Loucura e intelectualidade: um depoimento e um manifesto

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É como se eu fosse um pinguim, um pinguim que passou sua vida em um bloco de gelo; à minha volta só o mar inóspito, até onde a vista alcança, por todos os lados. Eventual e estupidamente, num dia que deveria ter sido um dia qualquer, neste dia eu caí. Caí; estou ali entregue ao mar e suas ondas, vejo logo ali meu querido bloco de gelo, próximo, tão próximo – mas eu não consigo alcançar, e não consigo subir, e não consigo voltar. Então eu fico ali, à deriva, passo dois dias que são uma vida toda lutando como posso para não afundar, cada minuto uma vida conforme eu luto por minha vida, vida que parece só poder voltar a ser minha se eu puder voltar ao meu bloco de gelo, ele o tempo todo ali, ostentoso, indiferente, enorme, frio como sempre.

Foi assim que eu passei dois dias de minha vida num passado recente. Recente mesmo: esses dias foram uma sexta, um sábado e um domingo na segunda quinzena de março, durante o início das políticas de isolamento social relacionadas ao aumento de casos de Covid-19 em São Paulo.

Pois bem: nesses dois dias, dois dias e meio, eu estive louco. O pinguim sou eu, vivendo desde sempre (vulgo “as far as I remember”) isolado num bloco gelado de racionalidade analítica, e o mar é o mar de emoções e sentimentos e impulsos, o mar é a minha vida emocional, sempre tão alheia a mim, e o mar é a loucura; o mar, em alguma medida, é o que me separa de todo mundo. Eu caí… bem, eu caí quando eu enlouqueci, quando deixei de estar firmemente assentado em minha racionalidade analítica.

Nesses dois dias em que estive entregue às ondas eu aprendi, na carne e na pele, tudo que estudei por anos sobre loucura e sobre razão, sobre isolamento, sofrimento, sobre medo; aprendi sobre quão precárias são nossas racionalidades, nossas intelectualidades, quão frágeis são nossos pomposos castelos de livros e ciência e argumentos e inteligência.

Eu já tinha entrado em contato, muito tempo antes, com a loucura enquanto um tema de estudo. No segundo ano da graduação entrei em um curso de formação em esquizoanálise, e lá conheci um tanto do que se pensa sobre loucura a partir de Deleuze e Guattari, a partir de Nietzsche e Artaud e companhia. No terceiro ano entrei em contato com a obra de Foucault, li a História da loucura e um tanto de outras coisas a respeito da loucura e sua relação com a razão.

Olhando para trás eu reconheço que eu era um chato nessa época: pedante, montado no meu conhecimento analítico reativo acerca da loucura e da racionalidade, fazendo essa “crítica” com um pensamento mais frio e tecnicista que um relógio suíço, crente de que era um porta-voz da loucura e grande denunciador dos abusos da razão.

É claro que isso, por sua vez, era motivado por uma certa loucura que me habitava, e pelo pavor que eu tinha dela. Eu tinha entrado em contato com a loucura, desde cedo – a loucura está presente na minha família, e estava presente no condomínio em que vivi dez anos de minha vida, e esteve presente em mim mesmo o tempo todo. Mas eu sempre tive medo dela, e por isso construía muros e mais muros de razão e inteligência e controle e respeito – e ao longo de minha graduação em Psicologia eu aprendi a envernizar e embelezar esses muros com elogios e apologias à própria loucura que eu tentava desesperadamente separar de mim, aprisiona-la “do lado de lá” (de mim mesmo, conforme se nota e deveria ter sido óbvio desde o princípio).

Saí da graduação e, com toda a ironia de uma tragédia grega, segui tão firme quanto inconsciente em direção à loucura: um aprimoramento em saúde mental em um CAPS e, na sequência, um mestrado que (pelo menos quando eu entrei) trataria dos conceitos de loucura e psicose. Por essa época eu trombei com uma história que me marcou profundamente, uma etapa importante em minha relação com meu “castelo de gelo”: a história de Jairo Goldberg, que à época eu referia como “J.”; J. foi tema de um de meus primeiros textos nesse blog, lá pelos idos de 2010 quando eu o criei – o tema era o J. e a “futuridade”. Esse era o tema: a questão era que o Jairo, expoente da Reforma no Brasil, sofreu um AVC e, da noite para o dia, esteve destituído de toda aquela promessa de futuro que ele representava e encarnava. Um sujeito todo investido de futuridades, e de repente toda essa futuridade é ceifada dele, assim como se corta um galho de uma plantinha – a ideia me apavorava à época; a bem da verdade, me apavora até hoje. Nesse sentido, uma coisa mudou nesses 10 anos, que é o fato de eu entender melhor, hoje, o que tanto me apavora nessa ideia: um sujeito que é “todo futuridade” (como eu dizia nesse texto antigo) é como alguém que se põe a salvo de si mesmo, é um cara que não precisa estar presente onde está, porque ele age como se fosse uma espécie de investimento na eterna futura crescente grandeza que ele é/será. Ou seja: esse lance da futuridade é um jeito de acreditar que todo seu empenho e grandeza te salva ou te diferencia em alguma medida do presente e, no presente, da loucura.

O lance aqui, claro, é que o cara que age como “pura futuridade” (e a esse ponto acho que já sabemos que J. não era Jairo, era eu) investe freneticamente num futuro em que sua grandeza se verá justificada, e isso funciona como uma espécie de justificativa ad hoc para empenhar toda sua energia no intelecto, na intelecção, no pensamento; toda sua energia para entender, sem ter que participar; para pensar, sem ter que sentir; ser uma mente sem ser alguém.

Esse era o meu medo.

Esse é o meu medo.

Aos poucos fui entendendo que eu não estava sozinho – fui entendendo que as marcas da loucura nas biografias de grandes intelectuais, de nosso tempo como em outros, tem um tanto a ver com isso. Isso significa que a relação entre “gênio” e loucura talvez não seja na inadequação ou no direito de pensar “fora da caixa”, mas no desespero com que o sujeito investe tudo que tem para não cair fora da caixa – ele reinventa a caixa, se precisar, mas a ideia de sair dela é aterradora; ou seja: uma das coisas que pode ajudar a entender o “gênio” é o fato de ele investir desesperadamente nas formas de entender o mundo, inclusive porque ele precisa entender o mundo para não se ver à mercê de sentimentos que não domina (e não pode, e não vai dominar).

[Lembremos que a relação entre “gênio” e loucura certamente é mais complexa do que isso – acho que isso importa, e quero que a gente leve isso em consideração, mas não quero dizer que isso “explica” a relação entre “genialidade” e loucura].

Isso está em Van Gogh, claro. E naqueles todos do curso de esquizoanálise: Nietzsche, Artaud, possivelmente no próprio Deleuze. Isso está no Foucault.

Mas o que mais me impactou foi o Derrida. Benoît Peeters, o biógrafo, conta essa cena: Derrida seguia com sua esposa, Marguerite, em sua primeira viagem transatlântica rumo aos EUA; a esposa, preocupada com a tensão do marido, sugere que ele relaxe um pouco, e ele, irritado, responde: “como me pede para relaxar? Não vê que sou apenas eu, com a força de meu pensamento, que estou mantendo esse avião no ar?”.

Doidinho, o Derrida, né?

Pois é: não. O Derrida não é doidinho. Ele não é “diferentão”. Não tem graça. Isso, que aparece na biografia dele, marca a biografia de muita gente. Mas a maioria não fala disso. A maioria, por sinal, nem reconhece.

Mas está lá. Nem todo mundo “quebra” – como o Derrida quebrou, Foucault quebrou, Van Gogh quebrou, como eu quebrei pouco tempo atrás. Mas não é pouca gente que, mais cedo ou mais tarde, tem que acertar as contas com a loucura que é estar vivo e ser humano. E a gente criou esse mau hábito – alguns séculos atrás – de imaginar que só algumas pessoas são efetivamente oneradas por isso, só algumas pessoas têm que arcar com isso como um custo ou um peso; a gente criou essa fantasia maluca de que alguns de nós (a gente é estúpido o suficiente pra supor que é, inclusive, “a maioria”) não quebra, nem sofre, nem passa por apertos em relação a isso. Essa maioria – os “sãos” – fica triste eventualmente, e feliz, e às vezes eufórico, e às vezes está tão cansado que imagina coisas ou não pensa direito; mas é normal, não tem nada de louco ou de loucura, totalmente diferente. E aí surgem esses outros, esquisitos, os “mais normais dentre os normais” – esses como eu quis ser por tanto tempo – e se aferram a essa bandeira, e se apaixonam por essa bandeira, e decidem que se a maioria não enlouquece, eles vão ser praticamente os “antiloucos”, a epítome da racionalidade e, portanto, o oposto simétrico da loucura.

Eu conheci esse cara, algum tempo atrás, quando trabalhava em um CAPS, vou chamar ele de João. O João tinha uns trinta e tantos quando chegou ao CAPS, e estava sofrendo bastante – tinha um delírio persistente há anos, alucinações graves, e isso convivia tristemente com o peso e os efeitos colaterais de uma carga medicamentosa assustadora. Ele era um cara muito simpático, educado, gentil, era um cara muito doce. E a história dele me impactava muito, porque me lembrava demais a história do “J.” (que me assustava porque era a minha própria futuridade, podemos dizer): ele tinha tido um emprego satisfatório, uma família, uma rotina; tinha sido promovido, tudo ia bem, aí passou por um assalto no ambiente de trabalho, adoeceu, melhorou um tanto mas, um tempo depois, os sintomas voltaram, mais agudos, e desde então ele nunca mais se recuperou. Acabou perdendo o emprego, a esposa o largou, a relação com o filho degringolou muito e, no período em que convivi com ele, estava morando com o pai, numa situação financeira e social “suportável”, mas bastante desagradável.

De qualquer forma, o principal parece ser (a mim, ao menos) que João tinha “caído”. Ele tinha uma vida, uma estrutura, uma rotina e, sem aviso, aquilo tudo ruiu. Mas o que fico pensando é que talvez o que tenha acontecido não é tanto a ruína daquela vida, e sim a ruína da perspectiva de que ele passaria a vida montado naquela estrutura. E a diferença, aqui, me parece fundamental – afinal, parece que a divisão entre “loucos” e “sãos” é, em grande medida, a diferença entre quem “fica na estrutura” e quem “cai”, como se o sujeito que “caiu” fosse, ele mesmo, diferente (menos hábil, ou mais frágil em alguma medida) do que aqueles “normais”, os que “não caem”.

Meu ponto aqui, para dizê-lo simplesmente, é que essa divisão é uma farsa. Essa ideia de que as pessoas que “ficam na estrutura” porque são diferentes (mais “normais”) do que as que “caem” recobre o fato de que a estrutura, o fato de viver tentando se equilibrar sobre a estrutura, o fato de passar uma vida sendo humano, onera a todos. Existem, é claro, aqueles que conseguem fiar suas vidas sem jamais ter deixado aparente a quem os cerca isso – aqueles que parecem não sentir, parecem não ser tomados por suas emoções, transcorrendo suas vidas sem sinal de oscilação ou erro; esses podem ser (essa é minha aposta) pobres a ponto de soterrarem todo indício daquilo que há neles de mais humanos, ou hipócritas a ponto de distorcer suas biografias para que nada de “indecoroso” transpareça a quem os cerca.

Mas nada disso importa aqui, não quero fazer tipologias nem teorias sobre a humanidade; só falo desses sujeitos porque, até algumas semanas atrás, eu mesmo poderia ser contado entre eles – e isso seria uma grande perda e um grande equívoco, para mim e para todos. Eu sempre me esforcei para ser inteligente e para ser reconhecido dessa forma, e não pretendo que isso mude – mas isso acabou se articulando a algo muito mais triste, que foi uma necessidade minha de negar que houvesse loucura em mim.

E aí, num belo e pavoroso dia, eu caí – eu, pinguim, já contei essa história.

Não me orgulho, obviamente, do que passei e vivi ali, e não conto porque acho bonito. Conto porque quero fazer parte de uma história: a história do combate à farsa da razão – Razão, esse rei nu. Então o que quero com esse texto é tomar posição e poder dizer claramente: eu luto para ser um cara inteligente e ponderado, mas a loucura me atravessa. Eu espero poder me afirmar como um intelectual, trabalho para isso, mas isso não me põe no lugar de Soldado da Razão – nem eu, nem Foucault, nem Einstein, a maioria dos intelectuais não fica bem nesse uniforme. A razão precisa da loucura, precisa respeitar a loucura, e a loucura precisa que as “pessoas normais” deixem de ser trouxas e agir como se não houvesse loucura em todos nós.

Contei a história do dia em que caí para que mais gente possa reconhecer que o preconceito contra a loucura é um preconceito burro. Você, leitor, provavelmente sofre com aquilo que acontece, na sua vida de afetos e pensamentos, ali nas raias da razão, e certamente você tem familiares e amigos que sofrem com isso também. Então meu ponto é: respeite essa luta e esse sofrimento, reconhecendo que isso existe sem julgamento e sem moralizar a questão. Tentemos ser respeitosos com nossos limites, e com o que existe de nós “do lado de lá” deles.

Era isso que eu queria dizer. Uma última consideração: existe um movimento internacional importante chamado “Coming out proud”, que se inspira em movimentos LGBTQIA+ no sentido de promover o combate à psicofobia e à discriminação de pessoas diagnosticadas com síndromes e transtornos a partir da assunção “orgulhosa” das próprias condições e diagnósticos (link para uma associação que apoia o “Coming out proud” você encontra aqui). O “Coming out proud” apoia e estimula que pessoas “assumam” seus diagnósticos e condições e, a partir daí, defendam o direito de “gente como elas” a uma vida afetiva e social, a emprego, moradia, autonomia etc. Pois bem… eu, ainda que ache ótimo que o movimento existe, não estou atuando nesse horizonte, e por um motivo muito simples: não quero “normalizar” a loucura ou o sofrimento psíquico, e não quero que aja “normalidade” na vida de quem foi diagnosticado – o que eu quero é que a gente transforme o mundo. Não quero que achemos que “é normal” ter depressão ou esquizofrenia ou o que seja: quero que não achemos normal exigir normalidade das pessoas. Entendem a diferença? É diferente. Quer um exemplo que ajude a esclarecer? Fácil: a indústria farmacêutica é fã de carteirinha do “Coming out proud”, porque combatendo esse preconceito fica mais fácil ser “adequadamente” diagnosticado e tratado, e isso é o oposto do que estou defendendo aqui. Eu não quero que minha “queda” ou “quebra” seja entendida como uma crise de pânico tratável com ansiolítico: eu quero poder contar com apoio quando eu quebrar, e que eu tenha esse direito de buscar a ajuda necessária, e que eu possa sobreviver a isso e tocar minha vida da melhor forma possível.

[Isso posto, convém matizar: eu não sou anti-diagnóstico, nem anti-tratamento, nem anti-clínica, nem anti-farmacoterapia – mas eu sou anti-império, anti-submissão e anti-dominação, isso sim].

Ou seja: o “Coming out proud” “normaliza” e toma como “evidente” a trama diagnóstica do “lado de fora”, e eu acho isso super perigoso, e sou contra isso. Aceitar a loucura não é aceitar o direito universal ao diagnóstico, é aceitar a multidão de formas através das quais as pessoas sobrevivem a si mesmas e se reinventam como forma de vida, a multidão de formas através das quais elas sobrevivem a esse mundo em que vivemos e reinventam esse mundo para si próprias e para todos nós.

Desigualdades sociais provocam aumento do sofrimento mental em meio à pandemia da COVID-1

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“TSUNAMI IN NEW YORK” BY GOA

Nos últimos meses, os especialistas em saúde mental previram um forte aumento dos transtornos psiquiátricos e um próximo “tsunami de doença mental“. Eles atribuem o aumento aos efeitos da pandemia COVID-19 e sugerem que o medo da doença e da morte, e o isolamento causado pelos lockdowns, levarão a uma explosão de doenças mentais em todo o mundo. Também tem sido sugerido que os especialistas devem responder com um aumento igualmente acentuado dos serviços especializados em saúde mental.

Em uma carta aberta na Wellcome Open Research, pesquisadores proeminentes, liderados pelo notável sociólogo médico Nikolas Rose do King’s College London, se opõem a esta conclusão apressada. Em vez disso, eles observam que um aumento no sofrimento emocional e psicológico são respostas normais às consequências de uma pandemia global e não a algum marcador de doença mental. À luz da resposta equivocada da Grã-Bretanha à pandemia, eles argumentam que o que é necessário é aumentar o financiamento e o apoio do governo para necessidades práticas, tais como moradia, apoio de pares e renda básica universal.

“TSUNAMI IN NEW YORK” BY GOA

Apesar do alarme lançado por especialistas em saúde mental em todo o mundo sobre a iminente crise psiquiátrica que se seguirá à epidemia COVID-19, os céticos têm advertido contra a patologização preventiva das respostas que são comuns a estas difíceis circunstâncias. Outros notaram que as conexões forjadas entre a COVID-19 e a saúde mental parecem ignorar as perspectivas, experiências e preocupações do Sul Global.

Os autores insistem que o sofrimento mental de longo prazo não é simplesmente causado pela COVID-19, mas é, ao contrário, um produto de como os determinantes sociais da saúde mental interagem com a pandemia.

Aqueles que já estão privados de direitos são mais adversamente afetados pela pandemia. Como os recursos da comunidade são desviados para lidar com a COVID-19, esses recursos são frequentemente tirados dos mais vulneráveis.

A última década testemunhou um reconhecimento crescente de que determinantes sociais como a pobreza, violência política, racismo, violência baseada em gênero, etc. impulsionam os resultados da saúde mental das populações. Esta abordagem foi recentemente apresentada no último relatório da ONU, que condenou a contínua individualização do sofrimento que ignora tais dimensões materiais e práticas da angústia humana.

Por exemplo, os autores desta carta afirmam que as consequências das desigualdades sociais incluem a carga desproporcional de responsabilidade imposta às mulheres, uma vez que muitas vezes elas carregam a carga adicional e desigual de responsabilidades domésticas (por exemplo, o cuidado das crianças desde que as escolas estão fechadas) e o estresse dos empregos de linha de frente (por exemplo, enfermeiras, trabalhadores de mercearia). Da mesma forma, as populações vulneráveis também correm o risco de maior exposição ao racismo e ao estigma, o que agrava ainda mais o sofrimento mental, aumentando a exclusão social e o isolamento. Rose e colegas escrevem:

“Como tão claramente é demonstrado por um enorme a avassalador conjunto de evidências sobre os determinantes sociais da saúde mental, o maior risco de desenvolvimento de um sofrimento mental sério e duradouro recairá sobre aqueles já estão afetados pela desigualdade social”.

Os autores observam que a resposta britânica à pandemia, especialmente no que diz respeito à saúde mental, deveria ter considerado estas preocupações. Em vez disso, os formuladores de políticas têm ignorado as vozes daqueles com experiência vivida de doença mental. Sem abordar os determinantes sociais da saúde mental, todas as tentativas de fornecer apoio psicológico especializado (neurológico, psiquiátrico, farmacológico, genético, psicológico, etc.) são mal orientadas.

Assim, eles insistem que as perspectivas dos usuários de serviços devem permanecer centrais no desvio de recursos para as comunidades vulneráveis a fim de fornecer apoio material e fortalecer os laços sociais e comunitários. Estes incluem as comunidades negras, asiáticas e minorias étnicas (BAME), que enfrentam um desafio único durante a pandemia. Por exemplo, alguns desses desafios são:
“racismo, xenofobia e violência; ambientes obesogênicos, degradados e poluídos; insegurança financeira, benefícios condicionais insensíveis ao bem-estar; trabalho precário, condições expostas para trabalhadores da linha de frente em casas de repouso, trabalhadores do transporte, motoristas de entregas, empacotadores de depósitos e motoristas de táxi; educação infantil prejudicada por escolas empobrecidas por uma década de restrições financeiras e falta de acesso aos recursos para a educação digital, e instalações comunitárias esvaziadas por uma década de austeridade”.

Repetidas investigações têm provado a importância destes determinantes sociais na saúde mental das pessoas, e os autores insistem que o impacto econômico da pandemia terá o impacto mais significativo sobre estas comunidades, causando maior deterioração do bem-estar psicológico. Até que estes fatores sociais e econômicos subjacentes sejam tratados através do fortalecimento dos sistemas socioeconômicos, as intervenções psiquiátricas e neurológicas de base correm o risco de exacerbar as desigualdades.

Da mesma forma, em nível global, os pesquisadores têm argumentado que os trabalhadores da saúde devem ser treinados para pensar criticamente e abordar a importância dos fatores estruturais que influenciam a saúde das pessoas. Estas perspectivas alternativas que se concentram nas preocupações materiais e práticas das pessoas são um desafio para o paradigma dominante na psiquiatria, o paradigma biomédico de doença. Esta perspectiva alternativa é oferecida por usuários de serviços com experiência em primeira pessoa de sofrimento mental e por cientistas sociais.

Qualquer decisão política abrangente e útil sobre a COVID-19 deve incluir a contribuição de usuários de serviços, defensores da incapacidade psicossocial e pessoas com experiência vivida. Por esta razão, os autores defendem a revogação da Lei do Coronavírus da Grã-Bretanha de 2020, que afeta os direitos dos pacientes com saúde mental, negando-lhes uma avaliação completa antes da hospitalização forçada.

Os autores escrevem que circunstâncias difíceis e as consequências socioeconômicas da COVID-19 levam ao sofrimento normal, que não é patológico em si mesmo, mas que pode se transformar em problemas de saúde mental a longo prazo se as estruturas formais e informais de apoio social não forem protegidas e melhoradas.

A promoção do bem-estar psicológico requer apoio do bem-estar social, transporte público gratuito e políticas que protejam as crianças carentes, fornecendo recursos digitais e alimentares para aqueles que estão sendo educados em casa durante a pandemia.

Além disso, durante a pandemia, as ações que ajudarão a atender às preocupações dos usuários dos serviços e daqueles com deficiências psicossociais incluem garantir que os grupos de usuários dos serviços, as equipes de saúde mental da comunidade e os grupos de ajuda mútua e auto-ajuda tenham o apoio adequado. Além disso, os investimentos em grupos voluntários de apoio local são essenciais.The authors conclude:

“As linhas de falha na sociedade britânica têm sido reveladas de forma categórica pela pandemia. Para ‘reconstruir melhor’ no longo rescaldo da COVID-19, precisamos criar os ambientes sociais e materiais que não só abordem as causas da doença mental, mas também aumentem a capacidade de todos os cidadãos de criar vidas de sentido e propósito para si mesmos”.

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Rose, N., Manning, N., Bentall, R., Bhui, K., Burgess, R., Carr, S., … & Faulkner, A. (2020). The social underpinnings of mental distress in the time of COVID-19–time for urgent action. Wellcome Open Research5(166). (Link)

 

Necropolítica e sofrimento psíquico em tempos de pandemia

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No sábado, 9 de agosto de 2020, o Brasil atingiu o número de 100.000 mortos por Covid-19. Trata-se de uma tragédia coletiva anunciada. Todos sabíamos que chegaríamos a esse número macabro, assim como todos sabemos que esse número continuará aumentando, pois o governo de Bolsonaro nada fez e nada fará para controlar a pandemia. Os jornais nacionais e a mídia, em geral, estimulam e difundem debates com sanitaristas, biólogos, médicos, representantes das comunidades e cientistas sociais. Em cada um desses debates, os participantes reforçam um fato que hoje parece evidente. Eles afirmam que essas 100.000 mortes poderiam ter sido evitadas com ações concretas que já eram conhecidas por todos, as mesmas que serviram para controlar a epidemia em outros países: isolamento social, testagem, distanciamento, uso de máscara, dentre outras. O certo é que essas mortes evitáveis não aconteceram por acaso, por idade avançada, comorbidades ou causas imprevisíveis. Ocorreram pelo descaso de um governo negacionista, que desconsidera os conhecimentos científicos e a gravidade da pandemia. Ocorreram pelas decisões equivocadas adotadas por Bolsonaro, por seu ministério de saúde sem ministro, pelos governadores e prefeitos alinhados a sua necropolítica.

O editorial da revista “The Lancet”, do dia 7 de agosto, afirma que Bolsonaro perdeu a “bússola moral” em meio à pandemia, considera que o presidente é a maior ameaça que o Brasil deve enfrentar para controlar a pandemia. O mundo inteiro está estarrecido com as manifestações de Bolsonaro contra o distanciamento social e com sua fervorosa defesa da cloroquina. Sabemos que um processo tão doloroso não pode ocorrer sem um enorme custo subjetivo, sem que exista a sensação coletiva de desamparo social, a consciência de que cada um deve cuidar de si, sem poder contar com essa rede de proteção, de apoio e de informação confiável que outros países puderam construir para enfrentar a pandemia.

Esse custo subjetivo da pandemia é semelhante para aqueles que estão obrigados a se expor ao risco de contágio e para aqueles que podem manter o isolamento social por meses. Todos devemos administrar as informações contraditórias e confusas recebidas, aquelas que surgem dos canais oficiais, como ministério ou secretarias de saúde, e as que surgem da mídia e do conhecimento especializado. Essa dupla informação cria uma sensação de insegurança que se transforma em medo e até em pânico quando alguma pessoa próxima é contaminada ou morre. O isolamento social, único modo de proteção existente até que tenhamos uma vacina, aumentou o sofrimento provocado por situações de violência contra mulheres e crianças, a sensação de medo, o uso abusivo de álcool e drogas, assim como o sentimento de solidão, impotência, abandono e tristeza profunda. Enfim, o sentimento generalizado que vivenciamos uns e outros na pandemia pode resumir-se como uma profunda sensação de fracasso coletivo.

Existem diversos modos de lidar com esse pesado custo subjetivo imposto por um governo que expõe sua população à morte e ao desamparo. Podemos procurar redes de encontro e discussão, buscar espaços terapêuticos onde possamos falar sobre nossos sentimentos, fomentar a criação de laços afetivos e de solidariedade, aumentar nossa presença em espaços virtuais de defesa dos direitos das minorias ou criar outras estratégias de resistência à necropolítica atual.

Porém, a pandemia surgiu no contexto da razão neoliberal, com sua lógica organizada entorno à ideia de lucro, competição, meritocracia e procura do sucesso econômico individual a qualquer preço. Nessa lógica, o espaço do coletivo, do comum, assim como o campo da saúde pública, devem subordinar-se à lógica imposta pelo mercado e pelo lucro.  Grandes fortunas estão sendo diretamente beneficiadas pela pandemia e, sem dúvida, uma das mais beneficiadas é a milionária indústria farmacêutica. Velhos medicamentos são apresentados como verdadeiras balas de prata contra a Covid-19, tais como a Cloroquina, a Hidroxicloroquina ou a Ivermectina. Devemos observar o efeito ideológico poderoso dessas medicações, mesmo que seu efeito terapêutico seja nulo e seus efeitos colaterais graves. Afirma-se, que já que contamos com um medicamento eficaz é possível sair a trabalhar e consumir, que o isolamento é simplesmente uma atitude covarde de pessoas que não querem trabalhar. Particularmente, a cloroquina é apresentada pelo presidente como chave mágica para negar a realidade da epidemia, com o custo altíssimo de expor a população que acredita em suas palavras ao contágio e até à morte.

Algo semelhante pode ocorrer no campo da saúde mental, atualmente colonizada pela psiquiatria biológica. Existe um mercado muito promissor para a indústria farmacêutica quando o custo subjetivo da pandemia, que se manifesta por sentimentos de solidão, medo e abandono, se traduz em sintomas de algum transtorno psiquiátrico.  Com a pandemia, aumentou o número de diagnósticos de ansiedade, mania, depressão, síndrome de pânico, dentre outros. Para essa proliferação de diagnósticos, a psiquiatria biológica já conta, há muito tempo, com seu próprio repertório de supostas balas de prata, como os antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, entre os psicofármacos de diversos tipos. De modo que, paralelamente ao aumento de diagnósticos, podemos observar a proliferação da prescrição de psicofármacos desde o início da pandemia.

Ao longo de sua história, a psicofarmacologia utilizou um esquema explicativo para legitimar a prescrição de psicofármacos, uma estratégia que Jonna Moncrieff denominou como Modelo da droga centrado na doença. De acordo com este modelo, todos os padecimentos psíquicos responderiam a alterações cerebrais ou desequilíbrios neuroquímicos, e os psicofármacos teriam a função de reestabelecer esse equilíbrio alterado. A indústria farmacêutica conta com um poderoso aliado, o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-5). Com esse auxílio, as pequenas mudanças em nossos comportamentos cotidianos, como alteração de sono ou apetite, poderão transformar-se em sintomas de um transtorno psiquiátrico. Ainda que não exista nenhuma base biológica definida ou identificada para nossos sofrimentos psíquicos, para cada diagnóstico a partir de rápidos relatos do paciente, se recomendará uma terapêutica psicofarmacológica com a promessa de reestabelecer o equilíbrio neuroquímico alterado, seja por excesso de dopamina, por déficit de serotonina ou por outra alteração.

Esse tipo de explicação desconsidera as causas psíquicas e sociais que provocaram o sofrimento, silencia situações dramáticas como o assédio moral no trabalho, bullying, violência psicológica, situações de racismo ou violência familiar. Todo esse conjunto de situações adversas que vemos agravar-se no contexto da pandemia. Nesse marco geral, os psicofármacos podem ter o uso ideológico de levar a aceitar como inevitável o fato que provocou o sofrimento, pois uma vez identificado o diagnóstico o problema passará a estar no indivíduo, particularmente em seu cérebro. Nada se dirá sobre as consequências devastadoras do consumo desnecessário e abusivo de psicofármacos, nem sobre os efeitos colaterais graves e fortemente aditivos que produzem. Assim como nada se dirá sobre os fatores psicológicos ou sociais que provocaram o sofrimento.

Se, em tempos de pandemia, nos limitamos simplesmente a replicar essa lógica da psiquiatria biológica e da indústria farmacêutica, para explicar o sofrimento do incontável número de pessoas que padecem o custo subjetivo da gestão da Covid-19, o resultado pode ser dramático. De acordo com essa lógica, os sentimentos de solidão, medo e desamparo, provocados pela péssima gestão da pandemia no governo de Bolsonaro, serão traduzidos como sintomas de uma doença psiquiátrica para a qual serão prescritos antidepressivos, ansiolíticos ou antipsicóticos. Se isso ocorre, teremos que lidar, num futuro próximo, com uma nova pandemia que provavelmente será mais silenciosa e oculta. Teremos que lidar com uma pandemia de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais e, paralelamente, com o aumento expressivo de usuários de psicofármacos com efeitos colaterais graves.

No entanto, quiçá a pandemia possa ser um bom momento para questionar essa lógica explicativa reducionista, que por um lado desconsidera os contextos sociais de luto e abandono e por outro multiplica os problemas criados pelo consumo excessivo e desnecessário de psicofármacos. Quiçá a pandemia, e sua péssima gestão, nos permita observar que o sentimento de fracasso coletivo, que de um modo ou outro nos afeta a todos, pode ser um excelente ponto de partida para refletir sobre os limites das explicações neuroquímicas dadas aos sofrimentos cotidianos.

A pandemia põe em evidência, que em contextos semelhantes de isolamento, desamparo e temor a uma ameaça externa, pode ser perfeitamente normal que todos tenhamos alteração de sono ou apetite, sentimento de inutilidade ou culpa, sensação de ansiedade. Isto é, a pandemia nos permite questionar os modos de classificar e diagnosticar, na medida em que os comportamentos considerados anormais e classificados como sintomas são hoje vivenciados pela quase totalidade da população. Em tempos de pandemia é normal ter medo da morte, é normal sentir-se angustiado perante a falta de cuidado de um Estado que abandonou seus cidadãos a sua sorte, é normal sentir raiva e impotência quando observamos que são as comunidades pobres, os negros e indígenas os que mais morrem em um país absurdamente desigual, enfim, é normal que sintamos uma tristeza profunda quando observamos que a cifra de 1000 mortos por dia foi naturalizada. Patologizar essas reações normais perante um contexto tão adverso como o que estamos vivenciando e tratar esses supostos transtornos com mais antidepressivos ou ansiolíticos, certamente terá sérias consequências biopolíticas para todos e todas.

A genética pode predizer cerca de 0,5% de “esquizofrenia”

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Pesquisadores, escrevendo no Schizophrenia Bulletin, descobriram que fatores genéticos explicam cerca de 0,5% se uma pessoa preencherá os critérios para o diagnóstico de esquizofrenia. Isso significa que 99,5% é atribuível a outros fatores. Anne Marsman da Universidade de Maastricht, na Holanda, foi a principal autora do relatório, e o estudo incluiu o conhecido pesquisador de psicose Jim van Os.

“Circunstâncias socioambientais, particularmente traumas infantis e a percepção de haver uma lacuna na posição (status) social, impulsionam a maior parte das variações que são atribuídas à saúde mental da população”, explicam os autores do estudo.

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Os pesquisadores estavam tentando criar um modelo preditivo para o diagnóstico da esquizofrenia. Eles incluíram tudo o que puderam encontrar, incluindo idade e sexo, circunstâncias sociais, dor, fatores de risco ambiental, histórico familiar e uma pontuação de risco poligênico (PRS; um padrão de dezenas de milhares de marcadores genéticos). Este modelo permitiu que os pesquisadores vissem a contribuição relativa de cada um destes riscos.

Os pesquisadores descobriram que, mesmo com a inclusão de todos esses fatores, eles foram capazes de prever apenas 17%  se uma pessoa passou a preencher os critérios para um diagnóstico de esquizofrenia. Apenas 3% dos 17% puderam ser atribuíveis à genética. Ou seja, a genética explica cerca de 0,5% de se uma pessoa receberá um diagnóstico de esquizofrenia.

No modelo combinado, fatores familiares e ambientais explicaram cerca de 17% da variação na saúde mental, dos quais cerca de 5% foram explicados por idade e sexo, 30% por circunstâncias sociais, 16% por dor, 22% por fatores de risco ambiental, 24% por histórico familiar e 3% por PRS para esquizofrenia (PRS-SZ)”.

Os pesquisadores também testaram seu modelo para outros diagnósticos e descobriram que a genética previu ainda menos para depressão e transtorno bipolar.

Os pesquisadores utilizaram dados do Netherlands Mental Health Survey and Incidence Study-2 (NEMESIS-2), que incluiu 2380 participantes.

De acordo com os autores, a contribuição do risco genético é tipicamente “avaliada com base em testes de significância estatística em amostras massivas, nas quais efeitos minúsculos podem adquirir significância estatística”. Não obstante, a significância estatística não deve ser confundida com a relevância clínica.

Por exemplo, em um estudo recente, os pesquisadores examinaram 90.595 pessoas (49.588 das quais tinham um histórico de ansiedade/depressão) e encontraram variantes do número de cópias (CNVs) “patogênicas” em 708 dos participantes. Mesmo aqueles com um CNV “patogênico”, contudo, não tinham necessariamente um histórico de ansiedade/depressão. Embora esses CNVs estivessem associados a um pouco mais de risco de ter problemas de saúde mental, eles não forneciam nenhum valor clínico, e mais de 99% das pessoas “deprimidas/ansiosas” no estudo não tinham um CNV.

Isto é consistente com pesquisas anteriores, que descobriram que mesmo após o sequenciamento de todo o genoma, fatores genéticos explicaram 2,28% se uma pessoa receberia ou não um diagnóstico de esquizofrenia. Em outro estudo de sequenciamento “exoma“, os pesquisadores concluíram que seus resultados não forneceram dados relevantes a respeito do risco de diagnóstico psiquiátrico.

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Marsman A, Pries LK, ten Have M, de Graaf R, van Dorsselaer S, Bak M, . . . & van Os J. (2020). Do current measures of polygenic risk for mental disorders contribute to population variance in mental health? Schizophrenia Bulletin, sbaa086. https://doi.org/10.1093/schbul/sbaa086 (Link)

Sofrimento da Quarentena, Normal ou Patológico?

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Os impactos do distanciamento e isolamento social são o tema do artigo Rossano Cabral Lima, publicado na revista Physis.  O autor relata que durante a quarentena há alta frequência de efeitos psicológicos negativos, apontados por alguns estudos, especialmente,
humor rebaixado e irritabilidade, ao lado de raiva, medo e insônia, muitas vezes
de longa duração.

Orientações para lidar com crises humanitárias com relação à saúde mental, como documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Inter-Agency Standing Committee (IASC), fórum instituído pelas Nações Unidas, são exemplos de medidas que buscam a promoção e prevenção da saúde, de maneira a tentar diminuir os efeitos do isolamento prolongado.

“É possível perceber que as estratégias prescritas têm ênfase preventiva, no sentido de produzir ou reforçar hábitos de autocuidado tidos como saudáveis, reduzindo os riscos de adoecimento mental, além de estimular uma ética comunitária que se considera escassa na vida das grandes cidades.”

Mas, o autor faz um adendo a essas recomendações. Ele considera necessário refletir se as recomendações, e os próprios meios de divulgação, são adequados para todo o território nacional, assim como para todas as classes sociais. As populações marginalizadas apresentam outras variáveis.

“Nas favelas, a menor adesão ao “fique em casa” se liga a fatores como a distinta geografia urbana composta por vielas, becos e residências com poucos cômodos, grande aglomeração e condições sanitárias inadequadas; à necessidade de continuar trabalhando para se sustentar, dada a alta taxa de informalidade; e à “naturalização” do risco de vida, efeito da habituação a circular pela comunidade mesmo em dias de tiroteios e operações policiais.”

Nessa população, está presente o medo de passar fome, caso haja perda de emprego e diminuição da renda familiar. Já a população de rua, o objetivo é evitar a internação compulsória, com estratégias humanizadas de cuidado na própria rua, estratégias de redução de danos e disponibilidade de leitos institucionais para fins de quarentena. Essas populações não têm sido abordadas pelas diretrizes do Governo Federal.

“As publicações advertem à população que, em situações de distanciamento
e isolamento, algumas formas de mal-estar são comuns, como a sensação de
impotência, tédio, solidão, irritabilidade, tristeza e medos diversos (de adoecer,
morrer, perder os meios de subsistência, transmitir o vírus), podendo levar a alterações de apetite e sono, a conflitos familiares e a excessos no consumo de álcool ou drogas ilícitas.”

Rossano chama a atenção para o que ele chama de “zona cinzenta” entre a normalidade e a patologia, entre o sofrimento individual e o social. No primeiro caso, a distinção nítida entre as “reações normais frente a uma situação anormal” e a psicopatologia carece de critérios objetivos e quantitativos para tal. No segundo caso, falar em sofrimento social não significa apenas ressaltar a origem social da pandemia e da estratégias de distanciamento e isolamento, mas também sublinhar as circunstâncias sociais e os sentidos oferecidos pelas culturas locais que vão mediar as experiências do próprio mal-estar e da sensibilidade pela dor do outro.

A quarentena vem desafiando a capacidade humana de dar sentido ao sofrimento e estimula as pessoas a encontrarem novas formas de amortecer os impactos das  experiências – limite na vida mental.

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LIMA, ROSSANO CABRAL. Distanciamento e isolamento sociais pela Covid-19 no Brasil: impactos na saúde mental. Physis,  Rio de Janeiro ,  v. 30, n. 2,  e300214,  2020. (Link)

Conclusões dos estudos de escaneamento do cérebro são “Problemáticos se não infundados”.

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Em um novo artigo, especialistas em tecnologia de ressonância magnética repreendem severamente os periódicos científico de primeira linha por permitirem declarações não fundamentadas sobre as descobertas da ressonância magnética. “Vocês não podem estar falando sério”, escrevem eles.

Os pesquisadores Daniel Weinberger e Eugenia Radulescu, da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, publicaram o comentário no periódico de primeira linha JAMA Psychiatry. Eles argumentam que as conclusões tiradas dos exames cerebrais são “problemáticas se não infundadas”.

Os pesquisadores falaram previamente sobre a natureza inconclusiva dos estudos de ressonância magnética ao escreverem um comentário no The American Journal of Psychiatry em 2016. Nesse artigo, eles forneceram aos pesquisadores sugestões de frases para deixar claro que quaisquer conclusões baseadas em exames de ressonância magnética eram inconclusivas e preliminares, na melhor das hipóteses.

Desde então, 46 estudos usando ressonância magnética foram publicados em dois periódicos de primeira linha, JAMA Psychiatry e The American Journal of Psychiatry. Inúmeros outros apareceram em outros periódicos, como o NeuroImage: Clinical and Biological Psychiatry.

De acordo com os pesquisadores, nenhum desses estudos utilizou a frase sugerida. Pior ainda, eles escrevem, “todos [46 estudos] concluíram que os resultados são evidências de mudanças potencialmente deletérias na estrutura do cérebro”.

De acordo com os pesquisadores, há demasiados fatores de confusão em cada ressonância magnética para se fazer qualquer declaração conclusiva definitiva. Afinal, as IRMs não medem diretamente o cérebro no sentido que é mais comumente entendido. Ao invés disso, as imagens medem pequenas mudanças magnéticas dentro do cérebro, que podem ser devidas a qualquer número de fatores.

“A variação substancial nas dimensões do cérebro medida na IRM pode ser associada à variação no conteúdo de água, perfusão dos tecidos, peso corporal, níveis de colesterol, movimento imperceptível da cabeça, níveis de esteroides endógenos, hora do dia e até mesmo exercício e atividades mentais. Como muitos desses elementos de confusão tendem a se segregar com a população estudada, o potencial de má atribuição de causa é substancial”.

Este comentário vem na sequência de um outro estudo, que constatou que os pesquisadores podem chegar a conclusões contraditórias e muito diferentes quando analisam os mesmos dados de IRM.

Entretanto, parece que o que convenceu Weinberger e Radulescu a comentar novamente após quatro anos de pesquisa de ressonância magnética enganosa propagando-se como um vírus através da literatura de pesquisa foi um único estudo recente que sugeriu que os medicamentos neurolépticos (“antipsicóticos”) têm um efeito prejudicial sobre o tecido cerebral.

Em seu comentário, Weinberger e Radulescu criticam esse estudo em particular, sugerindo que o efeito das drogas sobre os níveis lipídicos no cérebro poderia ter sido responsável pelas conclusões de que as regiões do cérebro estavam “afinando” após o uso de drogas.

Entretanto, deve-se notar que inúmeras meta-análises, como essa de 2013, encontraram resultados semelhantes. Esse estudo demonstrou que reduções no volume do cérebro ao longo do tempo foram associadas ao uso neuroléptico, não à “duração da doença ou à gravidade da doença”.

Em conclusão, Weinberger e Radulescu novamente pedem que os periódicos psiquiátricos imponham uma linguagem que deixe claro o quanto os dados preliminares e inconclusivos da ressonância magnética realmente o são.

“Imploramos aos editores de periódicos psiquiátricos que exijam, no mínimo, que o texto em todos os manuscritos submetidos usando técnicas de ressonância magnética estrutural contenha estas precauções e se refira a ‘diferenças nas medidas de ressonância magnética possivelmente sugestivas de …’ ou ‘diferenças nas medidas de ressonância magnética possivelmente relacionadas a…,’ em vez de perda incondicional de tecido ou frases semelhantes”.

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Weinberger, DR, & Radulescu, E. (2020). Structural magnetic resonance imaging all over again. JAMA Psychiatry, Published online July 22, 2020. DOI:10.1001/jamapsychiatry.2020.1941. (Link)

A cultura medicalizante e os processos transgeracionais

Na contemporaneidade faz-se evidente a proliferação e banalização dos diagnósticos psiquiátricos, bem como a apropriação pela cultura de uma leitura do sofrimento psíquico a partir de termos médicos. Com a crescente transformação do sofrimento psíquico em adoecimento psiquiátrico, frequentemente recebemos na clínica pacientes autodiagnosticados ou portando diagnósticos dos mais diversos, queixando-se de sintomas que, em geral, fazem parte do vocabulário médico e são atrelados às formas excessivamente fisiológicas de nomear o sofrimento e o mal-estar do qual padecem.

O avanço das neurociências e a disseminação cultural do discurso medicalizante fizeram com que a linguagem para designar o mal-estar inerente à condição humana ficasse profundamente atravessada pelo materialismo biológico, desconsiderando aspectos essenciais da existência do sujeito, inclusive, social, relacional, econômico, familiar, escolar, laboral, histórico, cultural etc.

Na contramão do discurso biologizante, as reflexões psicanalíticas sobre a noção de transmissão transgeracional representam uma via de análise que desembaraça e amplia o debate acerca do sofrimento psíquico, tecendo novas perspectivas de interpretação. Os processos transgeracionais referem-se à transmissão de conteúdos inconscientes, de uma herança genealógica, na qual podemos encontrar lacunas, ruídos e vazios, denominados como denegação ou conteúdos não revelados que não apresentam possibilidade de simbolização. Esta herança fica enquistada na psique do seu portador e pode ter sido escondida ou calada pelos ancestrais em forma de segredo, bloqueando os processos de elaboração e transformação (Correa, 2000). Assim, os não-ditos familiares são uma vertente privilegiada do processo de transmissão transgeracional, muitas vezes associada a uma produção sintomática cuja repetição – de geração em geração – clama por sentido e significação. Neste ponto, identificamos uma trama complexa que estrutura a dinâmica psíquica do sintoma. Ou seja, a manifestação sintomática é plurideterminada, compondo a trama psíquica da vida do sujeito.

Como exemplo, no âmbito da infância, a escola e a terceirização dos cuidados infantis se apresentam como um ponto de suma importância, pois se por um lado, a escola muitas vezes se configura como dispositivo propagador da cultura medicalizante, onde são disseminados discursos patologizantes atrelados a uma gama de diagnósticos, por outro lado, a escola é um operador fundamental para as famílias contemporâneas, haja vista assumir parte significativa do tempo e dos cuidados infantis. Porém, a difusão do discurso médico naturaliza o sofrimento infantil e se apresenta na escola de forma marcante. É comum que educadores utilizem diagnósticos
diante da observação de certos comportamentos inadequados ou “problemas de aprendizagem” e as encaminhem para avaliação psiquiátrica, neurológica ou psicológica (Guarido, 2007). Com efeito, o comportamento escolar das crianças tem sido cada vez mais atribuído a especialistas que, por sua vez, o realizam partindo de uma suposição patológica.

Não obstante a preocupação legítima dos educadores com o bem-estar infantil, o processo de socialização, o estabelecimento das primeiras relações familiares e escolares podem ser a fonte precípua de sofrimento para as crianças (Jerusalinsky, 2018).

Para Lima (2005), a psiquiatria e suas categorias diagnósticas têm sido um
meio de transmissão da cultura ao cotidiano dos sujeitos. Ao privilegiar as concepções biológicas dos transtornos mentais, a psiquiatria reforçou o processo de medicalização de condutas e estados emocionais. Um número progressivamente maior de categorias psiquiátricas tem sido criado a cada nova classificação diagnóstica, cujas descrições têm avançado sobre áreas que nem sempre foram tidas como passíveis de abordagens fisicalistas. Além do desempenho escolar já mencionado acima, tem sido incluído nos manuais psiquiátricos sofrimentos derivados dos processos de divórcio, luto, desempenho laboral, entre outros (Whitaker, 2016).

Se o discurso médico, por um lado, atribui materialidade biológica à origem do sintoma, sobre o qual incidem suas intervenções, por outro lado, a
psicanálise é uma importante chave de leitura que atribui a ele um sentido intimamente articulado à existência particular da qual o sujeito é portador. Os laços familiares se configuram como mediadores entre o sujeito e a cultura, fornecendo os significantes primordiais com os quais cada um vai tecer a sua história e construir uma sintaxe particular, a sua trama gramatical mais singular.

Por isso, os diagnósticos devem ser concebidos como processos extremamente complexos, que não podem ser reduzidos ao viés biologizante. Os dispositivos medicalizantes delimitam o indivíduo, normatizam-no, minando suas possibilidades de se posicionar pessoal, histórica e politicamente. Estes dispositivos respondem à necessidade de silenciar o sofrimento a qualquer custo, como se não devesse fazer parte da existência humana, e também a uma incessante demanda social que busca a justa palavra para aplacar o mal-estar de forma rápida e eficaz.

Finalmente, mais do que nunca hoje se impõe a ampliação do discurso, a articulação entre os saberes, o trabalho interdisciplinar para desentrincheirar o conhecimento, sem prescindir jamais da participação familiar para a construção de uma ética do cuidado que transcenda a medicalização de adultos e crianças.

Referências

Correa, Olga Ruiz. (2000). O legado familiar: A tecelagem grupal da transmissão psíquica. Rio de Janeiro: Contra Capa.

Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o
discurso psiquiátrico e seus efeitos na educação. Educação e pesquisa -USP, São
Paulo: USP, 33 (1), 151-161.

Jerusalinsky, Julieta. A melancolização na infância contemporânea: entre o linchamento virtual e a política do “no touch”. Cadernos de Psicanálise – SPCRJ, 34 (1), 26-33.

Lima, R. C. (2005). Somos todos desatentos?: O TDA/H e a construção das bioidentidades. Rio de Janeiro: Relume Dumara.

Whitaker, R. (2016). Transformando crianças em pacientes psiquiátricos: fazendo mais
mal do que bem. In S. Caponi, M. Vásquez-Valencia & M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp.29-45). São Paulo: LiberArs.

Terapia Psicodinâmica (psicanálise) de Curto Prazo Eficaz para Bipolar e Depressão

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Uma publicação recente do Journal of Affective Disorders forneceu provas da eficácia da terapia psicodinâmica. Mais especificamente, o estudo investigou se a Psicoterapia Dinâmica Intensiva de Curto Prazo (PDICP) reduziu efetivamente os sintomas associados ao “Grande Transtorno Depressivo” e ao “Transtorno Bipolar”.

“Os resultados dos estudos incluídos sugerem que o PDICP é eficaz para o tratamento dos transtornos de humor”, escrevem os pesquisadores, liderados por Alice Caldiroli na Itália. “Estas descobertas preliminares estão de acordo com a crescente evidência da eficácia da Psicoterapia Psicodinâmica de Curto Prazo para transtornos depressivos”.

Creative Commons

A eficiência e a eficácia das terapias cognitivas-comportamentais (TCC) foram amplamente pesquisadas em comparação com outras modalidades psicoterapêuticas. Como resultado, a TCC tem sido considerada (quase exclusivamente) a prática baseada em evidências a ser utilizada pelos psicoterapeutas nos Estados Unidos.

Mais recentemente, houve um aumento das pesquisas sobre os resultados terapêuticos das terapias psicodinâmicas. Em geral, as terapias psicodinâmicas são tão eficazes quanto a TCC. Quando elementos da TCC e das terapias psicodinâmicas são integrados, a sua eficácia melhora.

Existem diferentes formas de terapia psicodinâmica. A PDICP se concentra nas emoções e sentimentos que estão sendo evitados e nas maneiras pelas quais as pessoas evitam esses sentimentos (defesas). Ao evitar sentimentos e experiências desconfortáveis, as pessoas ficam sem consciência ou inconscientes dos padrões de pensamento, sentimento e ação com os quais se engajam regularmente.

A  PDICP foi desenvolvida nos anos 70 e modificada para o tratamento da depressão nos anos 80. Através da PDICP, conseguir tolerar a ansiedade sobre estas emoções evitadas é aumentada através do desenvolvimento de capacidades.

Os sentimentos são geralmente explorados através de experiências ou sensações corporais, incluindo (mas não limitado a) dores de estômago, dores de cabeça, cerramento do punho e confusão. A relação terapêutica permite às pessoas identificar as emoções e como evitá-las, experimentá-las e expressá-las, e tolerar cada vez mais estes sentimentos, que são as características-chave da eficácia deste tratamento.

O objetivo do estudo era rever os resultados disponíveis sobre a eficácia do PDICP no tratamento da ‘Grande Depressão’ e do ‘Transtorno Bipolar’.

Os pesquisadores descobriram que cinco sessões de PIDCP poderiam ajudar a reduzir os sintomas depressivos em pacientes diagnosticados com transtorno (distúrbio) bipolar e reduzir o uso do tempo dispensado na assistência em saúde mental. Eles também descobriram que 14 sessões de PIDCP reduzira  os sintomas depressivos, distímicos  e hipomaníacos.

Quando avaliados 14 meses após o tratamento, seus sintomas diminuíram ainda mais, fornecendo evidências de eficácia a longo prazo. Pacientes com transtornos afetivos “resistentes ao tratamento” não apenas se beneficiaram do tratamento, mas mais da metade deles também reduziram o uso de medicamentos após oito semanas de tratamento e eram mais ativos no trabalho e reduziram o uso do sistema de assistência.

Isso fornece mais evidências contra o problemático rótulo “resistente ao tratamento” (usado principalmente para rotular pacientes cujos sintomas não são reduzidos por meio de medicamentos), à medida que os pacientes melhoram com a experiência em psicoterapia. A PIDCP também foi eficaz em pacientes que foram medicados simultaneamente para o seu transtorno de humor e naqueles que não foram.

Este estudo contribui para as evidências emergentes sobre a eficácia da terapia psicodinâmica. O estudo desafia a noção de transtornos “resistentes ao tratamento”, pois os pacientes que foram submetidos a um tratamento combinado de PIDCP e medicamentos experimentaram uma redução dos sintomas. Outros pacientes reduziram o uso de drogas durante a terapia, mantendo a saúde psicológica.

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Caldiroli, A., Capuzzi, E., Riva, I., Russo, S., Clerici, M., Roustaya, C., Abbass, A. & Buoli, M. (2020).   Efficacy of Intensive Short-Term Dynamic Psychotherapy in Mood Disorders: A Critical Review.     Journal of Affective Disorders, 273(1), p.375-379 (Link)

A Loucura de Jair Bolsonaro

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Já durante essa pandemia uma jovem médica de esquerda com bastante alcance nas redes sociais colocou a foto de Jair Bolsonaro preso em uma camisa-de-força com a seguinte legenda: “Bolsolini comprou um novo terno para o seu próximo pronunciamento”.

Fiquei bastante chocado com a incapacidade de perceber o quão problemático é o teor de um meme com essa conotação. Com muita cordialidade a interpelei sem o tom agressivo que costumeiramente os antagonistas tomam nas redes sociais. Falei para ela sobre quanto é ruim sugerir que Bolsonaro é um doente mental por conta de sua performance como presidente e por seus posicionamentos fascistas.

Ainda mais, falei como é irresponsável usar um instrumento de tortura para ilustrar um suposto louco, afinal, para quem conhece a luta antimanicomial, sabe bem que é isso que uma camisa-de-força.

A médica em questão falou que não estava sugerindo loucura, mas sim, da necessidade de limitar os seus movimentos. Com muita paciência argumentei que não me parecia prudente que a gente pudesse utilizar um pau-de-arara como figura para significar a limitação dos movimentos de alguém, assim, a camisa-de-força, algo historicamente imputado à loucura, um processo de tortura referendado como cuidado, não poderia ser vista assim, sendo aquela sugestão não ofensiva com Bolsonaro e com o seu protofascismo, mas sim com todas as pessoas que sofrem ou sofreram violência em manicômios ou nos equipamentos ainda existentes que permaneceram com práticas manicomiais.

O fim dessa conversa foi isso. Ela não apagou a foto, não respondeu mais, os comentários eram de piadas e todo mundo ali continuou de esquerda, de oposição, de luta e crítico, mesmo reproduzindo um debate ignorante, preconceituoso, violento e estigmatizante sobre saúde mental.

Já em março deste ano apareceram os primeiros pedidos de interdição de Bolsonaro. Agora, partidos e lideranças de esquerda fazem coro com essa defesa, perpetuando piadas e compreendendo a violência bolsonarista como uma incapacidade de enxergar o mundo com sanidade.

Achando que estão desmoralizando Bolsonaro, os setores de esquerda continuam a se desmoralizar com ações que apenas jogam para a torcida, viram memes, tornam assuntos pertinentes nas redes sociais, mas que não atingem a estrutura fundamental que perpetua o bolsonarismo e, sobretudo, o projeto ultraliberal no poder. Para ficar ainda mais grave fazem isso aprofundando senso comum e caricaturas perigosas sobre temas que não conhecem, mas que deveriam conhecer.

Essa forma de encarar as coisas não é nova. Estamos acostumados a tratar o que nos choca como loucura. Não é loucura. Pior, a questão é que além da falta de capacidade política, de valores opressores e da defesa de um projeto genocida ser algo totalmente normal em nossa sociedade, isto é, além do fato de Bolsonaro ser o tipo médio dos sujeitos que reproduzem opressões e negacionismos cotidianamente e isso nada tem a ver com doença, o uso da anormalidade e da loucura como periculosidade e, desta como algo a ser marginalizado, silenciado e eliminado serviu historicamente para patologizar coisas consideradas chocantes para uma sociedade que criminaliza os pobres, que é racista, machista e lgbtfóbica. Em suma, quem costumeiramente foi tido como louco, que teve que ser interditado, que fez uso de tratamentos violentos foram os sujeitos oprimidos.

A notícia de um pedido de impeachment questionando a sanidade mental de Bolsonaro quando o mesmo comete crimes de responsabilidade fiscal, crimes contra a humanidade, quando tem ligações com milicianos, vive mergulhado em escândalos de corrupção, retira cotidianamente os nossos direitos, descumpre um calhamaço de artigos constitucionais e reproduz todos os dias posições de racismo e lgbtfobia, enfim, a centralidade na suposta insanidade demonstra a incompetência da oposição lidar com fatos concretos para disputar o poder, mas também revela como muitos que estão lado de cá adoram realizar discursos críticos em diversas áreas, mas estão longe de compreender os impactos do mito da loucura, da lógica manicomial, da medicalização, do tratamento do sofrimento mental intenso como doença individual e da patologização das expressões da questão social como algo fundamental à essa sociedade que dizem querer transformar.

Tão certos contra o apelo da cloroquina como um lobby da indústria farmacêutica os reprodutores do mito da loucura de Bolsonaro não percebem que caem na mesma armadilha com suas provocações rasas e ignorantes. Tão radicais contra tantos assuntos, continuam a mistificar a saúde mental, reproduzir o velho e carcomido positivismo ou a nova e vencida pós-modernidade.

Os delírios de Bolsonaro não são fantasias de um surto, mas reprodução de uma ideologia violenta, sua incompetência e apelo ao senso comum não tem nada de doentio, pois é tão somente a premiação da ignorância e da lógica formal-abstrata promovida pela decadência ideológica da hegemonia que se apega a qualquer forma tosca para a manutenção do poder e do lucro. Sua perversão e insensibilidade não são deformações psicológicas, mas características de um fascista, expressões de uma lógica alienada e alienante.

Bolsonaro não está doente. Bolsonaro representa um projeto e o nosso choque não é e nem deve ser com uma patologia, mas com as estruturas desse projeto. Não é a anormalidade de Bolsonaro e de seu governo o grande problema, ao contrário, é a normalidade de tudo isso, é a naturalização que vai desde o extermínio da população preta, passando pelo encarceramento penal, pelas torturas na ditadura até o aprisionamento em hospitais psiquiátricos.

Patologizar Bolsonaro é fingir que a tragédia que vivenciamos está apenas nele, é desconhecer que o que o produziu é muito mais complexo que um surto individual ou coletivo e, por fim, é perpetuar a mesma lógica de sempre sobre saúde mental.

Não se enganem que aqui estou tendo uma visão ingênua, voluntarista ou liberal quanto à Bolsonaro. Não pensem que estou entrando naquela lógica de que “desejar o mal é se igualar a ele”. Não é nada disso. Contra o fascismo não cabe nenhuma ingenuidade e nem condescendência. O grave de tudo isso é que essa forma imatura e irresponsável de enfrentar Bolsonaro demonstra o quanto estamos perdidos na capacidade de combatê-lo.

Não vivemos uma sociedade doente. Vivemos uma sociabilidade em crise, mas que funciona assim desde que se fundou. Vivemos uma sociedade que coloca o lucro em primeiro lugar, onde a vida humana não tem valor fora da exploração, onde negros, mulheres, LGBTs e nordestinos sofrem discriminação, valem menos como força de trabalho, tiveram suas culturas patologizadas e puderam e podem ser eliminados em caso de necessidade do mercado. Vivenciamos uma sociedade do moralismo e do autoritarismo, onde nossas contradições e desigualdades são amortecidas com mentiras, com tiros, com aprisionamento e também com substâncias químicas vendidas nas farmácias.

Vivemos uma pandemia, mas não estamos numa sociedade doente e nem somos governados por um louco. Não se trata essa sociedade como um remédio, mas sim, se derruba sua estrutura desigual para a construção de algo radicalmente novo. Não se retira o presidente genocida o chamado de louco, mas sim realizando pressão e um trabalho político para desvendar para os nossos aqui de baixo como sua política e esse projeto quer o nosso fim.

Dentro de um tempo histórico tão turvo é fundamental romper com supostos atalhos que nada mais são do que desvios, distorções apressadas, caricaturas, placebos para fingir que avançamos, enquanto não conseguimos fazer a tarefa essencial: não tolerar a violência, a intolerância e a desigualdade.

Há males que nem por bravatas são combatidos com ivermectina ou com camisa-de-força Autoritarismo se combate com a força coletiva, com horizonte emancipatório e, por isso, com necessidade de coerência e sem reprodução de preconceitos e de uma lógica conservadora em todas as áreas. Chamar fascista de louco é o terraplanismo da esquerda na saúde mental.

Testes genéticos podem explicar menos de 1% dos problemas de saúde mental

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Pesquisadores estudando quase 50.000 pessoas com depressão e ansiedade encontraram um componente genético potencial em menos de 500. No entanto, disseram a 121 dessas pessoas que isso era uma “explicação” para seus problemas de saúde mental.

Os pesquisadores procuraram por “variantes do número de cópias patogênicas raras (CNVs)”, que são mutações genéticas nas quais o número de cópias de um gene varia entre as pessoas. Os CNVs são surpreendentemente comuns e nem sempre levam a problemas de saúde, e alguns estão associados a problemas de saúde física, como o câncer. Entretanto, os pesquisadores identificaram 31 CNVs potenciais que eram mais propensos a serem associados a problemas “neuropsiquiátricos”.

Em seguida, os pesquisadores examinaram dados de diagnóstico genético e de saúde mental de 90.595 pessoas que receberam cuidados de saúde através do Geisinger. 708 (0,8%) foram identificadas como tendo um “CNV patogênico”. Um pouco mais da metade (49.588) das pessoas do estudo tinha um histórico de ansiedade e/ou depressão; dessas, 470 (0,9%) foram identificadas como tendo um CNV.

Dito de outra forma, menos de 1% das pessoas com diagnóstico de saúde mental tinham um dos 31 “CNVs patogênicos”. E nem todas as pessoas com um CNV tiveram ansiedade ou depressão -238 (33,7%) não tiveram nenhum problema de saúde mental, apesar de terem um CNV.

Um princípio da boa ciência é “a correlação não é igual à causa”. Os pesquisadores nem sequer prestam atenção a este princípio científico – em vez disso, afirmam que “os distúrbios neuropsiquiátricos (NPDs) são distúrbios comuns e complexos com causas genéticas claras”.

O estudo foi conduzido por Christa Lese Martin no Geisinger Autism & Developmental Medicine Institute e publicado na revista de primeira linha JAMA Psychiatry.

Embora os pesquisadores admitam que seus resultados não podem ajudar a orientar o tratamento, nem fornecer quaisquer “implicações de gerenciamento médico”, eles insistem que a identificação poderia ser “percebida como altamente valiosa de forma pessoal ou social”.

Para testar isso, os pesquisadores informaram 121 pessoas que seu “CNV patogênico” era a razão de seus problemas de saúde mental. A maioria respondeu com “reações pungentes”.

De acordo com os pesquisadores, “era comum que os participantes tivessem uma explicação percebida para sua história pessoal e/ou familiar da NPD, muitas vezes atribuindo-a a circunstâncias sociais (por exemplo, trauma, ruptura familiar, histórico de abuso). Os participantes expressaram alívio e satisfação em finalmente ter uma explicação médica para um histórico de aprendizagem e de lutas comportamentais ao longo da vida”.

Alguns dos participantes expressaram então a preocupação de transmitir seus “CNVs patogênicos” aos seus “filhos e netos”.

Muitos dos 121 participantes haviam acreditado que sua angústia se devia a fatores externos – traumas experimentais, ruptura familiar e um histórico de abusos, por exemplo. Os pesquisadores então os “informaram” que sua angústia após sofrer abusos era na verdade uma doença devido a seu código genético patológico.

Os pesquisadores não explicam como 49.118 pessoas no estudo poderiam ter a mesma reação aos estressores ambientais sem os “CNVs patogênicos”.

Pesquisas anteriores descobriram que os testes genéticos são inúteis para problemas de saúde mental, mesmo para transtornos que têm uma etiologia biológica assumida, como a “esquizofrenia”. Um estudo descobriu que o seqüenciamento de todo o genoma explicava 2,28% de se uma pessoa tinha um diagnóstico de esquizofrenia.

Outro estudo pretendeu explicar 3,4%. Finalmente, os pesquisadores que tentaram sequenciar o “exoma”descobriram que seus resultados não forneceram dados relevantes, mesmo ao investigar variantes em genes “conhecidos por terem um fenótipo neuropsiquiátrico”.

Esses pesquisadores sugeriram que:

“Não é o caso que uma variante disruptiva ou prejudicial em um gene conhecido por ter um fenótipo neuropsiquiátrico deva ser vista como provavelmente patogênica”. 

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Martin, C. L., Wain, K. E., Oetjens, M. T., Tolwinski, K., Palen, E., Hare-Harris, A., . . . & Ledbetter, D. H. (2020). Identification of neuropsychiatric copy number variants in a health care system population. JAMA

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