foi sua experiência no sistema de saúde mental antes de entrar em abstinência?

Anniek: Fui internada pela primeira vez quando tinha 16 anos e me receitaram paroxetina (Seroxat) e fluoxetina (Prozac). Isso não melhorou em nada o que eu sentia. Por exemplo, com relação à fluoxetina, recentemente foi estabelecido que é o efeito placebo, e não o medicamento em si, o responsável pela recuperação da depressão nos adolescentes. A paroxetina não pode mais ser prescrita a adolescentes porque o medicamento pode desencadear o suicídio. Com toda razão, pois esses medicamentos me levaram a fazer coisas que eu nunca escolheria fazer sozinha. Por exemplo, atravessei um cruzamento movimentado com os olhos fechados. O fato de ter sido internada naquela instituição também não me fez bem, porque eles não ofereceram (não podiam?) nenhuma terapia além da prescrição de medicamentos psicotrópicos. Meu pai estava gravemente doente na época; ele estava morrendo e o relacionamento que eu tinha com minha mãe era muito difícil naquela ocasião. Nesse estado, tentei o suicídio. Em retrospecto, os comprimidos me levaram a isso em vez de me salvar. Não é estranho que prestemos tanta atenção ao que o álcool faz com o cérebro adolescente em desenvolvimento, enquanto a prescrição de tais medicamentos quase nunca é questionada?

Depois de ser internada, fui morar com uma família adotiva. Quando meu pai morreu seis meses depois, parei de tomar a medicação rapidamente e, após uma semana de abstinência, fiquei bem.

Em 2009-2010, as coisas não correram bem para mim devido a uma combinação de insônia extrema, uma autoestima seriamente diminuída, contratempos em várias áreas da vida e a perda parcial da minha rede de apoio social. Como resultado, fui parar em uma unidade de crise, onde o objetivo era “me colocar para tomar remédios”. Dada a condição e as circunstâncias em que me encontrava na época, senti que tinha uma liberdade de escolha muito limitada em relação ao que me era prescrito. Vários medicamentos foram experimentados durante esse período e, no início, eu os abandonei com bastante facilidade. Foi também nessa época que comecei a tomar quetiapina (Seroquel), além de citalopram, para dormir melhor. Naquela época, o uso de benzodiazepínicos para essa finalidade havia se tornado desacreditado (devido ao risco de dependência). Portanto, os médicos daquela época começaram a prescrever cada vez mais a quetiapina (um antipsicótico que pode combater a agitação) para problemas de sono. O que lamento é não ter percebido o sério impacto de tal medicamento; além disso, em três dias, eu estava tomando 200 mg. Embora eu estivesse dormindo muito bem desde o primeiro dia, quando estava tomando apenas 50 mg, de acordo com o meu prontuário, a dose foi aumentada conforme planejado. Em retrospecto, agora que sabemos como é difícil reduzir a dose desses medicamentos, me dar 150 mg a mais, que nem era necessário, foi bastante cruel. Especialmente quando você considera que agora se sabe que as mulheres reagem aos antipsicóticos de forma diferente dos homens (de Boer, Brand, Sommer 2022).

No entanto, quero deixar claro que não sou, de forma alguma, negativa em relação ao aconselhamento psiquiátrico. Eu adotei o apoio à saúde mental por muitos anos porque descobri que isso me tornava mais saudável. Fiz mindfulness, TCC (terapia cognitivo-comportamental), terapia psicomotora, exposição, EMDR (dessensibilização e reprocessamento através do movimento dos olhos), ACT (terapia de aceitação e compromisso), terapia sistêmica, terapia de exercícios e estilo de vida, atividade graduada e suporte de pares , incluindo o WRAP (plano de ação para recuperação do bem-estar). Graças a uma variedade de terapias e fatores sociais, consegui desenvolver uma autoimagem positiva e uma resiliência que fez com que a vida realmente valesse a pena ser vivida novamente. Com o passar dos anos, todos os diagnósticos desapareceram. Quase todos os transtornos com os quais eu havia sido diagnosticada estavam em remissão completa. Mas eu ainda estava presa à medicação (quetiapina, citalopram) porque cada tentativa de redução desencadeava sintomas graves de abstinência e desconforto físico, apesar do meu estilo de vida saudável. Consegui identificar esses desconfortos como efeitos colaterais dos medicamentos, conforme listado nas bulas. Quando consegui reduzir um pouco o uso, senti uma melhora imediata em minha saúde. Portanto, em 2019, decidi começar a reduzir novamente. Fiz tudo o que pude para tornar as condições as melhores possíveis, para que eu tivesse sucesso dessa vez.

Monique: Então, como você realizou a redução gradual?

Anniek: Eu tinha seis meses de tempo livre para ter certeza de que teria tempo para o autocuidado ideal. O motivo pelo qual eu queria reduzir estava claro. Também criei um plano WRAP, encontrei pessoas para me apoiar e criei um “cartão de crise” para crises psicológicas devido aos sintomas de abstinência. Eu estava super motivada. Eu sabia que não seria nada divertido. Por isso, também pedi ao meu psiquiatra que não fosse “muito brando” comigo e que me ajudasse a superar quando as coisas ficassem difíceis. Em retrospecto, eu realmente me arrependo disso….

Monique: Então você disse que eles não deveriam ser “muito brandos” com você durante a abstinência?

Anniek: Sim, de fato! Eu reduzi o uso do citalopram com tiras de redução gradual entre outubro de 2019 e janeiro de 2020. Usando formulários de auto monitoramento, documentei meus sintomas. Eu sofria de tristeza, fadiga, dor, sono ruim e vontade de comer demais. Percebi que meu corpo tinha de se esforçar muito para se manter equilibrado. Não achei isso estranho depois de 10 anos de uso de medicamentos. Ajudou o fato de eu ter tirado uma folga do trabalho durante o período de redução gradual. Isso fez com que meu progresso fosse relativamente bom. Meu psiquiatra nunca perguntou sobre meus formulários de auto monitoramento. Portanto, ele achava que eu não tinha sintomas de abstinência ou recorrência de sintomas de ansiedade ou humor. Infelizmente, esse não era o caso. Agora que sei como é importante levar esses sintomas a sério, talvez eu devesse ter informado o psiquiatra com mais ênfase sobre os sintomas que estava sentindo na época, embora ele nunca tenha perguntado sobre isso. Talvez, então, pudéssemos ter optado por um cronograma de retirada mais lento. Muito provavelmente, como eu sempre fingia ser forte e não reclamava muito, ele não percebeu vários sinais e, portanto, não os investigou suficientemente. Entretanto, não sei se isso teria feito alguma diferença. Porque, quando eu estava deixando de tomar a quetiapina entre fevereiro e abril (também com medicação de redução gradual), eu disse a ele que as coisas não estavam indo bem, mas ele não respondeu adequadamente.

Eu sofria de fadiga, sono ruim, pesadelos, dores de cabeça, letargia, tristeza e choro durante o primeiro mês. A redução do antipsicótico foi mais difícil para mim do que a retirada do antidepressivo. No segundo mês, comecei a sentir dores musculares, dores nas costas e fadiga extrema, além dos sintomas que já tinha. No terceiro mês, comecei a me sentir cada vez mais super estimulada, com cãibras, tonturas e dificuldade de concentração. Não conseguia mais focar meus olhos e quase não dormia, o que me deixava cada vez mais instável. Eventos com os quais eu normalmente conseguia lidar muito bem de repente eram demais para mim devido aos graves sintomas de abstinência. Em um determinado momento, solicitei internação por crise porque estava muito doente para ficar em pé, sentar, comer ou beber. Foi um pedido de ajuda que não foi ouvido. Meu psiquiatra disse que a internação não seria possível e que eu precisava apenas superar o problema.

Eu me recompus mais uma vez, ignorando todos os sinais de alarme que meu corpo estava emitindo. Um calendário do qual eu arrancava uma folha todos os dias me mantinha firme; eu supunha que, depois de 60 dias terríveis e longos, minha qualidade de vida melhoraria, e isso me sustentava. Levei mais a sério o “conhecimento profissional” do meu psiquiatra do que o que eu sentia em meu próprio corpo. Enquanto o psiquiatra se concentrava em minha instabilidade mental, ele ignorava completamente o que estava drenando minha resiliência, tornando-me cada vez menos capaz de lidar com a situação – ou seja, a abstinência das drogas. Por exemplo, de acordo com meu psiquiatra, eu estava instável porque meu gato estava doente. Mas eu estava tão perturbada pelos sintomas de abstinência que não conseguia lidar com a visita ao veterinário e fiquei terrivelmente exausta. Eu não podia oferecer ao meu gato o que ele precisava, e isso era terrível para mim. Tentei deixar isso claro, mas ele não me ouviu.

Essa abordagem “não muito branda” da retirada de medicamentos tem sido o ponto crucial. Os formulários de auto monitoramento servem para que o médico veja se surgem novos sintomas durante a redução ou se os sintomas existentes pioram. Assim que isso acontecer, é melhor reduzir a quantidade com a redução da dosagem (com consentimento mútuo), reduzir mais lentamente, estabilizar na mesma dose e esperar para ver se os sintomas diminuem ou desaparecem. Também é possível decidir voltar à última dosagem em que as coisas estavam indo bem ou decidir não reduzir mais a dosagem. A única coisa que nunca deve ser feita é continuar a redução gradual quando os sintomas piorarem. O médico não deve cair na armadilha de pensar “estou lidando com uma pessoa psicologicamente instável, portanto, essa é a causa dos sintomas e não a abstinência”.

O objetivo da medicação de redução gradual feita sob medida é justamente oferecer a possibilidade de redução mais lenta, pois se sabe que a redução gradual se torna mais difícil com doses mais baixas. As chances de uma redução gradual bem-sucedida aumentam se doses menores forem reduzidas em um período de tempo mais longo. Por muito tempo, eu me senti culpada; talvez, ao dizer que não queria ser tratada como uma molenga, que eu mesmo possa ter sido a causa de agora não conseguir me recuperar.

Monique: Você não está sendo muito dura consigo mesmo? Certamente você pode presumir que um psiquiatra que sabe como prescrever pílulas também sabe como parar de tomá-las com segurança. Você recebeu a quetiapina off-label, ou seja, não para a psicose, mas para dormir. Eles não foram prescritos para o resto de sua vida, não é mesmo? Em minha opinião, é por isso que as prescrições desse tipo de medicamento nunca devem ser repetidas por muito tempo. Especialmente se os prescritores não souberem como reduzir esses medicamentos com segurança e em tempo hábil com seus pacientes.

Anniek: Eu não diria isso com tanta ênfase. É claro que nem todo mundo tem sintomas tão extremos como os que eu tenho agora. Como planejei tudo para que as circunstâncias fossem as melhores possíveis, coloquei a meta muito alta. Eu estava disposta a ir fundo para superar a abstinência. Meu psiquiatra havia me explicado que os sintomas de abstinência duravam apenas um curto período de tempo. Portanto, eu continuava pensando: “só por um tempinho”. Então, em retrospecto, essa foi a coisa mais estúpida a se fazer. Esses sintomas de abstinência eram de fato relevantes. Culpo retroativamente meu psiquiatra por se esconder atrás de diretrizes baseadas em “ciência” antiga e fingir que a abstinência não era tão ruim assim. Como prescritor, quando meus sintomas se tornaram tão graves, ele deveria ter começado a pensar além das diretrizes e buscar ativamente informações, que já estavam disponíveis na época. A confiança total em uma diretriz pode fazer com que os prescritores não levem a sério as situações que podem levar a uma piora. Esse certamente foi o meu caso.

Meu psiquiatra parecia estar concentrado principalmente nos sintomas psicológicos que poderiam reaparecer quando a medicação fosse suspensa, porque esses sintomas haviam sido suprimidos anteriormente. O fato de eu não ter me tornado suicida ou desenvolvido uma psicose, foi considerado um marcador mais importante do que os sintomas físicos que descrevi para ele. Mas você sabe, eu nunca sofri de psicose em minha vida; a medicação foi prescrita para que eu pudesse dormir. Portanto, não é de surpreender que eu não tenha tido uma recaída na psicose. Os sintomas que eu apresentava eram considerados incômodos, mas insignificantes. Eles foram incluídos nas queixas somáticas que eu havia apresentado anteriormente como motivo para a redução do tratamento. Mas, na verdade, essas coisas não se comparavam em nada. Os sintomas (físicos) de abstinência eram realmente incríveis. O fato de eu ter perseverado diz mais sobre minha força de vontade do que sobre a ferocidade dos sintomas. Portanto, quero enfatizar a importância de levar essas indicações muito a sério. Se você responder a tempo, há uma boa chance de que um pequeno ajuste no cronograma de descontinuação possa ajudá-lo a ficar estável novamente. Essa é uma responsabilidade conjunta do prescritor, da pessoa que está interrompendo o tratamento e de seus entes queridos. É muito importante que todas as partes se envolvam. Entretanto, como profissional, o prescritor tem um papel de liderança aqui.

Monique: Em todos os blogues, artigos e vídeos que tratam de redução gradual e abstinência, é aconselhável nunca reduzir a dose sem consultar o médico responsável pelo tratamento. Considerando a gravidade de seus sintomas de abstinência, e também os meus, só posso concordar. Obviamente, é de extrema importância que os prescritores se informem sobre as informações recentes disponíveis e que não confiem cegamente nas diretrizes, especialmente naquelas partes das diretrizes que não incorporam os mais recentes desenvolvimentos e percepções científicas. A Stichting Pill fundamentou meticulosamente esse fato em sua resposta ao Documento Multidisciplinar 2023 “Phasing Out Other Antidepressants” (Eliminação gradual de outros antidepressivos). Por exemplo, os sites theinnercompass.org e survivingantidepressants.org contêm uma riqueza de conhecimento experimental. No site Mad in The Netherlands, temos um excelente vídeo informativo do IIPDW sobre abstinência segura e sintomas de abstinência, apresentado pelo experiente pesquisador clínico, Dr. Mark Horowitz. A Vereniging Afbouwmedicatie preparou um documento que lista várias opções para obter medicação personalizada.

Durante a abstinência, você lutou contra os sintomas de abstinência apenas com a força de vontade, porque seu psiquiatra lhe disse que eles seriam de curta duração. Essa suposição estava correta?

Anniek: Depois do último comprimido, recebi um cartão da minha sogra. Ela me parabenizou e me desejou força nessa “nova fase”, o que diz algo sobre como eu me sentia naquele momento. Quando parei completamente de tomar a medicação, eu estava completamente exausta. Em minha mente, a palavra “náufrago” aparecia regularmente, de forma involuntária. Mas eu ainda conseguia me encontrar com as pessoas durante parte do dia, cuidar um pouco da casa, dirigir distâncias curtas, andar de bicicleta ou caminhar um pouco. Ainda não havia sintomas de super estimulação auditiva e visual grave, nem crises de choro. O problema era principalmente a piora constante da fadiga crônica que eu vinha sofrendo desde que comecei a tomar a medicação.

Entre abril de 2020 (último comprimido) e agosto (4 meses depois), eu ainda não estava tão preocupada. Achei que meus sintomas de abstinência restantes melhorariam. Ainda não era exigido muito de mim, eu não tinha obrigações, o que significava que ainda podia fazer algumas coisas, como ser voluntária para ministrar um curso de abstinência na Enik Recovery College. Nesse meio tempo, porém, eu estava começando a mudar minha opinião sobre o conteúdo do curso de autoajuda que estava ministrando. Não queria dizer aos participantes o que fazer, mas sentia uma necessidade cada vez maior de alertá-los sobre a abstinência.

Em 8 de agosto de 2020, percebi pela primeira vez que algo estava errado em minha cabeça. Junto com meu marido e seus pais, fomos visitar meu cunhado. No carro, a caminho de lá, eu já estava, de uma forma desconhecida para mim até então, exausta. Não conseguia mais acompanhar a conversa, não conseguia focar e me faltava concentração. Os músculos do meu rosto e da minha cabeça estavam tão contraídos que meu rosto estava congelado; eu não conseguia mais fazer expressões faciais. Deitei-me na cama para descansar; normalmente, eu me recuperava depois de um tempo. Fiquei deitada por uma hora, mas nada mudou. Ainda tenho essa sensação estranha na cabeça. Normalmente, ela desaparecia depois de um tempo, mas, dessa vez, não funcionou. A partir daí, minha saúde se deteriorou muito rapidamente.

No dia 9, comecei meu programa de reabilitação em Winnock. O curso de atividades graduais realmente me atraiu, pois dava muito mais apoio do que o que eu havia experimentado com a psicossomática no sistema de saúde mental. Mas logo todas as atividades, por mais curtas que fossem, tornaram-se excessivas. Na primeira semana, pedalei 4 km em minha bicicleta normal. Na segunda semana, tive de usar a bicicleta elétrica e mal consegui pedalar 4 km; antes da redução gradual, eu podia pedalar facilmente de 50 a 100 km por semana em uma bicicleta normal. No final da segunda semana, eu não conseguia mais participar do grupo. Não conseguia mais me sentar. Só conseguia me deitar e chorar. Não de tristeza; eu não entendia o que estava acontecendo comigo. Eu chorava de exaustão.

Monique: O que você diz é tão reconhecível. Eu mesma esperava me sentir muito melhor depois de seis semanas de “desintoxicação”, mas foi o contrário. Fiquei mais doente do que nunca. Depois de sete meses, comecei um programa de reabilitação no CIR . Parte do programa incluía exercícios. Mas, em vez de aumentar a força, as coisas pioravam a cada dia; eu conseguia fazer cada vez menos exercícios, com menos frequência e por um período de tempo mais curto. Era uma espiral negativa. Felizmente, decidimos de comum acordo que, aparentemente, era muito cedo para treinar e, em vez disso, nos concentramos na atenção plena, descobrindo o que me dá energia e o que a consome, praticando a consciência corporal e a gentileza. Tive um psicólogo muito bom que entendia minha raiva, o que abriu espaço para o luto. Frequentemente caminhávamos ao ar livre, passeando suavemente pelo parque. Isso era bom. E eles também me ensinaram a assumir o controle de mim mesma, a entender os sinais do meu corpo e a reagir a eles, independentemente do que os outros pensam.

Acho que, além de continuar a reduzir o ritmo apesar de seu corpo indicar que estava ficando muito pesado, esse foi outro daqueles momentos cruciais, de fazer ou não fazer. É isso mesmo?

Anniek: Sim. Saí de férias com meu marido para uma ilha de Wadden por alguns dias em setembro daquele ano. Não era mais possível andar de bicicleta. Ainda consegui andar um pouco, consegui sentar no ônibus e saímos para jantar juntos. Aproveitamos o máximo que pudemos. No trem, a caminho de casa, veio o golpe. Depois, veio novamente aquela exaustão imensa que tornava impossível pensar e agir.

A partir de então, eu me deteriorei como uma louca, e a luta para conseguir o atendimento adequado também começou. Fiquei tão mal que não era mais possível sentar, ficar em pé, comer e beber. Uma conversa de 15 minutos já era demais. Em poucos meses, perdi cerca de 2,5 quilos. Com exceção de me darem fórmula para beber, praticamente nada aconteceu em termos de ajuda. Meu medo e minha ansiedade aumentaram devido à extrema intensidade da minha doença, que não era suficientemente reconhecida. Eu não entendia o que estava acontecendo comigo. Nunca havia experimentado algo tão intenso e senti que estava realmente ficando danificado e fui dominada por uma exaustão gigantesca e muita dor. Para minha consternação e tristeza, também fui estigmatizada e abandonada pelos profissionais de saúde. Não sei dizer se isso se deveu à diretriz que previa que eu não poderia ter sintomas graves a longo prazo depois de parar de tomar o medicamento, ou se foi por causa do meu passado, que automaticamente presumiu que seria “psicológico”.

Acredito que agosto e setembro foram meses críticos. Se eu tivesse sido aconselhada a reiniciar a medicação o mais rápido possível, talvez tivesse conseguido interromper a deterioração a tempo. Estar tão doente como estive de setembro a janeiro é indescritível. Acho que não teria sobrevivido se não tivesse retomado a medicação.

Monique: Entendo o que você está dizendo. Curiosamente, tenho exatamente a sensação oposta, de que não teria sobrevivido com os comprimidos. Naquela época, eu já havia lido relatos de outras pessoas com acatisia de que, quando você recomeça a partir de um sistema nervoso central desregulado, depois de um tempo maior sem medicação (ou seja, mais de um mês), os resultados são diferentes. Portanto, para mim, era impensável recomeçar. Meu corpo reagia de forma tão extrema a cada pequena substância que eu tinha medo de adicionar qualquer outra coisa quando não podia prever o resultado. No entanto, conheço uma pessoa que quase não teve problemas de abstinência após reiniciar o uso da quetiapina depois de não tomar o medicamento por quase dois anos. Também conheço você, cuja retirada estagnou; não melhorou nem piorou. Quanto a mim, agora sei que estou melhorando sem reiniciar a medicação.

Quando digo isso, sinto-me culpada, dadas as suas circunstâncias. Sei o quanto eu também sofri e o quanto foi necessário para chegar onde estou agora, mas parece injusto; você trabalhou tanto quanto eu…

É evidente que não existe uma resposta “única” para a abstinência extrema que experimentamos ao reduzir a dose muito rapidamente. No seu caso, você diz que teria perdido o controle sem a medicação. Então, reiniciar era sua única chance?

Anniek: Infelizmente, demorei mais do que o necessário para recomeçar. Tentei resolver o problema desde o início de outubro de 2020, primeiro abordando meu último psiquiatra. No entanto, ele me desencorajou a recomeçar, assim como um colega do departamento de farmacogenética. Em novembro, perguntei a um farmacêutico que também me desaconselhou a recomeçar. Em seguida, visitei um internista empático que me encaminhou a um neurologista que me aconselhou (com menos empatia) a tentar a fisioterapia psicossomática (à qual foi recentemente comprovado que meu corpo não reagia bem). Como esse neurologista também achava que eu deveria assumir a responsabilidade sozinha se quisesse melhorar e perdi a esperança de obter ajuda adequada, comecei a tomar quetiapina novamente por puro desespero no final de dezembro de 2020. Meu médico de família já havia sugerido isso como uma opção. Como estava recebendo mensagens contrárias e parecia uma “perda” começar de novo, eu não havia tomado até então. Finalmente, arrisquei começar de novo. O medicamento começou a fazer seu trabalho depois de quatro semanas. Embora a deterioração tenha sido interrompida a partir de então, infelizmente também não houve progresso real. Nesse meio tempo, eu ainda não tinha apoio para meus persistentes sintomas de abstinência e não tinha um médico que estivesse pensando ativamente sobre quais investigações ou soluções eram possíveis naquele momento. Eu realmente me senti abandonada ao meu destino.

Monique: Como você deve ter se sentido solitária… Lembro-me de como tive uma sensação semelhante. Ninguém conhecia uma solução tão rapidamente, então eu mesma tive que encontrar uma. Eu simplesmente não tinha ideia de onde e o que procurar. Na verdade, esse sentimento naquela época, essa busca solitária e sem esperança enquanto eu estava mortalmente doente, foi a base para o Mad in Netherlands (facilitar o acesso às informações)

Você mencionou que sua deterioração foi interrompida desde o reinício da medicação, mas não melhorou. Como tem sido seu quadro clínico desde então?

Anniek: Estou sempre sentindo dor. Meu corpo reage de forma tão extremamente violenta ao som que parece que estou sendo torturada. É uma agressão ao meu corpo quando, por exemplo, a caldeira do aquecimento central é ligada. Fico com náuseas, tenho vontade de vomitar, desmaio e choro sem motivo. Estou muito cansada por causa disso e continuo piorando. A pior parte é que não consigo mais ficar com ou sem as pessoas. Assim que alguns sons se misturam (chaleira, bip do telefone), fico completamente super estimulada. Por esse motivo, uma conversa descontraída com amigos ou familiares não é mais possível. Como resultado, não posso mais ver os primos que tanto amo. Não posso ir ao vilarejo para fazer alguma coisa, tomar sorvete ou simplesmente dar uma volta. Essa super estimulação sonora está sempre presente; não há dias bons. Todos os dias, tenho que me recolher de 4 a 8 vezes em um quarto escuro com isolamento acústico. Na verdade, quase tudo que tornava minha vida divertida (música, corrida, passear com os cães, conversas com amigos, trabalho) se tornou impossível. Não me reconheço mais como a mulher deficiente que me tornei.

Na verdade, há super estimulação e sub-estimulação ao mesmo tempo. Se faço alguma coisa, não tenho sucesso por causa do excesso de estímulo. Se não faço nada, fico infeliz por causa da sub-estimulação. Fico entediada, sem variedade e me sinto isolada de tudo e de todos. Chegamos a investigar se a surdez voluntária seria uma solução. Sempre fomos desaconselhados, pois a super estimulação não vem dos ouvidos, mas do cérebro. Eu teria gostado de tentar, mas a ideia de que a situação poderia piorar não me atrai.

Monique: Então, não houve nada que tenha ajudado?

Anniek: Bem, alguma coisa. Por causa de um comentário em um grupo do Facebook para “pessoas com lesão cerebral não congênita (NAH) e super estimulação”, eu me internei na ala de crise em fevereiro de 2021 para fazer um NPO (exame neuropsicologico). Eu esperava ser levada mais a sério quando fosse comprovado que meus sintomas não eram psicológicos. Um neuropsicólogo ambulatorial, que não me estigmatizou, garantiu que eu recebesse apoio de profissionais do NAH. De fato, como eu mesmo sempre ressaltava, não foram identificados indícios de problemas psicológicos subjacentes. Com isso, o aconselhamento por profissionais do NAH começou de fato em julho de 2021. A ajuda deles foi excelente. Infelizmente, isso parou quando nos mudamos para o extremo norte, em abril de 2022, na esperança de que a tranquilidade de lá me daria uma chance real de recuperação. O próximo especialista que visitei depois disso novamente não acreditou que eu tivesse danos causados por drogas….

Monique: Como deve ter sido frustrante passar por tantos especialistas, ter de provar repetidamente que seus sintomas não são psicológicos e lutar pelo reconhecimento de seu problema – isso é pedir migalhas, não é?

Quando você entrou pela primeira vez no sistema de saúde mental porque estava lutando contra problemas psicológicos, sem dúvida tudo o que você disse foi levado muito a sério. Mas então, depois de anos de tratamento terapêutico eficaz em que você demonstrou um tremendo crescimento pessoal, cada queixa que você menciona devido à abstinência não é mais levada a sério – ou é atribuída a um “retorno” ao seu transtorno original. É estranho ter perdido sua credibilidade apesar de seu enorme crescimento pessoal…

Eu também posso reverter essa situação. Quando eu mesmo procurei um psiquiatra por causa de um luto perturbado, que eu mesmo achava ser um problema mental, recebi uma solução química, pois havia uma suposta falta de uma substância para a qual eu precisaria de medicação por toda a vida, de acordo com meu psiquiatra. Mas quando parei de tomar essa substância química, meus sintomas de abstinência passaram a ser subitamente psicológicos.

Tenho certeza de que há uma lesão cerebral química traumática (TCBI – sigla em inglês referente a traumatic chemical brain injury).

Na verdade, há um achado correspondente ao de seu exame neuropsicologico. Nos grupos de abstinência, eles costumam usar termos como “PAWS”, Síndrome de Abstinência Pós-Aguda, ou “PWS”, Síndrome de Abstinência Prolongada.

Teria feito alguma diferença para você se não tivesse tido que lutar tanto para encontrar ajuda para seus sintomas?

Anniek: Sim, de fato… As pessoas falam regularmente sobre meu desejo de eutanásia. Mas não é um desejo. É uma alternativa para que eu mesma faça isso em um dia insuportável, porque, no fim das contas, não posso sustentar isso. Como sei que vou morrer, eu estava mais preocupada em como acabar com minha vida adequadamente do que em desejar que eu queira minha antiga vida de volta. Recentemente, quando um cuidador espiritual perguntou como as coisas aconteceram dessa forma, senti que teria feito uma grande diferença se os médicos tivessem acreditado em mim e, de forma convincente, feito o melhor que podiam por mim. Agora eu desperdicei muita energia tentando convencê-los.

É por isso que acho muito importante informar às pessoas que as queixas de descontinuação, assim como o paciente, devem ser levadas a sério.

Nunca foi minha intenção brigar com meus prescritores. Em uma conversa normal, eles não pareciam querer me ouvir. Eles continuavam voltando às suas diretrizes com informações desatualizadas, onde quase não havia espaço para compreensão ou compaixão. Mas quando uma paciente se senta à sua frente e lhe diz quanto desconforto ela está sentindo, pode-se supor que ela não está dizendo isso apenas por diversão. Que esse especialista procurará o motivo pelo qual os sintomas se desviam da diretriz e o que pode ser feito a respeito? Mas, como eles sempre olhavam primeiro para o arquivo, não conseguiam mais analisá-lo objetivamente. Eles continuaram atribuindo meus sintomas a um transtorno de personalidade não objetivável que, de acordo com o DSM, não precisa ser permanente e que estava em remissão há 10 anos. A possibilidade de haver uma conexão com a medicação era sempre descartada cegamente porque não podia ser comprovada por mim. Não importava se eu apresentasse seis artigos de pesquisa sobre a síndrome de abstinência e como ela é frequentemente mal interpretada. Eu era um paciente do sistema de saúde mental e aparentemente perdi minha voz com isso….

Eu nunca quis brigar. Para mim, era importante aprender com meu caso, não prejudicar os psiquiatras. Mas se ninguém quiser ouvir, é fácil cair na briga de qualquer maneira. De que outra forma você pode se tornar visível?

Em 2020, Charlotte Bouwman realizou um evento no Ministério da Saúde. Eu também pensei uma vez, deixe-me sentar lá. Mas não poderia fazer isso em meu estado. Eu seria arrancada do Binnenhof (Parlamento holandês) numa pilha de nervos, chorando e super excitada.

Sinto-me tão sem poder. Há anos procuro jornalistas, mas parece que, de alguma forma, minha história não pode ser contada. É por isso que sou grato por você estar escrevendo para a Mad in the Netherlands. Eu realmente não quero difamar os psiquiatras. Estou bem ciente de que meu lado da história é apenas um lado e que há outros lados também. Eu entendo isso. Mas desde que adoeci, me sinto um lixo. Isso não se aplica às pessoas ao meu redor. Todas elas estão ao meu lado. Elas acreditam em minha palavra. Elas simplesmente veem como minha vida se tornou insuportável. Mas, ao que parece, os médicos estão autorizados a me deixar entregue ao meu destino. As próprias pessoas que deveriam ser capazes e estar dispostas a me ajudar não pareciam se importar. Pelo menos foi o que pareceu para mim.

O que considero terrivelmente problemático é que quase todos os médicos que me disseram que o dano era plausivelmente devido às pílulas não anotaram isso em meu prontuário para que a batalha começasse novamente com a próxima pessoa. Por exemplo, uma vez um especialista me disse que era lógico que eu tivesse sintomas porque o medicamento era uma espécie de filtro sedativo que, se fosse retirado de repente, poderia causar super estimulação do sistema nervoso. Isso realmente me pareceu um reconhecimento. Infelizmente, o especialista não escreveu nada sobre isso em meu prontuário, de modo que, na próxima vez em que fui a outro médico, tive de recomeçar a batalha de que se tratava de danos causados pela medicação.

Não entendo por que as pessoas puderam me tratar dessa maneira…

Monique: Entendo sua tristeza. Parece que os médicos às vezes relutam em admitir o suposto erro por causa de suas apólices de seguro e de responsabilidade civil. Os termos da apólice parecem exigir que eles se abstenham de qualquer promessa, declaração ou ação da qual se possa inferir a admissão de responsabilidade ou que possa prejudicar os interesses da seguradora. No entanto, de acordo com o contrato de tratamento médico, o médico também tem o dever de divulgação. Seus médicos podem ter compartilhado algo diferente verbalmente do que no papel por esse motivo.

Anniek: Mas aí surge um problema circular, não é mesmo? Se o simples fato de pedir ajuda para o sofrimento não é ouvido porque as pessoas acham que a necessidade ainda não existe, então você automaticamente começa a gritar por ajuda, para deixar claro a importância. Mas isso pode ser rapidamente rotulado como psicológico, o que faz com que você fique com raiva e peça para ser ouvido. Mas, ao fazer isso, você força seu conselheiro a assumir um papel defensivo, oposto ao seu, e não ao seu lado. E enquanto eu anseio por reconhecimento, o médico está ocupado satisfazendo as condições de sua política. Não se trata mais de mim. Então, qual é a resposta que ainda está correta? Como posso ser ouvido?

Monique: Minha solução foi me distanciar completamente dos medicamentos e dos médicos, não usar minha energia para lutar por justiça e reconhecimento, mas cuidar de mim mesma e reconhecer e fazer justiça por mim mesma. No entanto, isso me deixou terrivelmente solitária. E será que essa é uma opção realista para aqueles que estão morrendo de doença? Por motivos financeiros, logísticos, cognitivos, sociais, corporais ou qualquer outro motivo, isso não é possível para todos. Além disso, em todos os lugares está escrito que é preciso abordar um prescritor. Meu desejo é que todos os prescritores busquem conhecimento experimental sobre a PAWS.

A redução gradual é tão individual que é impossível confiar em diretrizes, especialmente no que diz respeito aos antipsicóticos, pois eles agem em uma variedade de neurotransmissores (e outras formas de comunicação entre as células cerebrais), cada um com seu próprio perfil de efeitos colaterais. Além disso, embora sejam destinados a afetar o cérebro, eles também afetam os receptores em todo o corpo. Assim, os antipsicóticos de segunda geração podem causar uma variedade estonteante de problemas físicos, emocionais e cognitivos.

Em última análise, a solução não pode ser que todos os envolvidos lutem entre si e permaneçam em sua própria ilha por medo uns dos outros.

Anniek: Achei singular que especialmente os outros profissionais de saúde (fisioterapia, nutricionista) ouviram com muito mais facilidade e aceitaram o que eu disse. Obviamente, eles correm menos riscos. Entendo que não é fácil ter de atender a tantas condições, mas o aspecto humano deve ser preservado. Se, por meio dessa entrevista, houver mais compreensão por parte da profissão, isso dará ao meu sofrimento… à minha morte iminente alguma paz, algum sentido. Ainda assim.

Acho que tenho algum trabalho a fazer no próximo mês antes de poder me demitir.

Monique: Descanse, concordo plenamente com você, mas não é pedir demais? Não consigo, e sou sincera quanto a isso, não consigo encontrar paz ao perder você. Nem posso, porque assim eu pararia de lutar pela minha própria recuperação. Mas respeito sua escolha, sim. Sei como é o sofrimento insuportável, mas não há realmente nenhuma maneira de eu, ou, mais importante, a comunidade, ainda poder ajudá-la?

Anniek: Minha vida é uma combinação de super estimulação e sub-estimulação ao mesmo tempo. A super estimulação de som e luz faz com que eu não sinta nada, de modo que quase não consigo mais sentir felicidade. Isso também torna as coisas difíceis. Não tive uma vida fácil, mas eu realmente tinha minha vida em ordem com trabalho, educação, contatos divertidos e atividades antes da diminuição dos medicamentos. E agora fico deitado na cama pensando em ideias do que posso fazer. Então, fico empolgada e me levanto, o que me deixa imediatamente “sem chão”. Consegui realizar algumas pequenas coisas, mas isso levou muito tempo e lágrimas, porque eu sentia que não conseguia realizar o que queria. Na época, nos mudamos para Groningen porque, cercado pelo barulho em Utrecht, eu me sentia ainda mais mal do que aqui. Somente aqui podíamos pagar por uma casa independente. Este não é o lugar ideal, mas esse lugar também não existe. Procuramos em vão por cerca de 3 anos por soluções, também pedindo e recebendo ajuda de parentes. Dentro da Holanda, é muito movimentado em termos de pessoas e barulho; fora da Holanda, minha rede de segurança e meus benefícios acabaram. Onde quer que eu vá ou venha, há muito barulho para mim. Sempre havia algo, tanto dentro quanto fora de casa. Não importa o quão remoto seja, 10 em cada 10 vezes dá errado quando me aventuro fora. Não há progresso, embora eu ame muito estar do lado de fora.

Monique: Você acha que a eutanásia é uma oportunidade única na vida? Que é agora ou nunca?

Anniek: Não, mas também acho que não fica mais fácil para mim quando procrastino. Eu me permito descansar apesar da culpa que sinto pelas pessoas que deixo para trás. A eutanásia é, sinceramente, a coisa mais difícil que já fiz. Tive de confiar nos médicos para fazer isso novamente. Além disso, por estar consciente da eutanásia, em relação à dor das pessoas que deixo para trás, acho isso terrivelmente difícil. Além disso, porque na verdade quero minha vida de volta acima de tudo. Na verdade, quero ser capaz de viver. Portanto, é de fato muito mais fácil morrer impulsivamente. Mas sinto pena de meus entes queridos, não posso fazer isso com eles. Além disso, eu ainda morreria oficialmente como um paciente psiquiátrico que cometeu suicídio e também não conseguiria suportar isso…

Monique: Quando você explica dessa forma, eu o entendo ainda mais a sua escolha. Há mais alguma coisa que você queira dizer para concluir?

Anniek: Estou extremamente feliz por meus entes queridos terem acreditado em mim imediatamente quando fiquei doente. Eles acharam o contraste tão grande entre o que eu era e como me tornei após a interrupção da pílula que não duvidaram de minha história. Eu sabia que meu marido, minha família e muitos amigos estavam me apoiando e confortando. Também surgiram novas pessoas em meu caminho que estavam lutando contra os sintomas contínuos da abstinência. Juntos, às vezes encontrávamos o reconhecimento necessário que muitas vezes faltava aos profissionais.

Eu gostava do fato de haver pessoas que buscavam soluções e que ajudavam a fazer com que minha voz fosse ouvida. Mesmo quando ela não trazia o que eu esperava. Sem eles, tudo teria sido pior….

 Em 16 de fevereiro de 2024, uma de minhas amigas de reabilitação morreu, devido ao sofrimento contínuo, por eutanásia. Ela morreu porque não conseguia mais conviver com a tortura diária que a retirada contínua dos psicofármacos lhe causava. Eu fiz da entrevista, além de me despedir dela, meu próprio adeus à terrível solidão de uma doença desconhecida e não reconhecida. Eu esperava que um dia pudesse fazer a diferença para Anniek. No final, entendi que já havia feito a maior diferença para ela quando simplesmente acreditei no que ela disse, reconheci seu sofrimento e continuei ao seu lado o máximo que pude. Espero que as pessoas responsáveis pela prescrição de psicofármacos e pela decisão de prescrever doses menores para que o sofrimento possa ser evitado assumam seu papel.

Este artigo foi co-patrocinado por Pauline Dinkelberg e pela Association of Discontinuing Medication.

Essa associação de pacientes representa os interesses das pessoas que desejam reduzir de forma responsável ou interromper completamente a dosagem de seus medicamentos. Eles estão trabalhando arduamente para aumentar a conscientização sobre a redução responsável da medicação e para obter o reembolso da medicação de redução gradual no pacote básico do seguro de saúde.

O artigo foi traduzido por Carol Vlugt, da Association of Opioid Withdrawal. Essa associação informa, apoia e aumenta a conscientização sobre a retirada de opiáceos da forma mais segura possível.

Foto da capa por Anniek Lemmens: Infinito

Anniek Lemmens

Let me go, in love
Para onde tudo é silencioso, calmo
Posso ser livre novamente
No espaço sem dor
Sem som

Deixe-me ir
Deixe meu amor com você
Torne-se um com a natureza
Sua vida, nossa alegria
Suas tempestades, nossa voz

Se você puder,
Viva um pouco mais por mim

Festeje seus olhos, festeje
seus ouvidos
Cuide dos frágeis
Sorria para dois
Leve-me a todos os lugares com você

Vivam bem, amantes

 

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Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens foram elaboradas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são dos próprios escritores.

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante.

 

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