Com o objetivo de marcar os 40 anos da morte de Franco Basaglia, expoente da reforma psiquiátrica italiana, em sua homenagem e de sua companheira Franca Basaglia, realiza-se o evento “40 anos, sem Basaglia?”, buscando atualizar o seu pensamento para o presente e o futuro. Com os participantes Paulo Amarante, Stella Goulart e Ernesto Venturini, que escreveram recentemente um capítulo para o livro publicado pela Universidade de Oxford: “Basaglia’s International Legacy: From Asylum to Community” (“O Legado Internacional de Basaglia: do Asilo à Comunidade”), haverá um debate ao vivo pelo YouTube, com mediação de Eduardo Torre, como lançamento da série “ConversAtividades Loucura & Cultura”.
Desde os últimos meses, o mundo tem testemunhado tempos cada vez mais desafiadores em várias frentes, desencadeados em parte pela pandemia da COVID-19. Tem havido, e continua a haver, numerosos casos de violência e injustiça contra os vulneráveis e os marginalizados. Também é importante acrescentar aqui que a maior parte desta violência tem sido uma realidade diária para dezenas de pessoas em todo o mundo desde antes mesmo da pandemia. Entretanto, a má administração da pandemia por parte de vários governos apenas acrescentou a essas instâncias muitas vezes.
Nestes tempos de crise, tornou-se ainda mais imperativo estabelecer conversas e medidas em primeiro plano focalizadas na promoção e proteção de todos os direitos humanos. A esta luz, estamos muito satisfeitos em ver que o último relatório do Relator Especial da ONU (SR), Dr. Dainius Pūras, adotado na 44ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, é distinto ao declarar que, “Não há saúde mental sem direitos humanos”. Neste novo relatório, ele pede medidas mundiais para assegurar o “direito de todos ao gozo do mais alto padrão atingível de saúde física e mental”.
Dainius Pūras, Relator Especial sobre o direito de todos a desfrutar do mais alto padrão de saúde física e mental alcançável, apresenta seu relatório após suas missões na Armênia e Indonésia na 38ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos. Foto ONU / Jean-Marc Ferré
O Dr. Pūras chamou anteriormente a atenção para a necessidade de se “abandonar o modelo médico predominante que procura curar os indivíduos, visando ‘transtornos'”. Neste novo relatório, ele insiste sobre a importância da “promoção e proteção de todos os direitos humanos, civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, incluindo o direito ao desenvolvimento”. Este relatório é também talvez o documento que mais endossa a UNCRPD.
Ele nos exorta a analisar como o Movimento para a Saúde Mental Global (anteriormente conhecido como Saúde Mental Global) é enquadrado e entregue porque terá um enorme impacto sobre se os direitos humanos são respeitados ou não. O Movimento para a Saúde Mental Global (MGMH) visa ampliar o acesso aos serviços de saúde mental e a um campo mais amplo de defesa, ativismo e pesquisa, incluindo perspectivas críticas. O fato de o Relator Especial (RS) se referir a um melhor enquadramento garantindo os direitos humanos nos diz que existem áreas de preocupação na forma como a MGMH está sendo realizada atualmente e precisa de reflexão e mudança. Além disso, ele fala da necessidade de avaliar criticamente quais políticas podem funcionar em determinadas áreas e contextos e que não podemos simplesmente “exportar” estratégias de defesa e outra literatura do Norte Global para o Sul.
Ele enfatiza a importância de se afastar da padronização para a saúde mental global, “embora a padronização seja importante para o trabalho global, ela também negligencia a compreensão e as práticas que resistem à padronização devido à complexidade ou localidade”.
Como usuários sobreviventes da região Ásia-Pacífico, é de extrema importância para nós que as diretrizes globais não sejam universalmente aplicadas ao nosso contexto, sem a devida consideração por nossas realidades sociais. O RS sugere:
Um caminho baseado em direitos para alcançar maior relevância local na saúde mental global pode ser o de se afastar da prática baseada em evidências para as evidências baseadas na prática, que toma como ponto de partida realidades locais, possibilidades e compreensão do cuidado. Pesquisas mostram que a reforma do sistema de saúde mental em áreas frágeis e afetadas por conflitos emerge através de práticas criativas, experimentação, adaptação e aplicação do conhecimento, à medida que as pessoas lidam com a incerteza e complexidade em contextos onde às vezes faltam recursos fundamentais.
Isto é excitante para nós porque coloca os direitos na vanguarda de toda ação enquanto nos pede que passemos da evidência (leia-se medicina) para as evidências baseadas em práticas (leia-se comunidade, local).
O RS cita a Declaração de Bali da TCI Ásia Pacífico de 2018 que “afirmou a necessidade de uma mudança de paradigma na saúde mental em direção à inclusão e longe de um foco dominado pelo modelo médico” e foi semelhante à abordagem compartilhada por outras organizações como a Mental Health Europe. Várias organizações compartilham esta abordagem de advocacy sobre a mudança para alternativas não médicas e estas vozes se somam à conversa global pedindo uma mudança de mais serviços médicos para a criação de outros meios culturalmente relevantes, focados na comunidade e informados sobre traumas, para melhorar o que a saúde pode significar para os indivíduos.
O relatório do RS afirma firmemente que as violações dos direitos humanos, perpetuando coerção, estigma e discriminação contra pessoas com deficiências, ainda estão acontecendo devido a práticas existentes no campo da saúde mental e que é imperativo trabalhar para mudar essas estruturas opressivas.
Os sistemas de saúde mental no mundo todo são dominados por um modelo biomédico reducionista que usa a medicalização para justificar a coerção como uma prática sistêmica e qualifica as diversas respostas humanas a determinantes sociais prejudiciais (tais como desigualdades, discriminação e violência) como sendo “transtornos psiquiátricos” que precisam de tratamento. Neste contexto, os mais importantes princípios da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência são ativamente minados e negligenciados. Esta abordagem ignora as evidências de que investimentos efetivos devem visar populações, relacionamentos e outros determinantes, em vez de indivíduos e seus cérebros.
É louvável que o relatório se envolva com o desequilíbrio de poder entranhado no espaço da saúde mental e a importância da “participação de pessoas com condições de saúde mental, incluindo pessoas com deficiências, no planejamento, monitoramento e avaliação de serviços, no fortalecimento do sistema e na pesquisa”.
A combinação de um modelo biomédico dominante, assimetrias de poder e o amplo uso de práticas coercitivas mantêm não apenas as pessoas com problemas de saúde mental, mas também todo o campo da saúde mental, reféns de sistemas desatualizados e ineficazes. Os Estados e outras partes interessadas, especificamente o grupo profissional da psiquiatria, devem refletir criticamente sobre esta situação e unir forças no caminho para o abandono da herança de sistemas baseados na discriminação, exclusão e coerção.
O RS adverte contra o “excesso de medicalização” que é refletida nos rótulos que são atribuídos com base em “fronteiras impostas em torno de comportamentos e experiências normais ou aceitáveis.” Ele afirma que as respostas medicalizadas à exclusão social e à discriminação “muitas vezes podem afetar desproporcionalmente os indivíduos que enfrentam a marginalização social, econômica ou racial”.
A medicalização pode mascarar a capacidade de localizar a si mesmo e as experiências dentro de um contexto social, alimentando a falta de reconhecimento das fontes legítimas do sofrimento (determinantes da saúde, trauma coletivo) e produzindo alienação. Na prática, quando as experiências e problemas são vistos como médicos ao invés de sociais, políticos ou existenciais, as respostas são centradas em torno de intervenções em nível individual que visam retornar um indivíduo a um nível de funcionamento dentro de um sistema social, em vez de abordar os legados de sofrimento e a mudança necessária para enfrentar esse sofrimento no nível social. Além disso, a medicalização corre o risco de legitimar práticas coercitivas que violam os direitos humanos e pode consolidar ainda mais a discriminação contra grupos já em situação marginalizada ao longo de suas vidas e através de gerações.
Ele, portanto, faz um apelo para que se afaste das “intervenções individuais”, refletindo criticamente sobre as estruturas sociais excludentes e discriminatórias que causam o sofrimento. Este é um ponto importante, que nos impele a parar de olhar para os indivíduos através de uma lente de doença, de uma lente sobre o que está errado com você (que individualiza) para uma lente da sociedade – o que pode ter acontecido para fazer este indivíduo sentir ou reagir desta maneira? Isto é excitante para nós do Mad in Asia Pacificonde trabalhamos para trazer consciência a este modelo de justiça social.
A fim de evitar a medicalização em massa, é essencial incorporar uma estrutura de direitos humanos na conceituação e nas políticas de saúde mental. A importância do pensamento crítico (por exemplo, aprender sobre os pontos fortes e fracos de um modelo biomédico) e o conhecimento da importância de uma abordagem baseada nos direitos humanos e dos determinantes da saúde deve ser uma parte central da educação médica.
O RS reconhece que os sistemas e instituições de saúde mental estão falhando e que existem outras abordagens para olhar para o direito à saúde. Ele olha para projetos comunitários inovadores que se concentram em construir força e resiliência nas comunidades, permitindo diversidade e aceitação de versões variadas do “normal”. Várias seções do relatório também enfatizam a importância de se envolver com pessoas com experiência vivida e pedem a aceitação de diversas comunidades com uma variedade de experiências.
Uma ação que se concentra apenas no fortalecimento de sistemas e instituições de saúde mental falhos não está de acordo com o direito à saúde. O local da ação deve ser recalibrado para fortalecer as comunidades e expandir a prática baseada em evidências que reflita uma diversidade de experiências.
Ele exige uma “escalada imediata de alternativas não coercivas baseadas em direitos” que estão “ocorrendo em bairros e comunidades em todo o mundo” operando com um “profundo compromisso com os direitos humanos, a dignidade e as práticas não coercitivas, tudo isso continua sendo um desafio não enfrentado nos sistemas tradicionais de saúde mental fortemente dependentes de um paradigma biomédico”.
O RS também exorta ao envolvimento crítico e sustentado com fatores tais como mudança climática, vigilância digital e a atual situação pandêmica da COVID-19 e seus efeitos sobre a saúde mental global. Ele escreve que a “percepção emocional e existencial da magnitude do problema climático” está sendo cada vez mais experimentada, particularmente por crianças e jovens. Além disso, ele fala sobre a restrição dos direitos das pessoas e os danos significativos que a “vigilância não transparente” de pessoas por atores estatais ou não estatais pode trazer para a saúde mental das pessoas.
Finalmente, o RS conclui o relatório com um conjunto de importantes conclusões e recomendações, declarando firmemente que “não há saúde sem saúde mental e não há boa saúde mental e bem-estar sem adotar uma abordagem baseada nos direitos humanos”.
O compromisso holístico e interdisciplinar do relatório com a saúde mental nos enche de imensa esperança sobre um mundo mais justo e equitativo e nós do Mad in Asia Pacific o endossamos plenamente.
Você pode baixar as versões Word e PDF do relatório completo em inglês e em vários outros idiomas aqui (há em espanhol, p. e.).
Postado pelo COC/Fiocruz – A Casa de Oswaldo Cruz lançou um especial sobre o Covid-19, “O mal-estar psíquico na pandemia: aspectos sócio-culturais”. Na primeira parte, Ana Teresa A. Venancio, Cristiana Facchinetti e Flávio C. Edler, entrevistam a antropóloga do Instituto de Medicina Social – IMS/UERJ, Jane Russo.
A proposta é aprofundar o debate sobre os comportamentos, respostas emocionais e mal estar psíquico produzido pelo contexto sócio-histórico de pandemia que vivemos.
“(…) há algo que os especialistas em saúde mental deveriam já estar pesquisando agora: como um grande número de pessoas, com os mais diversos backgrounds sociais e culturais, conseguiu fazer o chamado “distanciamento social” – isolados em casa, saindo somente em casos de emergência – sem sofrerem com isso nenhum tipo de colapso mental.”
Nikolas Rose é professor de Sociologia no Departamento de Saúde Global e Medicina Social do King’s College London. Seu trabalho explora como conceitos em psiquiatria e neurociência transformam como pensamos sobre nós mesmos e governamos as nossas sociedades.
Tendo sido formado como biólogo, Rose descobriu que seus sujeitos eram indisciplinados: “Meus pombos não bicavam as chaves e os meus ratos não corriam em seus labirintos. Eles preferiram morrer de fome.” Ele passou a estudar psicologia e sociologia e se tornou uma das figuras mais influentes nas ciências sociais, bem como um expoente crítico da prática psiquiátrica hegemônica.
Escritor prolífico, Rose tem mais de quinze livros de sua autoria, incluindo, mais recentemente, Neuro com Joelle Abi-Rached (2013) e Our Psychiatric Future (2018), abordando as controvérsias mais urgentes nos campos da neurociência e da psiquiatria. Ele também é ex-Editor Gerente de Economy and Society e Editor-Chefe da revista interdisciplinar BioSocieties.
Ao longo de seu trabalho, Rose enfatiza que é preciso olhar além das origens, ou “por que algo aconteceu?”, e concentrar-se nas condições sob quais as ideias e práticas emergem. As respostas podem não ser reconfortantes ou simples, porém podem nos ajudar a evitar soluções de tipo band-aid para lidar com problemas complexos.
Rose se baseia no trabalho do filósofo Michel Foucault para revelar como os conceitos em psiquiatria e psicologia vão além da explicação, para deste modo construir e interpretar como nós mesmos e o nosso mundo são vivenciados. Consistente com o adágio de Foucault, “Meu argumento não é que tudo é ruim, mas que tudo é perigoso”, o trabalho de Rose evita explicações simplistas sobre o porquê e como os campos da saúde mental correm mal e, em vez disso, examina como as injustiças podem acontecer sem pessoas injustas. Desta forma, seu trabalho frequentemente transcende a crítica e imagina novas possibilidades e maneiras de pensar sobre “saúde mental”, “normalidade”, “cérebros e mentes” e, em última instância, os “selves” [“eus”] que ainda podemos nos tornar.
Ouça aqui o áudio da entrevista que Nikolas deu à nossa colega Ayurdhi Dhar, do Mad in America. A transcrição abaixo está editada, com a ideia de fornecer a você uma síntese do essencial do diálogo.
Ayurdhi Dhar: Em seu trabalho, você aponta que, embora a psiquiatria e a psicologia (ou as psicodisciplinas) pareçam ser objetivas, elas são, na verdade, construídas nos “estilos de pensamento” da sociedade – modos de pensar que ninguém questiona. Por exemplo, em psicologia, existe uma ideia subjacente de que as coisas que acontecem fora de nós, chegam dentro de nós. Essa suposição leva a pesquisas que tentam localizar traumas em escaneamentos cerebrais, bem como teorias sobre sentimentos inconscientes ou pensamentos disfuncionais. Como você começou a questionar essas suposições subjacentes? O que o levou a essa área de investigação?
Nikolas Rose: Fui para a Sussex University na década de 1960, quando estudantes na Europa questionavam as suas universidades e a ordem política a elas associada. Embora eu tenha inicialmente sido formado em ciências biológicas, percebi que essas verdades não poderiam ser encontradas estudando as moscas-das-frutas.
Descobri que a psicologia humana era uma disciplina peculiar. Na história convencional, a psicologia remonta aos gregos; mas de repente, por volta do final do século 19, as psicodisciplinas se tornaram ciências. Eu olhei para essa história e vi não ser o caso.
Um exemplo revelador foi o conceito de inteligência. O psicólogo francês Alfred Binet vinha tentando entender a inteligência humana há muitos anos. Ele não chegou a lugar algum e sentiu que a inteligência era tão difícil de ser apreendida que tal conceito não existia. Após mudanças no sistema escolar francês, o ministério pediu a Binet que encontrasse um teste para mostrar quais crianças se sairiam bem nas escolas comuns e quais necessitariam de escolas especiais. Ele inventou um teste, que se tornou o primeiro teste de QI e que passou a ser a base do que pensamos do que é inteligência.
Este é um exemplo de que a história da psicologia moderna não começa no laboratório, na filosofia, no pensamento especulativo, etc. Ela começa com perguntas muito práticas. Não é que a psicologia tivesse um grande conhecimento científico da mente do qual ela fosse capaz de aplicar. Ao contrário, ela podia fazer um trabalho no mundo prático, e então se tornou uma disciplina científica respeitável.
Minha tese de doutorado e meu primeiro livro The Psychological Complex mostrou como as disciplinas-psi não eram apenas formas de refletir sobre o nosso mundo, mas sim cruciais na construção de instituições-chave, tais como a administração de exércitos, trabalhadores da fábrica com pouca disposição para o trabalho, crianças desajustadas, etc. Em todos esses lugares práticos – o tribunal, os exércitos, as escolas – nasceram as disciplinas-psi. Estas formas práticas de administrar as nossas vidas estão agora a moldar a nossa maneira de pensar e de maneira fundamental. Pensamos: “É claro que algumas crianças são mais inteligentes do que outras. É claro que algumas crianças se desenvolvem mais rapidamente do que outras. É claro que algumas crianças estão mais inclinadas ao comportamento delinquente do que outras”.
Dhar: O trabalho de Foucault destaca que não era apenas porque os médicos tinham conhecimento psiquiátrico especializado, mas que, em vez disso, sua estatura criava especialização. Da mesma forma, não era que os asilos fossem curativos, mas porque as pessoas estavam sendo colocadas nesses locais, passaram a ser vistos como locais de tratamento.
Rose: Foucault lembra que os médicos ganharam o controle do manicômio não porque tivessem grande conhecimento especializado sobre a loucura, mas porque eram considerados sábios à luz de uma série de escândalos em torno da comercialização de manicômios e as suas péssimas condições. A Europa e a América do Norte decidiram regular como as pessoas iam para os asilos e decidiram que seria obviamente por meio dos médicos, porque eles eram considerados como sendo pessoas sábias e confiáveis.
Foucault também mostrou que o “olhar clínico” do médico surge como consequência de toda uma série de coisas contingentes que aconteceram naquela época, como foram as mudanças nas leis francesas de assistência. Quando as pessoas estavam doentes e precisavam de cuidados gratuitos de saúde, elas tinham que ir para os hospitais. Seu nome está escrito, agora você tem um histórico de caso e as pessoas o observam conforme como a sua condição se desenvolve dia após dia, semana após semana. Isso fez parecer que havia um padrão geral de progressão de um transtorno. Essas e outras coisas criaram as condições para esse olhar clínico. Nunca se deve procurar as origens, mas sim perguntar, “como isso ocorreu?”
Dhar: Muito do seu trabalho tem a ver com os escritos de Michel Foucault. O que foi que do trabalho dele que ressoou em você?
Rose: Foucault me forneceu as ferramentas conceituais para dar sentido às questões que me interessavam. Ele diz em algum lugar: “A história não é tanto para saber, mas para cortar” – cortar questões e torná-las inteligíveis.
O surgimento das psicodisciplinas é sobre o surgimento de um certo “estilo de pensamento”. História da Loucura de Foucault não foi realmente uma história da psiquiatria; era uma pré-história a mostrar em que condições algo como a psiquiatria surgiu e que agora existe – com seus asilos, seus médicos, suas classificações diagnósticas, etc.
Como estudante, entrei no mundo da psiquiatria, indo a hospitais psiquiátricos, vendo pacientes que estavam sendo demonstrados pelos médicos. Eu me perguntava como alguns pensamentos que me pareciam bastante normais eram vistos como sintomas psiquiátricos em pacientes. Vi tratamentos prevalentes como a terapia da aversão, que era usada para homens homossexuais. Os eletrodos eram fixados em seus genitais e, quando se sentiam excitados depois de receberem imagens estimulantes, eram atingidos por choques elétricos.
Isto era absolutamente horrível, e mesmo assim as pessoas que o faziam pareciam ser cientistas decentes e humanos, não guardas de campos de concentração. Como eles podiam pensar e fazer essas coisas e acreditar que não apenas era legítimo, mas cientificamente justificado? Que isso era objetivo e que era uma forma de terapia? Que isso estava fundamentado na pesquisa científica?
Essas coisas me fizeram questionar como esses “estilos de pensamento” surgiram e como eles produzem certos tipos de profissionais – os pequenos especialistas da ciência que vemos agora em nossas escolas, exércitos, hospitais, prisões, e em todos os lugares da sociedade.
Dhar: Essa é a importância de conhecer a história; esses métodos que parecem tão horríveis neste momento, uma vez os estudos demonstram ser eficazes.
Rose: Ao redor da Segunda Guerra Mundial, havia excitação sobre a psiquiatria física – terapia eletroconvulsiva, lobotomias. Parecia que tínhamos técnicas que funcionavam e que podíamos entrar no cérebro e alterá-lo. A pergunta é: em 50 anos, vamos pensar o mesmo sobre os psicofármacos?
Acho que estamos em um momento decisivo com as drogas. As pessoas percebem que elas não funcionam muito bem e que os chamados efeitos colaterais são tão prejudiciais quanto a da antiga discinesia tardia causada pelas drogas. A pesquisa cerebral mostra que algumas das consequências a médio e longo prazo dos transtornos são consequências de tomar as drogas cronicamente.
A esquizofrenia já foi considerada como sendo uma condição degenerativa crônica, até que ficou claro que a degeneração era uma consequência da institucionalização. Vamos olhar para trás daqui a 50 anos e pensar que nossa obsessão por essas pequenas moléculas é tão bizarra quanto aqueles tratamentos anteriores?
Estamos em uma situação paradoxal. Mais pessoas no mundo inteiro estão tomando produtos psicofarmacêuticos e, ao mesmo tempo, a pesquisa começa a questionar se eles são eficazes e revelam os seus efeitos adversos. Estes medicamentos são administrados por médicos de clínica geral que pensam que os medicamentos não podem fazer nenhum mal. Eles dizem: “Eu costumava dar tranquilizantes aos meus pacientes, Valium, etc. Eles eram viciantes. Pelo menos estes medicamentos de agora não podem fazer nenhum mal”. Eles estão começando a ver que esta história é problemática.
Dhar: Pesquisas agora sugerem que os antidepressivos têm efeitos de abstinência duráveis e severos, e que os antipsicóticos podem levar a sintomas psicóticos. O que me intriga é que, apesar de todas essas pesquisas, a posição neurobiológica e o paradigma biomédico não perderam nenhum vigor ou poder. O que lhes dá este poder?
Rose: Algumas dessas drogas podem, para algumas pessoas, proporcionar algum alívio a curto prazo; o que pode permitir que se afastem da crise avassaladora, com a finalidade de resolver os problemas reais. O problema é a sua administração crônica e a dosagem cada vez mais alta; com a suposição de que se uma droga parar de funcionar deve-se acrescente uma outra. Portanto, a polifarmácia é a norma.
Em vez de essas drogas serem tratadas como ‘algo’ que, por razões desconhecidas, produz algum alívio a curto prazo, acreditamos que sabemos como elas agem no caminho do transtorno – o que nunca, jamais foi demonstrado. Se as pessoas começam a ter efeitos adversos quando saem da droga, isso é atribuído ao transtorno e não às consequências da retirada.
A tragédia é que, desde os anos 60, este paradigma particular tem hegemonizado a razão psiquiátrica – todos os transtornos psiquiátricos têm a ver com os receptores, e os tratamentos devem agir sobre essas anomalias nos receptores. E essas drogas funcionam nos receptores; se não é dopamina ou serotonina, então talvez seja glutamato ou outra coisa qualquer; mas é certo que está nos receptores!
Eu trabalhei com o Projeto Cérebro Humano financiado pela Comissão Europeia. No cérebro humano e o dos primatas, existem sistemas redundantes enormemente distribuídos – você não toca apenas em um pedaço, e é isso. O cérebro é dinâmico. Se você muda uma coisa, tudo muda!
Estamos em um estado muito primitivo, com as intervenções no cérebro. No Reino Unido, as pessoas estão questionando este paradigma. Há interesse em drogas alternativas, como as antigas drogas psicodélicas e a sua eficácia terapêutica. Mas isso é tratado de forma hostil pelo nosso governo e pelos reguladores.
Dhar: Você escreve sobre que os limites dos diagnósticos da psiquiatria estão sempre em expansão, transformando os descontentamentos gerais da vida em doenças. Outros autores têm culpado a Big Pharma, o capitalismo neoliberal, etc., mas você diz que é mais do que isso. Você pode explicar?
Rose: Estamos no meio de uma pandemia, e os jornais estão cheios de histórias sobre as suas conseqüências para a saúde mental e com afirmações do tipo: “Está chegando um tsunami na saúde mental, precisamos de mais psiquiatras e melhor acesso a seus serviços”! É claro que as pessoas estão ansiosas enquanto suas vidas são viradas de cabeça para baixo. Isso é compreensível, mas agora esta linguagem das emoções não é suficiente. De alguma forma tudo isso está sendo recodificado como problemas de saúde mental.
Agora é incrivelmente difícil dizer que talvez seja melhor usar a linguagem das emoções, que as pessoas estão apenas fartas e infelizes ao verem os seus entes queridos morrerem. Estas são experiências normais e não sintomas de problemas mentais, que requerem intervenções individualizadas feitas por um exército de especialistas em psiquismo.
Talvez precisemos pensar por que as pessoas mais profundamente afetadas são pessoas de grupos de pretos e minorias étnicas, vivendo nas piores formas possíveis de moradia, lugares superlotados, que são financeiramente vulneráveis, etc. Poderíamos pensar em intervir ali; mas não, a linguagem da saúde mental tornou-se uma forma de codificar o nosso descontentamento cotidiano.
Há o argumento de que talvez todas as pessoas sejam afetadas por problemas de saúde mental em algum momento de nossas vidas; e que este fenômeno precisa ser teorizado, analisado e tratado. Esta é a gradual emergência e expansão da psiquiatria. A famosa psiquiatra social Aubrey Lewis disse sobre a psiquiatria que não há outra profissão que, quando dada a existência de um problema e os psiquiatras perguntados se eles podem ajudar, o mais provável é que digam “Sim”. Você dá aos psiquiatras problemas como de crianças travessas, trabalhadores relutantes, pessoas sem teto; e eles dirão: “podemos dizer algo sobre isso”.
Os psiquiatras abraçaram todos esses problemas; os limites se espalharam e vem se espalhando. De certa forma, todos nós podemos ser chamados de pré-sintomáticos e em risco de alguma coisa ou de uma outra. Na medicina física, quanto mais cedo você detectar, melhor; então os psiquiatras pensam: “por que não na psiquiatria”? A intervenção precoce para crianças, para psicose do primeiro episódio – é a psiquiatria pensando em si mesma enquanto uma vocação de saúde pública.
Então os psicólogos olham para fora da Euro-América e pensam que essas populações estão privadas de acesso a essas intervenções; e temos o Movimento para a Saúde Mental Global. Os psiquiatras acreditam que sabem; ou que têm um estilo de pensamento com um potencial de saber, mesmo que não se saiba completamente agora, mas que esta é a forma de pensar e saber.
Eles pensam que têm tratamentos que funcionam e que, mesmo que não funcionem muito bem, estão no caminho certo para trabalhar. Porque pensam que sabem como saber, que sabem como tratar a você ou a ele.
Assim, devemos entender porque os psiquiatras pensam da maneira como pensam e abordam os argumentos internos. Devemos colaborar do ponto de vista da crítica amigável e questioná-los, as fraquezas de suas evidências, e chegar a alternativas. Existe um futuro para um tipo diferente de psiquiatria.
Dhar: Os grupos de usuários de serviços estão agora felizmente começando a ser incluídos nas decisões sobre saúde mental. Mas sabemos que os grupos de defesa dos pacientes são frequentemente assumidos pelos interesses das empresas farmacêuticas. Você acha que os grupos de usuários de serviços ou sobreviventes, agora que estão incluídos na formulação de políticas, serão cooptados como são os grupos de defesa de pacientes?
Rose: Foucault disse que a ascensão da psiquiatria lançou no deserto todas aquelas frases gaguejantes e ditas pela metade com as quais o diálogo entre a razão e a desrazão costumava ocorrer e que a história da psiquiatria é a história desse silêncio.
Uma das mudanças é que o silêncio foi quebrado. Qualquer relatório no Reino Unido, como o relatório da comissão em Lancet, não pode ser escrito sem referência à experiência vivida por pessoas com transtorno mental, idealmente enquanto autores. Embora exatamente qual poder eles têm em moldar essa narrativa seja incerto.
O envolvimento da voz do paciente é a coisa mais significativa que aconteceu na psiquiatria desde a invenção dos psicofármacos, e pode transformar a psiquiatria de uma maneira melhor do que os produtos farmacêuticos o fazem. Pode exigir que a psiquiatria ouça as vozes daqueles que afirma beneficiar.
Mas há uma infinidade de problemas – a experiência do sobrevivente sendo reformulada em termos psiquiátricos, sobreviventes articulados que passam a ser considerados não representativos dos outros, etc. Os sobreviventes frequentemente não podem moldar a estratégia de pesquisa, as questões de pesquisa, a interpretação da pesquisa. As pessoas no movimento de usuários e sobreviventes no Reino Unido estão bem cientes desses desafios. Existe o perigo da cooptação, ainda que a cooptação não seja o destino. Estamos no meio de algo; e grupos como o Mad, que fomentam as histórias de sobreviventes, desempenham um papel crucial.
Devemos reconhecer que as pessoas que passaram por sofrimento mental e pelo sistema de saúde mental oferecem não apenas a experiência vivida, mas um tipo diferente de conhecimento válido. Esse conhecimento é desenvolvido em colaboração com outros; está aberto a desafios, capaz de dar provas, aberto a questionamentos.
Como a própria psiquiatria, os movimentos do usuário e dos sobreviventes são dominados por conflitos. Por exemplo, há dúvidas sobre se eles são dominados pelo Norte global? Existem conhecimentos autônomos no Sul global? Existe alguma virtude nos métodos tradicionais de cura? Os conflitos não são um problema; eles são como é como as coisas se desenvolvem.
Dhar: Você escreveu sobre “pensamento de risco”. Vivemos em uma época em que medir e identificar riscos faz parte de nossa cultura. Por exemplo, usamos testes genéticos para descobrir a suscetibilidade e as muitas avaliações em escolas e escritórios. Como o “pensamento de risco” e as disciplinas psicológicas trabalham juntas para influenciar como nos sentimos sobre nós mesmos?
Rose: O filósofo canadense Ian Hacking fala sobre o pensamento de risco enquanto trazer o futuro para o presente; o que nos faz sentir obrigados a pensar sobre isso. Então nos sentimos obrigados a fazer coisas no presente para influenciar este futuro. Parece ser irresponsável não fazer algo a respeito dos riscos.
Se disserem que comer hambúrgueres duas vezes ao dia aumentará as chances de ataque cardíaco, então parece irresponsável continuar fazendo isso, mesmo se vivamos em um ambiente obesogênico (causando obesidade) onde hambúrgueres são baratos e nos ajudam a alimentar os nossos filhos. Um senso de responsabilidade pessoal por nosso corpo é induzido e muito difundido. Não se trata de viver uma vida virtuosa ou de fazer o bem, mas de assumir a responsabilidade de administrar a nossa existência corporal, nosso peso, dieta, etc.
Com isso, vem uma série de tecnologias que pretendem trazer o futuro ao presente e torná-lo calculável para nós – as escalas, os testes genéticos etc. Depois, há questões técnicas. Veja, por exemplo, mamografias. Pesquisas em países nórdicos mostram que os números de falsos positivos e negativos são extremamente altos; além disso, muitos sinais precoces nunca se transformam em tumores. Da mesma forma, para o câncer de próstata em homens, existe um teste de antígeno para pré-identificar as pessoas em risco. O conhecimento do futuro e a intervenção vão causar mais mal do que bem? No caso do teste de próstata, muitos homens passaram por intervenções cirúrgicas que tiveram consequências importantes para eles; mas a maioria dos homens com câncer de próstata nem morrerá disso.
Para a psiquiatria, as perguntas se tornam ainda mais difíceis, isto porque os marcadores e as intervenções não existem e não podem ser encontrados. Fica a afirmação de que alguém é um risco elevado, sem especificidade sobre o que é esse indicador de risco; e sem quaisquer intervenções que vão mitigar esse risco. Mas o que você recebe é o estigma e outras consequências para o próprio indivíduo e de outros que pensam que aquela criança de oito anos corre o risco de desenvolver distúrbios psicopáticos.
Com o argumento da Síndrome de Risco de Psicose, a grande maioria das pessoas que têm um episódio que parece ser um episódio psicótico, nunca desenvolvem psicose futura. Mesmo que soubéssemos exatamente do que estávamos falando, as evidências sugerem que é um movimento muito ruim começar a fazer esses diagnósticos precoces; porque traz todas as desvantagens de ser identificado como uma pessoa em risco – pensando em si mesmo como uma pessoa em risco, e depois seus pais e seus professores observando – conduzindo ao efeito de looping.
O “pensamento de risco” na psiquiatria leva à ideia de que uma pessoa diagnosticada tem riscos em relação a outras, o que leva a graves injustiças. As pessoas estão sujeitas a longos períodos de detenção ou supervisão involuntária, com base em avaliações de risco realmente rudimentares e questionáveis.
Há a indústria de avaliação de risco com benefícios financeiros para psiquiatras que são trazidos como consultores. Em uma organização psiquiátrica que deve permanecer sem nome, eu disse que deveríamos deixar de ser chantageados pelo governo para fazer essas avaliações de risco, porque não somos bons nisso. Todos os psiquiatras de lá sabiam disso; mas parar o negócio de avaliação de risco isso significava desistir do segundo carro, da escolaridade particular para seus filhos, etc.
Dhar: Você escreve sobre o foco singular da psiquiatria no cérebro e como ele afeta a forma como nos entendemos. Você poderia falar sobre este conceito de “individualidade somática” e como as disciplinas-psi alteram o sentido que temos de nós mesmos?
Rose: A individualidade somática é a ideia de que a nossa identidade depende fundamentalmente de nosso corpo – sua forma, seu tamanho, sua aptidão, sua capacidade, etc. Gerenciar nossa existência corporal agora se torna a coisa mais virtuosa que podemos fazer, etc. O nosso eu se torna muito ligado aos nossos corpos.
A pesquisa cerebral tem feito progressos fantásticos nos últimos 30 anos. Sabemos mais do que nunca sobre os cérebros humanos; mas quanto mais sabemos, mais percebemos que não sabemos e compreendemos. Entendemos eventos moleculares em escala muito pequena dentro do cérebro; mas não sabemos como eles se desenrolam através das enormes complexidades de múltiplas sinapses e caminhos corticais.
Não sabemos claramente como os cérebros estão localizados no corpo; porque muitas vezes são estudados de forma isolada ou com animais. Nos estudos, os cérebros não são incorporados, e os corpos não são colocados em um ambiente; e o ambiente não é colocado no tempo e no espaço. Até que possamos começar a pensar sobre isso, não conseguiremos entender totalmente como os cérebros funcionam.
Havia uma esperança reducionista de que começaríamos por entender os menores blocos de construção do cérebro, as moléculas e sinapses, e que gradualmente trabalharíamos até o cérebro das criaturas simples e depois o cérebro dos humanos. Subir a escala provou ser impossível; muito menos colocar todas essas coisas no espaço e no tempo.
Não devemos descartar a neurobiologia, mas devemos começar com o cérebro humano tal como ele é, como ele se desenvolve em um organismo desde a concepção, sempre em interação com o seu ambiente. Tudo sobre o cérebro é moldado e envolvido para tornar possíveis as ações nesse ambiente.
Chegamos ao fim dessas abordagens reducionistas porque elas se mostraram incapazes de responder às perguntas que se impunham, e não conseguiram entender como você e eu podemos estar fazendo as coisas estranhas que estamos fazendo agora – falar, pensar, comunicar, etc.
Apoio uma nova relação entre as ciências neurobiológicas e as ciências sociais nas quais trabalhamos juntos, para entender como o nosso ambiente social e político molda quem somos. Dito de outra forma, se as pessoas estão experimentando sofrimento mental, como podemos entender isso em termos de a sua relação com seus corpos, cérebros e existência humana nesses ambientes? Como podemos intervir em sua relação com esses ambientes e não apenas com as estruturas moleculares?
****
Os Relatórios MIA são apoiados, em parte, por uma subvenção de Open Society Foundations.
Vivemos sob o imperativo da felicidade, saúde perfeita, sucesso e bem-estar. O mandato de ser feliz, “custe o que custar”, coloca-se hoje como uma demanda patente. Uma transformação fundamental tem ocorrido na economia simbólica da lei moral: ela passou a ser regulada pela ordem de atingir a plena condição de felicidade. Assim, se a felicidade se transformou em um imperativo irrepreensível, isso se deve à democratização do espaço social que concedeu a todos a pretensão de igualdade. Em uma sociedade supostamente democrática, a igualdade tornou-se um dos seus principais ideais e um dos alicerces da cidadania. A aspiração à felicidade passou a ser pleiteada como algo da ordem do direito (Birman, 2010). Ou seja, não se aceita nada menos do que ser feliz em todas as esferas da vida. Se algo fugir ao roteiro fantástico, logo, não poderá ser acolhido psiquicamente sem um profundo trabalho.
Além do consumo e da posse de bens e serviços, insígnias de conquistas objetivas, surgiu ainda a noção de “boa vida” que pode ser mensurada tendo como base a fruição de um bem-estar superlativo. Esse tipo de bem-estar denota um “sentir-se mais do que bem”, fruto de uma suposta competência na gestão da vida, no uso dos dispositivos de controle, na eliminação do sofrimento e na otimização das potencialidades vitais (Bezerra Jr., 2010).
Entretanto, apesar dos esforços na direção desse ideal fantasístico inalcançável de “bem-estar” que se embaraça muitas vezes com um “culto da performance” (Ehrenberg, 2010), o sofrimento psíquico, a doença, a morte, as dificuldades e agruras da existência persistem ainda que sob diferentes insígnias na atualidade. A denominada “depressão” passou a se impor como uma das maiores modalidades de sofrimento da atualidade, posto que esta nomenclatura também evidencia o fracasso performático do sujeito (Birman, 2010).
Para Elisabeth Roudinesco (2000), o sofrimento psíquico tem sido classificado e se manifestado sob a forma de depressão, cuja presença se transformou em uma epidemia nas sociedades democráticas. A autora aponta para uma substituição e valorização dos processos psicológicos de normalização e avaliação em detrimento das diferentes formas de exploração do inconsciente. Tratado como depressão, o conflito neurótico contemporâneo é abafado, escamoteado e rechaçado, parecendo – à primeira vista – não estar associado a nenhuma causalidade psíquica oriunda do inconsciente.
Assim, podemos dizer que há uma espécie de caldo sócio-cultural que busca promover a normalização das individualidades e dos laços sociais pelo silêncio dos registros do sujeito e da singularidade. Segundo o filósofo Gilles Lipovetsky (1989), há uma cultura de massa, amplamente difundida, que também se destina a satisfazer a necessidade de evasão dos indivíduos, cujos efeitos atingem todas as camadas sociais. Essa cultura teve como função histórica determinante a reorientação das atitudes individuais e coletivas, bem como a difusão de novos padrões de vida, seguindo novos referentes ideológicos e modelos existenciais. A cultura de massa foi um vetor essencial para o estabelecimento do individualismo contemporâneo, que dá suporte à construção de mitos e engrandece a felicidade, tornando irreais as existências concretas. Este tipo de cultura faz viver por procuração imaginária um indivíduo sonambúlico, despossuído de si mesmo pelas figuras encantadas no imaginário, abrindo a via régia para o surgimento de lideranças populistas.
Compreendemos também que este pano de fundo foi propício para a implementação de uma perspectiva negacionista.
Ehrenberg (2010) ensina que quando a transformação política da sociedade está em crise, a verborreia de challenges, desafios, performance insurgem como um conjunto de disciplinas de salvação pessoal, individual. Isso pode ser resumido como “não temos mais nada além de nós mesmos para nos servir de referência”. O culto da performance, tal como proposto por Ehrenberg, é caracterizado pela confluência de três discursos: o esportivo, o do consumo e o empresarial. O esporte caracteriza um regime de competição na qual apenas os “melhores” e mais preparados vencem. No consumo, o indivíduo aprende a desfrutar de si mesmo, alimentando a crença de que suas necessidades devem ser sempre satisfeitas e de que seu mote deve ser a autorrealização. Mas, é do discurso empresarial que observamos a verdadeira “reconversão” da sociedade ao culto da performance. Os conhecidos “homens de negócio” são transformados em modelo ideal de conduta, regendo uma nova ética meritocrática, segundo a qual vencer, ser feliz e bem-sucedido, conduzir uma vida com excelência passam, antes de mais nada, pela ação do empreendedor no mundo dos negócios, de assumir riscos e ser obstinado. Esses homens, assim como as empresas, tornam-se um grande fator de singularização para a massa de indivíduos que não encontra mais no horizonte político-social as referências para sua ação. Nessa nova “mitologia”, todos tem o “direito” (e o dever) de serem empreendedores de si, de se constituírem por conta própria mediante a sua performance. As diferenças sociais, econômicas, políticas e até mesmo sanitárias não são contempladas. Seguindo esta lógica, poucos, pouquíssimos estariam “aptos” a alcançar a felicidade.
Segundo Brandão (1998), podemos supor ainda mais uma outra causa para o sentimento atual de crise: o solapamento da ética naturalista. A ética naturalista é compreendida, segundo a definição de Costa (1992) num estudo sobre Gide, como a “que busca na natureza os fundamentos da vida moral” (Costa, 1992, p.275). Os fundamentos independem das crenças particulares e contingentes, encontrando-se nos imperativos a-históricos e apolíticos da biologia, ou genericamente, na natureza, de modo que as obrigações morais se tornam válidas para todo e qualquer indivíduo. Se possuem a mesma biologia, igualmente teriam (em ficção) as mesmas condições de exercer suas potencialidades e atingir a felicidade. Este é um terreno fértil para a psiquiatria biológica ganhar cada vez mais espaço, mercado, consumidores e dependentes. A psiquiatria passa a operar oferecendo respostas prontas a uma crise multifacetada a partir do seu “tesouro semiológico”. Ela carrega consigo a promessa de felicidade e aprimoramento do humano, psiquiatrizando os comportamentos desviantes que fogem a norma.
De mãos dadas com a lógica neoliberal, a psiquiatria biológica se apropria da condição humana, das fantasias, dos ideais e das diferenças. Reduz a humanidade à pura biologia. A contrapartida oferecida pela psiquiatria junto com as inesgotáveis categorias diagnósticas que se transformam de tempos em tempos, é um verdadeiro arsenal técnico-avaliativo-medicamentoso (por vezes, profilático) que promete detectar, localizar, nomear, aliviar ou até mesmo extirpar aquilo que impede o indivíduo de atingir seu potencial máximo e, finalmente, ser feliz.
Sob a égide do culto à performance, a sociedade contemporânea impulsiona cada um a se singularizar. Este enfoque psiquiátrico tem contribuído o abortamento do debate transdisciplinar. A pluralidade de abordagens contempladas quando se tratava de explicar as vicissitudes individuais foi sequestrada por concepções fisicalistas que tendem a reduzir estas explicações a sua dimensão biológica, naturalista. Isso contribui para a escassez de buscas por saídas coletivas.
Para atingir o ideal de felicidade, valoriza-se uma natureza individual, heroica, cujo modelo erigido foi o do empreendedor. Contudo, para atingir ideais tão elevados de felicidade e performance, permeados pela verdadeira obsessão de ganhar, de vencer, de ser alguém, o consumo em massa de medicamentos psicotrópicos se tornou um grande aliado. Por isso, podemos dizer que a cultura da felicidade e da performance é também uma cultura da ansiedade, da depressão (Ehrenberg, 2010), do espetáculo (Debord, 1992) e das drogas (Birman, 2012). Estas não se restringem ao uso das drogas ilegais, mas incluem drogas lícitas, prescritas e ditas medicinais, legitimadas cientificamente. Na denominada “cultura das drogas”, vivemos intoxicados, ainda que não saibamos, pois diferentes fármacos e estimulantes se inscrevem no estilo performático da vida contemporânea e na busca pela felicidade.
Referências
Bezerra JR., B. (2010). A psiquiatria e a gestão tecnológica do bem-estar. In:Freire Filho (org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV,117-134.
Birman, J. (2012). O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.
Birman, J. (2010). Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade. Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 27-47.
Costa, J. F. (1992). Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo. Em Ética (pp.275-288). São Paulo: Companhia das Letras – Secretaria Municipal de Cultura.
Debord, G. (1992). La societé du spectacle. Paris: Gallimard.
Ehrenberg, A. (2010). O culto da performance. São Paulo, SP: Ideias & Letras.
Lipovetsky, G. (1989). O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras.
Roudinesco, E. (2000). Por qué el psicoanálisis? (Vol. 53). Paidos Iberica Ediciones SA.
Publicamos esta contribuição recebida pela Rede de Coletivos Antipsíquiátricos por ocasião do primeiro aniversário da morte de Elena Casetto, de dezenove anos de idade, queimada viva amarrada a uma cama de contenção.
Quase um ano após a morte de Elena, ocorrida em 13 de agosto de 2019 devido a um incêndio na ala psiquiátrica de Bérgamo, estamos divulgando este manifesto contra a restrição mecânica produzido pela Rede de Coletivos Antipsiquiátricos para recordar Antonia Bernardini e todas as vítimas da psiquiatria, como Francesco Mastrogiovanni, que morreu amarrado à cama por 87 horas em 4 de agosto de 2009, e como Andrea Soldi, que morreu durante um TSO em 5 de agosto de 2015.
PELO ENCERRAMENTO DO SPDC (DEPARTAMENTO PSIQUIÁTRICO) PAPA JOÃO XXIII DE BERGAMO
31 de dezembro de 1974: Antonia Bernardini morre, após dias de agonia, de queimaduras provocadas por um incêndio que ela causou para chamar a atenção. Ela havia sido amarrada à sua cama durante 43 dias, no asilo feminino de Pozzuoli: ela queria um copo de água e ninguém a escutava.
13 de agosto de 2019: no SPDC do hospital Papa João XIII em Bérgamo, começa um incêndio cujas causas são desconhecidas. Elena, uma jovem de 19 anos, morre queimada viva na cama a que estava amarrada. A restrição não permitiu que ela escapasse.
A contenção é uma prática difundida e frequente no campo psiquiátrico.
Corpos e mentes são forçados, aniquilados, torturados. Todos os dias muitas pessoas são submetidas a esse tratamento, sob o olhar indiferente dos profissionais de saúde e do olhar indefeso das pessoas ao seu redor.
Não estamos e não estaremos dispostos a aceitar que isso aconteça novamente.
CONTENÇÃO NÃO É UMA TERAPIA!
PELA ABOLIÇÃO DE CONTENÇÃO! PELO ENCERRAMENTO DO SPDC EM BERGAMO!
É como se eu fosse um pinguim, um pinguim que passou sua vida em um bloco de gelo; à minha volta só o mar inóspito, até onde a vista alcança, por todos os lados. Eventual e estupidamente, num dia que deveria ter sido um dia qualquer, neste dia eu caí. Caí; estou ali entregue ao mar e suas ondas, vejo logo ali meu querido bloco de gelo, próximo, tão próximo – mas eu não consigo alcançar, e não consigo subir, e não consigo voltar. Então eu fico ali, à deriva, passo dois dias que são uma vida toda lutando como posso para não afundar, cada minuto uma vida conforme eu luto por minha vida, vida que parece só poder voltar a ser minha se eu puder voltar ao meu bloco de gelo, ele o tempo todo ali, ostentoso, indiferente, enorme, frio como sempre.
Foi assim que eu passei dois dias de minha vida num passado recente. Recente mesmo: esses dias foram uma sexta, um sábado e um domingo na segunda quinzena de março, durante o início das políticas de isolamento social relacionadas ao aumento de casos de Covid-19 em São Paulo.
Pois bem: nesses dois dias, dois dias e meio, eu estive louco. O pinguim sou eu, vivendo desde sempre (vulgo “as far as I remember”) isolado num bloco gelado de racionalidade analítica, e o mar é o mar de emoções e sentimentos e impulsos, o mar é a minha vida emocional, sempre tão alheia a mim, e o mar é a loucura; o mar, em alguma medida, é o que me separa de todo mundo. Eu caí… bem, eu caí quando eu enlouqueci, quando deixei de estar firmemente assentado em minha racionalidade analítica.
Nesses dois dias em que estive entregue às ondas eu aprendi, na carne e na pele, tudo que estudei por anos sobre loucura e sobre razão, sobre isolamento, sofrimento, sobre medo; aprendi sobre quão precárias são nossas racionalidades, nossas intelectualidades, quão frágeis são nossos pomposos castelos de livros e ciência e argumentos e inteligência.
Eu já tinha entrado em contato, muito tempo antes, com a loucura enquanto um tema de estudo. No segundo ano da graduação entrei em um curso de formação em esquizoanálise, e lá conheci um tanto do que se pensa sobre loucura a partir de Deleuze e Guattari, a partir de Nietzsche e Artaud e companhia. No terceiro ano entrei em contato com a obra de Foucault, li a História da loucura e um tanto de outras coisas a respeito da loucura e sua relação com a razão.
Olhando para trás eu reconheço que eu era um chato nessa época: pedante, montado no meu conhecimento analítico reativo acerca da loucura e da racionalidade, fazendo essa “crítica” com um pensamento mais frio e tecnicista que um relógio suíço, crente de que era um porta-voz da loucura e grande denunciador dos abusos da razão.
É claro que isso, por sua vez, era motivado por uma certa loucura que me habitava, e pelo pavor que eu tinha dela. Eu tinha entrado em contato com a loucura, desde cedo – a loucura está presente na minha família, e estava presente no condomínio em que vivi dez anos de minha vida, e esteve presente em mim mesmo o tempo todo. Mas eu sempre tive medo dela, e por isso construía muros e mais muros de razão e inteligência e controle e respeito – e ao longo de minha graduação em Psicologia eu aprendi a envernizar e embelezar esses muros com elogios e apologias à própria loucura que eu tentava desesperadamente separar de mim, aprisiona-la “do lado de lá” (de mim mesmo, conforme se nota e deveria ter sido óbvio desde o princípio).
Saí da graduação e, com toda a ironia de uma tragédia grega, segui tão firme quanto inconsciente em direção à loucura: um aprimoramento em saúde mental em um CAPS e, na sequência, um mestrado que (pelo menos quando eu entrei) trataria dos conceitos de loucura e psicose. Por essa época eu trombei com uma história que me marcou profundamente, uma etapa importante em minha relação com meu “castelo de gelo”: a história de Jairo Goldberg, que à época eu referia como “J.”; J. foi tema de um de meus primeiros textos nesse blog, lá pelos idos de 2010 quando eu o criei – o tema era o J. e a “futuridade”. Esse era o tema: a questão era que o Jairo, expoente da Reforma no Brasil, sofreu um AVC e, da noite para o dia, esteve destituído de toda aquela promessa de futuro que ele representava e encarnava. Um sujeito todo investido de futuridades, e de repente toda essa futuridade é ceifada dele, assim como se corta um galho de uma plantinha – a ideia me apavorava à época; a bem da verdade, me apavora até hoje. Nesse sentido, uma coisa mudou nesses 10 anos, que é o fato de eu entender melhor, hoje, o que tanto me apavora nessa ideia: um sujeito que é “todo futuridade” (como eu dizia nesse texto antigo) é como alguém que se põe a salvo de si mesmo, é um cara que não precisa estar presente onde está, porque ele age como se fosse uma espécie de investimento na eterna futura crescente grandeza que ele é/será. Ou seja: esse lance da futuridade é um jeito de acreditar que todo seu empenho e grandeza te salva ou te diferencia em alguma medida do presente e, no presente, da loucura.
O lance aqui, claro, é que o cara que age como “pura futuridade” (e a esse ponto acho que já sabemos que J. não era Jairo, era eu) investe freneticamente num futuro em que sua grandeza se verá justificada, e isso funciona como uma espécie de justificativa ad hoc para empenhar toda sua energia no intelecto, na intelecção, no pensamento; toda sua energia para entender, sem ter que participar; para pensar, sem ter que sentir; ser uma mente sem ser alguém.
Esse era o meu medo.
Esse é o meu medo.
Aos poucos fui entendendo que eu não estava sozinho – fui entendendo que as marcas da loucura nas biografias de grandes intelectuais, de nosso tempo como em outros, tem um tanto a ver com isso. Isso significa que a relação entre “gênio” e loucura talvez não seja na inadequação ou no direito de pensar “fora da caixa”, mas no desespero com que o sujeito investe tudo que tem para não cair fora da caixa – ele reinventa a caixa, se precisar, mas a ideia de sair dela é aterradora; ou seja: uma das coisas que pode ajudar a entender o “gênio” é o fato de ele investir desesperadamente nas formas de entender o mundo, inclusive porque ele precisa entender o mundo para não se ver à mercê de sentimentos que não domina (e não pode, e não vai dominar).
[Lembremos que a relação entre “gênio” e loucura certamente é mais complexa do que isso – acho que isso importa, e quero que a gente leve isso em consideração, mas não quero dizer que isso “explica” a relação entre “genialidade” e loucura].
Isso está em Van Gogh, claro. E naqueles todos do curso de esquizoanálise: Nietzsche, Artaud, possivelmente no próprio Deleuze. Isso está no Foucault.
Mas o que mais me impactou foi o Derrida. Benoît Peeters, o biógrafo, conta essa cena: Derrida seguia com sua esposa, Marguerite, em sua primeira viagem transatlântica rumo aos EUA; a esposa, preocupada com a tensão do marido, sugere que ele relaxe um pouco, e ele, irritado, responde: “como me pede para relaxar? Não vê que sou apenas eu, com a força de meu pensamento, que estou mantendo esse avião no ar?”.
Doidinho, o Derrida, né?
Pois é: não. O Derrida não é doidinho. Ele não é “diferentão”. Não tem graça. Isso, que aparece na biografia dele, marca a biografia de muita gente. Mas a maioria não fala disso. A maioria, por sinal, nem reconhece.
Mas está lá. Nem todo mundo “quebra” – como o Derrida quebrou, Foucault quebrou, Van Gogh quebrou, como eu quebrei pouco tempo atrás. Mas não é pouca gente que, mais cedo ou mais tarde, tem que acertar as contas com a loucura que é estar vivo e ser humano. E a gente criou esse mau hábito – alguns séculos atrás – de imaginar que só algumas pessoas são efetivamente oneradas por isso, só algumas pessoas têm que arcar com isso como um custo ou um peso; a gente criou essa fantasia maluca de que alguns de nós (a gente é estúpido o suficiente pra supor que é, inclusive, “a maioria”) não quebra, nem sofre, nem passa por apertos em relação a isso. Essa maioria – os “sãos” – fica triste eventualmente, e feliz, e às vezes eufórico, e às vezes está tão cansado que imagina coisas ou não pensa direito; mas é normal, não tem nada de louco ou de loucura, totalmente diferente. E aí surgem esses outros, esquisitos, os “mais normais dentre os normais” – esses como eu quis ser por tanto tempo – e se aferram a essa bandeira, e se apaixonam por essa bandeira, e decidem que se a maioria não enlouquece, eles vão ser praticamente os “antiloucos”, a epítome da racionalidade e, portanto, o oposto simétrico da loucura.
Eu conheci esse cara, algum tempo atrás, quando trabalhava em um CAPS, vou chamar ele de João. O João tinha uns trinta e tantos quando chegou ao CAPS, e estava sofrendo bastante – tinha um delírio persistente há anos, alucinações graves, e isso convivia tristemente com o peso e os efeitos colaterais de uma carga medicamentosa assustadora. Ele era um cara muito simpático, educado, gentil, era um cara muito doce. E a história dele me impactava muito, porque me lembrava demais a história do “J.” (que me assustava porque era a minha própria futuridade, podemos dizer): ele tinha tido um emprego satisfatório, uma família, uma rotina; tinha sido promovido, tudo ia bem, aí passou por um assalto no ambiente de trabalho, adoeceu, melhorou um tanto mas, um tempo depois, os sintomas voltaram, mais agudos, e desde então ele nunca mais se recuperou. Acabou perdendo o emprego, a esposa o largou, a relação com o filho degringolou muito e, no período em que convivi com ele, estava morando com o pai, numa situação financeira e social “suportável”, mas bastante desagradável.
De qualquer forma, o principal parece ser (a mim, ao menos) que João tinha “caído”. Ele tinha uma vida, uma estrutura, uma rotina e, sem aviso, aquilo tudo ruiu. Mas o que fico pensando é que talvez o que tenha acontecido não é tanto a ruína daquela vida, e sim a ruína da perspectiva de que ele passaria a vida montado naquela estrutura. E a diferença, aqui, me parece fundamental – afinal, parece que a divisão entre “loucos” e “sãos” é, em grande medida, a diferença entre quem “fica na estrutura” e quem “cai”, como se o sujeito que “caiu” fosse, ele mesmo, diferente (menos hábil, ou mais frágil em alguma medida) do que aqueles “normais”, os que “não caem”.
Meu ponto aqui, para dizê-lo simplesmente, é que essa divisão é uma farsa. Essa ideia de que as pessoas que “ficam na estrutura” porque são diferentes (mais “normais”) do que as que “caem” recobre o fato de que a estrutura, o fato de viver tentando se equilibrar sobre a estrutura, o fato de passar uma vida sendo humano, onera a todos. Existem, é claro, aqueles que conseguem fiar suas vidas sem jamais ter deixado aparente a quem os cerca isso – aqueles que parecem não sentir, parecem não ser tomados por suas emoções, transcorrendo suas vidas sem sinal de oscilação ou erro; esses podem ser (essa é minha aposta) pobres a ponto de soterrarem todo indício daquilo que há neles de mais humanos, ou hipócritas a ponto de distorcer suas biografias para que nada de “indecoroso” transpareça a quem os cerca.
Mas nada disso importa aqui, não quero fazer tipologias nem teorias sobre a humanidade; só falo desses sujeitos porque, até algumas semanas atrás, eu mesmo poderia ser contado entre eles – e isso seria uma grande perda e um grande equívoco, para mim e para todos. Eu sempre me esforcei para ser inteligente e para ser reconhecido dessa forma, e não pretendo que isso mude – mas isso acabou se articulando a algo muito mais triste, que foi uma necessidade minha de negar que houvesse loucura em mim.
E aí, num belo e pavoroso dia, eu caí – eu, pinguim, já contei essa história.
Não me orgulho, obviamente, do que passei e vivi ali, e não conto porque acho bonito. Conto porque quero fazer parte de uma história: a história do combate à farsa da razão – Razão, esse rei nu. Então o que quero com esse texto é tomar posição e poder dizer claramente: eu luto para ser um cara inteligente e ponderado, mas a loucura me atravessa. Eu espero poder me afirmar como um intelectual, trabalho para isso, mas isso não me põe no lugar de Soldado da Razão – nem eu, nem Foucault, nem Einstein, a maioria dos intelectuais não fica bem nesse uniforme. A razão precisa da loucura, precisa respeitar a loucura, e a loucura precisa que as “pessoas normais” deixem de ser trouxas e agir como se não houvesse loucura em todos nós.
Contei a história do dia em que caí para que mais gente possa reconhecer que o preconceito contra a loucura é um preconceito burro. Você, leitor, provavelmente sofre com aquilo que acontece, na sua vida de afetos e pensamentos, ali nas raias da razão, e certamente você tem familiares e amigos que sofrem com isso também. Então meu ponto é: respeite essa luta e esse sofrimento, reconhecendo que isso existe sem julgamento e sem moralizar a questão. Tentemos ser respeitosos com nossos limites, e com o que existe de nós “do lado de lá” deles.
Era isso que eu queria dizer. Uma última consideração: existe um movimento internacional importante chamado “Coming out proud”, que se inspira em movimentos LGBTQIA+ no sentido de promover o combate à psicofobia e à discriminação de pessoas diagnosticadas com síndromes e transtornos a partir da assunção “orgulhosa” das próprias condições e diagnósticos (link para uma associação que apoia o “Coming out proud” você encontra aqui). O “Coming out proud” apoia e estimula que pessoas “assumam” seus diagnósticos e condições e, a partir daí, defendam o direito de “gente como elas” a uma vida afetiva e social, a emprego, moradia, autonomia etc. Pois bem… eu, ainda que ache ótimo que o movimento existe, não estou atuando nesse horizonte, e por um motivo muito simples: não quero “normalizar” a loucura ou o sofrimento psíquico, e não quero que aja “normalidade” na vida de quem foi diagnosticado – o que eu quero é que a gente transforme o mundo. Não quero que achemos que “é normal” ter depressão ou esquizofrenia ou o que seja: quero que não achemos normal exigir normalidade das pessoas. Entendem a diferença? É diferente. Quer um exemplo que ajude a esclarecer? Fácil: a indústria farmacêutica é fã de carteirinha do “Coming out proud”, porque combatendo esse preconceito fica mais fácil ser “adequadamente” diagnosticado e tratado, e isso é o oposto do que estou defendendo aqui. Eu não quero que minha “queda” ou “quebra” seja entendida como uma crise de pânico tratável com ansiolítico: eu quero poder contar com apoio quando eu quebrar, e que eu tenha esse direito de buscar a ajuda necessária, e que eu possa sobreviver a isso e tocar minha vida da melhor forma possível.
[Isso posto, convém matizar: eu não sou anti-diagnóstico, nem anti-tratamento, nem anti-clínica, nem anti-farmacoterapia – mas eu sou anti-império, anti-submissão e anti-dominação, isso sim].
Ou seja: o “Coming out proud” “normaliza” e toma como “evidente” a trama diagnóstica do “lado de fora”, e eu acho isso super perigoso, e sou contra isso. Aceitar a loucura não é aceitar o direito universal ao diagnóstico, é aceitar a multidão de formas através das quais as pessoas sobrevivem a si mesmas e se reinventam como forma de vida, a multidão de formas através das quais elas sobrevivem a esse mundo em que vivemos e reinventam esse mundo para si próprias e para todos nós.
Nos últimos meses, os especialistas em saúde mental previram um forte aumento dos transtornos psiquiátricos e um próximo “tsunami de doença mental“. Eles atribuem o aumento aos efeitos da pandemia COVID-19 e sugerem que o medo da doença e da morte, e o isolamento causado pelos lockdowns, levarão a uma explosão de doenças mentais em todo o mundo. Também tem sido sugerido que os especialistas devem responder com um aumento igualmente acentuado dos serviços especializados em saúde mental.
Em uma carta aberta na Wellcome Open Research, pesquisadores proeminentes, liderados pelo notável sociólogo médico Nikolas Rose do King’s College London, se opõem a esta conclusão apressada. Em vez disso, eles observam que um aumento no sofrimento emocional e psicológico são respostas normais às consequências de uma pandemia global e não a algum marcador de doença mental. À luz da resposta equivocada da Grã-Bretanha à pandemia, eles argumentam que o que é necessário é aumentar o financiamento e o apoio do governo para necessidades práticas, tais como moradia, apoio de pares e renda básica universal.
“TSUNAMI IN NEW YORK” BY GOA
Apesar do alarme lançado por especialistas em saúde mental em todo o mundo sobre a iminente crise psiquiátrica que se seguirá à epidemia COVID-19, os céticos têm advertido contra a patologização preventiva das respostas que são comuns a estas difíceis circunstâncias. Outros notaram que as conexões forjadas entre a COVID-19 e a saúde mental parecem ignorar as perspectivas, experiências e preocupações do Sul Global.
Os autores insistem que o sofrimento mental de longo prazo não é simplesmente causado pela COVID-19, mas é, ao contrário, um produto de como os determinantes sociais da saúde mental interagem com a pandemia.
Aqueles que já estão privados de direitos são mais adversamente afetados pela pandemia. Como os recursos da comunidade são desviados para lidar com a COVID-19, esses recursos são frequentemente tirados dos mais vulneráveis.
A última década testemunhou um reconhecimento crescente de que determinantes sociais como a pobreza, violência política, racismo, violência baseada em gênero, etc. impulsionam os resultados da saúde mental das populações. Esta abordagem foi recentemente apresentada no último relatório da ONU, que condenou a contínua individualização do sofrimento que ignora tais dimensões materiais e práticas da angústia humana.
Por exemplo, os autores desta carta afirmam que as consequências das desigualdades sociais incluem a carga desproporcional de responsabilidade imposta às mulheres, uma vez que muitas vezes elas carregam a carga adicional e desigual de responsabilidades domésticas (por exemplo, o cuidado das crianças desde que as escolas estão fechadas) e o estresse dos empregos de linha de frente (por exemplo, enfermeiras, trabalhadores de mercearia). Da mesma forma, as populações vulneráveis também correm o risco de maior exposição ao racismo e ao estigma, o que agrava ainda mais o sofrimento mental, aumentando a exclusão social e o isolamento. Rose e colegas escrevem:
“Como tão claramente é demonstrado por um enorme a avassalador conjunto de evidências sobre os determinantes sociais da saúde mental, o maior risco de desenvolvimento de um sofrimento mental sério e duradouro recairá sobre aqueles já estão afetados pela desigualdade social”.
Os autores observam que a resposta britânica à pandemia, especialmente no que diz respeito à saúde mental, deveria ter considerado estas preocupações. Em vez disso, os formuladores de políticas têm ignorado as vozes daqueles com experiência vivida de doença mental. Sem abordar os determinantes sociais da saúde mental, todas as tentativas de fornecer apoio psicológico especializado (neurológico, psiquiátrico, farmacológico, genético, psicológico, etc.) são mal orientadas.
Assim, eles insistem que as perspectivas dos usuários de serviços devem permanecer centrais no desvio de recursos para as comunidades vulneráveis a fim de fornecer apoio material e fortalecer os laços sociais e comunitários. Estes incluem as comunidades negras, asiáticas e minorias étnicas (BAME), que enfrentam um desafio único durante a pandemia. Por exemplo, alguns desses desafios são:
“racismo, xenofobia e violência; ambientes obesogênicos, degradados e poluídos; insegurança financeira, benefícios condicionais insensíveis ao bem-estar; trabalho precário, condições expostas para trabalhadores da linha de frente em casas de repouso, trabalhadores do transporte, motoristas de entregas, empacotadores de depósitos e motoristas de táxi; educação infantil prejudicada por escolas empobrecidas por uma década de restrições financeiras e falta de acesso aos recursos para a educação digital, e instalações comunitárias esvaziadas por uma década de austeridade”.
Repetidas investigações têm provado a importância destes determinantes sociais na saúde mental das pessoas, e os autores insistem que o impacto econômico da pandemia terá o impacto mais significativo sobre estas comunidades, causando maior deterioração do bem-estar psicológico. Até que estes fatores sociais e econômicos subjacentes sejam tratados através do fortalecimento dos sistemas socioeconômicos, as intervenções psiquiátricas e neurológicas de base correm o risco de exacerbar as desigualdades.
Da mesma forma, em nível global, os pesquisadores têm argumentado que os trabalhadores da saúde devem ser treinados para pensar criticamente e abordar a importância dos fatores estruturais que influenciam a saúde das pessoas. Estas perspectivas alternativas que se concentram nas preocupações materiais e práticas das pessoas são um desafio para o paradigma dominante na psiquiatria, o paradigma biomédico de doença. Esta perspectiva alternativa é oferecida por usuários de serviços com experiência em primeira pessoa de sofrimento mental e por cientistas sociais.
Qualquer decisão política abrangente e útil sobre a COVID-19 deve incluir a contribuição de usuários de serviços, defensores da incapacidade psicossocial e pessoas com experiência vivida. Por esta razão, os autores defendem a revogação da Lei do Coronavírus da Grã-Bretanha de 2020, que afeta os direitos dos pacientes com saúde mental, negando-lhes uma avaliação completa antes da hospitalização forçada.
Os autores escrevem que circunstâncias difíceis e as consequências socioeconômicas da COVID-19 levam ao sofrimento normal, que não é patológico em si mesmo, mas que pode se transformar em problemas de saúde mental a longo prazo se as estruturas formais e informais de apoio social não forem protegidas e melhoradas.
A promoção do bem-estar psicológico requer apoio do bem-estar social, transporte público gratuito e políticas que protejam as crianças carentes, fornecendo recursos digitais e alimentares para aqueles que estão sendo educados em casa durante a pandemia.
Além disso, durante a pandemia, as ações que ajudarão a atender às preocupações dos usuários dos serviços e daqueles com deficiências psicossociais incluem garantir que os grupos de usuários dos serviços, as equipes de saúde mental da comunidade e os grupos de ajuda mútua e auto-ajuda tenham o apoio adequado. Além disso, os investimentos em grupos voluntários de apoio local são essenciais.The authors conclude:
“As linhas de falha na sociedade britânica têm sido reveladas de forma categórica pela pandemia. Para ‘reconstruir melhor’ no longo rescaldo da COVID-19, precisamos criar os ambientes sociais e materiais que não só abordem as causas da doença mental, mas também aumentem a capacidade de todos os cidadãos de criar vidas de sentido e propósito para si mesmos”.
****
Rose, N., Manning, N., Bentall, R., Bhui, K., Burgess, R., Carr, S., … & Faulkner, A. (2020). The social underpinnings of mental distress in the time of COVID-19–time for urgent action. Wellcome Open Research, 5(166). (Link)
No sábado, 9 de agosto de 2020, o Brasil atingiu o número de 100.000 mortos por Covid-19. Trata-se de uma tragédia coletiva anunciada. Todos sabíamos que chegaríamos a esse número macabro, assim como todos sabemos que esse número continuará aumentando, pois o governo de Bolsonaro nada fez e nada fará para controlar a pandemia. Os jornais nacionais e a mídia, em geral, estimulam e difundem debates com sanitaristas, biólogos, médicos, representantes das comunidades e cientistas sociais. Em cada um desses debates, os participantes reforçam um fato que hoje parece evidente. Eles afirmam que essas 100.000 mortes poderiam ter sido evitadas com ações concretas que já eram conhecidas por todos, as mesmas que serviram para controlar a epidemia em outros países: isolamento social, testagem, distanciamento, uso de máscara, dentre outras. O certo é que essas mortes evitáveis não aconteceram por acaso, por idade avançada, comorbidades ou causas imprevisíveis. Ocorreram pelo descaso de um governo negacionista, que desconsidera os conhecimentos científicos e a gravidade da pandemia. Ocorreram pelas decisões equivocadas adotadas por Bolsonaro, por seu ministério de saúde sem ministro, pelos governadores e prefeitos alinhados a sua necropolítica.
O editorial da revista “The Lancet”, do dia 7 de agosto, afirma que Bolsonaro perdeu a “bússola moral” em meio à pandemia, considera que o presidente é a maior ameaça que o Brasil deve enfrentar para controlar a pandemia. O mundo inteiro está estarrecido com as manifestações de Bolsonaro contra o distanciamento social e com sua fervorosa defesa da cloroquina. Sabemos que um processo tão doloroso não pode ocorrer sem um enorme custo subjetivo, sem que exista a sensação coletiva de desamparo social, a consciência de que cada um deve cuidar de si, sem poder contar com essa rede de proteção, de apoio e de informação confiável que outros países puderam construir para enfrentar a pandemia.
Esse custo subjetivo da pandemia é semelhante para aqueles que estão obrigados a se expor ao risco de contágio e para aqueles que podem manter o isolamento social por meses. Todos devemos administrar as informações contraditórias e confusas recebidas, aquelas que surgem dos canais oficiais, como ministério ou secretarias de saúde, e as que surgem da mídia e do conhecimento especializado. Essa dupla informação cria uma sensação de insegurança que se transforma em medo e até em pânico quando alguma pessoa próxima é contaminada ou morre. O isolamento social, único modo de proteção existente até que tenhamos uma vacina, aumentou o sofrimento provocado por situações de violência contra mulheres e crianças, a sensação de medo, o uso abusivo de álcool e drogas, assim como o sentimento de solidão, impotência, abandono e tristeza profunda. Enfim, o sentimento generalizado que vivenciamos uns e outros na pandemia pode resumir-se como uma profunda sensação de fracasso coletivo.
Existem diversos modos de lidar com esse pesado custo subjetivo imposto por um governo que expõe sua população à morte e ao desamparo. Podemos procurar redes de encontro e discussão, buscar espaços terapêuticos onde possamos falar sobre nossos sentimentos, fomentar a criação de laços afetivos e de solidariedade, aumentar nossa presença em espaços virtuais de defesa dos direitos das minorias ou criar outras estratégias de resistência à necropolítica atual.
Porém, a pandemia surgiu no contexto da razão neoliberal, com sua lógica organizada entorno à ideia de lucro, competição, meritocracia e procura do sucesso econômico individual a qualquer preço. Nessa lógica, o espaço do coletivo, do comum, assim como o campo da saúde pública, devem subordinar-se à lógica imposta pelo mercado e pelo lucro. Grandes fortunas estão sendo diretamente beneficiadas pela pandemia e, sem dúvida, uma das mais beneficiadas é a milionária indústria farmacêutica. Velhos medicamentos são apresentados como verdadeiras balas de prata contra a Covid-19, tais como a Cloroquina, a Hidroxicloroquina ou a Ivermectina. Devemos observar o efeito ideológico poderoso dessas medicações, mesmo que seu efeito terapêutico seja nulo e seus efeitos colaterais graves. Afirma-se, que já que contamos com um medicamento eficaz é possível sair a trabalhar e consumir, que o isolamento é simplesmente uma atitude covarde de pessoas que não querem trabalhar. Particularmente, a cloroquina é apresentada pelo presidente como chave mágica para negar a realidade da epidemia, com o custo altíssimo de expor a população que acredita em suas palavras ao contágio e até à morte.
Algo semelhante pode ocorrer no campo da saúde mental, atualmente colonizada pela psiquiatria biológica. Existe um mercado muito promissor para a indústria farmacêutica quando o custo subjetivo da pandemia, que se manifesta por sentimentos de solidão, medo e abandono, se traduz em sintomas de algum transtorno psiquiátrico. Com a pandemia, aumentou o número de diagnósticos de ansiedade, mania, depressão, síndrome de pânico, dentre outros. Para essa proliferação de diagnósticos, a psiquiatria biológica já conta, há muito tempo, com seu próprio repertório de supostas balas de prata, como os antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, entre os psicofármacos de diversos tipos. De modo que, paralelamente ao aumento de diagnósticos, podemos observar a proliferação da prescrição de psicofármacos desde o início da pandemia.
Ao longo de sua história, a psicofarmacologia utilizou um esquema explicativo para legitimar a prescrição de psicofármacos, uma estratégia que Jonna Moncrieff denominou como Modelo da droga centrado na doença. De acordo com este modelo, todos os padecimentos psíquicos responderiam a alterações cerebrais ou desequilíbrios neuroquímicos, e os psicofármacos teriam a função de reestabelecer esse equilíbrio alterado. A indústria farmacêutica conta com um poderoso aliado, o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-5). Com esse auxílio, as pequenas mudanças em nossos comportamentos cotidianos, como alteração de sono ou apetite, poderão transformar-se em sintomas de um transtorno psiquiátrico. Ainda que não exista nenhuma base biológica definida ou identificada para nossos sofrimentos psíquicos, para cada diagnóstico a partir de rápidos relatos do paciente, se recomendará uma terapêutica psicofarmacológica com a promessa de reestabelecer o equilíbrio neuroquímico alterado, seja por excesso de dopamina, por déficit de serotonina ou por outra alteração.
Esse tipo de explicação desconsidera as causas psíquicas e sociais que provocaram o sofrimento, silencia situações dramáticas como o assédio moral no trabalho, bullying, violência psicológica, situações de racismo ou violência familiar. Todo esse conjunto de situações adversas que vemos agravar-se no contexto da pandemia. Nesse marco geral, os psicofármacos podem ter o uso ideológico de levar a aceitar como inevitável o fato que provocou o sofrimento, pois uma vez identificado o diagnóstico o problema passará a estar no indivíduo, particularmente em seu cérebro. Nada se dirá sobre as consequências devastadoras do consumo desnecessário e abusivo de psicofármacos, nem sobre os efeitos colaterais graves e fortemente aditivos que produzem. Assim como nada se dirá sobre os fatores psicológicos ou sociais que provocaram o sofrimento.
Se, em tempos de pandemia, nos limitamos simplesmente a replicar essa lógica da psiquiatria biológica e da indústria farmacêutica, para explicar o sofrimento do incontável número de pessoas que padecem o custo subjetivo da gestão da Covid-19, o resultado pode ser dramático. De acordo com essa lógica, os sentimentos de solidão, medo e desamparo, provocados pela péssima gestão da pandemia no governo de Bolsonaro, serão traduzidos como sintomas de uma doença psiquiátrica para a qual serão prescritos antidepressivos, ansiolíticos ou antipsicóticos. Se isso ocorre, teremos que lidar, num futuro próximo, com uma nova pandemia que provavelmente será mais silenciosa e oculta. Teremos que lidar com uma pandemia de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais e, paralelamente, com o aumento expressivo de usuários de psicofármacos com efeitos colaterais graves.
No entanto, quiçá a pandemia possa ser um bom momento para questionar essa lógica explicativa reducionista, que por um lado desconsidera os contextos sociais de luto e abandono e por outro multiplica os problemas criados pelo consumo excessivo e desnecessário de psicofármacos. Quiçá a pandemia, e sua péssima gestão, nos permita observar que o sentimento de fracasso coletivo, que de um modo ou outro nos afeta a todos, pode ser um excelente ponto de partida para refletir sobre os limites das explicações neuroquímicas dadas aos sofrimentos cotidianos.
A pandemia põe em evidência, que em contextos semelhantes de isolamento, desamparo e temor a uma ameaça externa, pode ser perfeitamente normal que todos tenhamos alteração de sono ou apetite, sentimento de inutilidade ou culpa, sensação de ansiedade. Isto é, a pandemia nos permite questionar os modos de classificar e diagnosticar, na medida em que os comportamentos considerados anormais e classificados como sintomas são hoje vivenciados pela quase totalidade da população. Em tempos de pandemia é normal ter medo da morte, é normal sentir-se angustiado perante a falta de cuidado de um Estado que abandonou seus cidadãos a sua sorte, é normal sentir raiva e impotência quando observamos que são as comunidades pobres, os negros e indígenas os que mais morrem em um país absurdamente desigual, enfim, é normal que sintamos uma tristeza profunda quando observamos que a cifra de 1000 mortos por dia foi naturalizada. Patologizar essas reações normais perante um contexto tão adverso como o que estamos vivenciando e tratar esses supostos transtornos com mais antidepressivos ou ansiolíticos, certamente terá sérias consequências biopolíticas para todos e todas.
Pesquisadores, escrevendo no Schizophrenia Bulletin, descobriram que fatores genéticos explicam cerca de 0,5% se uma pessoa preencherá os critérios para o diagnóstico de esquizofrenia. Isso significa que 99,5% é atribuível a outros fatores. Anne Marsman da Universidade de Maastricht, na Holanda, foi a principal autora do relatório, e o estudo incluiu o conhecido pesquisador de psicose Jim van Os.
“Circunstâncias socioambientais, particularmente traumas infantis e a percepção de haver uma lacuna na posição (status) social, impulsionam a maior parte das variações que são atribuídas à saúde mental da população”, explicam os autores do estudo.
Creative Commons
Os pesquisadores estavam tentando criar um modelo preditivo para o diagnóstico da esquizofrenia. Eles incluíram tudo o que puderam encontrar, incluindo idade e sexo, circunstâncias sociais, dor, fatores de risco ambiental, histórico familiar e uma pontuação de risco poligênico (PRS; um padrão de dezenas de milhares de marcadores genéticos). Este modelo permitiu que os pesquisadores vissem a contribuição relativa de cada um destes riscos.
Os pesquisadores descobriram que, mesmo com a inclusão de todos esses fatores, eles foram capazes de prever apenas 17% se uma pessoa passou a preencher os critérios para um diagnóstico de esquizofrenia. Apenas 3% dos 17% puderam ser atribuíveis à genética. Ou seja, a genética explica cerca de 0,5% de se uma pessoa receberá um diagnóstico de esquizofrenia.
No modelo combinado, fatores familiares e ambientais explicaram cerca de 17% da variação na saúde mental, dos quais cerca de 5% foram explicados por idade e sexo, 30% por circunstâncias sociais, 16% por dor, 22% por fatores de risco ambiental, 24% por histórico familiar e 3% por PRS para esquizofrenia (PRS-SZ)”.
Os pesquisadores também testaram seu modelo para outros diagnósticos e descobriram que a genética previu ainda menos para depressão e transtorno bipolar.
Os pesquisadores utilizaram dados do Netherlands Mental Health Survey and Incidence Study-2 (NEMESIS-2), que incluiu 2380 participantes.
De acordo com os autores, a contribuição do risco genético é tipicamente “avaliada com base em testes de significância estatística em amostras massivas, nas quais efeitos minúsculos podem adquirir significância estatística”. Não obstante, a significância estatística não deve ser confundida com a relevância clínica.
Por exemplo, em um estudo recente, os pesquisadores examinaram 90.595 pessoas (49.588 das quais tinham um histórico de ansiedade/depressão) e encontraram variantes do número de cópias (CNVs) “patogênicas” em 708 dos participantes. Mesmo aqueles com um CNV “patogênico”, contudo, não tinham necessariamente um histórico de ansiedade/depressão. Embora esses CNVs estivessem associados a um pouco mais de risco de ter problemas de saúde mental, eles não forneciam nenhum valor clínico, e mais de 99% das pessoas “deprimidas/ansiosas” no estudo não tinham um CNV.
Isto é consistente com pesquisas anteriores, que descobriram que mesmo após o sequenciamento de todo o genoma, fatores genéticos explicaram 2,28% se uma pessoa receberia ou não um diagnóstico de esquizofrenia. Em outro estudo de sequenciamento “exoma“, os pesquisadores concluíram que seus resultados não forneceram dados relevantes a respeito do risco de diagnóstico psiquiátrico.
****
Marsman A, Pries LK, ten Have M, de Graaf R, van Dorsselaer S, Bak M, . . . & van Os J. (2020). Do current measures of polygenic risk for mental disorders contribute to population variance in mental health? Schizophrenia Bulletin, sbaa086. https://doi.org/10.1093/schbul/sbaa086 (Link)