Manual de Direitos em Saúde Mental

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O artigo Locos por nuestros derechos: Comunidad, salud mental y ciudadanía en el Chile contemporáneo, publicado na revista Quaderns de Psicologia, apresenta uma análise crítica das políticas públicas no Chile, ao mesmo tempo, descreve um olhar global sobre os direitos na saúde mental desde uma perspectiva dos usuários e ex usuários.

O autor, Juan Carlos C. Madrid, afirma que no contexto chileno o processo de elaboração do Plano Nacional de Saúde Mental 2017-2025 promoveu espaços consultivos. No entanto, a convocatória para a discussão do documento foi direcionado para alguns grupos específicos, atores institucionais como ONGs, sociedades científicas vinculadas a indústria farmacêutica e organizações familiares que possuem um estreito vínculo com a psiquiatria. Com isso, houve o consenso amplo em torno da crítica ao modelo biomédico e farmacológico.

Em contrapartida, várias organizações internacionais consideram a importância de desenvolver ações orientadas a reconhecer e valorizar o ponto de vista dos usuários, ex usuários e sobreviventes da psiquiatria, como caminho para elaborar um modelo de saúde mental com perspectiva de direitos. Nesse sentido, vale destacar o trabalho da Rede Mundial de Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria e a recente conformação da RedEsfera Latinoamericana de Diversidade Psicossocial.

Um estudo chileno de nível nacional revela que os usuários de saúde mental tendem a avaliar o serviço de forma negativa, além de relatar os âmbitos que apresentam o menor número de desempenho em relação ao respeito dos direitos dos usuários. Entre eles estão: a falta de controle dos usuários sobre os planos de recuperação, a escassa educação e promoção da saúde física, proteção insuficiente para evitar a aplicação de tratamentos sem consentimento, assim como a inexistência de ações para prevenir tratamentos que atentem contra a dignidade da pessoa. Também se destacou o baixo acesso dos usuários a empregos e educação, assim como pouco apoio para participar da vida politica e ao exercício da liberdade de associação. Como consequência, o direito de viver de forma independente e ser incluído na comunidade obtiveram níveis baixos de desempenho no estudo.

O artigo é produto da etapa de difusão do projeto FONIS SA12I2073 “Avaliação da qualidade de atenção e respeito dos direitos dos pacientes em serviços de saúde mental, integrando perspectivas de usuários e equipes de saúde.” O autor foi contratado para desenvolver um processo participativo de apresentação e análise da investigação com pessoas que haviam recebido atenção de saúde mental, o objetivo era elaborar o Manual de Direitos em Saúde Mental. Foram convocadas sete pessoas (quatro homens e três mulheres) da região metropolitana de Santiago (capital chilena), para participar de cinco sessões de discussão grupal em torno da temática de saúde mental e direitos humanos. O documento tomou como fundamento a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (2006).

A partir da discussão foram identificados três esferas relevantes para o exercício da saúde mental desde o ponto de vista dos participantes: liberdade e autonomia pessoal; bem-estar e qualidade de vida; participação social e ação coletiva. O artigo desenvolve amplamente cada uma dessas esferas.

“Por un lado,  se afirma el derecho a no recibir etiquetas diagnósticas, a rechazar el tratamiento farmacológico y a cuestionar el abordaje institucional en salud mental. Así lo señala un participante: ‘lo que hay que hacer es despsiquiatrizar, desmedicalizar y desinstitucionalizar a las personas, y no otorgarles una nueva etiqueta o tratamiento’.”

Manual de Direitos em Saúde Mental é uma experiência pioneira no Chile, sendo uma ferramenta inovadora para construir pontes entre os atores sociais comprometidos com a saúde mental e com os direitos humanos.

O Manual começa reconstruindo uma perspectiva crítica da sociedade atual e seu modelo de atenção em saúde mental, além de propor a transformação dessa realidade a partir de um manifesto intitulado “Loucos por nossos direitos”. O manual conta ainda com perguntas frequentes, indicações práticas e atividades grupais. Em anexo, foram acrescentados um formato de consentimento livre e informado para o tratamento psicofarmacológico, um formato de declaração de vontade antecipada em situações de crise e uma recopilação dos princípios do modelo de recuperação em saúde mental.

O manual é uma importante iniciativa cujas principais contribuições incluem sua produção coletiva, o protagonismo dos usuários e ex usuários da saúde mental e a aposta na autonomia e defesa de seus direitos. Nossos companheiros chilenos realizaram um projeto inovador a nível de América Latina, como a formulação de um consentimento livre e informado para o tratamento psicofarmacológico, ferramenta pouco ou nada discutida no Brasil. Que a seu exemplo, outros países latinos fomentem a discussão sobre esse importante assunto, com a participação dos seus principais interessados, os usuários e ex usuários da saúde mental.

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CEA MADRID, Juan Carlos. “Locos por nuestros derechos”: Comunidad, salud mental y ciudadanía en el Chile contemporáneo. Quaderns de Psicologia, [S.l.], v. 21, n. 2, p. e1502, ago. 2019. (Link)

Manual de Direitos em Saúde Mental (Link)

A Big Pharma atende aos interesses do Sistema de Diagnóstico, do Sistema Hospitalar e do Sistema Judiciário

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Se você acha que a verdade pode nos libertar e se preocupa com os danos causados às almas sofridas que buscam ajuda do sistema de saúde mental tradicional, apenas para descobrir com muita frequência e muito tarde que esse sistema aumenta exponencialmente os problemas, o extraordinário sucesso junto ao público do livro de Jim Gottstein, The Zyprexa Papers, é uma leitura essencial. Deve ser leitura obrigatória para todos os amigos ou familiares bem-intencionados de alguém em sofrimento emocional, bem como para os legisladores que realmente desejam eliminar a corrupção e os danos.

O foco do livro está na droga neuroléptica Zyprexa e em dois casos relacionados a ela – um no qual Gottstein representou um cliente enquanto advogado e outro no qual ele se tornou acusado – mas, o mais importante, exemplifica problemas que atravessam os sistemas, não apenas das grandes empresas farmacêuticas, mas também do que poderia ser chamado de Sistema de Diagnóstico, Sistema de Hospitais Psiquiátricos e Sistema de Tribunais relacionados à saúde mental. É um livro sobre como o tsunami alimentado pelo lucro e os vastos Sistemas envolvidos na política de saúde mental, incluindo o chamado Sistema de Justiça, inundam o que deveria ser primordial: o alívio da dor emocional.

O livro de Gottstein é algo como Os Documentos do Pentágono (The Pentagon Papers) a respeito do sistema de saúde mental tradicional. Porque o livro expõe um número alucinante e uma variedade de ações feitas a sangue frio, calculadas, por parte do laboratório farmacêutico Eli Lilly na tentativa de esconder o que já sabiam ser os efeitos devastadores do extremamente lucrativo Zyprexa, desde as suas mentiras omitindo e autorizando dados relevantes até ao que só pode ser chamado de perseguição ao próprio Gottstein – por tentar soar o alarme. Gottstein é um advogado corajoso e brilhante e ativista incansável que vem tentando, através de litígios estratégicos, impedir que as pessoas sejam prejudicadas por drogas psiquiátricas e eletrochoques por meio do Law Project for Psychiatric Rights (PsychRights), uma organização sem fins lucrativos, que também nos leva a saber do dia após dia das suas tentativas para impedir alguém, em particular seu cliente Bill Bigley (a quem o livro é dedicado), a ser involuntariamente internado em uma unidade psiquiátrica e ser lá drogado à força. Ao fazer isso, ele expõe o número impressionante de maneiras pelas quais o sistema judicial lida com esses casos, funcionando com  frequência como uma espécie de Tribunal Canguru, onde as probabilidades são tão altas contra as pessoas rotuladas como doente mental, na medida em que é quase inevitável que elas sejam privadas de seus direitos. Os obstáculos que o cliente e o advogado precisam superar são tão numerosos e variados que essa parte dos Documentos Zyprexa será muito revelador para aqueles que ainda não passaram por isso.

Onde entra o Sistema de Diagnóstico? Sem as centenas de categorias psiquiátricas que compõem o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), nada disso poderia acontecer, porque dar a uma pessoa pelo menos uma única etiqueta do DSM – mesmo que pareça relativamente inócua – é o que permite a terapeutas, empresas farmacêuticas, e juízes (para não mencionar outros atores sociais) fazer uma ampla gama de recomendações e até impor um conjunto de ação que eles podem chamar de “tratamento”. E quando os “tratamentos” – incluindo drogas – causam danos ou deixam de ajudar, os relatos da pessoa rotulada são facilmente ignorados, minimizados ou usados ​​como mais uma “prova” de que ela ou ele são “doentes mentais”. Igualmente assustador é chamar drogas psiquiátricas, eletrochoques, internação involuntária e outras violações à dignidade humana de “tratamentos”, permitindo que os que os sugerem, impõem ou os tornam obrigatórios fiquem isentos de qualquer culpabilidade. Em um processo no qual eu fui testemunha enquanto expert: três terapeutas que quase destruíram a vida de alguém não tiveram qualquer penalidade, por alegarem que estavam apenas seguindo as normas de atendimento vigentes no sistema de saúde mental.

Os Documentos Zyprexa é um livro difícil de se largar, e a sua leitura é muito valiosa, porque precisamos saber o que acontece em grande parte em segredo e, na medida em que o lemos, vemos claramente os muitos pontos em que mudanças urgentemente devem ser feitas … e como cada um de nós pode ajudar a promovê-las.

Gottstein ele próprio teve a sua experiência pessoal no sistema de saúde mental. Em 1982, aos 29 anos, ele ficou terrivelmente desorientado por perder o sono e, como resultado, foi preso no Instituto Psiquiátrico do Alasca (API) – a mesma entidade que havia repetidamente hospitalizado e drogado à força Bill Bigley. No API, Gottstein relata:

Foi-me dito que pelo resto da minha vida eu teria que tomar drogas parecidas com a Torazina. Quando eu lhes disse que era formado pela Harvard Law School (o que era verdadeiro), fui considerado como em delírio. Quem acreditava que eu era advogado dizia que eu nunca mais poderia praticar o Direito. No entanto, minha mãe, que era diretora executiva da Associação de Saúde Mental do Alasca, me levou a um ótimo psiquiatra, Robert Alberts, que disse que qualquer pessoa que não durma o suficiente se tornará psicótica, e que eu somente precisava aprender como evitar problemas. … tive sorte de não ter sido transformado em paciente mental permanente pelo sistema de doenças mentais. Essas experiências iniciaram minha advocacia junto às pessoas diagnosticadas com doenças mentais graves.

Gottstein descreve ter sido inspirado pelo livro clássico de investigação de Robert Whitaker, o Mad in America, que ele descreve como “uma leitura fantástica” e “um roteiro de litígio que desafia o tratamento forçado com droga psiquiátrica tomando como base o fato de que não é do melhor interesse do paciente”. Ele explica que medicamentos como o Zyprexa “foram comercializados como ‘antipsicóticos’ “, quando na verdade o que eles fazem é “suprimir a atividade cerebral das pessoas a tal ponto que não podem mais causar problemas – pelo menos temporariamente”. Por esse motivo, ele usa o termo “neuroléptico”, que significa “agarrar o cérebro” – que foi “um dos primeiros nomes dados a essa classe de medicamentos e que é a descrição mais precisa”. Passaram a ser chamados de “antipsicóticos”, ele diz, como “marca de propaganda”.

Os leitores descobrem até onde a Lilly foi capaz de ir, visando apenas maximizar seus lucros, ao ocultar desde o início o fato de que o Zyprexa causava, entre muitos outros problemas graves, altas taxas de diabetes, rápido e enorme ganho de peso e até mesmo a morte. Quanto dinheiro estava em jogo? Em 2005, um ano antes do início da saga contada pelo livro, as vendas declaradas da Zyprexa foram de US $ 4,2 bilhões, com cerca de dois milhões de pessoas em todo o mundo tomando o medicamento.

Gottstein descreve seus triplos esforços, a partir de 2006:  ajudar uma pessoa a proteger seu direito de recusar drogas psiquiátricas, ajudar em outros litígios estratégicos e divulgar amplamente a verdade sobre os perigos de Zyprexa. As provas incriminatórias sobre esses perigos foram descobertas em seu trabalho de expert atuando em vários processos movidos por 8.000 pessoas, em “litígios multidistritais”, que acusaram haver sido prejudicados pela droga. E Gottstein obteve essas evidências como uma intimação para que fosse entregue a documentação referente ao tratamento forçado de Bill Bigley com drogas psiquiátricas. No “litígio multidistrital”, o grande número de ações judiciais havia sido consolidado e a documentação sobre os perigos ocultos do medicamento Zyprexa ficou mantida em sigilo por ordem judicial. Felizmente, no entanto, as informações poderiam ser produzidas se houvesse uma outra intimação feita por uma outra ação judicial e se Lilly recebesse um “aviso prévio e uma oportunidade razoável para objetar”.

Não foi especificada a quantidade de tempo que a “oportunidade razoável de objetar” era exigida. Portanto, quando Gottstein intimou que os documentos fossem trazidos a julgamento, o expert responsável o Dr. David Egilman – a quem ele descreve como um homem de consciência – os enviou a Gottstein, não imediatamente, porém antes que Lilly objetasse. Egilman havia dito a Gottstein que ele estava esperando que fosse intimado a depor. E, então, após receber a documentação de Egilman, ela foi entregue ao jornalista do New York Times Alex Berenson para as suas reportagens sobre o Zyprexa. No entanto, para prejuízo pessoal de Gottstein, ele confiou em Egilman para indicar quando ele achava que havia passado um tempo “razoável”  e que, por conseguinte, estaria livre para enviar os documentos a Berenson, bem como a muitos outros que ajudassem a divulgar a verdade.

A interpretação de “razoável” se tornou uma arma importante no que legitimamente pode ser chamado de perseguição de Gottstein por Lilly por tornar as informações públicas. Em 6 de dezembro de 2006, Egilman notificou o principal advogado de Lilly que Gottstein o havia intimado por telefone por volta de 20 de dezembro. Em 11 de dezembro, Gottstein enviou a Egilman uma intimação alterada, porque o original incluía a ordem para o médico levar seus documentos com ele, mas como o depoimento seria por telefone, Gottstein precisava dos documentos enviados antes do depoimento. Ele pediu à Egilman para notificar a Lilly da intimação, mas Egilman não o fez. Egilman disse que cinco dias se passaram desde a sua notificação à Lilly e ele acreditava que isso constituía um aviso “razoável”. Por isso, em 12 de dezembro, ele prosseguiu e enviou o material para um domínio da Internet que Gottstein havia criado para esse fim. Gottstein recebeu uma mensagem de voz de um advogado da Lilly na noite anterior e deixou uma mensagem de voz para ele na manhã seguinte. Enquanto isso, como ele disse, “sentindo a respiração de Lilly no meu pescoço”, ele deu ao repórter do Times acesso aos documentos e os enviou de várias maneiras a muitas outras pessoas.

A coragem de Gottstein em fazer isso é impressionante. Ele sabia que poderia acabar na prisão, considerando o poder e o dinheiro de Lilly, mas “milhares e milhares de pessoas já haviam sido mortas pela droga, e nós [ele e Egilman] esperávamos impedir que isso acontecesse a mais milhares e milhares de pessoas.”

O que se seguiu mostrou Lilly e os tribunais no que há de pior. A capacidade de Lilly de contratar juízes para tentar intimidar Gottstein era surpreendente. Os leitores ficarão alarmados ao descobrir nas páginas do The Zyprexa Papers como os que revelam verdades podem ficar vulneráveis, mesmo quando seu objetivo é totalmente altruísta e quando tentam evitar danos massivos como o que já havia chegado a um grande número de pessoas. Lilly exigiu que Gottstein não revelasse os documentos a ninguém e que ele os recuperasse imediatamente de todos para quem os havia enviado e os retirasse de qualquer lugar que os tivesse publicado. Até então, alguns de seus destinatários os enviaram a outras pessoas e, de várias maneiras, foram divulgados. De fato, em um artigo que Berenson escreveu naquela época, apareceu o seguinte:

Gottstein disse ontem que as informações contidas nos documentos devem estar disponíveis para pacientes e médicos, bem como para juízes que supervisionam as audiências necessárias antes que as pessoas possam ser forçadas a tomar drogas psiquiátricas.

“Os tribunais devem ter essas informações antes de ordenar que essas coisas sejam injetadas nos corpos das pessoas que não desejam”, disse Gottstein.

À medida que a cobertura da mídia sobre o assunto aumentava, Lilly, claramente ficava mais enraivecida, ameaçou Gottstein que ele perderia sua licença e que “procuraria sanções” contra ele por ter violado a ordem de sigilo daquele caso que havia sido resolvido com os 8.000 autores das queixas. Uma ordem judicial incluiu a instrução para ele: “Preservar todos os documentos, material em áudio postado na internet, e-mails, material e informações relacionados ao Dr. Egilman ou qualquer outro esforço para obter documentos produzidos pela Lilly.” Lembro-me de que naquela época eu tinha ligado para o escritório de Jim sobre algum outro assunto e fiquei surpresa ao ouvir sua mensagem, na qual instruía quem o chamasse a não deixar nenhum tipo de mensagem em sua secretária eletrônica. Parecia Orwelliano.

Os meios pelos quais Lilly e os tribunais conspiraram contra Gottstein devem ser lidos para se acreditar. E é comovente ler Gottstein reconhecendo erros cometidos e mais do que esperados quando chamado para testemunhar em circunstâncias de extrema privação de sono em que ele se encontrava, mas esses erros nunca deveriam justificar os resultados. Gottstein gastou grandes quantias de dinheiro tentando se defender e estava enfrentando ainda todos os custos com o processo judicial contra ele. Além disso, ameaças de perda de sua licença e toda a sorte de processos legais estavam pairando sobre sua cabeça. A história de por quê e como o caso terminou para ele faz parte do chamado sistema de justiça e do poder esmagador da Big Pharma, além de como eles trabalham juntos.

Gottstein especula que as decisões dos juízes foram devidas à opinião deles de que Gottstein desrespeitara a sua autoridade enviando o material protegido pela ordem de sigilo; e parece como se tivessem tido a chance de interpretar ou mal interpretar qualquer coisa que fosse a favor de Gottstein, para assim permitir que protegessem a Lilly. Essa impressão é reforçada pelo fato de que um grande número de documentos cobertos pela ordem de sigilo sempre foi do conhecimento público, incluindo relatos da mídia, mas todos foram incluídos naquela ordem.

Voltando para trás para entender o alarme do tribunal sobre a exposição dos documentos, pode-se perguntar que benefício trazia aos demandantes  acordos como o que incluiu a ordem de sigilo. Gottstein nos diz que o acordo de Zyprexa com 8.000 vítimas teve uma média de pouco menos de US $ 90.000 por vítima e diz:

“Isso não parece muito por haver produzido diabetes em alguém, mas é ainda pior quando você considera que os advogados tomaram 40% e, em seguida, Medicaid e Medicare foram reembolsados em outros 30%. Nesse ponto, mesmo os aproximadamente US $ 27.000 que as vítimas receberam individualmente, em média, colocaram aqueles que estavam sob Medicaid e em pensão por incapacidade no patamar acima do limite para o recebimento do benefício. Isso significava que eles tinham que gastar o dinheiro do acordo para tratar o diabetes, e gastá-lo ao longo de um ano ou dois para manter ou receber de volta os pagamentos do Medicaid e da pensão por incapacidade.”

Além disso, Gottstein escreve: “os juízes devem permitir o sigilo apenas se for do interesse público, mas, na prática, eles não o fazem. O segredo lubrifica a engrenagem dos acordos, bem como dos litígios, e os juízes querem que os casos sejam resolvidos e fora da súmula. … Normalmente, ninguém está representando o interesse público.” Ele continua:

Eu acho que é justo dizer, a respeito da ordem de sigilo que a… Corte foi cúmplice de Lilly em esconder o grande dano que está sendo causado às pessoas como resultado do Zyprexa. Se essas informações tivessem se tornado públicas mais cedo, milhares de vidas adicionais poderiam ter sido salvas e centenas de milhares de pessoas provavelmente não teriam tomado Zyprexa.

Gottstein descreve onde o Tribunal cometeu um erro ao considerar a intimação feita por ele e sua liberação dos Documentos Zyprexa:

“O tribunal achava que eu havia violado sua ordem de sigilo e nunca considerava seriamente a possibilidade de não o ter feito. Proteger sua autoridade era realmente a única consideração do tribunal. Não levou em consideração o interesse legítimo da PsychRights nos documentos da Zyprexa. Não levou em consideração o fato de que a PsychRights seguiu as regras da ordem de sigilo na obtenção dos documentos do Zyprexa. … Eu tinha minhas razões independentes e apropriadas para intimação, inclusive alertando o público sobre os grandes danos causados pelo Zyprexa. … eu acreditava que os havia recebido sob as regras da ordem de sigilo e que, uma vez que os recebi daquela maneira os documentos já haviam perdido o sigilo.”

A segunda história do livro, entrelaçada ao longo do caso Lilly, é sobre o modo como Bill Bigley, a quem Gottstein traz à vida com calor e respeito, experimentou perdas trágicas que compreensivelmente o deixaram triste. Sua reação profundamente humana foi então patologizada: ele foi diagnosticado com rótulos psiquiátricos que formaram a base para iniciá-lo em um ciclo de hospitalizações involuntárias que chegaram a cerca de 70 e de drogas forçadas que causaram tantos problemas e que ele compreensivelmente resistia a tomar esses produtos químicos. Tudo isso previsivelmente levou à sua deterioração de várias maneiras, e ele às vezes passou a agir de maneiras que incomodavam algumas pessoas, mas ele nunca foi violento. Gottstein escreve: “Na realidade, não se tratava da qualidade de vida de Bill, mas de reduzir o incômodo que as  outras pessoas sentiam frente a ele”.

Apesar disso, o sistema de saúde mental destruiu esse homem, cujo sofrimento, como o de muitos, levou a um diagnóstico que foi usado para justificar privá-lo de seus direitos, com base em argumentos totalmente sem sustentação de que ele devia ter um desequilíbrio químico incurável. E como Gottstein descreve em suas tentativas de ajudar Bigley tantas vezes, mostrando ponto por ponto como o sistema no Alasca – típico dos Estados Unidos – foi usado para pedir internações involuntárias e o uso forçado de drogas psiquiátricas.

O próprio fato de alguém ter recebido qualquer rótulo psiquiátrico é usado de maneiras impressionantemente variadas para privá-lo do respeito a si próprio, da dignidade, da autoconfiança, do emprego, da custódia de seus filhos, do direito de tomar decisões sobre seus aspectos médicos e assuntos legais, e até mesmo de suas vidas. Assim como a afirmação precisa de Gottstein de que ele se formou na Harvard Law School havia sido interpretada como evidência de sua “doença mental”, então quando Bigley afirmou com precisão que havia sido citado no New York Times, isso foi interpretado como prova de seu “transtorno psiquiátrico”.  E como tantas vezes acontece, a recusa de Bigley por drogas psiquiátricas era prova de que ele estava “doente” demais para saber como cuidar de si mesmo.

Ignorando flagrantemente a prova do dano causado por drogas psiquiátricas, o juiz ordenou que Bigley pudesse ser drogado contra sua vontade. O “raciocínio” do juiz pertence a Alice no país das maravilhas, e não a uma ordem judicial. Tente encontrar a lógica no que o juiz sustentava, como Gottstein cita:

O Tribunal está disposto a assumir que medicamentos passados ​​danificaram o cérebro de Bigley. Além disso, está disposto a presumir que danos cerebrais adicionais resultarão se a API for autorizada a administrar mais psicotrópicos. Mas isso não termina a análise.

O Tribunal considera que o perigo de danos adicionais (mas incertos) é superado pelos benefícios positivos da administração de medicamentos e pelos problemas emocionais e comportamentais que aumentarão se Bigley não for medicado. Mesmo que o medicamento diminua a vida útil de Bigley, o Tribunal autorizará a administração do medicamento, porque Bigley não está bem agora e está piorando.

Dado que Zyprexa e medicamentos semelhantes, como Risperdal, demonstraram que causam morte prematura, Gottstein é razoável ao concluir: “Acho que os juízes decidem quem deve viver e quem deve morrer o tempo todo, embora a pena de morte nem seja permitida em Alasca”.

As audiências de Bill Bigley geralmente eram realizadas em uma sala no Instituto Psiquiátrico do Alasca, e não em um tribunal, e geralmente não eram abertas ao público, pois a maioria dos processos judiciais semelhantes deveria ser para ajudar a garantir o devido processo e proteger os direitos da pessoa. Quando as audiências são realizadas nesses hospitais, elas tendem a se tornar kafkianas, lançando o devido processo e procedimentos legais pela janela, de modo que ordens coercitivas são feitas na ausência de evidências de que os critérios para coerção (perigo para si ou para outros, gravemente incapacitado, a alternativa menos restritiva) estejam presentes. Bill Bigley, portanto, queria que suas audiências acontecessem em um tribunal real e fossem públicas.

Quem corre o risco de perder seus direitos humanos – ou sua vida – por meio de um processo judicial deve ter alguém como Gottstein advogando por eles, porque ele é um advogado incansável, conhece a lei de dentro para fora e nunca perde de vista o que é verdade, o certo, e o que é humano a respeito da dignidade de seus clientes. Ele usa uma combinação de princípios e procedimentos legais para analisar se esses princípios se mantêm dentro das tradições legais, mas também fora dessas tradições. Não se sentindo constrangido por precedentes no tribunal e na prática no sistema de saúde mental, ele é consistentemente criativo e engenhoso na tentativa de encontrar soluções. Por exemplo, seguindo o princípio de que a “alternativa menos restritiva” deveria ser julgada e sabendo que as ordens judiciais em casos como o de Bigley eram geralmente baseadas na consideração de apenas duas alternativas – drogar a pessoa ou não a drogar, ponto final – ele faz esta proposta de bom senso e carinho que inclui uma terceira opção:

“… Quando alguém está tendo um colapso, pode ser abordado e ser dito: “Escute, não podemos obrigar você a fazer essas coisas, por causa de ______________ [por exemplo, você irrita as pessoas ou assusta as pessoas]; portanto, se você não se acalmar, teremos de injetar Haldol ou colocá-lo em restrições ou isolamento (confinamento solitário). O que você prefere? Eu acho que algumas pessoas preferem as restrições ou isolamento do que a droga, mas também acho que há alguma chance de simplesmente dar a eles a escolha que lhes permitiria se acalmar.”

Obviamente, como essa proposta se baseia no respeito à pessoa e na suposição de que ela pode usar a razão, considerar opções e ter agência, não é o tipo de coisa que os juízes tendem a aceitar. Suas duas preocupações – que eles serão “responsabilizados” se não pedirem hospitalização e / ou drogas e “algo vir a acontecer”, e sua tendência a acreditar nas reivindicações de entidades poderosas e bem-financiadas, como as grandes empresas farmacêuticas e os grandes hospitais psiquiátricos – no caminho.

Quanto aos representantes do hospital psiquiátrico, como escreve Gottstein, o que a contínua pressão deles por drogas forçadas “demonstra claramente é que a API era incapaz de tratar pessoas sem usar drogas. Isso foi e permanece basicamente verdadeiro nos ‘hospitais’ psiquiátricos em todo o país “.

Gottstein escreveu este livro em parte para tentar prescrever um roteiro para abordar esse tipo de caso, o que, ele disse em uma mensagem de e-mail para mim, inclui a necessidade de “tratar esses casos como os litígios de grande importância que eles são de fato”. As descrições de seus confrontos com Lilly e sua defesa de Bigley deixam claro o quão alto são os riscos e o quão perigoso é para as bravas almas que se envolvem nas lutas. Mas, como ele observa com tristeza, o Zyprexa “ainda está sendo usado em centenas de milhares de pessoas, inclusive sendo forçado em muitas. O mesmo vale para os outros neurolépticos.” De fato, mesmo muitos que advogam vítimas do sistema de saúde mental tradicional em seus escritos e filmes legitimam e até valorizam o ex-chefe da Força-Tarefa do DSM-IV, Allen Frances, apesar de saber que ele e dois colegas ganharam pouco menos de um milhão de dólares, por criar a base fraudulenta que permitiu à Janssen Pharmaceuticals, subsidiária da Johnson & Johnson, comercializar o enganosamente perigoso medicamento neuroléptico Risperdal para uma variedade surpreendente de “condições”, em pessoas desde a infância até a velhice. (Para saber mais sobre isso, consulte meus artigos “Diagnosisgate: Conflict of Interest at the Top of the Psychiatric Apparatus” e “Diagnosisgate: A Major Media Blackout Mystery.”)

Gottstein acredita, finalmente, que

“representação legal inadequada é o ponto principal do grande dano causado às pessoas por meio da psiquiatria. Se as pessoas estivessem sendo representadas adequadamente, o sistema atual seria incapaz de prender as legiões de pessoas e drogá-las contra sua vontade e teria que encontrar outra maneira de lidar com pessoas diagnosticadas com doenças mentais e perturbadoras. Se a PsychRights tivesse recursos para empregar apenas dois ou três advogados em tempo integral em Anchorage, no Alasca, para tais representações e fundos para testemunhas especializadas, acredito que a PsychRights poderia quebrar o sistema e forçar o fornecimento de abordagens diferentes que demonstrassem funcionar e ajudar as pessoas a enfrentar os problemas pelos quais elas estão passando.”

A edição Kindle do livro está disponível para pedidos a partir do dia 31 de janeiro passado. Agora, o livro em papel também está disponível na Amazon.

Pesquisadores propõem que se fale de “abstinência”, não “síndrome de descontinuação”

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O termo “síndrome de descontinuação” é deliberadamente enganoso, de acordo com pesquisadores que escrevem no The British Journal of Psychiatry. Elia Abi-Jaoude e Ivana Massabki sugerem que o termo é apenas um eufemismo para o termo mais preciso “abstinência” (também conhecido no Brasil como “desmame” ou “retirada”).  Eles escrevem que o termo “síndrome de descontinuação” foi cunhado com o apoio da indústria farmacêutica para subestimar e desconsiderar o testemunho de pessoas que experimentam efeitos adversos após a interrupção dos antidepressivos ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina).

“O termo síndrome de descontinuação, que parece ter sido estabelecido e divulgado com o apoio das indústrias farmacêuticas para minimizar as preocupações dos pacientes com relação ao uso de medicamentos ISRS, é enganoso e deve ser abandonado em favor do termo mais apropriado que é síndrome do desmame dos ISRS”, eles escrevem.

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Uma atualização recente das diretrizes vigentes no Reino Unido reconheceu o potencial de sintomas graves e duradouros gerados pela retirada dos antidepressivos. Isso ocorreu depois de um artigo do BMJ publicado no ano passado, onde é feita uma forte crítica às diretrizes oficiais que minimizam os sintomas de abstinência. Nesse artigo, os pesquisadores escreveram que os pacientes estavam sendo diagnosticados erroneamente como tendo uma recaída de depressão quando, em vez disso, estavam sofrendo de sintomas de abstinência dos ISRS.

Um outro estudo constatou que mais da metade das pessoas que tomam antidepressivos apresentaram sintomas de abstinência – e cerca de 25% classificaram esses sintomas como “graves”. Ainda outro estudo descobriu que, em média, a retirada do ISRS durava 90,5 semanas, enquanto a retirada do ISRN (outra classe de antidepressivos) durava 50,8 semanas.

Em seu artigo, Massabki e Abi-Jaoude examinam a história do termo “síndrome de descontinuação” em artigos acadêmicos revisados por pares. Antes de 1997, o termo foi usado apenas uma vez. No entanto, em 1997, uma edição complementar do Journal of Clinical Psychiatry usou o termo – desencadeando uma reação em cadeia que resultou em 12 usos do termo apenas naquele ano. Essa edição foi patrocinada pela empresa farmacêutica Eli Lilly (fabricante do Prozac, Cymbalta e Zyprexa). Foi apresentada uma definição de “síndrome de descontinuação” que não era diferente da “abstinência”, podendo assim ser aplicada aos efeitos nocivos da interrupção de qualquer medicamento.

O próximo grande pico no uso do termo ocorreu em 2006 com a publicação de um segundo suplemento no mesmo periódico – este patrocinado pela empresa farmacêutica Wyeth (fabricante do Effexor, conhecido por Velanfaxina). Nessa edição, os autores sugeriram que os pesquisadores parassem de usar o termo “abstinência” e, em vez disso, usassem o termo “descontinuação”. Eles argumentaram que o termo “desmame” era assustador para pacientes preocupados em se tornar fisicamente dependentes de antidepressivos. Os autores também argumentaram que a “síndrome da descontinuação” era diferente da síndrome de abstinência – mas, novamente, sua definição não distinguia entre as duas. O suplemento de 2006 incluiu a seguinte lista de sintomas de abstinência de antidepressivos que eles usaram para definir a síndrome de descontinuação:

“Neurossensorial (por exemplo, vertigem, parestesias, reações semelhantes a choque, mialgia, outra neuralgia); neuromotor (por exemplo, tremor, mioclonia, ataxia, alterações visuais); gastrointestinal (por exemplo, náusea, vômito, diarreia, anorexia); neuropsiquiátrico (por exemplo, ansiedade, humor deprimido, intensificação de ideação suicida, irritabilidade, impulsividade); vasomotor (por exemplo, diaforese, rubor); e outros neurológicos (por exemplo, insônia, sonhos vívidos, astenia / fadiga, calafrios). ”

De acordo com Massabki e Abi-Jaoude, “os sintomas descritos são típicos dos pacientes que sofrem de abstinência e indicam as várias maneiras pelas quais os pacientes podem se tornar dependentes de seus ISRSs”. De fato, outra revisão recente descobriu que 37 dos 42 sintomas de abstinência ocorreram tanto para benzodiazepínicos quanto para ISRSs. Então, por que a mesma experiência é chamada de “abstinência” quando para benzodiazepínicos, mas “síndrome de descontinuação” quando para ISRSs?

Massabki e Abi-Jaoude escrevem que a resposta está na maneira sutil como é que a “síndrome de descontinuação” sataniza a dificuldade que as pessoas têm quando tentam parar o uso de ISRS. Eles escrevem que o termo “descontinuação” é enganoso, porque mesmo uma redução gradual pode resultar em sintomas de abstinência – a descontinuação total não é requerida. E o termo “síndrome”, que significa “doença”, é uma maneira de esconder o fato de que os danos são devidos ao efeito da própria droga.

Os pesquisadores concluem que o uso da terminologia de “desmame” promove um consentimento melhor informado. Quando os pacientes conhecem os riscos e benefícios do medicamento a eles oferecidos, eles têm mais autonomia sobre suas escolhas. Além disso, se eles reconhecerem os perigos da retirada, os profissionais médicos poderão ajudar mais as pessoas que desejam diminuir sua dose ou parar de usar os ISRSs.

“O reconhecimento transparente de que o uso de ISRS pode resultar em dependência e sintomas de desmame ou na síndrome de abstinência do ISRS permite que os pacientes sejam verdadeiramente informados sobre suas decisões e ajuda a informar estratégias para diminuir gradualmente esses medicamentos amplamente prescrito.”

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Massabki, I., & Abi-Jaoude, E. (2020). Selective serotonin reuptake inhibitor “discontinuation syndrome” or withdrawal. The British Journal of Psychiatry, 1–4. DOI:10.1192/bjp.2019.269 (Link)

Mensagem do New York Times para Bonnie Burstow: Que Você Não Descanse Em Paz

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Quando soube que o New York Times publicara um obituário de Bonnie Burstow, fiquei – antes de ler – bastante surpreso. Não é fácil para quem não é celebridade receber um obituário no New York Times, e mais ainda sendo um acadêmico canadense que, como dizia a legenda da versão on-line, “havia sido uma voz proeminente no movimento da anti-psiquiatria.

Esse era o subtítulo a dizer aos leitores que sua vida – e bolsa de estudos – eram de importância significativa. Isso emprestava legitimidade aos estudos em “anti-psiquiatria” criados por ela.

Ou pelo menos era isso o que parecia.

Os primeiros parágrafos do obituário foram todos muito bons e respeitosos. Parecia que o óbito seguiria um modelo como o qual estamos familiarizados, detalhando a natureza de seus escritos antes de mergulhar em sua história pessoal. Mas então veio este momento: “você deve estar brincando comigo”. No momento em que artigo descrevia a bolsa de estudos em “antipsiquiatria” que Burstow havia financiado na Universidade de Toronto, aparece de repente o comentário de seu colega Edward Shorter, que, segundo o jornal, era “um crítico da antipsiquiatria de longa data”.

Shorter não decepcionou.

“Eles estão tentando alegar que não existe doença psiquiátrica, e acho que ela causou muitos danos com a publicidade que recebeu sobre isso. . . (A universidade) cometeu um grande erro ao criar um fundo especial de bolsas de estudos em seu nome; é um fundo anti-psiquiatria que legitima o movimento “.

E Shorter não termina aí. O jornalista do Times voltou a ele uma segunda vez, mais adiante no obituário:

É claro que ela não teve um impacto positivo na saúde pública ou no tratamento de doenças. . . e é meio desanimador pensar no número de pessoas que poderiam ter sido tocadas pelo canto de sereia – pensando: ‘Oh, não existe doença psiquiátrica e tudo é apenas rotulagem e marginalização’ – e depois cometer suicídio, porque isso não é incomum. São doenças com riscos, com certeza.

Aparentemente, Shorter nunca recebeu de sua mãe a mensagem para não falar mal dos mortos. E o New York Times falhou com seus leitores, permitindo que ele o fizesse.

Difamando os mortos

Edward Shorter é talvez mais conhecido por seu livro de 1997, A History of Psychiatry. É uma história informativa, e eu pessoalmente fiz uso dele quando estava pesquisando para o meu primeiro livro, Mad in America. No entanto, o livro segue uma narrativa convencional, principalmente quando se trata dos méritos dos medicamentos antipsicóticos. A clorpromazina iniciou uma revolução na psiquiatria, comparável à introdução da penicilina na medicina geral”, escreveu ele. Graças a esse novo medicamento, os pacientes com esquizofrenia “podem levar uma vida relativamente normal e não ficar confinados às instituições”.

Agora, essa afirmação não é, como se costuma dizer, “baseada em evidências”. Pesquise na literatura científica e se descobrirá que as taxas de alta hospitalar para pacientes psicóticos em primeiro episódio não melhoraram quando a clorpromazina chegou como tratamento nos asilos psiquiátricos. Também se acha que o funcionamento social dos pacientes que receberam alta declinou depois que esse medicamento se tornou um dos pilares do tratamento.

Mas, para os propósitos deste blog, não cabe aqui entrar em detalhes, mas chamar a atenção que Shorter investe em uma narrativa amplamente aceita em nossa sociedade que Bonnie Burstow desafiou.

O movimento da “antipsiquiatria” na década de 1960 foi liderado por psiquiatras dissidentes (R.D. Laing, David Cooper e Thomas Szasz, para citar alguns) e acadêmicos (principalmente Michel Foucault e Erving Goffman). Bonnie Burstow seguiu essa tradição e, como observou o New York Times, ela desafiou a validade dos diagnósticos psiquiátricos e os méritos das drogas psiquiátricas. Ela escreveu criticamente sobre a natureza patriarcal da psiquiatria no diagnóstico das mulheres ao longo da história.

Bonnie Burstow

Como tal, seus escritos contrastavam com os de Shorter. Assim, quando o New York Times o chamou, ele poderia ter agido de forma elegante e contado como discordava de seus escritos sobre psiquiatria e como o estabelecimento de uma bolsa de estudos em “antipsiquiatria” na Universidade de Toronto havia se mostrado controverso.

Isso estaria ok. Os leitores teriam entendido que Burstow era uma intelectual que desafiava a narrativa convencional e também os “poderosos” dentro da psiquiatria. Mas Shorter fez algo bem diferente. Seus comentários de que os escritos de Burstow levaram as pessoas a cometer suicídio – e que isso não era “incomum” – foram uma acusação, que, na minha opinião, foi ao mesmo tempo vil e difamatória.

Como um amigo meu escreveu no dia em que o obituário do New York Times apareceu, “você viu os comentários de Shorter? Ele basicamente a descreveu como um monstro”.

Essa foi a parte vil. O aspecto calunioso é que Shorter, é claro, não tem evidências de que os escritos de Burstow levaram as pessoas a cometer suicídio. Essa é a acusação usual de “sangue nas mãos” que os defensores da narrativa convencional geralmente jogam contra os críticos da psiquiatria, mesmo que a ciência tenha uma história diferente para contar.

David Healy, em sua investigação sobre suicídio entre pessoas tratadas por esquizofrenia, descobriu que a taxa é 20 vezes maior hoje do que era antes da era dos antipsicóticos. Pesquisas também descobriram que as taxas de suicídio parecem aumentar quando uma população obtém maior acesso a cuidados psiquiátricos.

E esse é o ponto: se Burstow estivesse viva, ela poderia responder a um comentário como o de Shorter apontando para essa pesquisa. Ela poderia se defender de tal acusação. Mas como esse era um obituário, ela não teve essa oportunidade. Shorter difamando uma morta, e o New York Times fornecendo a ele uma plataforma para fazer isso.

O pecado jornalístico

Ao escolher escrever um obituário de Bonnie Burstow, o New York Times a identificou como uma estudiosa notável. O obituário observou com razão que ela desafiava as crenças convencionais e criticava os poderes patriarcais da psiquiatria. Mas quando chegou a hora de solicitar um comentário sobre o trabalho dela, não deveria ter chegado a um oponente conhecido do trabalho dela e publicado seus comentários ultrajantes.

Em vez disso, poderia ter solicitado um comentário de um historiador da psiquiatria que apreciasse essa batalha de narrativas e que, portanto, poderia fornecer informações sobre como o trabalho de Bonnie Burstow se encaixa nessa batalha. Essa é a paisagem social mais ampla que forneceu motivos para o Times escrever um óbito sobre ela. O que havia de novo em seus escritos? Que novo terreno ela iluminou? Apresentou ela os seus argumentos de maneira clara?

Por exemplo, o historiador Andrew Scull teria sido uma boa escolha. Não sei o que ele achou dos escritos de Burstow, mas ele certamente poderia ter falado com insights sobre as narrativas concorrentes. Se o Times tivesse pedido sua opinião, ele poderia ter ajudado os leitores a entender por que o trabalho de sua vida merecia um obituário. Ela era uma intelectual participando de uma discussão social mais ampla sobre os méritos dos cuidados psiquiátricos, passados e presentes.

Do mesmo modo, o Times poderia ter procurado um comentário de alguém da comunidade de “sobreviventes psiquiátricos”. Por que tantos ex-pacientes admiram seus escritos e seu trabalho de advocacia? Estou certo de que os leitores gostariam de ouvir a perspectiva deles.

O ponto jornalístico aqui é o seguinte: isto era um obituário. Muito do que o Times escreveu foi bom, respeitoso e informativo. Mas frustrou os leitores quando solicitou um comentário de um inimigo declarado de seu trabalho e publicou sua acusação infundada de que seus escritos causavam danos à “saúde pública” e provocavam muitos suicídios. O jornal tomou o partido da difamação de Shorter.

Há um velho ditado no jornalismo de que seu trabalho é afligir os que se sentem confortáveis e confortar os aflitos. Bonnie Burstow, em seus escritos, frequentemente dava conforto aos “aflitos”. O New York Times, ao publicar os comentários de Shorter, estava confortando os que estão em posições confortáveis.

E assim, de nós da comunidade do Mad, eu gostaria de enviar uma mensagem para Bonnie Burstow além do túmulo: Você fez o bem Bonnie. Você foi uma heroína para muitos. E não deixe esse obituário derrubá-la.

Pesquisa Sobre Sentidos e Práticas de Saúde Mental em Comunidades Quilombolas

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Os sentidos e as práticas em saúde mental produzidos por comunidades quilombolas do estado de Rondônia são o tema de um artigo publicado pela revista Psicologia: ciência e profissão.  Os autores Eraldo C. Batista e Katia B. Rocha realizaram entrevistas abertas e rodas de conversa com 18 participantes, todos pertencentes a duas comunidades quilombolas do Vale do Guaporé, de ambos os sexos. A análise do material foi realizada através da proposta da Análise do Discurso.

As comunidades quilombolas apresentam uma identidade social própria, sendo remanescentes dos antigos quilombos. São considerados pelo Ministério da Saúde como pertencentes a um grupo minoritário dentro da população negra. As comunidades estão espalhadas por todo o Brasil e são muito variadas, podendo ocupar áreas rurais ou urbanas. Principalmente as comunidades quilombolas que ocupam áreas rurais vivem em um certo isolamento geográfico e social em relação à sociedade urbana. O que implica em desigualdades sociais e de assistência à saúde, ainda mais graves no caso das comunidades estabelecidas na região amazônica.

As comunidades quilombolas amazônicas apresentam algumas especifidades em relação as demais espalhadas pelo restante do Brasil.  A partir do fim do poder dos jesuítas sobre os índios, aumentou o tráfico de Africanos para aquela localidade, resultando em quilombos formados por negros e índios. Baseado nisso, a relação das comunidades quilombolas com a população indígena sempre foi forte. Os autores ainda apontam a importância do estudo, visto que, existe uma escassez de publicações que abordem a questão da saúde mental da população quilombola.

A partir da análise do material foram organizados três repertórios interpretativos: reconhecimento e formas de lidar com os sintomas psiquiátricos; recursos utilizados pelos moradores da comunidade no cuidado em saúde mental: ervas e plantas medicinais e práticas religiosas; consumo excessivo de bebidas alcoólicas como problema de saúde mental.

Foi possível perceber no diálogo com os quilombolas que a sua percepção sobre o que é “doença mental” está baseada em saberes médicos, onde a doença mental é entendida principalmente como desordem emocional, assim como também está relacionada ao senso comum, associado principalmente àquelas pessoas que estão “fora da realidade”.

Algo que se destacou foi a utilização do termo “banza” e “landú” para descrever pessoas com sintomas identificados com o diagnóstico de depressão. Parece ser uma variação do termo “banzo” que se refere ao estado de tristeza causada pela desculturação, nostalgia e saudade da África, descrito pelos africanos escravizados recém chegados ao Brasil. Os participantes relatam que não se tomam medidas com relação a esses comportamentos, porque “logo passa”. Mas também relatam ser comum se isolar no meio da mata como forma de aliviar os sofrimentos.

“Como afirmam Teixeira e Xavier (2018), as matas foram o elemento principal de continuidade da vida após a escravidão, percebidas pelas comunidades negras como uma extensão da própria casa, e os vínculos existentes entre os membros das comunidades guaporeanas com o espaço natural florestal e fluvial são profundos.”

As plantas e chás são invocados, assim como as “rezas”, como sendo os principais tratamentos para saúde. Quando em contato com profissionais de saúde, o principal tratamento estabelecidos por estes são os medicamentos farmacológicos. No entanto, as práticas tradicionais ainda são as principais protagonistas na comunidade. Com isso, o rezador (a) possui uma relevância ímpar, sendo praticado principalmente por mulheres e ensinado de geração para geração.

“A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) destaca em seu texto o reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, sobretudo os saberes de matrizes africanas.”

Os autores também destacam que o consumo de álcool parece ter uma conotação cultural e de sociabilidade nas comunidades. Alguns entrevistados relatam que o consumo de álcool é a única diversão disponível. Também foi destacado que o aumento da infraestrutura e acesso à cidade são facilitadores do maior consumo de bebidas alcoólicas. Além disso, pesquisas realizadas em outras comunidades quilombolas destacam o uso abusivo de álcool como um problema e agravo à saúde. Alguns autores associam isso à questões de relações de gênero, assim como ao racismo sofrido pelos quilombolas.

Como conclusão, o artigo relata algumas limitações da pesquisa, como o fato de realizar entrevistas apenas com duas das cinco comunidades quilombolas existentes no Vale Guaporé. Além disso, os autores esperam que essa pesquisa auxilie no enfrentamento das desigualdades e na redução da vulnerabilidade social dessas comunidades, de forma que as políticas públicas levem em consideração e respeitem os aspectos sócio-históricos e culturais dessas comunidades.

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BATISTA, Eraldo Carlos; ROCHA, Katia Bones. Sentidos e Práticas em Saúde Mental em Comunidades Quilombolas no Estado de Rondônia. Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 39, n. spe,  e222123,    2019 .   Disponível em → (link)

A Importância das Entrevistas Preliminares para a Redução das Doses dos Antidepressivos

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A grande dificuldade para a retirada de antidepressivos são os sintomas de abstinência. A experiência de pacientes, ex-pacientes e profissionais sugere que essa redução deva ocorrer de forma gradual e bastante fracionada. 

Na prática psiquiátrica, este fracionamento torna-se muito difícil já que os medicamentos comercializados e os fornecidos pelo SUS possibilitam na maioria das casos uma redução de no mínimo 50%, redução muito grande e produtora de muitos sintomas de abstinência. 

Em março de 2019 iniciei o acompanhamento de 450 pacientes que usavam diversos medicamentos psiquiátricos prescritos por outros médicos. A fluoxetina era a droga mais utilizada por eles: aproximadamente 10.000 cápsulas mensalmente. 

No primeiro contato com esses pacientes, procurei entender o motivo deles estarem usando tais medicamentos. A maioria das respostas vinha na forma de um diagnóstico: “…uso fluoxetina porque tenho depressão…”; “…tenho pânico…”. Quem eram afinal esses pacientes além de um diagnóstico? Precisava então escutá-los para além dos sintomas. 

Meu desejo de escuta abriu então a possibilidade para que eles começassem a falar não só dos seus sintomas, mas também de suas angústias, perdas, inibições, medos diante da vida. Mas o que esses pacientes buscavam quando procuraram um serviço de saúde (afinal não são só os médicos que definem sua clientela com diagnósticos)? 

Descobri que a grande maioria não buscava remédios no sentido de medicamentos, mas sim no sentido de “remediar”, aliviar um sofrimento, querendo também um entendimento sobre a verdadeira causa. E foi-lhes prescrito fluoxetina… E continuaram tomando fluoxetina, sem entenderem a si próprios e tornando-se “indiferentes” (como muitos definiram o efeito dos antidepressivos) para o lado bom e ruim de suas existências. Alguns desses pacientes queriam essa indiferença, mas a maioria continuava com seus remédios porque tinham fé. Uma fé no discurso amplamente divulgado pelas indústrias farmacêuticas em nome da ciência de que a causa dos transtornos mentais estaria num desequilíbrio neuroquímico. 

Questionar essa crença para o paciente não traz uma mudança radical em sua fé. É preciso que sua fé seja abalada. Isso só pode acontecer se o questionamento partir do próprio paciente. Nesse sentido, a escuta qualificada vai possibilitar uma compreensão além das teorias sobre neurotransmissores, fazendo com que o paciente perceba por exemplo, que sua depressão poderia estar sendo causada por um medo de se deparar com as impossibilidades e faltas. Nesse ponto, já se torna difícil fazer com que o paciente acredite no poder mágico de um comprimido. 

Muitos pacientes que atingiram o ponto acima começaram a querer diminuir seus medicamentos e alguns o fizeram por conta própria. Sempre que fui notificado sobre a 

intenção de redução, orientei para que a mesma fosse gradual e sobre a dificuldade de fracionar as doses em nosso país. Explicava os possíveis sintomas e marcávamos retornos mais frequentes, gerindo a retirada de forma conjunta. Apostei no fato de que talvez os sintomas de abstinência fossem mais tolerados se os pacientes soubessem que não estariam desamparados. 

Surpreendentemente, houve uma redução de 60% no consumo de fluoxetina no período de 6 meses, apesar das dificuldades com a retirada expostas acima. 

Não tenho aqui a intenção de estabelecer conclusões científicas. São achados de minha prática, apesar de certamente merecerem um trabalho mais aprofundado de pesquisa dentro dos rigores da verdadeira ciência. Apesar dos sintomas de abstinência dos antidepressivos serem um fato comprovado, temos que admitir que os mesmos podem ser piorados ou atenuados pela auto-sugestão. Dessa forma, saber que os medicamentos não são tão resolutivos e que o profissional da saúde também pensa o mesmo e vai estar ao lado no desafio da retirada, pode gerar uma maior eficácia nessa diminuição da droga. 

Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença

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O presente texto é uma resenha do livro Uma sala tranquila: neurolépticos para uma biopolítica da indiferença de Sandra Caponi, professora do Departamento de Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Federal de Santa Catarina. A proposta da autora foi realizar um recuo histórico para entender quais são as bases epistemológicas que sustentam a chamada “revolução psicofarmacológica”, que começou com a descoberta do primeiro antipsicótico, a Clorpromazina, em 1952.  A autora se inspira na problemática atual da psiquiatrização da infância com objetivos preventivos, especificamente com a prescrição de antipsicóticos atípicos para diagnósticos ambíguos, para resgatar este contexto desde seus primórdios.

O objetivo da pesquisa é mostrar a fragilidade da tese que defende a ideia de uma revolução ou de uma ruptura epistemológica no campo da psiquiatria biológica, vigente a partir da descoberta da Clorpromazina. Para isso, Caponi, analisa os discursos e as estratégias de intervenção, observando-se as continuidades e as rupturas que ocorreram em relação às terapêuticas utilizadas antes e depois da descoberta dos neurolépticos.

A história farmacológica da Clorpromazina começa como anti-histamínico, logo passa a ser utilizada como anestésico e, posteriormente, no hospital psiquiátrico para o tratamento de pacientes psicóticos. A sua eficácia foi considerada nos estudos de Delay e Deniker para acalmar os pacientes nas salas de doentes psicóticos. A Clorpromazina começou a ser vendida com o nome de Thorazine, o qual se mantém até hoje. A licença do Thorazine foi concedida, à princípio, como um medicamento para controle de náuseas e vômitos, entretanto, o auge das vendas ocorreu como antipsicótico.

Caponi analisa as estratégias para a legitimação da Clorpromazina, ou seja, como os estudos clínicos e estatísticos avaliaram a funcionalidade deste medicamento e que efeitos terapêuticos deveriam apresentar para que fosse considerada eficaz. As pesquisas demonstram que as observações citadas são construídas a partir de parâmetros de avaliações pertinentes ao campo do social, em que são julgados mais os comportamentos do que a patologia propriamente dita.  A partir de uma análise sob a perspectiva epistemológica e sociológica desses estudos, Caponi afirma que se constituem como uma estratégia biopolítica eficaz para garantir a reorganização e a gestão do campo da psiquiatria. Nesse contexto, a Clorpromazina aparece como uma estratégia de governo da loucura, dentro e fora dos hospitais psiquiátricos.

Depois de mais de setenta anos, ainda não foi possível comprovar as causas dos transtornos mentais, mas o modelo hegemônico permanece o modelo médico para compreender a ação dos psicofármacos, cujo foco está na doença e na cura. Assim, os psiquiatras, os neurologistas, entre outras especialidades médicas, detêm enorme poder de decisão sobre a vida dos pacientes, e transformam as narrativas de sofrimento em sintomas de transtornos mentais, passíveis de definir um diagnóstico e a terapêutica adequada. A partir deste suposto conhecimento científico, o médico especialista decide o fármaco que o paciente deve consumir, e como este não possui conhecimento científico para questionar, cabe a ele concordar.

No caso da Clorpromazina, tinha-se conseguido acalmar os pacientes, mantendo-os acordados. Ainda que os efeitos adversos estivessem associados à administração da droga, como dificuldades psicomotoras, motricidade perturbada, capacidade intelectual diminuída, etc. As reações provocadas pelo neuroléptico não deviam ser consideradas como efeitos secundários indesejáveis, mas como uma manifestação da ação do fármaco e de sua eficácia terapêutica. Mesmo assim, esta droga auferiu visibilidade internacional, na segunda metade da década de 1950, e foi considerada revolucionária, impulsionando o milionário mercado dos psicofármacos.

Os pacientes que tomavam esta medicação manteiam-se calmos e acordados, o que permitia realizar observações clínicas mais sistemáticas sobre os efeitos que a droga produzia no estado mental dos doentes medicados e os não medicados, permitindo a realização de estudos estatísticos comparativos. A ideia era que silenciados os gritos, controlada a agitação, a ruptura de portas e mobiliários, as tentativas de fuga, poderia ser dada maior atenção à persistência ou não dos sintomas da doença. Caponi afirma que se trata de uma estratégia que permite garantir o exercício do dispositivo disciplinar no interior do hospital psiquiátrico. Os neurolépticos garantem a organização das salas dos hospitais, permitem um controle do tempo de tratamento, normalizam as práticas e os comportamentos de acordo com o esperado, reforçam a submissão e a aceitação da autoridade, reforçam o poder do psiquiatra.

Segundo Caponi, os textos publicados na década de 1950, ressaltavam a calma no interior dos hospitais e a possibilidade dos pacientes de receber alta, mesmo continuando o tratamento em domicílio, ainda que os efeitos colaterais graves decorrentes do consumo do medicamento não eram completamente negados ou silenciados. Assim, a indústria farmacêutica, a partir da aparição do Thorazine, passou a investir em publicidade, cujo conteúdo informa sobre a redução da necessidade de reclusão, do uso de eletrochoques e da lobotomia, que a droga evita a destruição de bens e materiais, aumenta a moral dos pacientes e, fundamentalmente, promove a saída dos pacientes dos hospitais, isto é, permite que eles se insiram nessa nova modalidade terapêutica que então se inicia e que definimos como tratamento contínuo.

O início do processo de farmacologização da vida cotidiana se consolidará nas últimas décadas do século XX, a partir da generalização de psicofármacos como o Prozac. Esses medicamentos ampliam sua atuação desde as psicoses aos sofrimentos cotidianos e os comportamentos considerados desviantes. Esse processo vem de encontro com a reformulação dos diagnósticos psiquiátricos, iniciada em 1980, a partir de agrupamentos de sintomas publicados no DSM-III.

O Thorazine é publicitado como um fármaco cuja utilidade é direcionada ao controle e normalização de comportamentos. A publicidade ressalta o interesse de inserir no mercado, além das mulheres depressivas, fatigadas ou nervosas, amplia sua intervenção para a infância e os idosos.  Na fase da infância, a publicidade (1956) propõe o consumo do Thorazine para reduzir a hiperatividade, a ansiedade, melhorar os hábitos de sono, aumentar a receptividade para a supervisão, ou seja, tornar as crianças mais disciplinadas e governáveis. Já no caso dos idosos, a publicidade (1959) se refere ao Thorazine como auxílio para gerir os comportamentos dos idosos, tais como agressividade, beligerância, falar muito, não obedecer aos cuidadores.

Desde o início da psicofarmacologia até hoje, as hipóteses etiológicas estabelecidas a partir do modelo centrado na doença continuam uma incógnita. Não há comprovações científicas sobre as redes causais, neuroquímicas, genéticas ou neuroelétricas, entretanto, os psicofármacos consumidos são os mesmos. A Clorpromazina, especificamente, continua sendo utilizadas com base em argumentos que a legitimam por promover a docilidade, a indiferença, a normalização dos comportamentos agitados dos pacientes psicóticos, a tranquilidade nas salas dos hospitais psiquiátricos.

É nessa lógica da segurança e da antecipação de riscos que surgem as novas patologias psiquiátricas da infância, como, o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o Transtorno de Oposição Desafiante (TOD), bem como a ampliação de algumas categorias psiquiátricas, tais como o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Assim, esse discurso legitimou uma especificidade denominada “psiquiatria do desenvolvimento”. Mesmo que não existam sintomas, nem evidências para identificar precocemente uma patologia psiquiátrica na infância, o argumento da prevenção de um possível quadro psiquiátrico grave quando adultos é uma estratégia que fomenta um grande mercado em prol da psiquiatrização em qualquer fase da vida.

No livro, Caponi apresenta as imagens do modo como divulgam os conhecimentos médicos, estatísticos, psiquiátricos por meio de publicidades veiculadas pela indústria farmacêutica, a partir dos primeiros neurolépticos, desde o Thorazine até a Risperidona, que circulam nas sociedades liberais e neoliberais.

Por fim, Caponi apresenta uma análise das transformações que ocorreram no DSM-5 (APA,2013), especificamente no campo dos transtornos mentais da infância, cujas alterações significativas ocorreram a partir da edição do DSM-III (APA,1980) até a última edição do manual, o DSM-5, publicado em maio de 2013. O capítulo do DSM-5 que era destinado aos transtornos diagnosticados na infância foi substituído pelos “Transtornos do Neurodesenvolvimento”, os quais se referem aos transtornos que são causados por uma deficiência neurológica específica, entretanto, essas supostas causas neurológicas permaneçam desconhecidas. Os transtornos que compõem este capítulo do DSM-5 são: Deficiências Intelectuais, Transtornos de Comunicação (de linguagem, de fala, gagueira, etc.), Transtornos do Espectro Autista, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtornos de Aprendizagem, Transtorno de Tique (Tourette), dentre outros. Caponi salienta que nos últimos anos aumentou a prescrição de medicamentos como Ritalina, Concerta e Risperidona para crianças, como medida para controlar o comportamento. Se por um lado permitem disciplinar e fixar a atenção, por outro lado, inibem a capacidade criativa, lúdica e questionadora pertinente a infância e adolescência.

Segundo a autora, existem certos modos de classificar os sofrimentos psíquicos que são considerados válidos, já outras classificações não deveriam ser legitimadas. Assim como, existem determinadas intervenções terapêuticas ou formas de definir um diagnóstico que podem ser consideradas adequadas, porém, outras que não deveriam. Caponi explica que as verdades da psiquiatria implicam na existência de tecnologias de governo sobre os sujeitos, desde as duchas geladas de Leuret à prescrição de antipsicóticos atípicos, cuja legitimidade está nas regras, normas, instituições e leis defendidas pela psiquiatria no decorrer da história.

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CAPONI, Sandra. Uma sala tranquila: Neurolépticos para uma biopolítica da indiferença. São Paulo: Liber Ars, 2019.

Pesquisa investiga como o trauma pode ser transmitido entre gerações

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Saiu na Agência Fapesp: Pesquisadores da Columbia University e da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) estudam os mecanismos de transmissão envolvidos no chamado trauma intergeracional.

“Sabe-se que as mães com histórico de experiências adversas na infância têm risco aumentado de gerar filhos que logo após o nascimento apresentam alteração em alguns circuitos cerebrais responsáveis pelo controle cognitivo. Aos 24 meses é possível identificar essas alterações no desenvolvimento. Por volta dos cinco ou seis anos, essas crianças apresentam risco aumentado de desenvolver comportamentos impulsivos”

A pesquisa apoiada pela Fapesp e pelos National Institute of Health (NHI) pretende avaliar 580 grávidas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de Guarulhos – SP. Estas serão divididas ainda em dois grupos comparativos, mulheres que sofreram algum tipo de trauma na infância e aquelas que não vivenciaram tais problemas.

Leia matéria completa → (Link)

Estudo de caso da abordagem de libertação para os cuidados prestados na saúde mental

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Um artigo publicado na semana passada no New England Journal of Medicine (NEJM) usa um estudo de caso no contexto brasileiro para explorar por que tantos jovens se sentem culpados e estigmatizados pelos cuidados de saúde mental. Os autores do estudo, Dominique Béhague, Raphael Frankfurter, Helena Hansen e Cesar Victora, criticam uma abordagem puramente cognitivo-comportamental e consideram como os médicos podem abordar a opressão estrutural por meio da terapia. Com base nas ideias da reforma brasileira da assistência em saúde mental, os autores mostram como os terapeutas podem resolver esse problema usando princípios da “práxis dialógica”, uma teoria da aprendizagem e mudança social extraída dos trabalhos do filósofo e especialista pedagógico brasileiro Paulo Freire.

“A práxis dialógica”, explica Béhague em uma entrevista em podcast dada ao NEJM, “não é uma abordagem clínica nem um método pedagógico, mas um compromisso de aprender com a teoria social e trazer o domínio social de maneira bastante central para a clínica e iniciativas de saúde pública. ”

“Geralmente, quando o domínio social é considerado na medicina e na política de saúde, é um complemento, quando um modelo mais biológico e clínico não está funcionando. Mesmo assim, as forças sociais tendem a ser entendidas como fatores de risco para doenças mentais, como no caso de pobreza, desigualdade, discriminação e assim por diante. Isso é importante, mas o que Freire nos incentiva a fazer também é imaginar como o engajamento ativo e a recriação do campo social – como nos relacionamos, que tipo de sociedade e instituições-chave que queremos – podem ser terapêuticos por si só.”

Os autores definem a práxis dialógica como “um processo elaborado a partir da teoria educacional de Paulo Freire, na qual clínicos e pacientes se envolvem em análises e aprendizados críticos bidirecionais”. É um processo pelo qual uma aliança terapêutica é estabelecida com ênfase na colaboração. Através da comunicação bidirecional da experiência e do conhecimento, os clientes são incentivados a tomar medidas para alterar os sistemas que contribuem para suas experiências de angústia e opressão.

Comparado às abordagens de mudança de comportamento mais populares, potencialmente limitadas pela minimização de forças externas complexas que influenciam a experiência diária, Béhague e a equipe relatam que a práxis dialógica coloca mais importância no papel dos estressores externos, promovendo a agência do cliente e o empoderamento no processo de alteração desses estressores. Não é um pacote pronto e nem uma abordagem mecânica – é uma orientação.

“Na clínica, a práxis dialógica reformula a relação terapêutica enquanto uma experiência educacional bidirecional que se concentra em uma definição de “insight ”diferente da usada na psiquiatria convencional. Enquanto o insight geralmente se refere à conscientização dos pacientes sobre seus processos psicológicos internos, a práxis dialógica enfatiza o processo de aprendizado do clínico e […] incentiva os pacientes a se tornarem importantes fontes de conhecimento sobre as causas situacionais de sua angústia e formas de modificá-las.”

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A noção de práxis dialógica tem suas raízes na teoria da aprendizagem e mudança social do educador e filósofo brasileiro Paulo Freire. Embora os termos e expressões específicos usados para descrever esse conceito variem, os apelos à reforma nos campos da psicologia, psiquiatria, medicina, educação e muito mais para integrar melhores determinantes sociais e estruturais da angústia individual não são novos. No entanto, uma apreciação maior por essa ideia que vem ocorrendo nos últimos anos aparece refletida na recente declaração do Relator Especial das Nações Unidas da necessidade urgente de iniciativas de saúde mental com foco em direitos humanos.

Modelos de treinamento foram projetados para preparar os profissionais a entenderem as maneiras diretas e diferenciadas pelas quais as forças externas influenciam a saúde individual. Algumas pesquisas indicaram que o “treinamento de competência estrutural”, para promover o entendimento das estruturas que contribuem para disparidades nas facetas da saúde, bem-estar e oportunidade, pode aumentar a empatia entre os residentes de psiquiatria.

Em outubro de 2019, os pesquisadores Rochelle Ann Burgess e seus colegas escreveram um comentário no Lancet Psychiatry, promovendo a mensagem de que [chegou] a hora do movimento global de saúde mental reconhecer a importância dos determinantes socioestruturais do sofrimento mental e trabalhar junto às comunidades e formuladores de políticas em seus esforços para enfrentá-los.”

No entanto, os detalhes de como a competência estrutural pode funcionar na prática ainda não foram totalmente explorados. Este artigo sugere que uma posição clínica essencial é que a relação terapêutica seja guiada pela humildade e pelo aprendizado fundamentado. No estudo de caso descrito por Béhague e colegas, um médico, o Dr. M estabelece um relacionamento terapêutico com um cliente de 16 anos, J, baseado no reconhecimento precoce de que o clínico não sabe como é ser J.  Esta transparência acompanhada pela curiosidade em torno das percepções de J sobre as estruturas que impactam suas experiências cotidianas se presta à colaboração, permitindo que J influencie seu ambiente de forma construtiva.

No entanto, os detalhes de como a competência estrutural pode funcionar na prática ainda não foram totalmente explorados. Este artigo sugere que uma posição clínica essencial é que a relação terapêutica seja guiada pela humildade e pelo aprendizado fundamentado. No estudo de caso descrito por Béhague e colegas, um médico, o Dr. M estabelece um relacionamento terapêutico com um cliente de 16 anos, J, baseado no reconhecimento precoce de que o clínico não sabe como é ser J. Este a transparência emparelhada com a curiosidade em torno das percepções de J sobre as estruturas que impactam suas experiências cotidianas se presta à colaboração, permitindo que J influencie seu ambiente para o construtivo.

Os autores descrevem o histórico de ansiedade e comportamentos problemáticos de J na escola, levando à sua conexão com alguém de fora da escola que pudesse ajuda-lo. Antes de se conectar ao Dr. M, J se reuniu com a psicóloga de sua escola e ficou insatisfeito com as circunstâncias de seu encaminhamento para os serviços dela, bem como com as percepções dela sobre o caso. Sua interpretação era que ela se concentrava mais em seus déficits (ou seja, agressão e problemas de atenção), enfatizando as mudanças individuais que ele deveria fazer em vez das questões de maior escala que impediam seu progresso (por exemplo, seu status socioeconômico).

Tendo recusado os serviços continuados do psicólogo da escola, J concordou em procurar um suporte externo para expressar suas frustrações. Embora inicialmente hesitante em se envolver, J descobriu que a abordagem do Dr. M, integrando recursos da práxis dialógica, ressoava.

Com o tempo, os dois trabalharam para desvendar e explorar as fontes contextuais e sociais da angústia que J experimentara ao longo de sua vida. J aplicou essas novas ideias à militância política em sua escola, envolvendo-se no conselho estudantil da escola. Enquanto esteva no conselho estudantil, ele “advogou por melhores relações professor-aluno e trabalhou ao lado de funcionários da escola que executavam iniciativas para promover a participação dos alunos e práticas democráticas de ensino”.

Embora possa haver muitas características opressivas das circunstâncias sofridas por alguém e que estejam além do domínio de seu controle, Béhague e a equipe demonstram como um senso de propósito pode ser apoiado na terapia por meio de abertura, análise crítica e incentivo ao envolvimento no ativismo em nível comunitário.

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Mais informações sobre este artigo podem ser acessadas em uma entrevista em podcast com o primeiro autor e que está hospedado no New England Journal of Medicine.

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Béhague, D. P., Frankfurter, R. G., Hansen, H., & Victora, C. G. (2020). Dialogic Praxis — A 16-Year-Old Boy with Anxiety in Southern Brazil. New England Journal of Medicine, 382(3), 201–204. DOI: 10.1056/nejmp1909864 (Link)

Desafios para a Saúde Mental na Atenção Básica

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Saúde mental na Atenção Básica é o tema do artigo recentemente publicado pela revista Physis. Os autores realizaram uma revisão sistemática da literatura, os artigos selecionados foram aqueles que datam de 2013 a 2018, além de apresentarem como temática o estudo sobre a atuação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) em saúde mental na Região Sudeste do Brasil. Foram no total 21 artigos encontrados.

O NASF foi criado a partir da necessidade de apoio técnico-pedagógico especializado e assistencial para a Equipe de Saúde da Família (ESF). A ESF é composta por um (a) médico (a) de família, um (a) enfermeiro (a), um auxiliar ou técnico (a) de enfermagem e Agentes Comunitários e Saúde (ACS),  os quais nem sempre estão preparados para lidar com  questões de saúde mental. Segundo a Organização Pan Americana da Saúde (OPAS), em 2002, 56% das ESFs disseram ter que lidar com algum tipo de demanda de saúde mental.

A partir desse estudo, foram encontradas algumas dificuldades para a atuação do NASF na atenção básica. A maioria dos profissionais do NASF foram inseridos na rede sem ter uma capacitação sobre o tipo de trabalho que realizariam. Portanto, principalmente na saúde mental, percebe-se um isolamento entre as equipes, ao invés de um trabalho conjunto, como é o preconizado pela política. Outro fator importante é o olhar dos profissionais da ESF ainda muito pautado no biomédico, o que dificulta o atendimento das demandas de saúde mental e as formas coletivas de tratamento.

Os autores propõem a educação permanente como possibilidade para auxiliar o NASF e ESF em suas ações coletivas. Assim como, convocam os profissionais da Atenção Básica a produzirem artigos e materiais sobre suas experiencias de atuação, visto que, a maioria dos artigos não foram produzidos por estes profissionais.

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ALVAREZ, ARIADNA PATRICIA ESTEVEZ; VIEIRA, ÁGATA CARLA DE DEUS; ALMEIDA, FAYLLANE ARAUJO. Núcleo de Apoio à Saúde da Família e os desafios para a saúde mental na atenção básica. Physis,  Rio de Janeiro ,  v. 29, n. 4,  e290405,    2019 . (LINK)

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