Revisão bibliográfica: dependência, abstinência e rebote, com usuários de drogas psiquiátricas

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A assistência psiquiátrica brasileira, ou se preferirmos dizer a “reforma psiquiátrica” brasileira, não conseguiu se libertar do modelo biomédico da Psiquiatria. Muito em particular, a hegemonia do tratamento psicofarmacológico na rede de atenção psicossocial criada como substituta à assistência historicamente concentrada no hospital psiquiátrico.

Com efeito, a problemática das drogas é eloquente por si só. Quando o assunto são problemas com o uso de drogas, o senso comum imediatamente faz a associação ao consumo de álcool e das chamadas drogas ilícitas.  E assim sendo, somos informados sobre estimativas do número de dependentes de álcool e/ou maconha e/ou cocaína ou crack, que costumam ser apresentados de forma alarmante em relatórios mundiais sobre drogas.

No Brasil, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas realizado no ano de 2012, estimou que existem na população cerca de 5,7% de brasileiros que são dependentes de álcool e/ou maconha e/ou cocaína, representando mais de 8 milhões de pessoas. Havendo este mesmo levantamento tomando como base que os domicílios no Brasil são compostos por uma média de 3,5 pessoas; por conseguinte, o que é dito é que pelo menos 28 milhões de pessoas vivem hoje no Brasil com um dependente químico dessas drogas.

E o número de dependentes das drogas psiquiátricas?

Sobre as drogas psiquiatras muito pouco se diz. Quando sabe-se que o número de dependentes dessas drogas prescritas é muitas vezes superior ao número dos dependentes de álcool e drogas ilícitas.

No mundo inteiro, em particular aqui no Brasil, pessoas e instâncias do sistema de assistência em saúde pensam ou querem acreditar (deliberadamente?) no tratamento psicofarmacológico como abordagem de frente para dar conta das demandas por tratamento em saúde mental. E que o problema é a não adesão dos pacientes ao tratamento psicofarmacológico prescrito.

Quando na verdade, o que vem sendo denunciado há tempos, por expoentes cientistas, é que os fármacos psiquiátricos fazem muito mais mal do que bem.

O Mad in Brasil (MIB) tem postado sucessivas e variadas matérias a respeito; basta clicar no botão de ‘busca’ para acessar o que nós temos disponibilizado. Não obstante, não é pouco frequente ser dito, em particular pelos próprios profissionais de saúde, que o que está sendo postado não está baseado em uma sólida revisão da literatura científica.

Eu estou cansado de ouvir que o que eles médicos fazem está baseado nos protocolos oficiais.

O que quer dizer, a reforma psiquiátrica aqui no Brasil não tomou entre os seus focos a mudanças dos chamados protocolos com os quais os psiquiatras trabalham e assim se sentem confortáveis. O lugar comum é que a reforma psiquiátrica é um processo complexo  que implica em um trabalho interdisciplinar (bio-psicossocial). Quando se sabe que na prática é o ‘bio’ que sustenta o ‘psicossocial’.  Seja via o diagnóstico, seja via o tratamento psicofarmacológico.

Acaba de ser publicado no último número do periódico científico Brain uma detalhada revisão bibliográfica, atualizada, sobre a dependência química, os sintomas de abstinência e o chamado rebote; fenômenos produzidos pelas drogas psicoativas, com um amplo destaque dado às drogas prescritas enquanto medicamentos psiquiátricos.

A proposta dos autores da revisão em tela, Alicja Lerner e Michael Klein, é não apenas mostrar que as drogas psiquiátricas produzem dependência química e as dificuldades de descontinuação do seu uso, mas também explicitar definições que ajudem a distinguir fenômenos comumente mal compreendidos.

Irei apresentar partes do artigo, na íntegra, e sem aspas. Tomo essa iniciativa para que um maior número possível dos nossos leitores tenha acesso ao que considero como sendo o mais essencial. Mas que fique claro que a revisão bibliográfica é extensa, muito detalhada. Assim sendo, recomendo a todos que leiam na íntegra essa revisão. Reitero: vale a pena ler o artigo em sua íntegra. E que cesse de ser dito que a desconstrução do ‘modelo biomédico’ da psiquiatria não tem fundamentos científicos. Ou que a desconstrução do ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria põe em risco os consideráveis avanços positivos do processo de reforma psiquiátrica no Brasil. Espero que após a leitura dessa revisão atualizada e exaustiva, fique mais do que nunca claro que sem o enfrentamento do ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria, a reforma psiquiátrica será nada mais e nada menos do que reforma da psiquiatria, conforme a conjuntura; e não, uma reforma do sistema de assistência em saúde mental vigente.

O que a literatura científica sugere, o que a experiência clínica mostra no cotidiano, o que as vozes dos usuários dizem, é que não se trata de reformar a psiquiatria, mas sim de reformar o modo como a assistência em saúde mental está estruturada.

Considerações Preliminares

Antes de começarmos a abordar o conteúdo da revisão bibliográfica, peço licença para fazer algumas considerações preliminares.

Faz parte do nosso senso comum associar substâncias psicoativas ao álcool, tabaco e drogas ilícitas. Cientificamente são consideradas substâncias psicoativas qualquer substância química capaz de modificar a função dos organismos vivos, resultando em mudanças fisiológicas ou comportamentais. O termo ainda é sinônimo de substâncias denominadas psicotrópicas ou drogas, que atuam no sistema nervoso central e podem conter propriedades reforçadoras do uso trazendo consequências prejudiciais à saúde física e mental. No que se refere à terminologia, habitualmente são utilizados termos com grande imprecisão e estes são excessivamente genéricos como: ‘tóxicos’, ‘narcóticos’ ou mesmo ‘psicotrópicos’. A Organização Mundial de Saúde, em seu Lexicon of Alcohol and Drugs Terms  define que ‘droga’ é um termo de uso variado. Em medicina, refere-se a qualquer substância com potencial de prevenir ou tratar uma doença, melhorando o estado físico ou mental e na farmacologia é qualquer agente químico que altera os aspectos bioquímicos e fisiológicos de tecidos e organismos. Para os órgãos públicos que definem políticas do Estado com relação às drogas psicoativas, o termo drogas refere-se mais especificamente às substâncias psicoativas ilícitas, utilizadas sem finalidades terapêuticas.

Dependência e drogadição

Para melhor ser iniciada a fenomenologia do que ocorre com os usuários de drogas psiquiátricas, é fundamental que distinções sejam feitas.

Embora os fenômenos de dependência e aqueles gerados pela retirada (abstinência) sejam aspectos importantes da ‘drogadição’ como normalmente é entendida, eles não são os mesmos.

A ‘drogadição’, chamada na psiquiatria como “transtorno de abuso de substância”, aparece no DSM 5, na seção “Transtornos relacionados a substâncias e dependência”. A ‘drogadição’ é definida como o que afeta o cérebro e o comportamento do indivíduo, e representa o incontrolável abuso da droga e uma inabilidade para parar de tomar a droga independentemente do dano que ela causa.

Com efeito, a preocupação está voltada para o álcool e drogas ilícitas quando consideradas como drogas de uso abusivo. Não é por acaso que o sistema de saúde costuma destinar serviços de assistência destinados a usuários de álcool e drogas ilícitas. São os CAPS AD.  Ou as comunidades terapêuticas.

A problemática dos milhares de usuários de drogas psiquiátricas e a sua dependência química aos medicamentos prescritos ainda é fortemente ignorada.

Quando se sabe que o número de dependentes químicos das drogas psiquiátricas é significativamente muito maior do que os dependentes de álcool e drogas ilícitas.

E ainda não contamos com dispositivos institucionais e profissionais capazes de dar suporte aos dependentes das drogas psiquiátricas. Para o senso comum, dependentes de drogas psiquiátricas não é um ‘toxicômano’. O que tem algo realmente a ver. Ainda que, de fato, os usuários das drogas prescritas se tornem dependentes químicos.

Nos últimos tempos maior atenção vem sendo dada aos eventos adversos graves e potencialmente fatais relacionados à retirada e dependência de drogas prescritas pela medicina, que formalmente não estão classificadas como substâncias de potencial abuso. Como é o caso dos efeitos com a descontinuação dos antidepressivos, das benzodiazipinas, estimulantes e antipsicóticos, drogas essas que podem desencadear sintomas perigosos e com ameaças à vida, podendo até mesmo levar ao suicídio.

A proposta dos autores da revisão bibliográfica é que as drogas que estão sendo desenvolvidas e avaliadas pela FDA, sejam classificadas segundo outros critérios de definição de dependência, que vem sendo propostos pela Sociedade Americana de Medicina da Dependência (ASAM), e que passaram a ser empregados desde 2001 pela Academia Americana de Medicina da Dor e Sociedade Americana da Dor. Os critérios são os seguintes:

  • Dependência física’ – usada de três maneiras diferentes: (i) dependência física é um estado de adaptação que se manifesta por uma síndrome de abstinência específica a uma classe de medicamento que pode ser produzida pela interrupção abrupta, rápida redução da dose, redução do nível sanguíneo do medicamento e / ou administração de um antagonista; (ii) dependência psicológica é um senso subjetivo de necessidade de uma substância psicoativa específica, seja por seus efeitos positivos ou por evitar efeitos negativos associados à sua abstinência; e (iii) uma categoria de transtorno do uso de substâncias psicoativas em edições anteriores do DSM, mas não no DSM-5, publicado em 2013.
  • Drogadição’ é caracterizada pela incapacidade de abster-se de forma consistente, pelo comprometimento no controle comportamental, pela fissura para ter acesso à substância, pela diminuição do reconhecimento de problemas significativos com os próprios comportamentos e com relacionamentos interpessoais, e por uma resposta emocional disfuncional. Como outras doenças crônicas, a drogadição geralmente envolve ciclos de recaída e remissão. Sem tratamento ou envolvimento em atividades de recuperação, a drogadição é progressiva e pode resultar em incapacidade ou morte prematura.
  • Tolerância’ – um estado de adaptação no qual a exposição a um medicamento ao longo do tempo resulta na diminuição de um ou mais dos efeitos fisiológicos do medicamento.
  • Síndrome de abstinência’ – o início de uma constelação previsível de sinais e sintomas após a interrupção abrupta ou após a rápida redução da dose de uma substância psicoativa.

‘Drogadição’ e Dependência

É fundamental ser feita a distinção entre ‘drogadição’ e dependência.

Primeiramente, como os autores afirmam, um indivíduo tanto pode ser ‘drogadito’ em uma droga de abuso, ou apenas desenvolver dependência da droga de abuso sem ser um ‘drogadito’. Assim como, para drogas não associadas ao potencial de abuso, um indivíduo ainda pode desenvolver dependência; mas, novamente, isso não seria classificado como ‘drogadição’. Na linguagem popular, socialmente falando, um usuário crônico de um antipsicótico, antidepressivo, ansiolítico, por exemplo, não é um ‘toxicômano’.

A respeito dos fenômenos produzidos com a descontinuação das drogas psiquiátricas, vale a pena ser apresentada essa longa citação, em sua íntegra, a respeito dos benzodiazipínicos:

Qualquer droga usada cronicamente gera gradualmente uma série de respostas homeostáticas que tendem a restaurar a função normal, apesar da presença do medicamento. Com o uso crônico de benzodiazepínico ocorrem alterações compensatórias nos receptores GABA. Tais alterações consistem na diminuição da sensibilidade desses receptores ao GABA, provavelmente como resultado de alterações no estado de afinidade e diminuição da densidade.

Além disso, há alterações nos sistemas secundários controlados pelo GABA, de modo que a saída dos neurotransmissores excitatórios tende a ser restaurada e / ou a sensibilidade de seus receptores aumenta. Todo o complexo de alterações primárias e secundárias acaba resultando em tolerância à benzodiazepina.

O desenvolvimento da tolerância farmacodinâmica define o cenário para a síndrome de abstinência. O cessar da droga expõe todas as adaptações acumuladas para neutralizar a sua presença, liberando um rebote da atividade sem oposição a envolver muitos neurotransmissores e seus receptores e muitos sistemas cerebrais. Clinicamente, esse estado se manifesta como a síndrome de abstinência, consistindo em efeitos que são amplamente opostos aos originalmente induzidos pelo medicamento.

A avaliação da dependência e dos sintomas de abstinência também é necessária como um aviso potencial para médicos e pacientes e deve ser fornecida no rótulo do medicamento para informar se o medicamento pode ser retirado abruptamente no final do tratamento ou deve ser diminuído lentamente para evitar efeitos potencialmente adversos e ameaçadores da vida após uma retirada abrupta. Também é importante informar os indivíduos que abusam do medicamento sobre as consequências para a saúde do desenvolvimento da dependência e dos sintomas de abstiência do medicamento.”

Síndromes de abstinência aguda – características gerais

Os autores especificam os fenômenos relacionados com a abstinência que estão baseados em uma descrição dos aspectos clínicos da abstinência, que surgem após a descontinuação abrupta das drogas psiquiátricas em geral:

  • Novos sintomas (sintomas agudos de abstinência): Sinais e sintomas recentemente emergentes que ocorrem quase imediatamente após a interrupção abrupta do medicamento ou, às vezes, mesmo após a diminuição da dose. Esses sintomas estão relacionados à interrupção das alterações neurorregulatórias (neuroadaptação) estabelecidas durante a administração do medicamento.
  • Rebote: recorrência dos sintomas do transtorno tratado, mais graves do que antes do tratamento.
  • Síndrome de abstinência prolongada: geralmente aparece muito após o período de sintomas agudos de abstinência, podendo durar semanas e meses e, às vezes, se apresentar como um transtorno novo.
  • Recaída. Retorno de sinais e sintomas da doença após a remissão, devido a causas naturais ou ao término do tratamento; ocorre como um fenômeno na história natural do transtorno. Recaída não é um aspecto da dependência; no entanto, é mencionado aqui porque ocorre durante o período de abstinência aguda e precisa ser diferenciado da abstinência propriamente dita.
  • Sintomas da toxicidade retardada da droga: pode ser superposto a sintomas de abstinência aguda e, às vezes, é difícil diferenciá-los.

Destacando o que ocorre com três das classes de drogas psiquiátricas mais prescritas

A revisão bibliográfica aborda a literatura a respeito e diferentes drogas psicoativas. Entre elas destaco as mais frequentemente prescritas pelos médicos, pelo menos entre os brasileiros. Vejamos o que ocorre.

(1) Síndrome de abstinência de benzodiazepínicos (BZ)

Os sintomas de abstinência de BZ podem variar em intensidade. Retirada leve pode incluir ansiedade, apreensão, medo, insônia, irritabilidade, agitação, inquietação, tontura, dor de cabeça, anorexia, perda de peso, dificuldade de concentração, rigidez e dor muscular, hiperosmia, gosto metálico, alterações perceptivas, sudorese e intolerância à luz e som. Os sintomas mais graves incluem náusea, vômito, vertigem, cãibras, fraqueza, tremor, taquicardia, hipotensão postural, hipertermia, ataques de pânico, depressão, reações psicóticas, despersonalização, desrealização, delírio, delírios e alucinações). Os eventos adversos mais graves que podem ocorrer são psicose, delírio, suicídio, convulsões e catatonia em idosos.

O momento dos sintomas de abstinência depende de vários fatores; o principal é meia-vida  do BZ. BZs de ação prolongada incluem diazepam, clordiazepoxide, flurazepam e clorazepate; BZs de ação mais curta incluem oxazepam, lorazepam e triazolam. Para os BZs de ação prolongada, existe um período de latência de 3 a 7 dias para o início dos sintomas de abstinência após a descontinuação do medicamento; enquanto que os sintomas de abstinência de BZs de ação curta podem ocorrer em 24 horas.

O uso de BZ durante as fases posteriores da gravidez pode resultar em sintomas de abstinência no neonato, como apneia, bradicardia, hipertonia, irritabilidade, hipotermia, hiperatividade, taquipneia, inquietação, tremores, hiperreflexia, choro inconsolável, cianose, diarréia, vômito e dificuldades de alimentação.

(2) Síndrome de abstinência de ISRSs antidepressivos e ISNRs

Alguns ISRS mais usados ​​incluem: fluoxetina, fluvoxamina, paroxetina, citalopram e sertralina. Alguns SNRIs usados ​​com mais frequência incluem: venlafaxina, desvenlafaxina e duloxetina.

A síndrome de abstinência de ISRSs e SNRIs é caracterizada pelos seguintes sintomas, gerais: dores de cabeça, sintomas de gripe, taquicardia; gastrointestinais: náusea, vômito, diarréia, anorexia; relacionados ao sono: sonhos irrequietos, pesadelos, insônia ou hipersonia; neuropsiquiátrico: ansiedade, depressão, suicídio, hipomania, agitação, disforia, agressão, alucinações, desrealização e despersonalização, diminuição da concentração, tontura, ataxia, sensações de choque elétrico (‘zaps cerebrais’), confusão e mioclonia

Os sintomas de abstinência de SSRIs e SNRIs têm seu pico de início entre 36 e 96 horas ou mais, dependendo da meia-vida do medicamento, e podem durar até 6 semanas, também dependendo da meia-vida do medicamento. Os ISRSs individuais têm perfis um pouco diferentes de eventos adversos, e parece que a gravidade pode estar relacionada à meia-vida. Observou-se também que a síndrome de abstinência sendo mais comum em pacientes jovens do que em idosos. Freqüentemente, a síndrome de abstinência aguda pode ser seguida por rebote da doença (consulte a seção Rebote) e síndrome de abstinência prolongada (consulte a seção Síndrome de abstinência prolongada).
A notar, há uma tendência na literatura científica de chamar a síndrome de abstinência de SSRIs e SNRIs de ‘síndrome de descontinuação’, que em nossa opinião é cientificamente incorreta e enganosa, pois pode sugerir uma ausência da síndrome de abstinência.  O termo “síndrome de descontinuação” minimiza as vulnerabilidades induzidas pelo ISRS e deve ser substituído por “síndrome de abstinência” .

Além disso, a síndrome de abstinência neonatal associada aos ISRSs foi identificada. Inclui dificuldade respiratória, cianose, convulsões, dificuldade de alimentação, vômitos, hipoglicemia, hipotonia ou hipertonia, hiperreflexia, tremor, nervosismo, irritabilidade, hipertensão pulmonar; e com o uso de paroxetina, enterocolite necrosante.

(3) Síndrome de abstinência de antidepressivos tricíclicos

Alguns antidepressivos tricíclicos mais frequentemente usados ​​incluem: imipramina, clomipramina, amitriptilina, amoxapina, desipramina, doxepina e nortriptilina. Os sintomas de abstinência de antidepressivos tricíclicos podem ser agrupados em quatro síndromes discretas: (i) desconforto gastrointestinal e somático geral com ansiedade e agitação ocasionais, também náusea, vômito, diarréia, dor abdominal e anorexia; (ii) distúrbios do sono, como insônia inicial e média, sonhos vívidos e pesadelos; (iii) parkinsonismo incluindo bradicinesia, rigidez da roda dentada, tremor ou acatisia; e (iv) mania paradoxal. Às vezes, a síndrome de abstinência se apresenta como uma síndrome do tipo gripe; que além de gasto

(4) Síndrome de abstinência de drogas antipsicóticas

Os medicamentos antipsicóticos pertencem a vários grupos farmacológicos: fenotiazinas, tioxantenos, butirofenonas e antipsicóticos atípicos. Para esses medicamentos, os sintomas comuns de abstinência são náusea, vômito, diarréia, anorexia, síndrome do tipo influenza, rinorreia, diaforese, mialgia, parestesia, ansiedade, agitação, inquietação, insônia, vertigem e tremor. Os sintomas podem aparecer 36 a 96 horas ou mais após a descontinuação, redução ou troca da dose, dependendo da duração da ação da droga e duram até 6 semanas. É importante notar que, durante o período de abstinência, também não é incomum a repercussão da psicose, que resulta em reemergência ou agravamento da psicose, ou psicose de supersensibilidade e ocorrência de discinesia tardia emergente da abstinência .

Uma reação rara, mas potencialmente fatal, com taxa de mortalidade de 10% à retirada antipsicótica é uma síndrome neuroléptica maligna (SMN), caracterizada por hipertermia, rigidez muscular, rabdomiólise, instabilidade autonômica, alterações do estado mental , diaforese, incontinência e creatina fosfoquinase elevada.

Os antipsicóticos tomados durante o terceiro trimestre da gravidez podem causar sintomas de abstinência neonatal, que podem incluir agitação, tremor, sonolência, hipertonia, hipotonia, dificuldade respiratória e distúrbio alimentar.

Os efeitos rebote

Outro aspecto da retirada, o chamado fenômeno rebote, ocorre em um período semelhante ao da retirada aguda. O fenômeno rebote é um rápido retorno dos sintomas originais do paciente em uma intensidade maior do que antes do tratamento. A repercussão pode causar em um pequeno subconjunto de indivíduos suscetíveis eventos adversos graves e fatais após a interrupção abrupta do medicamento, como psicose grave após neurolépticos, piora grave da esclerose múltipla após medicamentos imunomoduladores,  ou suicídio após antidepressivos. No entanto, diferentemente dos sintomas de recuperação prolongados das síndromes de abstinência, são transitórios e reversíveis e retornam após dias ou semanas à linha de base.

O levantamento da literatura médica com relação ao ‘fenômeno rebote’ após a retirada dos medicamentos mostra que ele pode aparecer após todas as classes de medicamentos, independentemente de sua formulação química ou ação farmacológica.

O surgimento de rebote é variável para diferentes drogas e pode ser observado em apenas 36 a 96 h para ISRSs e antipsicóticos orais, e em 1 a 5 dias para alguns BZ, como em pacientes com ansiedade experimentando rebote após descontinuação abrupta de bromazepam e diazepam e nos casos de pacientes com insônia após retirada abrupta de triazolam.

Desafios

Conforme é dito pelos autores na Conclusão:

“Os efeitos da descontinuação de medicamentos podem ocorrer e geralmente são negligenciados na farmacologia e na medicina até que eventos clínicos adversos os forçam a serem notados. É vital que a dependência, retirada e recuperação sejam reconhecidas e compreendidas pelos profissionais de saúde, porque esses efeitos podem constituir grandes problemas de segurança. Os dados sobre sintomas agudos de abstinência e rebote obtidos do estudo e avaliação da dependência fornecerão aos médicos e pacientes informações sobre a diminuição gradual da droga e constituirão um alerta sobre possíveis efeitos relacionados à interrupção abrupta da droga.”

Tomando como referência a realidade brasileira, penso eu que além das ameaças de um retorno à assistência ‘hospitalocêntrica’ – conforme o que vem sendo proposto, desde o Governo Temer e agora Governo Bolsonaro -,  o grande desafio é como dar suporte a que os ‘usuários’ deixem de ser pacientes crônicos desse ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria. Hoje em dia, o número de pessoas cronificadas pela Psiquiatria é muitas vezes maior do número de pessoas cronificadas em manicômios no passado.

Será que não teremos que ter Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) destinados àqueles que demandam deixar de ser dependentes químicos das drogas psiquiátricas que lhes foram prescritas?  Os CAPS AD não estão preparados para esse tipo de demanda!

O que acabo de apresentar é apenas trechos destacados dessa revisão bibliográfica.

Espero haver despertado a atenção de cada um de vocês, caro leitor.

E reitero, vale a pena o artigo ser lido por todos. Pelos profissionais de saúde, o que é o obviamente o esperado. Mas muito particularmente pelos usuários do tratamento psicofarmacológico, familiares e suas redes sociais.

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O artigo em sua íntegra →

A Rede de Apoio Como um Fator Protetor para a Saúde das Mulheres

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A Revista Latino – Am. de Enfermagem publicou no ano passado um artigo sobre o papel do apoio social no adoecimento psíquico de mulheres. As autoras analisaram a relação entre os sintomas emocionais e físicos associados a quadros psiquiátricos em mulheres e a percepção que estas apresentam sobre apoio social.

Apoio social é entendido no artigo como o auxílio disponível nas necessidades físicas, psicológicas, materiais, bem como o encorajamento oferecido pelos indivíduos de sua rede de contato. A rede de apoio consiste em pessoas e instituições com as quais o sujeito conta e confia, e podem incluir familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, entre outros.

Estudos têm mostrado a influência positiva da rede de apoio na saúde das pessoas, demonstrando melhoras nas taxas de diminuição no uso de drogas, ajudando a amenizar as consequências negativa do estresse, etc.

Em relação ao gênero, pesquisas apontam que mulheres são mais dispostas a procurar, receber e se beneficiar do apoio social. Ao mesmo tempo demonstram que pelas responsabilidades de cuidado culturalmente atribuída a elas, necessitam acionar mais sua rede de apoio. Considera-se que a percepção de apoio social deve ser considerado como um indicador de saúde mental entre as mulheres. Especialmente, porque estudos apontam que melhores índices de apoio social são inversamente proporcionais a ocorrência de transtornos mentais.

A presente pesquisa é um estudo quantitativo transversal com mulheres atendidas em uma Unidade de Saúde da Família de Ribeirão Preto -SP. A região atendida pela unidade se caracteriza pela violência, pobreza, falta de saneamento e baixa escolaridade. A amostra estimada foi de 141 mulheres na faixa etária entre 18 e 65 anos. Os instrumentos utilizados na entrevista foram um questionário sociodemográfico, o Questionário de Suporte Social (SSQ) e o Self Report Questionaire (SRQ 20).

A maior parte da amostra era casada, branca, católica, tinha um ou dois filhos, não exercia atividade remunerada, com renda familiar de dois a cinco salários mínimos compartilhada com aproximadamente três pessoas. Os casos suspeitos de transtornos mentais alcançou 43, 4% da amostra, havendo associação significativa entre ser mãe e transtornos mentais.

A maioria delas estava satisfeita ou muito satisfeita com sua rede de apoio, e apresentavam de seis a nove apoiadores. Os apoiadores mais mencionados foram
os filhos, o cônjuge e os pais. Do total, apenas sete participantes mencionaram os profissionais da saúde como apoiadores. Também notou-se associação significativa entre não citar amigos como apoiadores e transtornos mentais. Já as mulheres pouco satisfeitas com sua rede de apoio e com filhos tiveram cerca de sete vezes mais chance de apresentar sintomas característicos de algum trastorno mental em relação aquelas satisfeitas com sua rede e sem filhos.

Os resultados do estudo apontam para questões relacionadas à desigualdade de gênero e sua interação com outros atributos, como raça, renda, escolaridade, entre outros. Nesse sentido, as autoras julgam importante considerar estes atributos ao planejar ações de saúde da mulher, já que se caracteriza como um importante determinante de saúde e saúde mental.

“O fato dos principais sintomas mencionados pelas
participantes ser o cansaço, a tristeza e o nervosismo,
corrobora estudos prévios. Tal resultado, analisado à
luz das características sociodemográficas, nos remete a
uma situação de vulnerabilidade que combina aspectos
psíquicos e sociais. Entende-se que o contexto de vida
dessas mulheres contribui de modo importante para o
aumento de tais sintomas, potencializando os riscos de
apresentar transtornos mentais.”

Ter amigos na rede de apoio é um fator protetor para as mulheres, pois representa certa diversificação nas fontes de apoio social. Ter filhos apareceu nos resultados como um fator de risco, sugerindo que a responsabilidade com os filhos, atribuída as mulheres, pode contribuir para altos índices de estresse. Ao mesmo tempo, os filhos apareceram como um dos grupos de apoiadores. Outro elemento destacado é o fato dos profissionais de saúde serem os menos citados como apoiadores, quando participam de uma parte significativa da vida dessas mulheres. Entre outros fatores, as autoras se perguntaram sobre o acolhimento oferecido pelos serviços de saúde.

Dessa forma, a rede de apoio demonstra ser relevante para as questões de saúde mental, especialmente de mulheres, assim como elementos ligados a gênero, raça, renda e outros. Levando essas questões em consideração, os profissionais de saúde podem promover uma escuta qualificada para além das questões físicas, possibilitando a elaboração de ações com maior grau de resolutividade, como a criação de apoio entre pares, rodas de conversa, ações para melhorar o manejo de estresse, entre outros. A partir dessa mudança, os profissionais e o serviço de saúde podem ser percebidos por essas mulheres como parte da sua rede de apoio, ajudando a diminuir a vulnerabilidade a que estão expostas.

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Gaino LV, Almeida LY, Oliveira JL, Nievas AF, Saint-Arnault D, Souza J. The role of social support in the psychological illness of women. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2019;27:e3157. (Link)

Maior pesquisa de experiências com antipsicóticos revela resultados negativos

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Em uma nova pesquisa internacional, a maior feita até o momento, os pesquisadores descobriram que mais da metade dos usuários de antipsicóticos relatam apenas experiências negativas com os medicamentos. O estudo on-line foi conduzido por John Read e Ann Sacia, da Universidade de East London, e publicado no periódico líder na temática, Schizophrenia Bulletin. Seiscentos e cinquenta pessoas de 29 países diferentes responderam a perguntas sobre sua experiência em primeira pessoa com uso de antipsicóticos. O pesquisador John Read comentou:

“Essas 650 pessoas confirmam os achados de pesquisas de dimensão menor feitas com drogas, nos quais os antipsicóticos são melhores que o placebo para apenas cerca de 20% das pessoas e causam uma gama assustadora de efeitos adversos graves. Por décadas, as empresas farmacêuticas exageraram os benefícios e subestimaram os efeitos colaterais desses poderosos agentes tranquilizantes.”

Creative commons

Tradicionalmente, a psiquiatria concentra-se apenas em relatos dos profissionais de saúde mental para declarar se um tratamento é bem-sucedido ou ineficaz. Isto é especialmente verdadeiro com referência à base de evidências com medicamentos antipsicóticos, que têm sido marcada por controvérsias há décadas. No entanto, os antipsicóticos continuam sendo o tratamento mais proeminente para a esquizofrenia e outros transtornos psicóticos, e são usados regularmente para outras condições como “transtorno de personalidade borderline“, “depressão” e são rotineiramente administrados a crianças em orfanato.

Embora os estudos tenham atribuído declínio cognitivo e recuperação prejudicada com o uso de antipsicóticos, menos atenção tem sido dada às experiências em primeira pessoa dos pacientes com esses medicamentos. Em um caso em que um psiquiatra experimentou as drogas e documentou sua experiência, ele escreveu a respeito:

“Eu não posso acreditar que eu tenho pacientes que andam em torno de 800mg com esse material. Não há como, em sã consciência, poder administrar essa oferta (sic), a menos que um paciente consinta ficar com 20 horas de sono por dia. Tenho certeza de que existe um nicho de mercado para este medicamento. Tem que haver uma população de pacientes que não quer sentir emoções, trabalhar, fazer sexo, cuidar de suas casas, ler, dirigir, fazer coisas e que deseja diminuir seu QI em 100 pontos.”

Outros efeitos adversos dos antipsicóticos incluem problemas de saúde cardíaca, atrofia cerebral e aumento da mortalidade. Apenas recentemente os pesquisadores começaram a explorar as experiências dos pacientes com medicamentos antipsicóticos. Existem evidências que sugerem que alguns usuários acreditam que os antipsicóticos prejudicam a recuperação. No entanto, esses relatos em primeira pessoa não desempenham um papel significativo na forma como esses medicamentos são avaliados.

As abordagens psicossociais, como a abordagem do diálogo aberto, o movimento dos ouvidores de vozes e outras formas autóctones de ajuda, sugerem que os sintomas psicóticos podem ser tratados com o mínimo uso de drogas.

Esta pesquisa atual apontada como a maior até hoje feita está chegando justamente em um momento em que os antipsicóticos estão sob crescente escrutínio. Seiscentos e cinquenta usuários da pesquisa em 29 países responderam a perguntas da Pesquisa sobre a Experiência com Antidepressivos e Antipsicóticos. Para este estudo, Read e Sacia usaram as respostas dadas a duas perguntas abertas: “No geral na minha vida, os medicamentos antipsicóticos têm sido ____” e “Há mais alguma coisa que você gostaria de dizer ou enfatizar sobre sua experiência com drogas antipsicóticas?

Foi realizada uma análise temática, e três componentes do estudo foram categorizadas: experiência positiva, experiência negativa e experiência mista. Read e Sacia descobriram que apenas 14,3% relataram que sua experiência com antipsicóticos havia sido puramente positiva, 27,9% dos participantes tiveram experiências mistas e a maioria dos participantes (57,7%) relatou apenas resultados negativos.

Cerca de 22% dos participantes relataram que os efeitos dos medicamentos foram mais positivos do que negativos na escala de Classificação Antipsicótica Global, com quase 6% chamando sua experiência de “extremamente positiva”. A maioria dos participantes teve dificuldade em articular o que havia de positivo em sua experiência, mas cerca de 14 pessoas notaram uma redução nos sintomas e 14 outras notaram que isso as ajudou a dormir.

Dos que declararam ter efeitos adversos, 65% relataram sintomas de abstinência e 58% relataram pensamentos de suicídio. No total, 316 participantes reclamaram dos efeitos adversos dos medicamentos. Estes incluíram ganho de peso, acatisia, entorpecimento emocional, dificuldades cognitivas e problemas de relacionamento. Um paciente declarou:

“Minha primeira e única tentativa de suicídio foi por causa da inquietação da acatisia. Ninguém poderia ter uma ideia de quanta dor eu estava sentindo.”

Outro observou: “Eles tiraram a única coisa em que eu já tinha sido capaz de confiar: a minha mente, e a tornaram inútil”.

Resultados semelhantes foram relatados em uma revisão recente, que constatou que, enquanto alguns pacientes relataram uma redução nos sintomas dos antipsicóticos, outros afirmaram que causaram sedação, embotamento emocional, perda de autonomia e um senso de resignação. Os participantes da pesquisa atual também se queixaram dos efeitos adversos persistentes dos antipsicóticos, muito tempo depois de interromperem o uso.

É importante ressaltar que esses temas negativos também incluíram interações negativas com os prescritores da medicação. Os participantes relataram falta de informações sobre efeitos colaterais e efeitos de abstinência, falta de apoio dos prescritores e falta de conhecimento sobre alternativas; alguns observaram que foram diagnosticados incorretamente e os antipsicóticos pioraram as coisas.

Um participante disse: “Não fui avisado sobre os efeitos permanentes / semipermanentes dos antipsicóticos que recebi”. Outro observou: “A maioria dos médicos não tem ideia. Eles dão as costas aos pacientes que sofrem, negando a existência dos problemas com retirada.”

Esse é um achado importante, pois pesquisas anteriores mostraram que relacionamentos positivos com o profissional de saúde mental são considerados por muitos pacientes que sofrem de psicose no primeiro episódio como essenciais para a recuperação.

Read e Sacia escrevem que a principal conclusão é que os usuários dos serviços desejam que os médicos desenvolvam relações de respeito e colaboração com eles. Eles escrevem que isso requer:

“… O fornecimento de informações completas sobre todos os possíveis efeitos adversos, incluindo sedação, suicídio e efeitos de abstinência, e sobre vias alternativas de tratamento; e responder respeitosa e terapeuticamente quando os pacientes expressam o tipo de preocupação levantada neste estudo e nos 35 estudos qualitativos anteriores “.

Os pesquisadores observam que o estudo tem certas limitações, como o uso de ‘amostragens por conveniência’*. Além disso, sua natureza online pode restringir o uso aos economicamente favorecidos, uma vez que eles têm fácil acesso à Internet.

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* A amostragem por conveniência é um tipo de amostragem não probabilística que envolve a coleta da amostra daquela parte da população que está próxima.  Cf. definição wikepedia.

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Read, J. & Sacia, A. (2020). Using open questions to understand 650 people’s experiences with antipsychotic drugs. Schizophrenia Bulletin. First published online: 12 February 2020. https://doi.org/10.1093/schbul/sbaa002 (Link)

 

Peter Kinderman – Por que precisamos de uma revolução nos cuidados de saúde mental?

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Nesta semana, na Rádio MIA, conversamos com o professor Peter Kinderman. Peter é professor de psicologia clínica da Universidade de Liverpool, consultor honorário de psicologia clínica do Mersey Care NHS Trust e consultor clínico de saúde pública na Inglaterra, Reino Unido. Foi presidente da Sociedade Britânica de Psicologia (BPS) em 2016-2017 e duas vezes presidente da Divisão de Psicologia Clínica da BPS. Sua atividade de pesquisa e trabalho clínico concentram-se em problemas sérios e duradouros de saúde mental, bem como em como a ciência psicológica pode auxiliar as políticas públicas em saúde e assistência social. Seu livro anterior A Prescription for Psychiatry: Why We Need a Whole New Approach to Mental Health and Wellbeing, foi lançado em 2013.

Nesta entrevista, discutimos o novo livro de Peter, A Manifesto for Mental Health, Why We Need a Revolution in Mental Health Care, que apresenta uma perspectiva radicalmente nova e distinta que examina criticamente o ‘modelo de doença’ dominante dos cuidados de saúde mental.

O livro destaca evidências persuasivas de que nossa saúde mental e bem-estar dependem amplamente da sociedade em que vivemos, das coisas que acontecem conosco e de como aprendemos a entender e responder a esses eventos. Peter propõe uma rejeição de rótulos de diagnóstico inválidos, ajuda prática ao invés de  medicamentos e um reconhecimento de que a angústia é geralmente uma resposta humana compreensível aos desafios da vida.

Conteúdos da entrevista:

  • O que levou Peter a se interessar por psicologia, tendo inicialmente se interessado por física e filosofia.
  • Como seu trabalho acadêmico e clínico foram influenciados ou ao longo de sua carreira.
  • Por que é importante desafiar as principais mensagens de saúde mental, não apenas como um exercício acadêmico, mas também para o bem da sociedade.
  • Que está bem claro que atualmente temos um sistema muito ruim para responder ao sofrimento emocional.
  • Como não estamos oferecendo ajuda para problemas do mundo real.
  • É essencial que ofereçamos às pessoas uma estrutura alternativa de entendimento para que elas possam decidir por si mesmas qual a melhor forma de enquadrar e, portanto, responder à dificuldade.
  • Que Peter observou mudanças na linguagem que estão ajudando a apoiar a percepção pública de que ‘doença mental’ é uma ideia ou teoria, e não um fato inegável.
  • Como uma resposta à saúde mental com base psicossocial pode funcionar.
  • Como nosso sistema hierárquico de saúde confere aos médicos um poder enorme.
  • Que os países nórdicos evoluíram para uma abordagem mais socialmente integrada e baseada na comunidade, que integra melhor a saúde e a assistência social.
  • Como aqueles que criticam o modelo da doença são, às vezes, vistos como “negadores de experiências reais”, mas que isso é uma descaracterização porque se trata mais de entender essas experiências de uma maneira diferente ou de usar uma estrutura diferente.

O livro → A Prescription for Psychiatry: Why We Need a Whole New Approach to Mental Health and Wellbeing

Crise na Rede de Assistência em Saúde Mental no Rio de Janeiro

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Pamela_Perez

Publicado na página Frente Estamira de CAPS:

“A Frente Estamira de CAPS se solidariza e apoia o movimento dos trabalhadores da saúde no município do Rio de Janeiro e vem, por meio desta nota, informar que participará da reunião que irá debater a grave situação da saúde na cidade. A reunião será no dia 18/02/2020 (próxima terça-feira), às 16h, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, campus da Praia Vermelha (sob ameaça de alienação imobiliária), no auditório Leme Lopes do Instituto de Psiquiatria (IPUB).”

Confira a Nota na página da Frente Estamira  → clicando aqui.

Pamela_Perez

Manual de Direitos em Saúde Mental

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O artigo Locos por nuestros derechos: Comunidad, salud mental y ciudadanía en el Chile contemporáneo, publicado na revista Quaderns de Psicologia, apresenta uma análise crítica das políticas públicas no Chile, ao mesmo tempo, descreve um olhar global sobre os direitos na saúde mental desde uma perspectiva dos usuários e ex usuários.

O autor, Juan Carlos C. Madrid, afirma que no contexto chileno o processo de elaboração do Plano Nacional de Saúde Mental 2017-2025 promoveu espaços consultivos. No entanto, a convocatória para a discussão do documento foi direcionado para alguns grupos específicos, atores institucionais como ONGs, sociedades científicas vinculadas a indústria farmacêutica e organizações familiares que possuem um estreito vínculo com a psiquiatria. Com isso, houve o consenso amplo em torno da crítica ao modelo biomédico e farmacológico.

Em contrapartida, várias organizações internacionais consideram a importância de desenvolver ações orientadas a reconhecer e valorizar o ponto de vista dos usuários, ex usuários e sobreviventes da psiquiatria, como caminho para elaborar um modelo de saúde mental com perspectiva de direitos. Nesse sentido, vale destacar o trabalho da Rede Mundial de Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria e a recente conformação da RedEsfera Latinoamericana de Diversidade Psicossocial.

Um estudo chileno de nível nacional revela que os usuários de saúde mental tendem a avaliar o serviço de forma negativa, além de relatar os âmbitos que apresentam o menor número de desempenho em relação ao respeito dos direitos dos usuários. Entre eles estão: a falta de controle dos usuários sobre os planos de recuperação, a escassa educação e promoção da saúde física, proteção insuficiente para evitar a aplicação de tratamentos sem consentimento, assim como a inexistência de ações para prevenir tratamentos que atentem contra a dignidade da pessoa. Também se destacou o baixo acesso dos usuários a empregos e educação, assim como pouco apoio para participar da vida politica e ao exercício da liberdade de associação. Como consequência, o direito de viver de forma independente e ser incluído na comunidade obtiveram níveis baixos de desempenho no estudo.

O artigo é produto da etapa de difusão do projeto FONIS SA12I2073 “Avaliação da qualidade de atenção e respeito dos direitos dos pacientes em serviços de saúde mental, integrando perspectivas de usuários e equipes de saúde.” O autor foi contratado para desenvolver um processo participativo de apresentação e análise da investigação com pessoas que haviam recebido atenção de saúde mental, o objetivo era elaborar o Manual de Direitos em Saúde Mental. Foram convocadas sete pessoas (quatro homens e três mulheres) da região metropolitana de Santiago (capital chilena), para participar de cinco sessões de discussão grupal em torno da temática de saúde mental e direitos humanos. O documento tomou como fundamento a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (2006).

A partir da discussão foram identificados três esferas relevantes para o exercício da saúde mental desde o ponto de vista dos participantes: liberdade e autonomia pessoal; bem-estar e qualidade de vida; participação social e ação coletiva. O artigo desenvolve amplamente cada uma dessas esferas.

“Por un lado,  se afirma el derecho a no recibir etiquetas diagnósticas, a rechazar el tratamiento farmacológico y a cuestionar el abordaje institucional en salud mental. Así lo señala un participante: ‘lo que hay que hacer es despsiquiatrizar, desmedicalizar y desinstitucionalizar a las personas, y no otorgarles una nueva etiqueta o tratamiento’.”

Manual de Direitos em Saúde Mental é uma experiência pioneira no Chile, sendo uma ferramenta inovadora para construir pontes entre os atores sociais comprometidos com a saúde mental e com os direitos humanos.

O Manual começa reconstruindo uma perspectiva crítica da sociedade atual e seu modelo de atenção em saúde mental, além de propor a transformação dessa realidade a partir de um manifesto intitulado “Loucos por nossos direitos”. O manual conta ainda com perguntas frequentes, indicações práticas e atividades grupais. Em anexo, foram acrescentados um formato de consentimento livre e informado para o tratamento psicofarmacológico, um formato de declaração de vontade antecipada em situações de crise e uma recopilação dos princípios do modelo de recuperação em saúde mental.

O manual é uma importante iniciativa cujas principais contribuições incluem sua produção coletiva, o protagonismo dos usuários e ex usuários da saúde mental e a aposta na autonomia e defesa de seus direitos. Nossos companheiros chilenos realizaram um projeto inovador a nível de América Latina, como a formulação de um consentimento livre e informado para o tratamento psicofarmacológico, ferramenta pouco ou nada discutida no Brasil. Que a seu exemplo, outros países latinos fomentem a discussão sobre esse importante assunto, com a participação dos seus principais interessados, os usuários e ex usuários da saúde mental.

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CEA MADRID, Juan Carlos. “Locos por nuestros derechos”: Comunidad, salud mental y ciudadanía en el Chile contemporáneo. Quaderns de Psicologia, [S.l.], v. 21, n. 2, p. e1502, ago. 2019. (Link)

Manual de Direitos em Saúde Mental (Link)

A Big Pharma atende aos interesses do Sistema de Diagnóstico, do Sistema Hospitalar e do Sistema Judiciário

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Se você acha que a verdade pode nos libertar e se preocupa com os danos causados às almas sofridas que buscam ajuda do sistema de saúde mental tradicional, apenas para descobrir com muita frequência e muito tarde que esse sistema aumenta exponencialmente os problemas, o extraordinário sucesso junto ao público do livro de Jim Gottstein, The Zyprexa Papers, é uma leitura essencial. Deve ser leitura obrigatória para todos os amigos ou familiares bem-intencionados de alguém em sofrimento emocional, bem como para os legisladores que realmente desejam eliminar a corrupção e os danos.

O foco do livro está na droga neuroléptica Zyprexa e em dois casos relacionados a ela – um no qual Gottstein representou um cliente enquanto advogado e outro no qual ele se tornou acusado – mas, o mais importante, exemplifica problemas que atravessam os sistemas, não apenas das grandes empresas farmacêuticas, mas também do que poderia ser chamado de Sistema de Diagnóstico, Sistema de Hospitais Psiquiátricos e Sistema de Tribunais relacionados à saúde mental. É um livro sobre como o tsunami alimentado pelo lucro e os vastos Sistemas envolvidos na política de saúde mental, incluindo o chamado Sistema de Justiça, inundam o que deveria ser primordial: o alívio da dor emocional.

O livro de Gottstein é algo como Os Documentos do Pentágono (The Pentagon Papers) a respeito do sistema de saúde mental tradicional. Porque o livro expõe um número alucinante e uma variedade de ações feitas a sangue frio, calculadas, por parte do laboratório farmacêutico Eli Lilly na tentativa de esconder o que já sabiam ser os efeitos devastadores do extremamente lucrativo Zyprexa, desde as suas mentiras omitindo e autorizando dados relevantes até ao que só pode ser chamado de perseguição ao próprio Gottstein – por tentar soar o alarme. Gottstein é um advogado corajoso e brilhante e ativista incansável que vem tentando, através de litígios estratégicos, impedir que as pessoas sejam prejudicadas por drogas psiquiátricas e eletrochoques por meio do Law Project for Psychiatric Rights (PsychRights), uma organização sem fins lucrativos, que também nos leva a saber do dia após dia das suas tentativas para impedir alguém, em particular seu cliente Bill Bigley (a quem o livro é dedicado), a ser involuntariamente internado em uma unidade psiquiátrica e ser lá drogado à força. Ao fazer isso, ele expõe o número impressionante de maneiras pelas quais o sistema judicial lida com esses casos, funcionando com  frequência como uma espécie de Tribunal Canguru, onde as probabilidades são tão altas contra as pessoas rotuladas como doente mental, na medida em que é quase inevitável que elas sejam privadas de seus direitos. Os obstáculos que o cliente e o advogado precisam superar são tão numerosos e variados que essa parte dos Documentos Zyprexa será muito revelador para aqueles que ainda não passaram por isso.

Onde entra o Sistema de Diagnóstico? Sem as centenas de categorias psiquiátricas que compõem o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), nada disso poderia acontecer, porque dar a uma pessoa pelo menos uma única etiqueta do DSM – mesmo que pareça relativamente inócua – é o que permite a terapeutas, empresas farmacêuticas, e juízes (para não mencionar outros atores sociais) fazer uma ampla gama de recomendações e até impor um conjunto de ação que eles podem chamar de “tratamento”. E quando os “tratamentos” – incluindo drogas – causam danos ou deixam de ajudar, os relatos da pessoa rotulada são facilmente ignorados, minimizados ou usados ​​como mais uma “prova” de que ela ou ele são “doentes mentais”. Igualmente assustador é chamar drogas psiquiátricas, eletrochoques, internação involuntária e outras violações à dignidade humana de “tratamentos”, permitindo que os que os sugerem, impõem ou os tornam obrigatórios fiquem isentos de qualquer culpabilidade. Em um processo no qual eu fui testemunha enquanto expert: três terapeutas que quase destruíram a vida de alguém não tiveram qualquer penalidade, por alegarem que estavam apenas seguindo as normas de atendimento vigentes no sistema de saúde mental.

Os Documentos Zyprexa é um livro difícil de se largar, e a sua leitura é muito valiosa, porque precisamos saber o que acontece em grande parte em segredo e, na medida em que o lemos, vemos claramente os muitos pontos em que mudanças urgentemente devem ser feitas … e como cada um de nós pode ajudar a promovê-las.

Gottstein ele próprio teve a sua experiência pessoal no sistema de saúde mental. Em 1982, aos 29 anos, ele ficou terrivelmente desorientado por perder o sono e, como resultado, foi preso no Instituto Psiquiátrico do Alasca (API) – a mesma entidade que havia repetidamente hospitalizado e drogado à força Bill Bigley. No API, Gottstein relata:

Foi-me dito que pelo resto da minha vida eu teria que tomar drogas parecidas com a Torazina. Quando eu lhes disse que era formado pela Harvard Law School (o que era verdadeiro), fui considerado como em delírio. Quem acreditava que eu era advogado dizia que eu nunca mais poderia praticar o Direito. No entanto, minha mãe, que era diretora executiva da Associação de Saúde Mental do Alasca, me levou a um ótimo psiquiatra, Robert Alberts, que disse que qualquer pessoa que não durma o suficiente se tornará psicótica, e que eu somente precisava aprender como evitar problemas. … tive sorte de não ter sido transformado em paciente mental permanente pelo sistema de doenças mentais. Essas experiências iniciaram minha advocacia junto às pessoas diagnosticadas com doenças mentais graves.

Gottstein descreve ter sido inspirado pelo livro clássico de investigação de Robert Whitaker, o Mad in America, que ele descreve como “uma leitura fantástica” e “um roteiro de litígio que desafia o tratamento forçado com droga psiquiátrica tomando como base o fato de que não é do melhor interesse do paciente”. Ele explica que medicamentos como o Zyprexa “foram comercializados como ‘antipsicóticos’ “, quando na verdade o que eles fazem é “suprimir a atividade cerebral das pessoas a tal ponto que não podem mais causar problemas – pelo menos temporariamente”. Por esse motivo, ele usa o termo “neuroléptico”, que significa “agarrar o cérebro” – que foi “um dos primeiros nomes dados a essa classe de medicamentos e que é a descrição mais precisa”. Passaram a ser chamados de “antipsicóticos”, ele diz, como “marca de propaganda”.

Os leitores descobrem até onde a Lilly foi capaz de ir, visando apenas maximizar seus lucros, ao ocultar desde o início o fato de que o Zyprexa causava, entre muitos outros problemas graves, altas taxas de diabetes, rápido e enorme ganho de peso e até mesmo a morte. Quanto dinheiro estava em jogo? Em 2005, um ano antes do início da saga contada pelo livro, as vendas declaradas da Zyprexa foram de US $ 4,2 bilhões, com cerca de dois milhões de pessoas em todo o mundo tomando o medicamento.

Gottstein descreve seus triplos esforços, a partir de 2006:  ajudar uma pessoa a proteger seu direito de recusar drogas psiquiátricas, ajudar em outros litígios estratégicos e divulgar amplamente a verdade sobre os perigos de Zyprexa. As provas incriminatórias sobre esses perigos foram descobertas em seu trabalho de expert atuando em vários processos movidos por 8.000 pessoas, em “litígios multidistritais”, que acusaram haver sido prejudicados pela droga. E Gottstein obteve essas evidências como uma intimação para que fosse entregue a documentação referente ao tratamento forçado de Bill Bigley com drogas psiquiátricas. No “litígio multidistrital”, o grande número de ações judiciais havia sido consolidado e a documentação sobre os perigos ocultos do medicamento Zyprexa ficou mantida em sigilo por ordem judicial. Felizmente, no entanto, as informações poderiam ser produzidas se houvesse uma outra intimação feita por uma outra ação judicial e se Lilly recebesse um “aviso prévio e uma oportunidade razoável para objetar”.

Não foi especificada a quantidade de tempo que a “oportunidade razoável de objetar” era exigida. Portanto, quando Gottstein intimou que os documentos fossem trazidos a julgamento, o expert responsável o Dr. David Egilman – a quem ele descreve como um homem de consciência – os enviou a Gottstein, não imediatamente, porém antes que Lilly objetasse. Egilman havia dito a Gottstein que ele estava esperando que fosse intimado a depor. E, então, após receber a documentação de Egilman, ela foi entregue ao jornalista do New York Times Alex Berenson para as suas reportagens sobre o Zyprexa. No entanto, para prejuízo pessoal de Gottstein, ele confiou em Egilman para indicar quando ele achava que havia passado um tempo “razoável”  e que, por conseguinte, estaria livre para enviar os documentos a Berenson, bem como a muitos outros que ajudassem a divulgar a verdade.

A interpretação de “razoável” se tornou uma arma importante no que legitimamente pode ser chamado de perseguição de Gottstein por Lilly por tornar as informações públicas. Em 6 de dezembro de 2006, Egilman notificou o principal advogado de Lilly que Gottstein o havia intimado por telefone por volta de 20 de dezembro. Em 11 de dezembro, Gottstein enviou a Egilman uma intimação alterada, porque o original incluía a ordem para o médico levar seus documentos com ele, mas como o depoimento seria por telefone, Gottstein precisava dos documentos enviados antes do depoimento. Ele pediu à Egilman para notificar a Lilly da intimação, mas Egilman não o fez. Egilman disse que cinco dias se passaram desde a sua notificação à Lilly e ele acreditava que isso constituía um aviso “razoável”. Por isso, em 12 de dezembro, ele prosseguiu e enviou o material para um domínio da Internet que Gottstein havia criado para esse fim. Gottstein recebeu uma mensagem de voz de um advogado da Lilly na noite anterior e deixou uma mensagem de voz para ele na manhã seguinte. Enquanto isso, como ele disse, “sentindo a respiração de Lilly no meu pescoço”, ele deu ao repórter do Times acesso aos documentos e os enviou de várias maneiras a muitas outras pessoas.

A coragem de Gottstein em fazer isso é impressionante. Ele sabia que poderia acabar na prisão, considerando o poder e o dinheiro de Lilly, mas “milhares e milhares de pessoas já haviam sido mortas pela droga, e nós [ele e Egilman] esperávamos impedir que isso acontecesse a mais milhares e milhares de pessoas.”

O que se seguiu mostrou Lilly e os tribunais no que há de pior. A capacidade de Lilly de contratar juízes para tentar intimidar Gottstein era surpreendente. Os leitores ficarão alarmados ao descobrir nas páginas do The Zyprexa Papers como os que revelam verdades podem ficar vulneráveis, mesmo quando seu objetivo é totalmente altruísta e quando tentam evitar danos massivos como o que já havia chegado a um grande número de pessoas. Lilly exigiu que Gottstein não revelasse os documentos a ninguém e que ele os recuperasse imediatamente de todos para quem os havia enviado e os retirasse de qualquer lugar que os tivesse publicado. Até então, alguns de seus destinatários os enviaram a outras pessoas e, de várias maneiras, foram divulgados. De fato, em um artigo que Berenson escreveu naquela época, apareceu o seguinte:

Gottstein disse ontem que as informações contidas nos documentos devem estar disponíveis para pacientes e médicos, bem como para juízes que supervisionam as audiências necessárias antes que as pessoas possam ser forçadas a tomar drogas psiquiátricas.

“Os tribunais devem ter essas informações antes de ordenar que essas coisas sejam injetadas nos corpos das pessoas que não desejam”, disse Gottstein.

À medida que a cobertura da mídia sobre o assunto aumentava, Lilly, claramente ficava mais enraivecida, ameaçou Gottstein que ele perderia sua licença e que “procuraria sanções” contra ele por ter violado a ordem de sigilo daquele caso que havia sido resolvido com os 8.000 autores das queixas. Uma ordem judicial incluiu a instrução para ele: “Preservar todos os documentos, material em áudio postado na internet, e-mails, material e informações relacionados ao Dr. Egilman ou qualquer outro esforço para obter documentos produzidos pela Lilly.” Lembro-me de que naquela época eu tinha ligado para o escritório de Jim sobre algum outro assunto e fiquei surpresa ao ouvir sua mensagem, na qual instruía quem o chamasse a não deixar nenhum tipo de mensagem em sua secretária eletrônica. Parecia Orwelliano.

Os meios pelos quais Lilly e os tribunais conspiraram contra Gottstein devem ser lidos para se acreditar. E é comovente ler Gottstein reconhecendo erros cometidos e mais do que esperados quando chamado para testemunhar em circunstâncias de extrema privação de sono em que ele se encontrava, mas esses erros nunca deveriam justificar os resultados. Gottstein gastou grandes quantias de dinheiro tentando se defender e estava enfrentando ainda todos os custos com o processo judicial contra ele. Além disso, ameaças de perda de sua licença e toda a sorte de processos legais estavam pairando sobre sua cabeça. A história de por quê e como o caso terminou para ele faz parte do chamado sistema de justiça e do poder esmagador da Big Pharma, além de como eles trabalham juntos.

Gottstein especula que as decisões dos juízes foram devidas à opinião deles de que Gottstein desrespeitara a sua autoridade enviando o material protegido pela ordem de sigilo; e parece como se tivessem tido a chance de interpretar ou mal interpretar qualquer coisa que fosse a favor de Gottstein, para assim permitir que protegessem a Lilly. Essa impressão é reforçada pelo fato de que um grande número de documentos cobertos pela ordem de sigilo sempre foi do conhecimento público, incluindo relatos da mídia, mas todos foram incluídos naquela ordem.

Voltando para trás para entender o alarme do tribunal sobre a exposição dos documentos, pode-se perguntar que benefício trazia aos demandantes  acordos como o que incluiu a ordem de sigilo. Gottstein nos diz que o acordo de Zyprexa com 8.000 vítimas teve uma média de pouco menos de US $ 90.000 por vítima e diz:

“Isso não parece muito por haver produzido diabetes em alguém, mas é ainda pior quando você considera que os advogados tomaram 40% e, em seguida, Medicaid e Medicare foram reembolsados em outros 30%. Nesse ponto, mesmo os aproximadamente US $ 27.000 que as vítimas receberam individualmente, em média, colocaram aqueles que estavam sob Medicaid e em pensão por incapacidade no patamar acima do limite para o recebimento do benefício. Isso significava que eles tinham que gastar o dinheiro do acordo para tratar o diabetes, e gastá-lo ao longo de um ano ou dois para manter ou receber de volta os pagamentos do Medicaid e da pensão por incapacidade.”

Além disso, Gottstein escreve: “os juízes devem permitir o sigilo apenas se for do interesse público, mas, na prática, eles não o fazem. O segredo lubrifica a engrenagem dos acordos, bem como dos litígios, e os juízes querem que os casos sejam resolvidos e fora da súmula. … Normalmente, ninguém está representando o interesse público.” Ele continua:

Eu acho que é justo dizer, a respeito da ordem de sigilo que a… Corte foi cúmplice de Lilly em esconder o grande dano que está sendo causado às pessoas como resultado do Zyprexa. Se essas informações tivessem se tornado públicas mais cedo, milhares de vidas adicionais poderiam ter sido salvas e centenas de milhares de pessoas provavelmente não teriam tomado Zyprexa.

Gottstein descreve onde o Tribunal cometeu um erro ao considerar a intimação feita por ele e sua liberação dos Documentos Zyprexa:

“O tribunal achava que eu havia violado sua ordem de sigilo e nunca considerava seriamente a possibilidade de não o ter feito. Proteger sua autoridade era realmente a única consideração do tribunal. Não levou em consideração o interesse legítimo da PsychRights nos documentos da Zyprexa. Não levou em consideração o fato de que a PsychRights seguiu as regras da ordem de sigilo na obtenção dos documentos do Zyprexa. … Eu tinha minhas razões independentes e apropriadas para intimação, inclusive alertando o público sobre os grandes danos causados pelo Zyprexa. … eu acreditava que os havia recebido sob as regras da ordem de sigilo e que, uma vez que os recebi daquela maneira os documentos já haviam perdido o sigilo.”

A segunda história do livro, entrelaçada ao longo do caso Lilly, é sobre o modo como Bill Bigley, a quem Gottstein traz à vida com calor e respeito, experimentou perdas trágicas que compreensivelmente o deixaram triste. Sua reação profundamente humana foi então patologizada: ele foi diagnosticado com rótulos psiquiátricos que formaram a base para iniciá-lo em um ciclo de hospitalizações involuntárias que chegaram a cerca de 70 e de drogas forçadas que causaram tantos problemas e que ele compreensivelmente resistia a tomar esses produtos químicos. Tudo isso previsivelmente levou à sua deterioração de várias maneiras, e ele às vezes passou a agir de maneiras que incomodavam algumas pessoas, mas ele nunca foi violento. Gottstein escreve: “Na realidade, não se tratava da qualidade de vida de Bill, mas de reduzir o incômodo que as  outras pessoas sentiam frente a ele”.

Apesar disso, o sistema de saúde mental destruiu esse homem, cujo sofrimento, como o de muitos, levou a um diagnóstico que foi usado para justificar privá-lo de seus direitos, com base em argumentos totalmente sem sustentação de que ele devia ter um desequilíbrio químico incurável. E como Gottstein descreve em suas tentativas de ajudar Bigley tantas vezes, mostrando ponto por ponto como o sistema no Alasca – típico dos Estados Unidos – foi usado para pedir internações involuntárias e o uso forçado de drogas psiquiátricas.

O próprio fato de alguém ter recebido qualquer rótulo psiquiátrico é usado de maneiras impressionantemente variadas para privá-lo do respeito a si próprio, da dignidade, da autoconfiança, do emprego, da custódia de seus filhos, do direito de tomar decisões sobre seus aspectos médicos e assuntos legais, e até mesmo de suas vidas. Assim como a afirmação precisa de Gottstein de que ele se formou na Harvard Law School havia sido interpretada como evidência de sua “doença mental”, então quando Bigley afirmou com precisão que havia sido citado no New York Times, isso foi interpretado como prova de seu “transtorno psiquiátrico”.  E como tantas vezes acontece, a recusa de Bigley por drogas psiquiátricas era prova de que ele estava “doente” demais para saber como cuidar de si mesmo.

Ignorando flagrantemente a prova do dano causado por drogas psiquiátricas, o juiz ordenou que Bigley pudesse ser drogado contra sua vontade. O “raciocínio” do juiz pertence a Alice no país das maravilhas, e não a uma ordem judicial. Tente encontrar a lógica no que o juiz sustentava, como Gottstein cita:

O Tribunal está disposto a assumir que medicamentos passados ​​danificaram o cérebro de Bigley. Além disso, está disposto a presumir que danos cerebrais adicionais resultarão se a API for autorizada a administrar mais psicotrópicos. Mas isso não termina a análise.

O Tribunal considera que o perigo de danos adicionais (mas incertos) é superado pelos benefícios positivos da administração de medicamentos e pelos problemas emocionais e comportamentais que aumentarão se Bigley não for medicado. Mesmo que o medicamento diminua a vida útil de Bigley, o Tribunal autorizará a administração do medicamento, porque Bigley não está bem agora e está piorando.

Dado que Zyprexa e medicamentos semelhantes, como Risperdal, demonstraram que causam morte prematura, Gottstein é razoável ao concluir: “Acho que os juízes decidem quem deve viver e quem deve morrer o tempo todo, embora a pena de morte nem seja permitida em Alasca”.

As audiências de Bill Bigley geralmente eram realizadas em uma sala no Instituto Psiquiátrico do Alasca, e não em um tribunal, e geralmente não eram abertas ao público, pois a maioria dos processos judiciais semelhantes deveria ser para ajudar a garantir o devido processo e proteger os direitos da pessoa. Quando as audiências são realizadas nesses hospitais, elas tendem a se tornar kafkianas, lançando o devido processo e procedimentos legais pela janela, de modo que ordens coercitivas são feitas na ausência de evidências de que os critérios para coerção (perigo para si ou para outros, gravemente incapacitado, a alternativa menos restritiva) estejam presentes. Bill Bigley, portanto, queria que suas audiências acontecessem em um tribunal real e fossem públicas.

Quem corre o risco de perder seus direitos humanos – ou sua vida – por meio de um processo judicial deve ter alguém como Gottstein advogando por eles, porque ele é um advogado incansável, conhece a lei de dentro para fora e nunca perde de vista o que é verdade, o certo, e o que é humano a respeito da dignidade de seus clientes. Ele usa uma combinação de princípios e procedimentos legais para analisar se esses princípios se mantêm dentro das tradições legais, mas também fora dessas tradições. Não se sentindo constrangido por precedentes no tribunal e na prática no sistema de saúde mental, ele é consistentemente criativo e engenhoso na tentativa de encontrar soluções. Por exemplo, seguindo o princípio de que a “alternativa menos restritiva” deveria ser julgada e sabendo que as ordens judiciais em casos como o de Bigley eram geralmente baseadas na consideração de apenas duas alternativas – drogar a pessoa ou não a drogar, ponto final – ele faz esta proposta de bom senso e carinho que inclui uma terceira opção:

“… Quando alguém está tendo um colapso, pode ser abordado e ser dito: “Escute, não podemos obrigar você a fazer essas coisas, por causa de ______________ [por exemplo, você irrita as pessoas ou assusta as pessoas]; portanto, se você não se acalmar, teremos de injetar Haldol ou colocá-lo em restrições ou isolamento (confinamento solitário). O que você prefere? Eu acho que algumas pessoas preferem as restrições ou isolamento do que a droga, mas também acho que há alguma chance de simplesmente dar a eles a escolha que lhes permitiria se acalmar.”

Obviamente, como essa proposta se baseia no respeito à pessoa e na suposição de que ela pode usar a razão, considerar opções e ter agência, não é o tipo de coisa que os juízes tendem a aceitar. Suas duas preocupações – que eles serão “responsabilizados” se não pedirem hospitalização e / ou drogas e “algo vir a acontecer”, e sua tendência a acreditar nas reivindicações de entidades poderosas e bem-financiadas, como as grandes empresas farmacêuticas e os grandes hospitais psiquiátricos – no caminho.

Quanto aos representantes do hospital psiquiátrico, como escreve Gottstein, o que a contínua pressão deles por drogas forçadas “demonstra claramente é que a API era incapaz de tratar pessoas sem usar drogas. Isso foi e permanece basicamente verdadeiro nos ‘hospitais’ psiquiátricos em todo o país “.

Gottstein escreveu este livro em parte para tentar prescrever um roteiro para abordar esse tipo de caso, o que, ele disse em uma mensagem de e-mail para mim, inclui a necessidade de “tratar esses casos como os litígios de grande importância que eles são de fato”. As descrições de seus confrontos com Lilly e sua defesa de Bigley deixam claro o quão alto são os riscos e o quão perigoso é para as bravas almas que se envolvem nas lutas. Mas, como ele observa com tristeza, o Zyprexa “ainda está sendo usado em centenas de milhares de pessoas, inclusive sendo forçado em muitas. O mesmo vale para os outros neurolépticos.” De fato, mesmo muitos que advogam vítimas do sistema de saúde mental tradicional em seus escritos e filmes legitimam e até valorizam o ex-chefe da Força-Tarefa do DSM-IV, Allen Frances, apesar de saber que ele e dois colegas ganharam pouco menos de um milhão de dólares, por criar a base fraudulenta que permitiu à Janssen Pharmaceuticals, subsidiária da Johnson & Johnson, comercializar o enganosamente perigoso medicamento neuroléptico Risperdal para uma variedade surpreendente de “condições”, em pessoas desde a infância até a velhice. (Para saber mais sobre isso, consulte meus artigos “Diagnosisgate: Conflict of Interest at the Top of the Psychiatric Apparatus” e “Diagnosisgate: A Major Media Blackout Mystery.”)

Gottstein acredita, finalmente, que

“representação legal inadequada é o ponto principal do grande dano causado às pessoas por meio da psiquiatria. Se as pessoas estivessem sendo representadas adequadamente, o sistema atual seria incapaz de prender as legiões de pessoas e drogá-las contra sua vontade e teria que encontrar outra maneira de lidar com pessoas diagnosticadas com doenças mentais e perturbadoras. Se a PsychRights tivesse recursos para empregar apenas dois ou três advogados em tempo integral em Anchorage, no Alasca, para tais representações e fundos para testemunhas especializadas, acredito que a PsychRights poderia quebrar o sistema e forçar o fornecimento de abordagens diferentes que demonstrassem funcionar e ajudar as pessoas a enfrentar os problemas pelos quais elas estão passando.”

A edição Kindle do livro está disponível para pedidos a partir do dia 31 de janeiro passado. Agora, o livro em papel também está disponível na Amazon.

Pesquisadores propõem que se fale de “abstinência”, não “síndrome de descontinuação”

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O termo “síndrome de descontinuação” é deliberadamente enganoso, de acordo com pesquisadores que escrevem no The British Journal of Psychiatry. Elia Abi-Jaoude e Ivana Massabki sugerem que o termo é apenas um eufemismo para o termo mais preciso “abstinência” (também conhecido no Brasil como “desmame” ou “retirada”).  Eles escrevem que o termo “síndrome de descontinuação” foi cunhado com o apoio da indústria farmacêutica para subestimar e desconsiderar o testemunho de pessoas que experimentam efeitos adversos após a interrupção dos antidepressivos ISRS (inibidores seletivos de recaptação de serotonina).

“O termo síndrome de descontinuação, que parece ter sido estabelecido e divulgado com o apoio das indústrias farmacêuticas para minimizar as preocupações dos pacientes com relação ao uso de medicamentos ISRS, é enganoso e deve ser abandonado em favor do termo mais apropriado que é síndrome do desmame dos ISRS”, eles escrevem.

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Uma atualização recente das diretrizes vigentes no Reino Unido reconheceu o potencial de sintomas graves e duradouros gerados pela retirada dos antidepressivos. Isso ocorreu depois de um artigo do BMJ publicado no ano passado, onde é feita uma forte crítica às diretrizes oficiais que minimizam os sintomas de abstinência. Nesse artigo, os pesquisadores escreveram que os pacientes estavam sendo diagnosticados erroneamente como tendo uma recaída de depressão quando, em vez disso, estavam sofrendo de sintomas de abstinência dos ISRS.

Um outro estudo constatou que mais da metade das pessoas que tomam antidepressivos apresentaram sintomas de abstinência – e cerca de 25% classificaram esses sintomas como “graves”. Ainda outro estudo descobriu que, em média, a retirada do ISRS durava 90,5 semanas, enquanto a retirada do ISRN (outra classe de antidepressivos) durava 50,8 semanas.

Em seu artigo, Massabki e Abi-Jaoude examinam a história do termo “síndrome de descontinuação” em artigos acadêmicos revisados por pares. Antes de 1997, o termo foi usado apenas uma vez. No entanto, em 1997, uma edição complementar do Journal of Clinical Psychiatry usou o termo – desencadeando uma reação em cadeia que resultou em 12 usos do termo apenas naquele ano. Essa edição foi patrocinada pela empresa farmacêutica Eli Lilly (fabricante do Prozac, Cymbalta e Zyprexa). Foi apresentada uma definição de “síndrome de descontinuação” que não era diferente da “abstinência”, podendo assim ser aplicada aos efeitos nocivos da interrupção de qualquer medicamento.

O próximo grande pico no uso do termo ocorreu em 2006 com a publicação de um segundo suplemento no mesmo periódico – este patrocinado pela empresa farmacêutica Wyeth (fabricante do Effexor, conhecido por Velanfaxina). Nessa edição, os autores sugeriram que os pesquisadores parassem de usar o termo “abstinência” e, em vez disso, usassem o termo “descontinuação”. Eles argumentaram que o termo “desmame” era assustador para pacientes preocupados em se tornar fisicamente dependentes de antidepressivos. Os autores também argumentaram que a “síndrome da descontinuação” era diferente da síndrome de abstinência – mas, novamente, sua definição não distinguia entre as duas. O suplemento de 2006 incluiu a seguinte lista de sintomas de abstinência de antidepressivos que eles usaram para definir a síndrome de descontinuação:

“Neurossensorial (por exemplo, vertigem, parestesias, reações semelhantes a choque, mialgia, outra neuralgia); neuromotor (por exemplo, tremor, mioclonia, ataxia, alterações visuais); gastrointestinal (por exemplo, náusea, vômito, diarreia, anorexia); neuropsiquiátrico (por exemplo, ansiedade, humor deprimido, intensificação de ideação suicida, irritabilidade, impulsividade); vasomotor (por exemplo, diaforese, rubor); e outros neurológicos (por exemplo, insônia, sonhos vívidos, astenia / fadiga, calafrios). ”

De acordo com Massabki e Abi-Jaoude, “os sintomas descritos são típicos dos pacientes que sofrem de abstinência e indicam as várias maneiras pelas quais os pacientes podem se tornar dependentes de seus ISRSs”. De fato, outra revisão recente descobriu que 37 dos 42 sintomas de abstinência ocorreram tanto para benzodiazepínicos quanto para ISRSs. Então, por que a mesma experiência é chamada de “abstinência” quando para benzodiazepínicos, mas “síndrome de descontinuação” quando para ISRSs?

Massabki e Abi-Jaoude escrevem que a resposta está na maneira sutil como é que a “síndrome de descontinuação” sataniza a dificuldade que as pessoas têm quando tentam parar o uso de ISRS. Eles escrevem que o termo “descontinuação” é enganoso, porque mesmo uma redução gradual pode resultar em sintomas de abstinência – a descontinuação total não é requerida. E o termo “síndrome”, que significa “doença”, é uma maneira de esconder o fato de que os danos são devidos ao efeito da própria droga.

Os pesquisadores concluem que o uso da terminologia de “desmame” promove um consentimento melhor informado. Quando os pacientes conhecem os riscos e benefícios do medicamento a eles oferecidos, eles têm mais autonomia sobre suas escolhas. Além disso, se eles reconhecerem os perigos da retirada, os profissionais médicos poderão ajudar mais as pessoas que desejam diminuir sua dose ou parar de usar os ISRSs.

“O reconhecimento transparente de que o uso de ISRS pode resultar em dependência e sintomas de desmame ou na síndrome de abstinência do ISRS permite que os pacientes sejam verdadeiramente informados sobre suas decisões e ajuda a informar estratégias para diminuir gradualmente esses medicamentos amplamente prescrito.”

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Massabki, I., & Abi-Jaoude, E. (2020). Selective serotonin reuptake inhibitor “discontinuation syndrome” or withdrawal. The British Journal of Psychiatry, 1–4. DOI:10.1192/bjp.2019.269 (Link)

Mensagem do New York Times para Bonnie Burstow: Que Você Não Descanse Em Paz

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Quando soube que o New York Times publicara um obituário de Bonnie Burstow, fiquei – antes de ler – bastante surpreso. Não é fácil para quem não é celebridade receber um obituário no New York Times, e mais ainda sendo um acadêmico canadense que, como dizia a legenda da versão on-line, “havia sido uma voz proeminente no movimento da anti-psiquiatria.

Esse era o subtítulo a dizer aos leitores que sua vida – e bolsa de estudos – eram de importância significativa. Isso emprestava legitimidade aos estudos em “anti-psiquiatria” criados por ela.

Ou pelo menos era isso o que parecia.

Os primeiros parágrafos do obituário foram todos muito bons e respeitosos. Parecia que o óbito seguiria um modelo como o qual estamos familiarizados, detalhando a natureza de seus escritos antes de mergulhar em sua história pessoal. Mas então veio este momento: “você deve estar brincando comigo”. No momento em que artigo descrevia a bolsa de estudos em “antipsiquiatria” que Burstow havia financiado na Universidade de Toronto, aparece de repente o comentário de seu colega Edward Shorter, que, segundo o jornal, era “um crítico da antipsiquiatria de longa data”.

Shorter não decepcionou.

“Eles estão tentando alegar que não existe doença psiquiátrica, e acho que ela causou muitos danos com a publicidade que recebeu sobre isso. . . (A universidade) cometeu um grande erro ao criar um fundo especial de bolsas de estudos em seu nome; é um fundo anti-psiquiatria que legitima o movimento “.

E Shorter não termina aí. O jornalista do Times voltou a ele uma segunda vez, mais adiante no obituário:

É claro que ela não teve um impacto positivo na saúde pública ou no tratamento de doenças. . . e é meio desanimador pensar no número de pessoas que poderiam ter sido tocadas pelo canto de sereia – pensando: ‘Oh, não existe doença psiquiátrica e tudo é apenas rotulagem e marginalização’ – e depois cometer suicídio, porque isso não é incomum. São doenças com riscos, com certeza.

Aparentemente, Shorter nunca recebeu de sua mãe a mensagem para não falar mal dos mortos. E o New York Times falhou com seus leitores, permitindo que ele o fizesse.

Difamando os mortos

Edward Shorter é talvez mais conhecido por seu livro de 1997, A History of Psychiatry. É uma história informativa, e eu pessoalmente fiz uso dele quando estava pesquisando para o meu primeiro livro, Mad in America. No entanto, o livro segue uma narrativa convencional, principalmente quando se trata dos méritos dos medicamentos antipsicóticos. A clorpromazina iniciou uma revolução na psiquiatria, comparável à introdução da penicilina na medicina geral”, escreveu ele. Graças a esse novo medicamento, os pacientes com esquizofrenia “podem levar uma vida relativamente normal e não ficar confinados às instituições”.

Agora, essa afirmação não é, como se costuma dizer, “baseada em evidências”. Pesquise na literatura científica e se descobrirá que as taxas de alta hospitalar para pacientes psicóticos em primeiro episódio não melhoraram quando a clorpromazina chegou como tratamento nos asilos psiquiátricos. Também se acha que o funcionamento social dos pacientes que receberam alta declinou depois que esse medicamento se tornou um dos pilares do tratamento.

Mas, para os propósitos deste blog, não cabe aqui entrar em detalhes, mas chamar a atenção que Shorter investe em uma narrativa amplamente aceita em nossa sociedade que Bonnie Burstow desafiou.

O movimento da “antipsiquiatria” na década de 1960 foi liderado por psiquiatras dissidentes (R.D. Laing, David Cooper e Thomas Szasz, para citar alguns) e acadêmicos (principalmente Michel Foucault e Erving Goffman). Bonnie Burstow seguiu essa tradição e, como observou o New York Times, ela desafiou a validade dos diagnósticos psiquiátricos e os méritos das drogas psiquiátricas. Ela escreveu criticamente sobre a natureza patriarcal da psiquiatria no diagnóstico das mulheres ao longo da história.

Bonnie Burstow

Como tal, seus escritos contrastavam com os de Shorter. Assim, quando o New York Times o chamou, ele poderia ter agido de forma elegante e contado como discordava de seus escritos sobre psiquiatria e como o estabelecimento de uma bolsa de estudos em “antipsiquiatria” na Universidade de Toronto havia se mostrado controverso.

Isso estaria ok. Os leitores teriam entendido que Burstow era uma intelectual que desafiava a narrativa convencional e também os “poderosos” dentro da psiquiatria. Mas Shorter fez algo bem diferente. Seus comentários de que os escritos de Burstow levaram as pessoas a cometer suicídio – e que isso não era “incomum” – foram uma acusação, que, na minha opinião, foi ao mesmo tempo vil e difamatória.

Como um amigo meu escreveu no dia em que o obituário do New York Times apareceu, “você viu os comentários de Shorter? Ele basicamente a descreveu como um monstro”.

Essa foi a parte vil. O aspecto calunioso é que Shorter, é claro, não tem evidências de que os escritos de Burstow levaram as pessoas a cometer suicídio. Essa é a acusação usual de “sangue nas mãos” que os defensores da narrativa convencional geralmente jogam contra os críticos da psiquiatria, mesmo que a ciência tenha uma história diferente para contar.

David Healy, em sua investigação sobre suicídio entre pessoas tratadas por esquizofrenia, descobriu que a taxa é 20 vezes maior hoje do que era antes da era dos antipsicóticos. Pesquisas também descobriram que as taxas de suicídio parecem aumentar quando uma população obtém maior acesso a cuidados psiquiátricos.

E esse é o ponto: se Burstow estivesse viva, ela poderia responder a um comentário como o de Shorter apontando para essa pesquisa. Ela poderia se defender de tal acusação. Mas como esse era um obituário, ela não teve essa oportunidade. Shorter difamando uma morta, e o New York Times fornecendo a ele uma plataforma para fazer isso.

O pecado jornalístico

Ao escolher escrever um obituário de Bonnie Burstow, o New York Times a identificou como uma estudiosa notável. O obituário observou com razão que ela desafiava as crenças convencionais e criticava os poderes patriarcais da psiquiatria. Mas quando chegou a hora de solicitar um comentário sobre o trabalho dela, não deveria ter chegado a um oponente conhecido do trabalho dela e publicado seus comentários ultrajantes.

Em vez disso, poderia ter solicitado um comentário de um historiador da psiquiatria que apreciasse essa batalha de narrativas e que, portanto, poderia fornecer informações sobre como o trabalho de Bonnie Burstow se encaixa nessa batalha. Essa é a paisagem social mais ampla que forneceu motivos para o Times escrever um óbito sobre ela. O que havia de novo em seus escritos? Que novo terreno ela iluminou? Apresentou ela os seus argumentos de maneira clara?

Por exemplo, o historiador Andrew Scull teria sido uma boa escolha. Não sei o que ele achou dos escritos de Burstow, mas ele certamente poderia ter falado com insights sobre as narrativas concorrentes. Se o Times tivesse pedido sua opinião, ele poderia ter ajudado os leitores a entender por que o trabalho de sua vida merecia um obituário. Ela era uma intelectual participando de uma discussão social mais ampla sobre os méritos dos cuidados psiquiátricos, passados e presentes.

Do mesmo modo, o Times poderia ter procurado um comentário de alguém da comunidade de “sobreviventes psiquiátricos”. Por que tantos ex-pacientes admiram seus escritos e seu trabalho de advocacia? Estou certo de que os leitores gostariam de ouvir a perspectiva deles.

O ponto jornalístico aqui é o seguinte: isto era um obituário. Muito do que o Times escreveu foi bom, respeitoso e informativo. Mas frustrou os leitores quando solicitou um comentário de um inimigo declarado de seu trabalho e publicou sua acusação infundada de que seus escritos causavam danos à “saúde pública” e provocavam muitos suicídios. O jornal tomou o partido da difamação de Shorter.

Há um velho ditado no jornalismo de que seu trabalho é afligir os que se sentem confortáveis e confortar os aflitos. Bonnie Burstow, em seus escritos, frequentemente dava conforto aos “aflitos”. O New York Times, ao publicar os comentários de Shorter, estava confortando os que estão em posições confortáveis.

E assim, de nós da comunidade do Mad, eu gostaria de enviar uma mensagem para Bonnie Burstow além do túmulo: Você fez o bem Bonnie. Você foi uma heroína para muitos. E não deixe esse obituário derrubá-la.

Pesquisa Sobre Sentidos e Práticas de Saúde Mental em Comunidades Quilombolas

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Os sentidos e as práticas em saúde mental produzidos por comunidades quilombolas do estado de Rondônia são o tema de um artigo publicado pela revista Psicologia: ciência e profissão.  Os autores Eraldo C. Batista e Katia B. Rocha realizaram entrevistas abertas e rodas de conversa com 18 participantes, todos pertencentes a duas comunidades quilombolas do Vale do Guaporé, de ambos os sexos. A análise do material foi realizada através da proposta da Análise do Discurso.

As comunidades quilombolas apresentam uma identidade social própria, sendo remanescentes dos antigos quilombos. São considerados pelo Ministério da Saúde como pertencentes a um grupo minoritário dentro da população negra. As comunidades estão espalhadas por todo o Brasil e são muito variadas, podendo ocupar áreas rurais ou urbanas. Principalmente as comunidades quilombolas que ocupam áreas rurais vivem em um certo isolamento geográfico e social em relação à sociedade urbana. O que implica em desigualdades sociais e de assistência à saúde, ainda mais graves no caso das comunidades estabelecidas na região amazônica.

As comunidades quilombolas amazônicas apresentam algumas especifidades em relação as demais espalhadas pelo restante do Brasil.  A partir do fim do poder dos jesuítas sobre os índios, aumentou o tráfico de Africanos para aquela localidade, resultando em quilombos formados por negros e índios. Baseado nisso, a relação das comunidades quilombolas com a população indígena sempre foi forte. Os autores ainda apontam a importância do estudo, visto que, existe uma escassez de publicações que abordem a questão da saúde mental da população quilombola.

A partir da análise do material foram organizados três repertórios interpretativos: reconhecimento e formas de lidar com os sintomas psiquiátricos; recursos utilizados pelos moradores da comunidade no cuidado em saúde mental: ervas e plantas medicinais e práticas religiosas; consumo excessivo de bebidas alcoólicas como problema de saúde mental.

Foi possível perceber no diálogo com os quilombolas que a sua percepção sobre o que é “doença mental” está baseada em saberes médicos, onde a doença mental é entendida principalmente como desordem emocional, assim como também está relacionada ao senso comum, associado principalmente àquelas pessoas que estão “fora da realidade”.

Algo que se destacou foi a utilização do termo “banza” e “landú” para descrever pessoas com sintomas identificados com o diagnóstico de depressão. Parece ser uma variação do termo “banzo” que se refere ao estado de tristeza causada pela desculturação, nostalgia e saudade da África, descrito pelos africanos escravizados recém chegados ao Brasil. Os participantes relatam que não se tomam medidas com relação a esses comportamentos, porque “logo passa”. Mas também relatam ser comum se isolar no meio da mata como forma de aliviar os sofrimentos.

“Como afirmam Teixeira e Xavier (2018), as matas foram o elemento principal de continuidade da vida após a escravidão, percebidas pelas comunidades negras como uma extensão da própria casa, e os vínculos existentes entre os membros das comunidades guaporeanas com o espaço natural florestal e fluvial são profundos.”

As plantas e chás são invocados, assim como as “rezas”, como sendo os principais tratamentos para saúde. Quando em contato com profissionais de saúde, o principal tratamento estabelecidos por estes são os medicamentos farmacológicos. No entanto, as práticas tradicionais ainda são as principais protagonistas na comunidade. Com isso, o rezador (a) possui uma relevância ímpar, sendo praticado principalmente por mulheres e ensinado de geração para geração.

“A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) destaca em seu texto o reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, sobretudo os saberes de matrizes africanas.”

Os autores também destacam que o consumo de álcool parece ter uma conotação cultural e de sociabilidade nas comunidades. Alguns entrevistados relatam que o consumo de álcool é a única diversão disponível. Também foi destacado que o aumento da infraestrutura e acesso à cidade são facilitadores do maior consumo de bebidas alcoólicas. Além disso, pesquisas realizadas em outras comunidades quilombolas destacam o uso abusivo de álcool como um problema e agravo à saúde. Alguns autores associam isso à questões de relações de gênero, assim como ao racismo sofrido pelos quilombolas.

Como conclusão, o artigo relata algumas limitações da pesquisa, como o fato de realizar entrevistas apenas com duas das cinco comunidades quilombolas existentes no Vale Guaporé. Além disso, os autores esperam que essa pesquisa auxilie no enfrentamento das desigualdades e na redução da vulnerabilidade social dessas comunidades, de forma que as políticas públicas levem em consideração e respeitem os aspectos sócio-históricos e culturais dessas comunidades.

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BATISTA, Eraldo Carlos; ROCHA, Katia Bones. Sentidos e Práticas em Saúde Mental em Comunidades Quilombolas no Estado de Rondônia. Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 39, n. spe,  e222123,    2019 .   Disponível em → (link)

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