Práticas Iatrogênicas em Psiquiatria: Sensibilização ou Reações Desencadeantes

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Nota do editor: Reproduzimos aqui o artigo da Dra. Laura Guerra, originalmente publicado no Mad in Italy, pela sua importância e urgência do debate sobre o tema. Os sites Mad in Brasil e o Mad in Italy passarão a traduzir e divulgar textos publicados nos dois sites, na intenção de estreitar ainda mais os laços entre os dois países. O presente texto foi traduzido para o português por Paulo Amarante. 

Algumas práticas psiquiátricas podem ter consequências muito dolorosas e desestabilizadoras, por vezes de enorme sofrimento, para a pessoa em tratamento farmacológico, como o kindling ou a sensibilização neuronal. Kindling é uma condição neurológica que ocorre como resultado de repetidos episódios de abstinência e reintegração de diversas drogas psicotrópicas, álcool e drogas. Após cada episódio, os sintomas de abstinência pioram e também podem se manifestar como convulsões, psicose e/ou morte. Essencialmente, o desenvolvimento desta hipersensibilidade pode causar reações anormais quando o mesmo medicamento ou um medicamento diferente é reintroduzido.

Premissas 

Em nossas informações sempre destacamos que os psicotrópicos não têm ação específica sobre problemas mentais ou psicopatologias, mas apenas sobre seus sintomas. Os problemas mentais têm origens relacionais, culturais e sociais e devem ser abordados deste ponto de vista, principalmente com intervenções psicoterapêuticas e sociais, limitando o uso de psicotrópicos a períodos muito curtos, quando estritamente necessário.

A psicofarmacologia nos ensina que os psicotrópicos atuam nos sintomas do sofrimento mental como substâncias psicoativas, alterando as funções cognitivas e emocionais, sedando e criando embotamento emocional ou aumento artificial do humor.

Para esclarecer melhor esses conceitos, “psicose”, “depressão”, “ansiedade”, “transtorno bipolar”, “TDAH” e outros, os mesmos não são transtornos de origem orgânica ou genética, causados ​​por “desequilíbrios químicos cerebrais” e drogas psicotrópicas não têm a função de restaurar qualquer equilíbrio.

Na verdade, eles próprios criam um desequilíbrio químico, que será responsável pelos fenômenos de tolerância e dependência. Como consequência, após um determinado período de tempo já não produzirão o efeito desejado e não será possível interrompê-los muito rapidamente, caso contrário haverá sintomas de abstinência, por vezes muito perigosos.

Como já foi mencionado, os medicamentos psicotrópicos podem ser úteis a curto prazo para gerir estados agudos de sofrimento mental, mas depois devem ser suspensos com segurança, sob supervisão médica especializada, com o auxílio de psicoterapia para abordar as causas do próprio sofrimento.

Os tratamentos a longo prazo, de fato, são contraproducentes, pois podem cronificar os sintomas  e também ter efeitos secundários significativos, comprometendo assim a qualidade de vida e encurtando o seu curso.

Apesar disso, a adoção do modelo orgânico pela grande maioria dos serviços de saúde mental, tanto na Itália como em outros países economicamente desenvolvidos, tem como consequência um uso massivo de psicotrópicos em detrimento de intervenções psicoterapêuticas e sociais, que serviriam, em vez disso, para abordar adequadamente o sofrimento psicológico.

Práticas potencialmente perigosas em psiquiatria – Fenômeno Kindling

Muitos psiquiatras, sem preparo para lidar com o processo de retirada de psicotrópicos com segurança, numa tentativa de suprimir os sintomas de sofrimento mental ou os efeitos de abstinência causados ​​por suspensões mal administradas, acrescentam e retiram com grande facilidade e em curto espaço de tempo diferentes psicotrópicos, não respeitando os protocolos para sua suspensão segura.

Esta prática, amplamente utilizada, também pode ter consequências muito perigosas e causar enorme sofrimento psicofísico, como consequência da sensibilização dos receptores do sistema nervoso ou do kindling.

Por causa do kindling, algumas pessoas que tiveram pouca dificuldade em interromper um medicamento na primeira vez, quando reintroduzidas ou trocadas por outro medicamento, podem apresentar sintomas de abstinência muito piores quando tentam abandoná-lo novamente.

Na verdade, o sistema nervoso, devido aos múltiplos eventos de abstinência e aos efeitos adversos dos medicamentos, torna-se desestabilizado e sensibilizado.

Além disso, ao tomar e interromper vários psicotrópicos, você pode se deparar com uma situação ainda mais complexa que consiste na reação de abstinência da droga sobreposta à reação de sensibilização ou de kindling.

E, mais ainda, durante a fase de kindling, a hipersensibilidade também pode desenvolver-se com substâncias psicoativas ou ativadoras, como cafeína, vitaminas, suplementos, determinados alimentos, álcool, etc., que podem causar reações indesejadas e por vezes perigosas.

Evite pular doses durante a suspensão: fenômeno de kindling ou sensibilização

Às vezes, para reduzir os medicamentos psicotrópicos, prescritores inexperientes recomendam pular doses do medicamento, por exemplo, em dias alternados ou a cada dois ou três dias. Este método não é recomendado porque provoca oscilações na concentração do medicamento no sangue e, portanto, no sistema nervoso, mesmo no caso de medicamentos com meia-vida longa como a fluoxetina (Prozac). Quando os tratamentos assumem um padrão irregular como o descrito acima, a pessoa fica predisposta a reações de sensibilização ou kindling e à chamada “resistência ao tratamento”. A sensibilização ou kindling pode ser definida como a amplificação da resposta a exposições repetidas e intermitentes a um estímulo (Bell et al. 1999).

A sensibilização é, portanto, consequência de repetidos episódios de abstinência e reintrodução da substância psicotrópica e quando é desencadeada leva à exacerbação das reações adversas que ocorrem com alterações de dosagem ou introdução de outras substâncias.

Essa condição pode durar com o tempo e às vezes ser permanente. Devido ao fenômeno de sensibilização, cada reação de abstinência conduz a sintomas de abstinência mais graves do que os episódios anteriores.

A sensibilização ocorre especialmente em pessoas que já tentaram várias vezes parar de tomar medicamentos e a quem o médico prescreveu tratamento farmacológico agressivo, confundindo os sintomas de abstinência com uma recaída de sofrimento mental, com o aparecimento de um novo transtorno ou com uma “incapacidade de resposta” ao tratamento farmacológico. 

Para evitar esse fenômeno, quando os psicotrópicos são interrompidos repentinamente ou muito rapidamente, o medicamento deve ser reintroduzido em pequenas doses. Se os sintomas de abstinência melhorarem, mas não significativamente, a dose pode ser aumentada um pouco. Caso a reintrodução do medicamento gere piora dos sintomas, a reação poderá ser contida com uma pequena dose, conforme explicado mais detalhadamente no próximo parágrafo (Framer, 2021).”.

O livro então lista métodos para evitar ou limitar os danos causados ​​pelo kindling. Geralmente a sensibilização ou inflamação causa reações de superestimulação, como sensação de descarga elétrica interna, ansiedade, depressão, nervosismo, insônia, pânico e, em casos extremos, acatisia, que inclui a necessidade de se movimentar continuamente para aliviar a intensa agitação interna e que às vezes é tão insuportável que você quer morrer.

Os mecanismos subjacentes ao kindling ainda não estão esclarecidos, mas no caso dos benzodiazepínicos, substâncias mais estudadas em conjunto com o álcool para esse efeito, alguns estudos levantam a hipótese de um papel do sistema excitatório do glutamato, implicado na regulação da ansiedade e do limiar convulsivo em conjunto com o GABA, o receptor alvo da benzodiazepina. A excitação que ocorre após tentativas subsequentes de retirada dos benzodiazepínicos pode, portanto, levar a um aumento na gravidade da ansiedade e a uma diminuição do limiar convulsivo.

 

Referências bibliográficas:

  1. Maviglia, Laura Guerra, M. Gandolfi. Suspensão de psicotrópicos: como e por quê – Construindo um caminho personalizado e eficaz. A Fábrica de Sinais (2024)

2. Suspender drogas psicotrópicas: como e por quê – Construindo um caminho personalizado e eficaz – Mad in Italy (mad-in-italy.com)

3. Breggin. A suspensão dos psicotrópicos, manual para prescritores, terapeutas, pacientes e seus familiares. Fioriti Editora (2018)

4. A suspensão dos psicotrópicos, um manual para prescritores, terapeutas, pacientes e seus familiares – Mad in Italy (mad-in-italy.com)

5. Moldador. O que aprendi ajudando milhares de pessoas a reduzir gradualmente os     antidepressivos e outros medicamentos psicotrópicos. O Adv Psicofarmacol. 2021 março.doi: 10.1177/2045125321991274.

6. Michael P. Hengartner, Lukas Schulthess, […], e Adele Framer. Síndrome de abstinência prolongada após interrupção de antidepressivos: uma análise quantitativa descritiva de narrativas de consumidores de um grande fórum na Internet. Diário do Sábio (2020) https://doi.org/10.1177/2045125320980573

7. Sobrevivendo aos antidepressivos (2022). Hipersensibilidade e Kindling

8.Hipersensibilidade e Kindling – Sintomas e autocuidado – Sobrevivendo aos antidepressivos

9. Niki Gratrix. Kindle/Ignição Límbica: Hard Wiring/A fiação cerebral para hipersensibilidade e síndrome de fadiga crônica. Estudos e Pesquisas (2018)

10. healthrising.org/blog/2014/05/17/limbic-kindling-hard-wiring-brain-hypersensitives-chronic-fatigue-syndrome/

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Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Cinco)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele continua a discussão sobre a manipulação dos testes de pílulas para depressão para crianças e adolescentes pela indústria farmacêutica. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

O grande estudo TADS sobre fluoxetina, financiado pelo NIH, foi seriamente mal relatado

Houve um único ensaio independente de fluoxetina para adolescentes, o Estudo de Tratamento da Depressão Adolescente (Treatment for Adolescents with Depression Study – TADS) do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, publicado em 2004(322). Este ensaio foi muito grande e teve uma influência significativa.

Adolescentes com depressão (n = 439) foram randomizados para quatro grupos de tratamento: fluoxetina isolada (n = 109), terapia cognitivo-comportamental (TCC) isolada (n = 111), fluoxetina com TCC (n = 107) ou um placebo em pílula (n = 112) durante a fase aguda do TADS (12 semanas).

Os investigadores relataram que o tratamento combinado com fluoxetina e TCC “ofereceu a mais favorável relação entre benefício e risco para adolescentes com transtorno depressivo maior.” No entanto, o relato foi amplamente criticado. Há problemas com o desenho do estudo, relatórios estatísticos e interpretação, discrepâncias entre resumos de artigos e seu conteúdo em mais de 30 publicações da equipe do TADS, e má representação dos danos (323).

Uma revisão sistemática de 2020 criticou 19 diretrizes internacionais de prática clínica por sua dependência das descobertas do TADS sem considerar a falha dos autores do TADS em relatar adequadamente os danos causados pela droga(324).

Os autores do TADS afirmaram eficácia e segurança para a fluoxetina, que é o mantra padrão da indústria farmacêutica, independentemente dos resultados, mas ambas as afirmações estão erradas. O efeito não foi clinicamente relevante e houve o dobro de eventos suicidas em pacientes randomizados para fluoxetina do que em pacientes randomizados para placebo(322,325).

Até hoje, o relato sobre os danos continua sendo altamente deficiente(323). Dois pesquisadores que queriam corrigir isso conseguiram acesso a dados resumidos via Institutos Nacionais de Saúde(323). Esses dados indicaram que, dos 30 eventos adversos graves registrados durante a fase aguda do estudo, 12 foram tentativas de suicídio entre crianças que tomavam ISRSs, em comparação com apenas duas tentativas entre crianças que não estavam tomando ISRSs.

Em seguida, os pesquisadores tentaram obter acesso aos formulários de registros de casos e narrativas, que são essenciais para uma reanálise rigorosa, que os termos codificados e avaliações de gravidade do MedDRA (Medical Dictionary for Regulatory Activities – Dicionário Médico para Atividades Regulatórias) não permitem. A experiência anterior dos pesquisadores com a restauração do estudo (329) da GlaxoSmithKline (GSK) sobre paroxetina em crianças e adolescentes mostrou que este passo adicional é muito importante para corrigir os erros cometidos pelos investigadores originais, o que mudou significativamente os danos em desfavor da paroxetina(300).

No entanto, a Universidade Duke, onde os dados do ensaio estavam armazenados, recusou-se a entregar os formulários de eventos adversos graves do estudo, mesmo tendo assinado um acordo sobre a entrega dos dados(323). Seus argumentos para a recusa eram inválidos.

Os pesquisadores então tentaram obter os dados ausentes da Eli Lilly, que forneceu a droga para o ensaio e recebeu todos os relatórios de eventos adversos graves dos investigadores, mas a Lilly se recusou a liberar os dados e também a publicar qualquer correspondência.

Os pesquisadores também tentaram obter os dados da FDA, mas foram informados de que levaria pelo menos dois anos antes que fossem atendidos na fila.

Outras pílulas para depressão também são inseguras e os ensaios pediátricos são manipulados

Aumento do risco de suicídio e violência não se limita à fluoxetina. É um efeito da classe. Meu grupo de pesquisa utilizou os relatórios clínicos dos ensaios controlados por placebo de ISRSs e SNRIs, e descobrimos que essas drogas aumentam a tendência suicida e a agressão 2-3 vezes entre crianças e adolescentes, com razão de possibilidade de 2,39 (1,31 a 4,33) e 2,79 (1,62 a 4,81), respectivamente(326).

Antes do desenvolvimento dos ISRSs, houve 15 ensaios randomizados de tricíclicos e compostos relacionados em crianças e adolescentes, todos negativos(327). Havia um consenso clínico de que as crianças não desenvolviam depressão endógena(279). Elas podiam estar miseráveis e infelizes, mas isso era situacional e responderia a intervenções psicossociais. Associado a isso, havia quase nenhum psiquiatra infantil com experiência em psicofarmacologia.

Os ISRSs na época tinham uma ação ansiolítica, mas foram comercializados como pílulas para depressão em parte para evitar preocupações clínicas de que qualquer novo ansiolítico necessariamente produziria dependência, como os benzodiazepínicos(328). Uma meta-análise de 2017 de ensaios publicados em crianças e adolescentes confirmou que os ISRSs são essencialmente drogas ansiolíticas, pois os tamanhos de efeito foram significativamente maiores para ansiedade (0,56) e transtorno obsessivo-compulsivo (0,39) do que para depressão (0,20).329

Nossa reanálise dos dois ensaios pivotais de fluoxetina(279) deixou claro que esta droga nunca deveria ter sido aprovada para uso em crianças e adolescentes. Mas uma vez aprovado, abriu caminho para a aprovação de outros ISRSs ineficazes e perigosos.

Após licenciar a fluoxetina para crianças, com base em estudos negativos em seu desfecho primário, a FDA emitiu uma carta de aprovação em outubro de 2002 para a paroxetina, que veio à tona por causa de um caso judicial:(330) “Concordamos [com a GSK] que os resultados dos Estudos 329, 377 e 701 não demonstraram a eficácia do Paxil em pacientes pediátricos com TDM [transtorno depressivo maior]. Dado o fato de que ensaios negativos são frequentemente observados, mesmo para drogas antidepressivas que sabemos serem eficazes, concordamos que não seria útil descrever esses ensaios negativos na rotulagem.”

Esta é uma das afirmações mais horríveis que já vi um regulador de medicamentos fazer. “O medicamento não funcionou, mas sabemos que funciona.” Se assim for, por que se dar ao trabalho de fazer ensaios randomizados? É assim que praticantes de homeopatia ou medicina chinesa e outras pseudocientistas argumentam.

Na publicação inicial de 2001 do estudo 329, que foi um ensaio de paroxetina em menores deprimidos, a GSK afirmou que a paroxetina era segura e eficaz.(331) Mas um documento interno de 1998 revela que a GSK sabia que o estudo demonstrava que sua droga era ineficaz, o que a GSK considerava comercialmente inaceitável para publicar(332,333). O documento afirma que os “bons trechos do estudo seriam publicados.”

O estudo foi negativo para eficácia em todos os oito desfechos especificados no protocolo e positivo para danos. Mas a GSK distorceu os dados para conseguir o que queria (332,334). O artigo não deixou nenhum vestígio dessa distorção; na verdade, afirmou falsamente que os novos desfechos foram declarados a priori – uma fraude clássica de quem escolhe as informações que lhe são convenientes.

Com base nessas informações, o Procurador Geral do Estado de Nova York instaurou uma ação por fraude contra a GSK em 2004(122). O acordo desta ação tornou possível acessar dados do estudo (329) e restaurá-los de forma que demonstrasse a falta de eficácia da paroxetina e o aumento de eventos suicidas em contraste com a publicação original (331), que era fraudulenta. Sete crianças na paroxetina versus uma no placebo demonstraram comportamento suicida ou autolesivo (300). No artigo publicado, cinco casos de pensamentos e comportamento suicida foram listados como “labilidade emocional” e mais três casos de ideação suicida ou autolesão foram chamados de “hospitalização.”(122) Quando a FDA exigiu que a empresa revisasse os dados novamente, houve quatro casos adicionais de autolesão intencional, ideação suicida ou tentativa de suicídio, todos com o uso de paroxetina.

O primeiro autor da fraude, Martin Keller, duplicou suas despesas de viagem; foi oferecido $25.000 para cada adolescente vulnerável; recebeu centenas de milhares de dólares para financiar pesquisas que não estavam sendo conduzidas; recebeu centenas de milhares de dólares de empresas farmacêuticas todos os anos que ele não divulgou; deu palestras para pacientes e seus parentes com dinheiro da indústria, o que ele não revelou; e seus honorários foram propositalmente não declarados(122).

As más condutas de Keller não prejudicaram sua carreira, provavelmente porque seu departamento havia recebido $50 milhões em financiamento para pesquisas. Um porta-voz da Escola de Medicina da Universidade Brown disse que “a pesquisa do Dr. Keller sobre o Paxil estava de acordo com os padrões de pesquisa da Brown.” Compreensível.

O periódico que publicou o artigo de Keller, Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, foi cúmplice na fraude. Embora tenha sido mostrado aos editores do periódico evidências de que o artigo distorcia a ciência, eles se recusaram a transmitir essa informação à comunidade médica e a retratar o artigo(332). Uma explicação para essa passividade pode ser encontrada seguindo o dinheiro que vai para o proprietário do periódico

A GSK promoveu ilegalmente a paroxetina para uso em crianças, embora não fosse aprovada para crianças, e omitiu resultados de ensaios que mostravam que a paroxetina era ineficaz(335). O marketing implacável funcionou. Descrevi muitas histórias de partir o coração sobre crianças e adultos jovens que não tinham problemas mentais de forma alguma, mas que se suicidaram por enforcamento ou outros meios violentos por causa dos danos das pílulas para depressão que tomaram (6:219,7:79). Essas pessoas foram prescritas pílulas para depressão devido a insônia, término de relacionamento, estresse no trabalho ou na escola e outros problemas cotidianos.

A aprovação da fluoxetina para depressão em crianças e adolescentes e a publicação de muitos artigos desde então, muitas vezes escritos por ghostwriters (escrita-fantasma, em tradução livre), reivindicando eficácia para vários ISRSs, varreu a ideia de confiar na psicoterapia e outras formas de apoio(279).

A FDA também foi enganada por outras empresas farmacêuticas. Em 2002, quando a GSK solicitou a aprovação da paroxetina para crianças, a FDA escreveu para a empresa(330):

“Você não forneceu nenhuma análise de dados de intervalo de ECG para os estudos controlados. Os resultados fornecidos para os estudos 701 e 704 consistiam em uma contagem dos números de pacientes com anormalidades no ECG. No estudo 329, as anormalidades no ECG foram consideradas eventos adversos, mas não foram analisadas de outra forma. Para completar nossa revisão desta aplicação, estamos solicitando que você envie a análise típica realizada para esse tipo de dados; como, por exemplo, uma análise da mudança média em relação ao início do ensaio para os intervalos de ECG medidos.

A FDA, além disso, criticou uma tabela que não mostrava dados dos grupos de placebo e listava crianças tratadas com paroxetina cujos eventos adversos haviam sido codificados como hostilidade, labilidade emocional ou agitação, mas não incluía eventos adversos psiquiátricos codificados sob outros termos. A FDA solicitou os resumos de casos narrativos para aqueles eventos que eram sérios ou resultaram em descontinuação prematura.

É inacreditável que tais informações não tenham sido fornecidas na aplicação para a aprovação da droga. A GSK também foi solicitada a fornecer sua “justificativa para codificar tentativas de suicídio e outras formas de comportamento autolesivo sob o termo WHOART ‘labilidade emocional.’ ”

A paroxetina parecia prejudicar o crescimento, assim como encontramos com a fluoxetina. A FDA solicitou à GSK que testasse estatisticamente seus dados sobre altura e peso e conduzisse estudos em animais juvenis para avaliar os efeitos da paroxetina no crescimento e no desenvolvimento neurológico, comportamental e reprodutivo. No entanto, assim que uma droga é aprovada, a empresa farmacêutica tende a “esquecer” tudo o que o regulador de medicamentos solicitou. Isso pareceu ser o caso também desta vez. Eu revisei a bula da FDA para paroxetina em 2022 (336), e não havia nada que sugerisse que a GSK havia feito os estudos com animais solicitados, embora fossem muito importantes.

O folheto informativo da FDA para fluoxetina mostra o quão perigosas essas drogas são (33). Ela descreve uma meta-análise de ensaios controlados por placebo a curto prazo. Para cada 1000 crianças ou adolescentes tratados com a droga em vez de placebo por uma duração média de apenas dois meses, houve 14 casos adicionais de tendências suicidas. O número necessário para dano em uma criança, portanto, foi apenas 71.

Em 2004, a FDA emitiu um alerta de advertência na caixa de medicamento sobre pílulas para depressão com base em uma meta-análise que mostrou que a taxa de pensamentos suicidas ou comportamento suicida era de 4% entre pacientes jovens que tomavam pílula para depressão e apenas 2% entre aqueles no placebo, o que foi uma diferença estatisticamente significativa(303,337) No entanto, quando a FDA publicou o dobro do risco de suicídio em crianças em um periódico médico, eles chamaram isso de um “risco modestamente aumentado.”(338)

Enquanto a FDA estava revisando os dados, os acadêmicos das escolas de medicina que haviam publicado resultados positivos dessas drogas estavam preocupados e emitiram um relatório em janeiro de 2004 defendendo a eficácia das drogas e contestando a evidência de que seu uso aumentava o comportamento suicida.339 Os pesquisadores acadêmicos haviam contatado as empresas para ter acesso aos dados que eles próprios geraram, mas algumas empresas farmacêuticas se recusaram a fornecer os dados. Esta decisão não podia ser contestada porque as escolas de medicina, ao concordarem em conduzir os ensaios, haviam assinado acordos com os fabricantes de medicamentos que mantinham os dados confidenciais.

Centros médicos acadêmicos nos Estados Unidos criaram escritórios de ensaios clínicos e cortejam abertamente a indústria, oferecendo os serviços de suas faculdades clínicas e fácil acesso aos pacientes(340). Em vez de combater a corrupção da integridade acadêmica, os acadêmicos participam de uma corrida para o fundo ético, tornando menos provável que qualquer pessoa de fora veja os dados. A ciência se mistura ao marketing e os professores acabam como promotores, enquanto alguns cientistas da indústria ficam enojados pelo processo em que se envolveram (341), mas não podem fazer nada.

O manual didático que tem apenas psiquiatras como autores observou que algumas pessoas experimentam agitação ou ansiedade no início do tratamento, especialmente em idades jovens, com um possível agravamento de pensamentos suicidas (18:238). Não é especialmente em jovens; não se limita ao início do tratamento, mas pode acontecer a qualquer momento; e é muito pior do que apenas pensamentos. Algumas crianças se matam por causa dos danos causados pelas pílulas (7).

É cruel que a maioria dos líderes psiquiátricos diga – até mesmo na TV nacional dinamarquesa, o que Lars Kessing fez (342) – que pílulas para depressão podem ser dadas com segurança a crianças porque não houve um aumento estatisticamente significativo nos suicídios nos ensaios, apenas em pensamentos e comportamentos suicidas, como se não houvesse relação entre os dois. 

Os psiquiatras recompensam as empresas por sua fraude enquanto sacrificam as crianças. Todos sabemos que um suicídio começa com pensamentos suicidas seguidos de preparações e tentativas de suicídio.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Mulheres e Loucura: O viés de Gênero na Psiquiatria

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Los Angeles, USA - January 21, 2017: Activist screaming during Women's March Los Angeles in Downtown LA.

O artigo El sesgo de género en el discurso y en las intervenciones psiquiátricas aborda o viés de gênero que existe no campo da psiquiatria. Para tal, o artigo se divide em três partes: o viés de gênero na história da psiquiatra; análise das críticas feministas à psiquiatria atual e uma narração em primeira pessoa, resultante de uma entrevista com uma usuário de um CAPS em Florianópolis.

As mulheres são as mais diagnosticadas com depressão, mas também, com os transtornos de ansiedade, transtornos alimentares e de pânico. Além disso, a desigualdade de gênero também é verificada no fato de mulheres consumirem mais drogas psiquiátricas prescritas, principalmente antidepressivos e ansiolíticos. O artigo sustenta que essas diferenças de gênero não são naturais ou biologicamente determinadas, e propõe desconstruir tal ideia. Mas alertam para a dificuldade dessa empreitada visto que esse viés de gênero acompanha a psiquiatria desde as suas origens.

 

Nesse sentido, o livro Women and Madness de Phyllis Chesler, cuja primeira edição foi publicada em 1972 e a última edição em 2005, aparece como importante referência para este artigo. O livro atribui as diferenças de gênero nos diagnósticos ao castigo que as sociedades patriarcais impõe às mulheres, por comportamentos que são considerados socialmente inaceitáveis para elas, embora sejam admissíveis para os homens. O artigo destaca que apesar dos anos que nos separam da primeira publicação deste importante livro, pouca coisa mudou.

Poucos anos depois do trabalho de Chesler ser publicado, Franca Basaglia publica uma crítica ao livro “A inferioridade mental da mulher”, escrita pelo neurologista e psiquiatra Paul Julius Moebius no ano de 1900. Franca tem por objetivo desmontar o argumento incansavelmente repetido sobre a loucura das mulheres, mostrando a funcionalidade que certos discursos com pretensão de cientificidade tem tido ao longo da história para reforçar estigmas, para negar direitos e para legitimar a exclusão social de grupos considerados subordinados.

Desde Philippe Pinel, que inaugura a psiquiatria moderna, a loucura das mulheres é associada à genitália e aos fenômenos biológicos como a menstruação, gravidez, parto e menopausa. Pegando Moebius como referência desse saber médico-psiquiátrico sobre a loucura feminina, o artigo expõe algumas de suas estratégias para construir seus argumentos sobre a loucura e inferioridade mental da mulher.

  1. A primeira estratégia se baseia na cronometria e na anatomia cerebral comparada. Moebius compara cérebros de mulheres com cérebros de homens “normais”. E conclui que as mulheres tem o diâmetro menor, similar àqueles homens com, citando o mesmo, “deficientes mentais e idiotas”. Também situa as mulheres próximo às bestas.

 

“A semelhança das bestas carecem de opinião própria, são rígidas, conservadoras e odeiam a novidade, exceto quando o novo aporta uma vantagem pessoal ou agrada a seu amante” (Moebius, 1982, p.10).”

 

Franca questiona o valor de tal investigação ao comparar os cérebros de mulheres com o cérebro de homens (eles são a referência do cérebro “normal”, do “ideal”?), o que já deixa claro que o que baseia tais afirmações são argumentos morais e não científicos.

2. A segunda estratégia utilizada por Moebius foi o recurso da teoria da degeneração. Em 1857, o psiquiatra Benedict Morel definiu a loucura dos degenerados como um “desvio mórbido do tipo normal da humanidade”, tal degeneração era hereditária e essa transmissão deveria ser limitada. Assim, Moebius agrega uma nova patologia na galeria das degenerações: o nervosismo das intelectuais e feministas. Ele as associa ao “hermafroditismo psíquico”, que segundo ele ocorre quando se intenciona “introduzir um cérebro de homem dentro do crâneo de uma mulher”.

 

“Assim, a mulher prostituta e a mulher feminista representam os dois desvios mórbidos do estado normal representado pela mulher mãe. Por isso “uma mulher que não quer ter filhos ou que tendo o primeiro diz: “Um só e basta”, demostra, indubitavelmente, uma natureza degenerada” (MOEBIUS, 1982, p. 59). Se trata de uma patologia psíquica que afeta a mulher intelectual, feminista ou erudita, porque ali existe antagonismo entre a atividade cerebral e a procriação, duas funções intimamente ligadas, mas que perderam seu equilíbrio.”

 

Pesquisadoras e estudiosas feministas vêm criticando o machismo e misoginia presente em que tem caracterizado a psiquiatria e disciplinas afins desde o seu início. O artigo salienta duas contribuições das pesquisadoras feministas para a discussão:

  1. As etiquetas diagnósticas estão atravessadas pelas relações de poder da sociedade a qual pertencem, sendo um produto social. Portanto, os diagnósticos têm um viés de gênero.

No séc. XIX a histeria aparece como o diagnóstico principal para as mulheres numa sociedade em que estas estavam se rebelando e se organizando politicamente. Mas este tipo de mecanismo não é algo do passado, de forma até certo ponto análoga ao que aconteceu com a histeria, hoje  as mulheres que encarnam o estereótipo contraditório da mulher ao mesmo tempo sedutora, de personalidade débil e emocionalmente volátil são consideradas casos de “transtorno de personalidade limítrofe”. As mulheres também são muito mais diagnosticadas com depressão e ansiedade do que os homens, e as explicações para esse fato continuam passando por estereótipos patriarcais que não levam em consideração a raiz do problema: que a desigualdade afeta a saúde mental das mulheres.

O artigo alerta para a necessidade de se fazer consciente sobre a influência do viés de gênero na hora de avaliar os comportamentos das pessoas e considerá-los patológicos ou não. Nesse sentido, Joan Busfield (2002), sugere uma classificação de dois tipos de transtornos atuais: transtornos relacionados com a emoção, transtornos relacionados com os pensamentos (fundamentalmente a psicose), transtornos relacionados ao comportamento (adições ou transtornos de personalidade). Segundo dados, as mulheres são mais diagnosticadas com o primeiro tipo, pois se relacionam com a feminizada esfera da emoção. Já os diagnósticos relacionados ao comportamentos, como as adições, apresentam mais o homens. Enquanto que os diagnósticos relacionados ao pensamento, em sua opinião, menos suscetíveis a apresentar um viés de gênero, se distribui mais igualitariamente entre homens e mulheres.

Outro aporte relevante de Busfield (2002), é a classificação lógica dos mecanismos que podem provocar essas diferenças epidemiológicas. O primeiro é aquele que não questiona a categoria diagnóstica em si, aceita que as diferenças de gênero são reais e tenta explicar o porquê. O segundo tipo de explicação se fixa no processo de diagnóstico, identificando que o viés de gênero pode ser encontrado no momento de identificar o transtorno como tal.

2. A crítica que fazem ao efeito despolitizador que tem a patologização do sofrimento.

A psicóloga britânica Jane Ussher, apresenta uma explicação completa de como reinterpretar padecimentos individuais em termos coletivos e políticos. Ussher explora como muitos dos critérios diagnósticos do DSM são respostas habituais e compreensivas para situações de violência e patriarcado que mulheres vivenciam, colocando o enfoque na necessidade de mudanças sociais. A socióloga Heidi Rimke para essa tendência ocidental de individualizar os sofrimentos como “psicocentrismo”.

 

“Devemos escutar a palavra silenciada das especialistas por experiência, das sobrevivientes da psiquiatría, prestar atenção nas histórias em primeira pessoa, narradas pelas mulheres que sofreram em seus corpos os abusos do poder psiquiátrico.”

 

Desde o final do séc. xx, um movimento internacional de usuárias e sobreviventes da psiquiatria vem ganhando força. No Brasil, esse movimento foi possível a partir da Reforma Psiquiátrica. “Nada sobre nós sem nós” se tornou uma bandeira representativa sobre o protagonismo das pessoas em sofrimento.

Como caso modelo, o artigo traz a história de Vanessa, que está há mais de um ano sem tomar medicamentos psiquiátricos, ainda frequenta o CAPS e faz tratamentos alternativos. A mesma faz um duro relato sobre os efeitos que o uso de psicofármacos teve na sua vida.

Vanessa sofreu abuso sexual quando criança. Seu pai tinha problemas com álcool e os pais brigavam recorrentemente. Quando adolescente não tinha muitos amigos e sentia dificuldades de socializar. A primeira vez que sentiu que estava vivendo um sofrimento psíquico e emocional mais intenso, tinha 15 anos e foi mandada pela família para cuidar da avó que estava com demência e Alzheimer, parando de estudar. Após uma crise da avó, Vanessa sente uma tristeza profunda e passa três dias sem conseguir sair da cama. Foi nessa ocasião a sua primeira consulta psiquiátrica e sua primeira experiência com psicofármacos. Viveu um verdadeiro drama por conta do uso de remédios.

 

“Às vezes, dormia duas horas por noite. Segundo conta, a risperidona (antipsicótico) lhe provocava temores no pescoço, sentia que a boca se retorcia, entre outras sensações desagradáveis. O ácido valproico, uma vez tomado, causava uma sensação de que algo lhe explodia no estômago, provocando náuseas e vômitos constantes.”

 

Em 2018, Vanessa começou a reduzir a medicação. Ela acredita que só se deve tomar medicamentos em momentos de crise e não de forma contínua. Durante e depois do processo de retirada dos psicofármacos, Vanessa continuou com as sessões de psicoterapia individual, a participação em grupos terapêuticos e se implicou fortemente na militância. Atualmente estuda arquivologia na Universidade Federal de Santa Catarina.

Como no caso de Vanessa, a psiquiatria parece repetir o mesmo viés de gênero desde o século XIX até hoje. Isso ocorre quando considera normal que mulheres exerçam tarefas de cuidado desconsiderando o preço subjetivo que elas pagam para exercer tal papel. É preciso contextualizar e despatologizar atitudes e comportamentos de mulheres que padecem sofrimentos psíquicos, entendendo que seu sofrimento pode ser uma resposta a circunstâncias adversas da vida. Por fim, entender que seus problemas não são biológicos ou individuais, mas sociais e políticos.

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Caponi, S., Sevilla, J. M., & Amaral, L. H. do .. (2023). El sesgo de género en el discurso y en las intervenciones psiquiátricas. Revista Estudos Feministas, 31(1), e93055. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n193055

Comentário sobre o Podcast “O Assunto” – Episódio Zolpidem

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O podcast “O Assunto” da jornalista Natuza Nery, produzido pelo G1, que foi ao ar no dia 20 de maio de 2024 (Zolpidem: epidemia e novas regras da Anvisa), destacou a “epidemia” de Zolpidem no Brasil. Natuza entrevista a médica Dalva Poyares, neurologista especialista em sono, pesquisadora do Instituto do Sono e professora na Unifesp, que alerta para a gravidade dos casos de dependência que o medicamento vem causando. Entre as causas dessa “epidemia”, a neurologista aponta para a prescrição de forma indiscriminada dos colegas médicos, o aumento da insônia nos brasileiros, a demanda em querer dormir mais rápido, a maior propaganda do remédio, o aumento das marcas farmacêuticas que produzem o Zolpidem e a automedicação.

 O podcast apresenta algumas informações relevantes:

  • Segundo dados, mais de 7 milhões de pessoas apresentam problemas de insônia no Brasil;
  • Entre os brasileiros, 9 a cada 10 pessoas se automedicam;
  • Segundo a Anvisa, quase 18 milhões de caixas de Zolpidem foram vendidas em 2023 no país.

 A Anvisa preocupada com os efeitos colaterais apresentados pelo remédio, como amnésia, sonambulismo e alta dependência, estabeleceu novas regras para a compra do Zolpidem e Zopiclona (uma variação do Zolpidem).  A partir de agora, estes medicamentos só poderão ser vendidos para quem apresentar uma receita azul, o que promete limitar o acesso ao medicamento.

 As receitas podem ser classificadas em receitas do tipo A (receita amarela), que sempre são acompanhadas do CID e com a justificativa para o uso do medicamento. Já as receitas do tipo B (receita azul) são as utilizadas para os medicamentos de controle especial, elas também devem vir acompanhadas do CID e da justificativa para o seu uso. Os medicamentos controlados são aqueles que têm potencial de causar dependência e efeitos colaterais graves. Segundo a neurologista Dalva Poyares, não são todos os médicos que têm acesso à receita azul, mas aqueles que trabalham com o Sistema Nervoso Central (SNC).

 O Zolpidem é um medicamento vendido desde os anos 90, porém de alguns anos para cá vem sendo assunto de matérias jornalísticas alertando para seu potencial uso abusivo e dependência. Para a médica Dalva Poyares isso se deve a maior popularização deste medicamento, pela sua promessa inicial de ser mais seguro e superar os medicamentos anteriores da mesma categoria. Apesar de não aprofundar tanto, ela relata a maior propaganda do remédio e o aumento de prescrição por parte dos médicos, além de pontuar a automedicação e as mudanças de sociais como outras possíveis causas, que acaba sendo mais aprofundado no decorrer da entrevista.

 Dentre as causas sociais, estão as mudanças de expectativas das pessoas em relação ao sono e a piora da qualidade do mesmo. Cada vez mais pessoas têm procurado especialistas manifestando o desejo de dormir mais rápido, considerando que o sono saudável não implica esperar para dormir. No entanto, a neurologista alerta que a demanda dos pacientes deve se ajustar à realidade, pois dormir não é como apertar um botão de desligar. Existe um processo que deve ser respeitado, e esperar até o sono chegar é parte dele. As pessoas têm confundido dormir com desmaiar, adverte ela. Por outro lado, está ocorrendo um fenômeno de piora na qualidade do sono dos brasileiros em geral, o que pode estar associado a maus hábitos, mas também ao maior índice de estresse no trabalho e em outras áreas da vida.

 O Mad in Brasil vem sendo pioneiro na denúncia do uso abusivo e da dependência que os psicofármacos causam, não só o Zolpidem. O remédio hipnótico vem ganhando destaque na mídia brasileira graças a seus efeitos de alta dependência, amnésia e sonambulismo. Relatos de compras impulsivas de valor muito alto, alucinações, perda de memória, entre outros relatos graves são cada vez mais comuns nas redes sociais e nos jornais. Porém, não é apenas o Zolpidem que apresenta efeitos colaterais graves e risco de dependência, os antidepressivos, antipsicóticos e estimulantes também. Cada vez mais relatos de usuários de psicofármacos e a literatura científica vem embasando tal afirmação .

Apesar de ser um importante avanço um podcast de grande audiência, como “O Assunto”,  denunciar a “epidemia” de Zolpidem, ainda é pouco abordado a influência nefasta da indústria farmacêutica sobre esta “epidemia”. O jornalista Robert Whitaker, assim como diversos pesquisadores e estudiosos ao redor do mundo, vêm denunciando essa relação corrupta entre a comunidade médica e a Big Farma há muito tempo. Porém, o que vemos é a grande mídia não “botar o dedo na ferida” e não revelar ao grande público como tal relação é importante causadora do uso abusivo dos psicofármacos e do aumento de diagnósticos psiquiátricos. Enquanto tal assunto não for debatido pela sociedade de forma ampla, continuaremos vendo cada vez mais relatos de pessoas sendo gravemente afetadas pelo uso abusivo e inadequado de medicamentos.

 É preciso falar mais sobre formas de cuidado que não passem pelo uso de medicamentos. Dalva sugere que pessoas ativas física e mentalmente, que socializam, apresentam mais chances de terem um sono de maior qualidade. Além disso, alerta que nem todo problema com o sono vai necessitar do uso de medicamentos, e quando necessário, deve ser usado de maneira muito pontual e por um curto tempo. Mudanças de hábitos e comportamento podem ter efeitos positivos para a qualidade do sono, enquanto se esforçar para dormir pode ter o efeito contrário e causar ainda mais insônia.

Por fim, observamos que a “epidemia” de Zolpidem no Brasil revela não apenas a preocupante escalada do uso abusivo de medicamentos, mas também expõe lacunas no sistema de saúde e na relação entre a indústria farmacêutica e a prática médica. O alerta emitido pelo podcast “O Assunto” e pela Anvisa representa um passo importante na regulamentação do acesso a esses medicamentos. No entanto, é essencial que a discussão se amplie para incluir uma abordagem mais holística do cuidado com a saúde, destacando a importância de hábitos saudáveis, atividades físicas, e métodos não farmacológicos no tratamento da insônia e de outros distúrbios do sono. A conscientização sobre os riscos associados ao uso indiscriminado de psicofármacos, aliada a uma abordagem mais ampla de saúde mental, é fundamental para reduzir os danos causados pela dependência e pelos efeitos colaterais desses medicamentos.

 

1º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Robert Whitaker

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1º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas

Mesa com Robert Whitaker:  A Epidemia das Drogas Psiquiátricas

 

1º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Robert Whitaker

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Nota do editor: Nessa série, estamos relembrando todas as mesas do Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas” realizadas entre 2017-2023. 

 

Robert Whitaker é um jornalista americano, criador do site Mad in America e autor de vários livros, entre eles o livro Anatomia de uma Epidemia, publicado pela editora Fiocruz.

A fala de Robert foi realizada durante a primeira edição do Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, danos e alternativas”, no ano de 2017, no auditório da ENSP, na Fiocruz. Disponível no Youtube da VídeoSaúde Distribuidora da Fiocruz.

 

Mesa: A Epidemia das Drogas Psiquiátricas – Robert Whitaker

Holanda Autoriza Eutanásia em Mulher de 29 anos por Sofrimento Mental

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No dia 18 de maio de 2024, o site O Globo realizou uma publicação sobre a história da  holandesa Zoraya ter Beek que optou pela eutanásia. A entrevista aponta os fortes impactos associados a saúde mental, impactos esses que percorrem desde a infância de Zoraya, quando ela foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno da Personalidade (não sendo especificado durante a entrevista qual era), depressão crônica, ansiedade e trauma. Mesmo sendo realizado tratamentos ao longo de 10 anos, ela continuou “sentindo-se suicida”.

Com o passar dos anos foram realizados inúmeros tratamentos através de medicamentos, tratamentos intensivos, incluindo psicoterapia, e mais de 30 sessões de eletroconvulsoterapia – ECT (tratamento que é feito por meio de sessões nas quais são colocados eletrodos na cabeça do paciente de acordo com as necessidades de seu tratamento).

A história de Zoraya ganhou mais visibilidade após ser publicada pela rede The Free Press, em abril, aonde ela relata que decidiu pela morte assistida após seu psiquiatra afirmar que havia tentado de tudo, mas que não havia mais nada que pudessem fazer por ela.

“Na terapia, aprendi muito sobre mim mesma e sobre os mecanismos de enfrentamento, mas isso não resolveu os problemas principais. No início do tratamento, você começa esperançoso. Achei que iria melhorar. Mas, quanto mais o tratamento dura, a esperança começa a se perder– Refletiu.

Depois de 10 anos de tratamento, ela afirmou que “não sobrou nada” em que pudesse apostar. logo após o fim das sessões de eletroconvulsoterapia (ECT) que ocorreu em agosto de 2020, foi tomada a decisão. Ter Beek teve inicialmente esperança, no entanto, o tratamento duro faz a esperança se dissipar, passando assim por um período “aceitando” que não havia mais opções antes de solicitar a morte assistida ao governo em dezembro daquele ano.

‘Nunca hesitei’

A Holanda foi o primeiro país do mundo a legalizar a eutanásia ativa que na prática é quando se administra diretamente uma substância letal na pessoa que deseja morrer e geralmente é realizada por um médico, já o suicídio assistido é quando a própria pessoa auto administra uma dose letal de um fármaco, prescrita por um médico. Ambas as práticas possuem considerações éticas, legais e culturais que varia entre países e jurisdições, tanto que algumas regiões permitem uma prática ou ambas sob certas condições, enquanto outras proíbem completamente.

Na Holanda uma pessoa pode solicitar a eutanásia quando “passa por um sofrimento insuportável, sem perspectiva de melhora”, pontuando que o pedido deve ser feito “com seriedade e plena convicção”. O texto prevê que um médico e um especialista independente determinem que o paciente sobre insuportavelmente e sem esperança de melhora.

Crianças a partir dos 12 anos que sofrem por conta de doenças graves e incuráveis, cujos cuidados paliativos não são mais suficientes para aliviar o sofrimento, é autorizada a eutanásia por meio da legislação, permitindo mortes misericordiosas para jovens menores que sofrem “insuportavelmente e sem esperança”.

Todo o procedimento é realizado por diversas etapas, entre elas estão: uma longa lista de espera para a avaliação do caso, ser avaliado por uma equipe, ter uma segunda opinião sobre sua elegibilidade, e mesmo após a decisão essa mesma decisão será revisada por outro médico independente. Sendo um processo “longo e complicado” podendo levar anos, e mesmo sendo legal ainda há muitos médicos que não estão dispostos a se envolverem com a morte assistida de pessoas com sofrimento mental.

Ter Beek recebia uma grande quantidade de mensagens tanto negativas quanto mensagens pedindo para que ela não finalizasse com o processo, chegando ao ponto de ser necessário a desativação das suas redes sociais. Após conhecer a sua equipe médica, sua morte assistida deve ocorrer dentro de algumas semanas (data não revelada).

Como que para anunciar sua desesperança, ter Beek tem uma tatuagem de uma “árvore da vida” na parte superior do braço esquerdo, mas “ao contrário”.

“Enquanto a árvore da vida representa crescimento e novos começos”, ela enviou uma mensagem, “minha árvore é o oposto. Ela está perdendo suas folhas, está morrendo. E quando a árvore morreu, o pássaro voou para fora dela. Não vejo isso como se minha alma estivesse indo embora, mas sim como se eu estivesse me libertando da vida.” – Zoraya ter Beek

Leia a matéria completa: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/05/17/holanda-autoriza-eutanasia-em-mulher-de-29-anos-por-sofrimento-mental-sera-como-adormecer.ghtml

 

Explorando os Efeitos a Longo Prazo dos Medicamentos para TDAH no Risco de Doenças Cardiovasculares

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante.

No início do ano, um estudo revelador foi publicado no JAMA Psychiatry, abordando os efeitos a longo prazo dos medicamentos para Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no risco de doenças cardiovasculares. As descobertas desta pesquisa são de grande relevância, especialmente no atual contexto de sobrediagnóstico e medicalização, em que o recurso aos medicamentos são a principal via de tratamento escolhida e a prevalência das prescrições (e do uso não prescrito) de estimulantes e dos não estimulantes segue em ascensão.

Vale ressaltar que o JAMA Psychiatry é uma publicação renomada e influente no campo da Psiquiatria e da Neurociência, conhecida por sua rigorosa seleção de pesquisas e artigos. Como parte da família de periódicos do JAMA (Journal of the American Medical Association), fundado em 1883, o JAMA Psychiatry compartilha do prestígio e da tradição que caracterizam a marca JAMA.

O artigo intitulado Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Medications and Long-Term Risk of Cardiovascular Diseases (em tradução livre: Medicamentos para Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade e o Risco a Longo Prazo de Doenças Cardiovasculares) resulta de uma pesquisa liderada por um time internacional de pesquisadores. Eles utilizaram extensas bases de dados suecas do registro nacional de saúde para acompanhar pessoas diagnosticadas com TDAH ou que iniciaram tratamento medicamentoso entre os anos de 2007 e 2020. Os medicamentos utilizados incluíam todos aqueles aprovados para o TDAH na Suécia durante o período do estudo e abrangiam tanto estimulantes (metilfenidato, anfetamina, dexamfetamina, lisdexamfetamina) quanto não estimulantes (atomoxetina e guanfacina).

A análise buscou entender se o uso dessas medicações está associado ao aumento no risco de desenvolver problemas cardiovasculares ao longo do tempo. Para examinar essa hipótese, foi realizado um estudo de caso-controle, abordagem de pesquisa que compara dois grupos de pessoas: aqueles que têm uma condição específica (os casos) e aqueles que não têm (os controles). Então, foram selecionadas e acompanhadas ao longo dos anos pessoas diagnosticadas com TDAH ou que começaram a usar medicamentos para TDAH. Durante o acompanhamento, quando alguém desenvolvia uma doença cardiovascular, era considerado um caso.

Para cada caso, os pesquisadores escolhiam até cinco controles, ou seja, pessoas sem doenças cardiovasculares, mas que eram semelhantes em idade, sexo e período de acompanhamento. Isso garantiu que casos e controles tivessem a mesma duração de
acompanhamento desde a linha de base (ou seja, entrada na coorte) até a data do índice
(data do surgimento de uma doença cardiovascular). Além disso, os períodos de uso dos
medicamentos para TDAH foram categorizados em 6 faixas de duração, como 0 a ≤1 ano,
1 a ≤2 anos, 2 a ≤3 anos, 3 a ≤5 anos, e mais de 5 anos. Essas faixas de tempo foram
usadas para avaliar a associação entre a duração do uso de medicamentos para TDAH e
o risco de incidentes cardiovasculares.

No estudo, o fator de interesse investigado foi o período total de uso de medicamentos para TDAH pelos participantes. Esse período, chamado de ‘duração cumulativa’, corresponde à soma de todos os dias em que os pacientes estiveram sob tratamento com esses medicamentos, desde o início do acompanhamento (linha de base) até três meses antes da data de índice. A decisão de excluir os últimos três meses antes da data do índice teve o objetivo de minimizar o risco de que alterações na prescrição de medicamentos, feitas em resposta a sinais precoces de problemas cardíacos, pudessem distorcer os resultados.

Para analisar a relação entre o uso prolongado de medicamentos para TDAH e o risco de doenças cardiovasculares, foi utilizada a técnica de regressão logística condicional. Trata-se de um tipo de análise estatística que permite estimar as Razões de Chances (Odds Ratios), ajustando por diversas variáveis que poderiam influenciar os resultados (como idade, sexo, tempo de calendário e histórico de comorbidades).

Em conclusão, nesse estudo com 278.027 pessoas diagnosticadas com TDAH, de idades entre 6 e 64 anos, descobriu-se que 10.388 delas desenvolveram doenças cardiovasculares (DCV). Essas pessoas foram comparadas com outras 51.672 pessoas que não tinham problemas cardiovasculares. Os tipos mais comuns de DCV foram hipertensão (4.210 casos – 40,5%) e arritmias (1.310 casos – 12,6%). Ademais, o metilfenidato foi o tipo de medicamento mais dispensado, seguido pela atomoxetina e lisdexanfetamina.

O estudo também demostrou que as pessoas em uso de medicamentos para TDAH
por mais tempo tinham maior chance de ter problemas cardiovasculares, principalmente
hipertensão e doença arterial. Nesse sentido, ao longo de todo o acompanhamento, para
cada ano adicional de uso de medicamentos para TDAH, o risco de DCV aumentava em
4%, com um risco ainda maior nos primeiros três anos de uso, chegando a 8%. Pessoas que tomaram medicamentos para TDAH por 3 a 5 anos ou mais tiveram um risco
significativamente maior de desenvolver hipertensão e doença arterial em comparação
com quem não tomou esses medicamentos.

Especificamente, o risco de hipertensão aumentou entre 72% e 80%, e o risco de doença arterial aumentou entre 49% e 65%. Logo, o uso mais longo dos medicamentos
estava ligado a um maior risco. Essa tendência foi observada tanto em crianças e jovens
menores de 25 anos quanto com adultos com 25 anos ou mais, e foi consistente entre
homens e mulheres. Além disso, o estudo identificou que o risco de DCV aumentava com
doses mais altas dos medicamentos. O uso prolongado de metilfenidato e lisdexanfetamina também foi associado a um maior risco de doenças cardiovasculares em geral. No entanto, o aumento do risco com o uso de atomoxetina foi notado apenas no primeiro ano.

Assim, a pesquisa de Zhang et al. (2024) conduzida com base em dados de sujeitos
suecos ao longo de 14 anos ressalta a necessidade de avaliar com cautela o tratamento
medicamentoso para o TDAH a longo prazo, pois isso está associado a um risco
aumentado de doenças cardiovasculares.

É importante ressaltar que a pesquisa científica tem produzido resultados mistos em relação ao assunto aqui discutido. Há estudos que afirmam não encontrar uma associação significativa entre o uso de medicamentos para TDAH e um aumento no risco de DCV. Inclusive, alguns deles sugerem uma ligação de base causal absolutamente biológica (ancorada em explicações reducionistas) entre TDAH e DCV (AHMAD BANDAY E LOKHANDWALA, 2006; COROMINAS et al., 2012; HOEKSTRA, 2019).

Apesar dessa confusão, cresce o número de estudos que encontram uma associação
positiva significativa entre o uso de medicamentos para TDAH e o desenvolvimento de
DCV, a exemplo de Hennissen et al. (2017), Liu et al. (2019), Zhang et al. (2022;
2024). Eles assinalam a necessidade de mais pesquisas sobre este assunto pouco estudado
– o que constitui uma limitação importante, pois pessoas com diagnósticos psiquiátricos
em geral são tratadas prioritariamente com psicofármacos – e, no caso específico do diagnóstico de TDAH, a terapia farmacológica é recomendada como tratamento de primeira linha em muitos países.

Os medicamentos para TDAH são amplamente utilizados para ‘melhoramentos’ (desempenho cognitivo, concentração, atenção, controle de comportamento impulsivo)
por parte de pessoas com ou sem diagnostico de TDAH. Cresce cada vez mais o uso não
prescrito para melhorar o desempenho acadêmico, laboral ou para recreação (BRANT E CARVALHO, 2012; CERQUEIRA et al., 2021; SCHUINDT et al., 2021). A lista de medicamentos mais comuns incluem estimulantes, cujo princípio ativo é o metilfenidato
(como a Ritalina e o Concerta) e anfetaminas (como o Venvanse e o Adderall), além dos
medicamentos não estimulantes cuja base é a atomoxetina (como o Atentah) e guanfacina
(Intuniv).

A prescrição destes medicamentos levanta questões preocupantes relativas ao sobrediagnóstico e medicalização da atenção e do comportamento. Isso é alarmante em
perspectiva geral e especialmente arriscado em populações infantis, cujo processo de desenvolvimento pode ser nocivamente e irremediavelmente influenciado pelo
tratamento farmacológico prolongado (ESPADAS TEJERINA, 2018; MAURILIO et al.,
2023).

A pesquisa de Zhang et al. (2024) também sugere que a prescrição de medicamentos para TDAH deve ser acompanhada de monitoramento cardiovascular consistente. Isso está de acordo com as diretrizes clínicas, que recomendam a avaliação da saúde cardiovascular antes de iniciar o tratamento com medicamentos para TDAH, especialmente em pacientes com fatores de risco para doenças cardiovasculares. Além disso, o monitoramento contínuo da pressão arterial e da frequência cardíaca é recomendado durante o tratamento. Também no Brasil essas orientações estão presentes no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (BRASIL, 2022). Tais recomendações corroboram a pressuposição de potencial risco de doenças cardiovasculares (DCV) associado ao uso prolongado desses medicamentos. Ainda, todas as bulas dos medicamentos para TDAH alertam sobre possíveis reações adversas cardiovasculares.

É preciso notar que, na prática, quem recebe tratamento farmacológico para TDAH não costuma receber acompanhamento cardiológico, tampouco recebe informações transparentes sobre os riscos cardiovasculares associados à terapêutica medicamentosa antes de ser submetido a elas – conforme recomendam as diretrizes. A realidade é semelhante nos tratamentos psicofarmacológicos direcionados a outros diagnósticos psiquiátricos. Ficam evidentes as lacunas no tratamento e na comunicação.

O estudo de Zhang et al. (2024) demonstra a importância de um olhar crítico para a medicalização globalmente presente. A ênfase na farmacoterapia, além de trazer problemas significativos em relação à segurança cardiovascular, ofusca as opções de tratamento não farmacológicas disponíveis para o cuidado da saúde mental, como o suporte psicossocial, mudanças ambientais e relacionais, atenção psicológica, mudanças de estilo de vida, entre outros. Desse modo, os achados do artigo trazem à tona a importância da conscientização sobre os problemas do tratamento medicamentoso e a iatrogenia daí resultante. Pesquisas sobre os efeitos nocivos dos medicamentos psicofármacos são fundamentais para melhor esclarecimento e resolução de problemas de Saúde Pública, tal como o discutido neste texto.

 

REFERÊNCIAS:

AHMAD BANDAY, A.; LOKHANDWALA, M. F. Defective renal dopamine D1 receptor function contributes to hyperinsulinemia-mediated hypertension. Clinical & Experimental Hypertension, 28(8), 695–705, 2006. BRANT, L. C.; CARVALHO, T. R. F.. Metilfenidato: medicamento gadget da contemporaneidade. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 16, n. 42, p. 623–636, jul. 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção especializada a saúde. Portaria conjunta no14, de 29 de julho de 2022. Aprova o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Brasília, 2022.

ESPADAS TEJERINA, M. et al. Efectos secundarios del metilfenidato en población
infantil y juvenil. Rev Neurol, 66:157, 2018.

HENNISSEN, L., BAKKER, M. J., BANASCHEWSKI, T. et al. Efeitos cardiovasculares de medicamentos estimulantes e não estimulantes para crianças e adolescentes com TDAH: uma revisão sistemática e meta-análise de ensaios de metilfenidato, anfetaminas e atomoxetina. Drogas do SNC 31 , 199–215, 2017.

HOEKSTRA, P. J. Attention-deficit/hyperactivity disorder: Is there a connection with the immune system? European Child & Adolescent Psychiatry, 28(5), 601–602, 2019.

COROMINAS, M. et al. Cortisol responses in children and adults with attention deficit hyperactivity disorder (ADHD): A possible marker of inhibition deficits. ADHD Attention Deficit and Hyperactivity Disorders, 4(2), 63–75, 2012.

LIU, H.; FENG, W.; ZHANG, D. Association of ADHD medications with the risk of cardiovascular diseases: A meta-analysis. European Child and Adolescent Psychiatry, 28(10), 1283–1293, 2019.

ZHANG, L.; YAO, H. et al. Risk of cardiovascular diseases associated with medications used in attention-deficit/hyperactivity disorder: A systematic review and meta-analysis. JAMA Network Open, 5(11), 2022.

ZHANG, L.; LI, L.; ANDELL, P. et al. Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Medications and Long-Term Risk of Cardiovascular Diseases. JAMA Psychiatry. 81(2):178–187, 2024.

SCHUINDT, A.; MENEZES, VitóriaC..; ABREU, C. R. de C. As consequências do uso da ritalina sem prescrição médica . Revista Coleta Científica , Brasil, Brasília, v. 5, n. 10, p. 28–39, 2021.

MAURILIO, M. M.; CAMARGO, R. W. de .; BITENCOURT, R. M. de. Uso do metilfenidato em crianças e adolescentes com TDAH: uma revisão sobre riscos e benefícios. Revista Neurociências, [S. l.], v. 31, p. 1–20, 2023.

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Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Opioides: Como a Dor Enriqueceu a Big Pharma

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Recentemente o livro O triunfo da Dúvida, de David Michaels ganhou destaque através do site outras palavras, o lançamento ocorreu no dia 5 de março, pela editora Elefante. O Livro aborda apontamentos referenciais e críticos em relação ao marketing de corporações nos EUA, a ciência falsa e médicos gananciosos que estão impulsionando uma epidemia de drogas sem precedentes.

David Michaels produziu um livro de extrema importância e relevância que investiga a fundo, com comprovação consistente, as ações de corporações gigantes em busca de limpar a própria imagem e maximizar os lucros – deixando um rastro de destruição na saúde das populações.

“(…). Uma investigação do Los Angeles Times revelou que os próprios estudos da Purdue descobriram que os comprimidos de OxyContin liberam aproximadamente 40% dos ingredientes ativos de forma imediata; depois disso, a liberação é lenta. Como resultado, o efeito do medicamento se esgota em menos de doze horas para a maioria dos pacientes, deixando-os desesperados por mais. Para alguns, o efeito acaba em menos de seis horas. O resultado é um duplo golpe: a dor subjacente retorna, e o paciente entra em uma abstinência aguda do medicamento. A soma de tudo isso obriga o indivíduo a procurar por mais medicação, muitas vezes por uma dose maior. É claro que a Purdue estava ciente, mas continuou a vender o medicamento alegando sua eficácia por doze horas, impulsionando o uso e o vício — além dos lucros. (…)”

“(…). As evidências são simplesmente avassaladoras: fabricantes de opioides suprimiram alguns estudos, deturparam e valorizaram outros, alegaram que suas drogas não eram viciantes nem levavam facilmente ao uso abusivo e afirmaram que a abordagem mais eficaz para lidar com a dor do paciente era aumentar continuamente a dose da substância. Mas não se preocupe! Essas drogas não são particularmente causadoras de dependência. Você não acredita em nós? Basta perguntar à nossa campanha de relações públicas. Como demonstraram outras indústrias, com origens no auge do tabaco, a campanha de incerteza e desinformação sobre os impactos nocivos de determinado produto precisa unir ciência questionável a uma ampla pressão de relações públicas multissetorial. (…)”

“É muito fácil argumentar que tais medicamentos não são viciantes quando se escolhe a dedo os estudos e depois se interpreta mal os resultados. ”

Trechos retirados do capitulo 6 – O uso de opioides, disponibilizado pelo site, demonstra como essa epidemia está enraizada no abuso da ciência que os fabricantes dessas drogas praticam.

Para ter acesso ao capitulo completo acesse ao site: https://outraspalavras.net/outrasaude/opioides-como-a-dor-enriqueceu-a-big-pharma/

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Quatro)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute como as pílulas para a depressão não funcionam nas crianças e aumentam o risco de suicídio. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

As pílulas para depressão não funcionam em crianças e dobram o risco de suicídio delas

Um dos manuais didáticos mencionou uma meta-análise de 34 ensaios randomizados de pílulas para depressão administradas em crianças e adolescentes e afirmou que a fluoxetina foi a única droga que apresentou um efeito significativo e também a maior tolerabilidade [19:215].

Tais alegações pertencem à seção de ficção científica. É praticamente impossível para uma droga ser tanto mais eficaz quanto menos prejudicial do que drogas semelhantes da mesma classe. Embora este manual didático tenha referências, não havia nenhuma para essa alegação implausível, mas acredito que a fonte só possa ser a meta-análise em rede de 2016 de Andrea Cipriani e colegas [297].

Para aumentar o poder das análises, os autores incluíram tanto ensaios controlados por placebo quanto comparações diretas, mas não foram suficientemente cuidadosos. Eles usaram principalmente relatórios de ensaios publicados (apenas 7 dos 34 ensaios incluídos não foram publicados), que são substancialmente tendenciosos [2,7,8].

Como exemplo, o estatístico Hans Melander e colegas, trabalhando para a agência de medicamentos da Suécia, mostraram que os ensaios controlados por placebo de ISRSs eram mais frequentemente publicados quando os resultados eram estatisticamente significativos, e que muitas publicações ignoravam os resultados das análises por intenção de tratar e relatavam as análises por protocolo mais favoráveis, onde apenas os pacientes que não abandonam o estudo são retidos na análise [314]. Isso criou uma concepção errônea sobre quão eficazes são as drogas [6:137]. Além disso, faltavam referências cruzadas para várias publicações do mesmo ensaio e, às vezes, não tinham nomes de autores em comum e, portanto, pareciam ensaios separados.

Como outro exemplo, o psiquiatra Erick Turner, que trabalhou para a FDA, e colegas notaram que 31% dos ensaios realizados como parte de um pedido de licença para ISRSs e drogas relacionadas, vistos pela FDA como negativos ou questionáveis, foram publicados como positivos, e o tamanho do efeito nos artigos publicados foi 32% maior do que nas revisões da FDA de todos os ensaios [315].

Fluoxetina é insegura e ineficaz, e os ensaios são manipulados

A fluoxetina foi aprovada nos Estados Unidos em 2002 para depressão em crianças e adolescentes com base em dois ensaios controlados por placebo, X065 e HCJE, com 96 e 219 participantes, respectivamente, embora o revisor estatístico da FDA tenha observado que não houve um benefício estatisticamente significativo para a droga no desfecho primário em nenhum dos ensaios [316]. Como ambos os ensaios pareciam ter sido relatados incorretamente na literatura, David Healy e eu decidimos restaurá-los de acordo com a iniciativa RIAT (Restoring Invisible and Abandoned Trials, que em tradução livre para o português seria Restaurando Ensaios Invisíveis e Abandonados)[317].

Revisamos as 3557 páginas de relatórios de estudos clínicos que a Eli Lilly havia enviado aos reguladores e encontramos sérias manipulações com os dados, tanto nos relatórios quanto nas publicações [279]. Informações essenciais estavam faltando; havia informações contraditórias, inclusive relacionadas a tentativas de suicídio; havia inconsistências numéricas inexplicadas, que incluíam uma impossibilidade matemática; havia exclusões inexplicadas de pacientes e dados, e análises eram chamadas de intenção de tratar mesmo que alguns pacientes com dados fossem excluídos; novos desfechos surgiram que não estavam previamente especificados no protocolo do ensaio; escalas de avaliação e análises foram alteradas; os protocolos do ensaio foram violados de outras maneiras; e resultados que eram inconsistentes com a conclusão de que a fluoxetina é segura e eficaz foram ignorados ou explicados de maneira perturbadora.

Os desfechos de eficácia estavam fortemente enviesados a favor da fluoxetina por meio de descontinuações diferenciais e dados ausentes no final do ensaio. No ensaio X065, 6 pacientes haviam interrompido o uso de fluoxetina e 12 de placebo após quatro semanas; no ensaio HCJE, nenhum havia abandonado o uso de fluoxetina versus 10 de placebo após duas semanas. A maioria das análises usava o método de última observação carregada para a frente (Last Observation Carried Forward – LOCF), mas a Lilly não alertou seus leitores sobre o grande viés que isso causava: mais pacientes usando o placebo do que a fluoxetina tinham pontuações elevadas de depressão carregadas para a frente.

O revisor médico da FDA observou que consideravelmente mais pacientes usando placebo do que a fluoxetina abandonaram o estudo e que o padrão era “bastante incomum” no ensaio HCJE porque havia mais abandonos no placebo do que na fluoxetina devido a eventos adversos (9 vs 5), decisão do paciente (11 vs 3) e perda de acompanhamento (7 vs 1).280 Em contraste, o ensaio X065 não teve abandonos devido a eventos adversos em placebo versus 5 em fluoxetina, e não houve perda de acompanhamento.

Como nenhum ajuste estatístico pode substituir dados ausentes de forma confiável, nos concentramos em pacientes com sintomas mínimos e aqueles que se recuperaram após oito semanas no ensaio X065 de acordo com os critérios próprios da Lilly. Não encontramos diferenças em relação ao placebo.

No ensaio HCJE, a análise da Lilly do Índice de Eficácia das Impressões Clínicas Globais, que compara os benefícios e os danos para cada paciente, também foi enganosa. Os psiquiatras usaram um índice com oito categorias para “avaliar o efeito terapêutico global em conjunto com os efeitos colaterais para cada paciente”. Eles avaliaram, para cada paciente, se a melhora na depressão superava quaisquer danos da droga em termos de interferência nas atividades diárias. Esse processo subjetivo não foi definido. A Lilly afirmou que os resultados indicavam que os efeitos terapêuticos superavam quaisquer danos porque 58% versus 40% tiveram uma pontuação favorável. No entanto, quando combinamos os dados das oito categorias subtraindo os resultados ruins dos bons resultados, o que era mais apropriado, descobrimos que 59% versus 55% tiveram um bom resultado (P = 0,58).

Apesar de todos os enviesamentos e manipulações que identificamos, os efeitos relatados pela Lilly não eram clinicamente relevantes. O efeito na Escala de Avaliação da Depressão Infantil – Revisada, que é avaliada pelos psiquiatras ou seus assistentes de pesquisa, em relação aos valores basais foi de apenas 4% em ambos os ensaios para casos observados e de 16% e 9%, respectivamente, se o método LOCF for usado. Em comparação, o efeito menos reconhecível na escala adulta equivalente, a Escala de Avaliação de Depressão de Hamilton,267 corresponde a 28% de uma mediana basal de 25,4 em 35 ensaios controlados por placebo [269].

É mais importante o que os pacientes pensam sobre o efeito do que o que os psiquiatras e a Eli Lilly pensam, e as avaliações dos pacientes não atestaram a fluoxetina como eficaz. O Inventário de Depressão Infantil (Children’s Depression Inventory – CDI) foi usado para aqueles abaixo de 13 anos de idade e o Inventário de Depressão de Beck (Beck Depression Inventory – BDI) foi usado para aqueles com 13 anos ou mais. No ensaio X065, os dados foram agrupados na publicação e P = 0,58. No ensaio HCJE, as crianças até preferiram o placebo: “Os pacientes tratados com placebo apresentaram maiores reduções numéricas na mudança em relação a linha de base para os escores totais de CDI e BDI em comparação com os pacientes tratados com fluoxetina”.

Os eventos suicidas estavam ausentes, tanto nos relatórios do estudo quanto nas publicações. O relatório publicado para o ensaio X065 não mencionou que dois pacientes usando fluoxetina tentaram suicídio, e os eventos adversos em quatro pacientes adicionais que interromperam a fluoxetina foram chamados de “mínimos”, mesmo que três deles tenham desenvolvido sintomas de mania e o quarto tenha tido uma erupção cutânea grave. O relatório interno da Lilly mostrou que 32 pacientes em uso de fluoxetina versus 18 em uso de placebo experimentaram pelo menos um evento adverso (P = 0,008), 19 versus 6 experimentaram agitação (P = 0,005), 9 versus 1 tiveram pesadelos (P = 0,02), e 7 versus 4 se sentiram tensos por dentro. Estes são danos graves. Agitação, incluindo a sensação de tensão interna, e pesadelos aumentam o risco de suicídio e violência[2,7].

Uma publicação subsequente feita pela equipe da Lilly também foi pouco confiável [318]. Ela abordava a segurança no ensaio HCJE e apresentava números diferentes de eventos suicidas do que aqueles no relatório de estudo enviado aos reguladores de medicamentos [279,318].

Para o ensaio HCJE, apenas os resultados de 9 semanas foram totalmente publicados, enquanto os resultados menos positivos de 19 semanas não foram. A Lilly falsamente concluiu que “a fluoxetina de 20 a 60 mg/dia é segura” e também que “a escalada de doses pode beneficiar alguns pacientes”, mesmo que tenham relatado apenas quatro resultados para os quais não houve diferenças significativas.

Uma meta-análise de 2007 da Lilly sobre eventos violentos, que incluiu todos os estudos controlados por placebo de fluoxetina realizados em crianças e adolescentes, também foi pouco confiável [319]. É totalmente implausível que eventos relacionados à agressão ou hostilidade tenham sido experimentados por menos crianças e adolescentes tratados com fluoxetina, 2,1%, do que por aqueles tratados com placebo, 3,1%.

Os resultados da Lilly contradiziam nossas descobertas e também a avaliação da FDA sobre a aplicação da Lilly. A FDA criou uma tabela de interrupções devido a eventos adversos em X065, HCJE e HCJW (um ensaio de transtorno obsessivo-compulsivo comparando fluoxetina 10-60 mg diários com placebo por 13 semanas em 71 versus 32 pacientes).280 Houve 14 interrupções versus 3 (P = 0,02, nosso cálculo) entre os 228 versus 190 pacientes por motivos relacionados a suicídio e violência (tentativa de suicídio, euforia, reação maníaca, agitação, hipercinesia, nervosismo, transtorno de personalidade, hostilidade e depressão). Nestes ensaios, houve três tentativas de suicídio com fluoxetina e uma com placebo, e outro paciente em fluoxetina foi hospitalizado por causa de tendências suicidas. Seis pacientes (2,6%) em uso de fluoxetina desenvolveram mania ou hipomania versus nenhum em uso de placebo (P = 0,03).280

Em nossa restauração dos ensaios X065 e HCJE, descobrimos que os precursores de tendências suicidas ou violência ocorriam mais frequentemente com a fluoxetina do que com o placebo. Para o ensaio HCJE, o número necessário para dano foi apenas 6 para eventos do sistema nervoso, 7 para danos moderados ou graves e 10 para danos graves. A fluoxetina reduziu altura e peso ao longo de 19 semanas em 1,0 cm e 1,1 kg, respectivamente, e prolongou o intervalo QT.

Lilly afirmou em seu relatório de estudo para o ensaio HCJE que “a depressão é uma doença orgânica que responde prontamente ao tratamento” e que “a introdução de tratamentos antidepressivos eficazes mais cedo na progressão do estado da doença tem o potencial de tratar e controlar efetivamente a doença, bem como melhorar o funcionamento diário e a qualidade de vida geral.”[279] Não há evidências de que qualquer uma dessas afirmações seja verdadeira [7,8] e parece que as pílulas para depressão pioram a qualidade de vida [8].(Veja abaixo)

Se extrapolado dos dados do estudo, o dano que a fluoxetina causa no crescimento em crianças corresponde a uma perda anual de altura de 2,7 cm e uma perda no aumento de peso de 3,0 kg [279]. A FDA solicitou que a Lilly realizasse um estudo de um ano sobre o efeito da fluoxetina no crescimento, mas a empresa se recusou a fazê-lo [280]. Não sabemos se a fluoxetina também tem efeitos deletérios no cérebro em desenvolvimento, mas dado o que sabemos sobre substâncias psicoativas, incluindo o álcool, isso é provável.

Com base em nossa reanálise dos dois ensaios fundamentais, concluímos que a fluoxetina é insegura e ineficaz [279]. É uma droga horrível.

Um manual descreveu as seguintes prioridades de tratamento para crianças com transtornos afetivos: 1) psicoeducação e apoio; 2) terapia cognitivo-comportamental; 3) medicamentos [19:214]. No entanto, também afirmou que a terapia de primeira linha em casos de depressão grave é uma combinação de fluoxetina e terapia cognitivo-comportamental e que, para pensamentos suicidas pronunciados, a internação hospitalar deve ser considerada devido ao risco de piorar os pensamentos e planos suicidas e à diminuição da inibição psicomotora causada pelo aumento da dose da droga.

É ilógico que um aumento na dose seja recomendado em crianças que estão com tendências suicidas quando os autores reconhecem que isso aumenta o risco de suicídio e quando sabemos que as pílulas nem sequer têm um efeito benéfico sobre a depressão.

Isso é uma má prática médica, mas a falta de lógica é ubíqua. Na Nova Zelândia [8], o regulador de medicamentos não aprovou o uso de fluoxetina em pessoas com menos de 18 anos de idade. No entanto, isso não impediu o uso de pílulas para depressão, que aumentou 78% entre 2008 e 2016 [320], e um relatório da UNICEF de 2017 mostrou que a Nova Zelândia tinha a maior taxa de suicídio do mundo entre adolescentes de 15 a 19 anos, duas vezes maior do que na Suécia e quatro vezes maior do que na Dinamarca [321].

Visitei John Crawshaw, Diretor de Saúde Mental, Psiquiatra-Chefe e Principal Consultor do Ministro da Saúde da Nova Zelândia, em fevereiro de 2018, e pedi a ele para tornar ilegal o uso dessas drogas em crianças para prevenir alguns dos muitos suicídios [8]. Ele respondeu que algumas crianças estavam tão gravemente deprimidas que as pílulas para depressão deveriam ser tentadas. Quando perguntei qual era o argumento para empurrar algumas das crianças mais deprimidas para o suicídio com pílulas que não funcionavam para sua depressão, Crawshaw ficou desconfortável, e a reunião terminou logo depois.

“Empurrando crianças para o suicídio com pílulas da felicidade” é o título de um dos capítulos do meu livro de 2013 sobre crime organizado na indústria farmacêutica [6]. Os médicos não podem fazer pior do que isso: dizer às crianças e aos seus pais que as pílulas da felicidade são úteis quando não funcionam e empurrar algumas crianças para o suicídio.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

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