Uso de maconha pelos pais associado ao uso de substâncias em crianças

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Max Pixel

Novas pesquisas exploram alguns dos impactos a longo prazo do uso da maconha nas famílias. A equipe utilizou dados coletados ao longo de 16 anos, representando 380 famílias, para explorar as relações entre o uso de maconha relatado pelos pais e os hábitos com drogas das crianças, atitudes em torno do uso de substâncias, padrões de comportamento de internalização e externalização, problemas de atenção e notas na escola.

As pesquisadoras Marina Epstein, Jennifer A. Bailey e Madeline Furlong, da Universidade de Washington, e Christine Steeger e Karl Hill, da Universidade do Colorado, Boulder, publicaram suas descobertas em Psychology of Addictive Behaviors da American Psychological Association. O estudo revelou que os filhos de pais que relataram uso de maconha durante a adolescência eram significativamente mais propensos a relatar o uso de substâncias do que os filhos daqueles que não o fizeram.

Os resultados também indicaram que as crianças cujos pais relataram um histórico de uso de maconha mais tarde na idade adulta tiveram filhos um pouco mais propensos a ter notas mais baixas e dificuldades de atenção, mas que não eram mais propensos a relatar o uso de substâncias do que seus pares. O uso atual versus uso no passado da maconha pelos pais não mediou significativamente os resultados.

“A legalização do uso de maconha em 10 estados e no Distrito de Columbia se reflete na percepção pública de que o uso entre adultos não é prejudicial e não precisa ser reduzido. De fato, ao contrário das consequências negativas documentadas do uso de maconha entre adolescentes, as consequências do uso pouco frequente de maconha para adultos são relativamente poucas. No entanto, muitos adultos são pais, e estudos recentes mostraram que o uso de maconha entre os pais também aumentou. ”

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A maconha, agora legal para uso recreativo em 10 estados e no Distrito de Columbia, aumentou em popularidade nos últimos anos. Apesar de seu alcance, as barreiras à pesquisa rigorosa sobre segurança e efeitos do uso da maconha têm sido bem documentadas. Em estudos recentes que examinaram a maconha e suas consequências, alguns pesquisadores identificaram potenciais riscos à saúde mental associados ao uso da maconha, enquanto outros sugeriram que existem poucos riscos discerníveis.

Além disso, houve críticas poderosas sobre a pouca pesquisa existente, como os estudos de Madras, destacando as falhas metodológicas de um estudo longitudinal feito em 2015, sugerindo nenhuma conexão entre o uso de maconha para adolescentes e problemas posteriores de saúde mental em adultos. O tópico do uso da maconha pode ser sensível, político e polarizador, e muitos estudos relacionados são analisados ​​minuciosamente, quaisquer que sejam as implicações que pretendam.

Epstein e colegas relatam que “[o] uso de maconha é particularmente preocupante porque estudos mostram que o uso atual de substâncias pelos pais pode estar ligado a efeitos adversos no bem-estar da criança, incluindo uma maior probabilidade de uso de substâncias entre as crianças”. Eles sugerem que o deles é o primeiro estudo a examinar até que ponto o uso da maconha pelos pais antes e durante a paternidade afeta as características e os padrões de comportamento das crianças em vários domínios relevantes.

A equipe explorou os vínculos entre as nuances das histórias de uso de drogas dos pais e os resultados dos adolescentes através das lentes do modelo de desenvolvimento social (SDM), que sugere que os meandros da socialização informam trajetórias comportamentais ao longo da vida. Essa perspectiva sugere que a família, a escola e os grupos de pares são as forças mais influentes nos processos de socialização infantil.

Pesquisas anteriores, usando alguns dos mesmos dados aplicados neste exame, agruparam o uso de maconha dos pais em quatro categorias; não usuário, uso crônico, limitado na adolescência e de início tardio. Com o uso da maconha familiar como foco do presente estudo, os autores levantaram a hipótese de que “filhos de pais no grupo crônico terão os piores resultados em comparação com outras classes. Eles também esperavam que a participação da criança no grupo dos pais usuários esteja mais associada ao uso e às normas de maconha infantil, embora as associações com a saúde mental e comportamental também tenham sido postuladas. ”

O projeto examinou uma amostra diversificada de famílias envolvidas em dois estudos, o Projeto de Desenvolvimento Social de Seattle (SSDP) e o Estudo Intergeracional (TIP). As unidades familiares participantes compreendiam os pais, o filho biológico mais velho e, em alguns casos, entrevistas com cuidadores adicionais.

A coleta de dados ocorreu em dez momentos entre 2002 e 2018. Os hábitos dos pais foram registrados de acordo com o autorrelato, os padrões e atitudes de uso de substâncias das crianças foram coletados por meio do autorrelato, e internalização, externalização, problemas de atenção e notas da criança foram coletados por meio dos relatórios feitos pelos pais. A modelagem multinível foi realizada para avaliar mudanças nas relações e resultados ao longo do tempo.

Semelhante ao que foi proposto, “crianças de pais nos grupos de uso crônico e de grupo de uso limitado na adolescência tiveram maiores chances de usar maconha e álcool em comparação com filhos de pais no grupo de não usuários. Filhos de usuários de início tardio não relataram mais risco de uso de substâncias, mas relataram notas mais baixas em comparação aos não usuários. Esses achados obtidos no grupos de uso limitado na adolescência e no grupo de início tardio após o uso simultâneo de maconha com os pais foram incluídos nos modelos, sugerindo que, embora o uso atual dos pais seja um fator de risco importante para a saúde infantil, o histórico dos pais de uso de maconha representa um risco adicional, particularmente para o uso e as normas da maconha. ”

Os autores afirmam que suas descobertas destacam o impacto intergeracional do uso da maconha, indicando que os padrões de comportamento dos pais podem estar ligados às atitudes e comportamentos das crianças associados à maconha e outras drogas. Este estudo fornece evidências para relações entre socialização, desenvolvimento de entendimentos sobre comportamento normativo na infância e padrões de tomada de decisão posteriores. No entanto, são necessárias mais pesquisas para elucidar a gravidade das implicações associadas a esses efeitos intergeracionais. Pesquisas sobre resultados longitudinais críticos do uso de maconha ainda estão em sua infância.

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Epstein, M., Bailey, J. A., Furlong, M., Steeger, C. M., & Hill, K. G. (2019). An intergenerational investigation of the associations between parental marijuana use trajectories and child functioning. Psychology of Addictive Behaviors. DOI: 10.1037/adb0000510 (Link)

Movimento Antimanicomial denuncia ‘indústria da loucura’ no Governo Bolsonaro

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Saiu publicado em Brasil de Fato: uma matéria sobre o XI Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial (Enala) e do XII Encontro Nacional de Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial (Enufa), que ocorre entre os dias 15 e 17 de novembro de 2019 em São Paulo.

“A nossa luta é para mobilizar contra um procedimento que quer lucrar em cima da loucura.” A frase de Mário Alexandre Moro, representante do segmento de usuários do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA), resume os debates dos dois encontros.

Leia a matéria na íntegra →

Medo e crença no “desequilíbrio químico” impedem as pessoas de parar de usar antidepressivos

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Em um novo estudo, os pesquisadores entrevistaram pessoas que receberam orientação médica para interromper os antidepressivos. O uso de antidepressivos pelos participantes foi considerado como sendo “não indicado”, tomando como base as diretrizes que orientam a prática clínica. Usuários de antidepressivos que não tinham diagnóstico de saúde mental no momento, tampouco histórico de problemas de saúde mental recorrentes e que estavam tomando antidepressivos por muito mais tempo do que as diretrizes sugerem (mais de nove meses). Apesar de receber esse conselho para interromper, mais da metade dos participantes se recusou a parar de tomar o medicamento – e os pesquisadores descobriram duas razões principais.

A pesquisa foi liderada por Rhona Eveleigh e Peter Lucassen na Universidade Radboud, na Holanda. O estudo foi publicado no Therapeutic Advances in Psychopharmacology.

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Segundo os pesquisadores, cerca de cinco em cada seis usuários de antidepressivos não estavam se beneficiando com o seu uso. Assim, a maioria das pessoas que estava tomando antidepressivos estava sendo exposta desnecessariamente aos possíveis danos do medicamento. As evidências sobre o uso a longo prazo são escassas (a maioria dos medicamentos recebe a aprovação do FDA com base em estudos de curto prazo), mas estudos demonstraram que o uso a longo prazo pode ser inútil ou até causar mais danos do que benefícios.

As diretrizes da prática clínica são a referência para esta pesquisa. Geralmente, o conselho apresentado nas diretrizes é considerar como positivo a interrupção do uso de antidepressivos após vários meses (o período exato varia de acordo com as diretrizes), se os sintomas indicados tiverem diminuído. Obviamente, muitas pessoas estão tomando antidepressivos prescritos off-label – de uma maneira que não segue as diretrizes – e a descontinuação também pode ser uma opção nesses casos.

Em suas entrevistas, os pesquisadores identificaram duas barreiras significativas à descontinuação. O primeiro foi o medo: medo de que, se os participantes parassem de tomar antidepressivos, experimentariam níveis de depressão com os quais poderiam ser incapazes de lidar.

“O medo (de recorrência, recaída ou de equilíbrio perturbado) foi a barreira mais importante; e tentativas anteriores alimentaram essas antecipações.”

Segundo os pesquisadores, a melhor solução para esse medo foi a explicação e a orientação clara que seriam apresentadas pelo médico prescritor: enquadrar o uso de antidepressivo como temporário no início do tratamento, bem como uma compreensão clara do processo de retirada para a descontinuação.

A segunda barreira para poder seguir o conselho médico em torno da descontinuação seria a crença na teoria de deficiência de serotonina: trata-se da noção de que os antidepressivos corrigem um desequilíbrio químico. Em suas entrevistas, os pesquisadores descobriram que essa crença equivocada estava ligada à ideia de que os participantes tinham uma doença ao longo da vida e que precisariam de antidepressivos indefinidamente.

“A deficiência de serotonina como explicação para a eficácia do antidepressivo promove o uso por toda a vida e dificulta a interrupção do tratamento com antidepressivos”.

Por exemplo, aqui estão as palavras de dois participantes diferentes que “rejeitaram o conselho e não interromperam” o medicamento:

“Eu só preciso disso. Para mim, isso não é uma doença psicológica, é física. E meu corpo não é capaz de produzir serotonina suficiente, então tomo a pílula para fornecê-la. ”

 “Ela (a clínica) me disse que eu deveria ver isso como tendo uma deficiência no cérebro, como alguém que sente falta de uma certa substância e que o medicamento a fornece. Ela me disse que é como alguém com diabetes que precisa de insulina pelo resto da vida. Bem, porque acredito nisso, então nunca questionei o meu uso.”

Segundo os pesquisadores, explicar biologicamente o sofrimento emocional “parece sair pela culatra, dificultando convencer o paciente a interromper o medicamento”.

No entanto, outros médicos descreveram claramente o uso de antidepressivos de maneira diferente. Outro participante disse: “Meu clínico geral deixou bem claro que (o antidepressivo) é apenas uma solução temporária, ajudará, mas que o problema está em outro lugar”.

Parece que a maneira como o médico prescreveu o uso de antidepressivos desempenha um papel significativo se a pessoa tentou seguir o conselho para interromper ou não.

Além disso, quando o médico foi visto como uma figura útil, que levava a sério as preocupações do paciente e o ajudava na descontinuação, os pacientes podiam ver isso como “uma rede de segurança” e assim iniciar o processo de redução gradual da droga.

Os pesquisadores escrevem que os médicos precisam estar cientes dos medos dos pacientes em relação à descontinuação, pois isso pode impedi-los de agir sob orientação médica. Eles também sugerem que os médicos se mantenham a par de novos métodos de redução e descontinuação de antidepressivos para minimizar os sintomas de abstinência.

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Eveleigh, R., Speckens, A., van Weel, C., Voshaar, R. O., & Lucassen, P. (2019). Patients’ attitudes to discontinuing not-indicated long-term antidepressant use: barriers and facilitators. Therapeutic Advances in Psychopharmacology, 9, 1-9. https://doi.org/10.1177/2045125319872344 (Link)

Abordagens holísticas: um tratamento comprovado no processo de retirada da droga psiquiátrica

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Se você estiver se sentindo cansado o tempo todo e lutando com pensamentos negativos, seu médico pode dizer que você está deprimido e oferecer ajuda bem-intencionada na forma de um antidepressivo. A ortodoxia médica dominante considera os antidepressivos seguros e eficazes para o tratamento dos principais sintomas depressivos, sob a suposição de que esses medicamentos reequilibram os níveis de serotonina no cérebro.[1] Combine o sofrimento com a promessa de uma solução rápida, e temos uma epidemia de indivíduos dependentes de receita médica identificados com seus rótulos de doenças mentais.

Mas a ideia de que os antidepressivos são a resposta para a depressão é uma falácia perigosa. Os antidepressivos podem realmente causar sua depressão e levar à discinesia tardia. [2, 3]

Os antidepressivos são notoriamente formadores de hábito. Ao querer se separar do medicamento, você pode começar a perceber o aparecimento de sintomas de abstinência, incluindo sintomas de gripe, nevoeiro cerebral, agitação aumentada, ataques de pânico, palpitações e / ou perda de cabelo.[4 ] É quando alguns médicos podem dizer que seus sintomas de abstinência são uma prova de que você deve permanecer com seus remédios, em vez de reconhecer a dependência fisiológica que esses medicamentos induzem. A retirada às vezes pode ser uma luta de anos. [5]

Mas o que realmente sabemos sobre o processo de retirada? A maior parte da literatura concentra-se nas indicações e benefícios dos medicamentos psicotrópicos, para negligenciar a exploração do processo de descontinuação de medicamentos. Com os sintomas de abstinência tão pouco estudados, como podemos apoiar efetivamente os indivíduos em seu processo de interrupção da medicação? Poderia haver objetivos clínicos para além do início ou da cessação da medicação … talvez incluindo a recuperação da vitalidade?

Doze pacientes vão além da psiquiatria

Publicado no periódico científico Advances in Mind Body Medicine, uma publicação recente feita por mim e pelos co-autores Alyssa Siefert, Emily Whitson, Leiah Kirsh e Virginia Sweetan é a primeira série de casos desse tipo documentada com a metodologia empregada na descontinuação bem-sucedidade uma gama de medicamentos psicotrópicos. O objetivo era obter uma melhor compreensão da retirada psicotrópica de drogas e o uso de intervenções holísticas de suporte em longo prazo.

Esses 12 pacientes foram divididos em dois grupos: A, em que os pacientes procuraram-me para reduzir a medicação psicotrópica e B, em que os pacientes procuravam apoio para seu humor ao longo de prolongados sintomas de abstinência.

Mas ambos os grupos foram tratados com regimes individualizados ao longo de vários meses, com os do grupo A reduzindo lentamente as dosagens semanais de medicamentos psicotrópicos sob minha supervisão e os dois grupos sendo tratados com abordagens holísticas.

Esses tratamentos focaram em três conceitos críticos:

  • Neuroinflamação, humor e eixo intestino-cérebro
  • Desintoxicação
  • Meditação

A resolução da neuroinflamação e o envio de um “sinal de segurança” ao sistema nervoso autônomo é o princípio principal da abordagem descrita. A otimização nutricional contribui para a resolução do desequilíbrio de açúcar no sangue, deficiências nutricionais e reações alimentares antigênicas, com foco no glúten e nos laticínios, o que pode levar à síndrome do intestino irritado. As estratégias de desintoxicação incluíam enemas de café, que demonstraram ajudar a sintetizar a glutationa, um potente antioxidante com um papel crítico nas funções de desintoxicação celular. Por fim, a meditação, especificamente a prática de meditação iogue de Kirtan Kriya, ajudou a aumentar a atenção dos pacientes e sustentar a recuperação da saúde mental.

Após o protocolo inicial de trinta dias, até quatro anos depois, esses pacientes passaram a usufruir do status de livre de medicamentos, remissão de sintomas e uma mudança de mentalidade em direção à priorização da autodescoberta e autoconhecimento em suas vidas.

Em seu seguimento, dois anos após a redução gradual, a paciente CO do Caso 3 disse: “Na verdade, estou indo muito bem. Sinto mais energia, minha mente parece mais clara e estou mais com meu verdadeiro eu do que em anos! Desde que cortei o glúten anos atrás e segui o protocolo do Dr. Brogan, não tive nenhum sintoma de ansiedade (pensamento ruminativo, pensamentos intrusivos etc.). ”

Paciente UI do caso 6: “me sinto bem; sabendo que meu processo não terminou, que ainda estou aprendendo e mudando. Mesmo quando os tempos ficam difíceis, quando alguma dor que foi enterrada há muito tempo na minha infância aparece sem motivo aparente, agora tenho muitas ferramentas para lidar com isso e acredito que isso irá desaparecer. ”

Prova de que há outra maneira

Uma das características mais interessantes deste estudo é que ele se concentra não apenas no desmame dos pacientes dos medicamentos psicotrópicos, mas também em como sustentar a remissão. Sem resolver a causa raiz dos sintomas iniciais, o desmame de medicamentos seria insustentável. Ao tratar os sintomas de humor e as doenças crônicas comórbidas, os tratamentos usados nesta série de casos demonstram os benefícios da integração da medicina holística e convencional no processo de redução gradual dos medicamentos psicotrópicos.

São estudos como esses que nos lembram que os sintomas podem ser uma oportunidade significativa de sintonizar as mudanças no estilo de vida que levam à saúde ideal por meio da resolução da incompatibilidade evolutiva. O protocolo descrito neste estudo representa uma abordagem de tratamento auto-implementada com a capacidade de resolver a dependência de medicamentos, rótulos psiquiátricos e uma experiência de si mesmo como “doente” por toda a vida, interrompendo a perspectiva alopática de que a doença mental é uma patologia genética, uma doença crônica ao longo da vida.

Com esta publicação, a literatura médica agora reflete que a cura radical de sintomas de “doença mental” devidos aos tratamentos com medicamentos psiquiátricos é realmente possível.

Notas de pé-de-página

  1. Castrén, E. Is mood chemistry? Nat Rev Neurosci. 2005 Mar;6(3):241-6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15738959
  2. Levine, H. (2018, September 24). Can Your Medications Cause Depression? Consumer Reportshttps://www.consumerreports.org/drugs/can-medications-cause-depression/
  3. Chouinard, G, & Chouinard, V-A. New Classification of Selective Serotonin Reuptake Inhibitor Withdrawal. Psychother Psychosom 2015;84:63-71. https://www.karger.com/Article/FullText/371865
  4. Shelton, R. C. Steps Following Attainment of Remission: Discontinuation of Antidepressant Therapy. Prim Care Companion J Clin Psychiatry.2001; 3(4): 168–174. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC181183/
  5. Stockmann, T, Odegbaro, D, Timimi, S, & Moncrieff, J. SSRI and SNRI withdrawal symptoms reported on an internet forum. Int J Risk Saf Med. 2018;29(3-4):175-180.

 

 

A revolta contra a psiquiatria: uma resenha do livro

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Bonnie Burstow (2019) A revolta contra a psiquiatria: um diálogo contra-hegemônico. Palgrave Macmillan, 243 páginas, $ 60 USD

 

O foco do novo livro de Bonnie Burstow, The Revolt Against Psychiatry, “não são os problemas que a psiquiatria apresenta, mas a tentativa de combatê-los”. No processo, levanta questões de vital importância sobre a sociedade como um todo.

Para o leitor em geral que pode se perguntar por que deve haver uma revolta contra a psiquiatria, Burstow resume as razões em um parágrafo com referências para futuras leituras.

Para o leitor em geral que pode perguntar por que deve haver uma revolta contra a psiquiatria, Burstow resume as razões em um parágrafo.

A psiquiatria é uma profissão cujos próprios princípios fundamentais se mostraram repetidamente não científicos e sem validade, cujo pensamento é confuso, que é flagrantemente egoísta e, além disso, cujos “tratamentos” têm sido demonstrados repetidamente como fazendo muito mais mal do que bem. O dano real causado a seres humanos vulneráveis é particularmente alarmante e é o que une as pessoas apresentadas neste livro. (p.2)

Este livro é dirigido a um público específico: “Pessoas que fazem parte da luta contra a psiquiatria e pessoas críticas à psiquiatria que desejam aprender mais sobre a revolta contra ela.” Seu objetivo é explorar como os ativistas podem reverter a força do poder psiquiátrico que “continua a crescer aos trancos e barrancos”. Burstow pergunta:

Que pressões podemos exercer para afrouxar o controle da psiquiatria? Habitualmente, parecemos estar perdendo a batalha; então, como podemos mudar a situação? (p.1)

Para responder a essa pergunta crítica, a autora entrevista 13 lideranças ativistas e, por sua vez, é entrevistada. Esses 14 diálogos formam o corpo do livro.

Os entrevistados vivem nos EUA, Reino Unido, Canadá, Chile, Alemanha e Índia. Eles incluem acadêmicos, profissionais radicais, estudiosos indígenas, um advogado, uma  mãe enlutada e um jornalista. Muitos também são sobreviventes psiquiátricos.

Fiquei impressionada com a coragem e determinação desses ativistas que persistem contra desafios pessoais, oposição social e repetidos contratempos. Se eles se recusam a desistir, nós também não devemos. Ao mesmo tempo, é preocupante ver pessoas dedicadas trabalharem tanto e por tanto tempo com tão pouco progresso.

Quando as estratégias que devem funcionar não funcionam, precisamos repensar nossa compreensão do problema. Estamos atacando a psiquiatria em sua raiz ou nos seus ramos? Como podemos distinguir raiz de ramo? Burstow não aborda essas questões. Em vez disso, a discussão se concentra na tensão entre os esforços para reformar a psiquiatria e os esforços para aboli-la.

Obstáculos

Nenhum dos entrevistados espera que a psiquiatria possa ser reformada ou humanizada. No entanto, há pouco acordo sobre a alternativa.

O psiquiatra Peter Breggin enfatiza a importância de se divulgar os fatos e “expor a ciência”. Burstow responde: “Expor os fatos é essencial, eu concordo. Ao mesmo tempo, foi demonstrado que não é remotamente suficiente como estratégia. ”(P.40)

Lauren Tenney compartilha sua experiência de como a política de identidade (adotando o rótulo psiquiátrico como identidade pessoal) pode reforçar o modelo psiquiátrico de sofrimento.

Quando alguém desafia a existência de um distúrbio em um grupo do Facebook, vi pessoas literalmente se voltando para o moderador e dizendo: ‘Essa pessoa está me machucando’. (P.70)

Racismo

Várias entrevistas enfatizaram a necessidade de desafiar o racismo psiquiátrico.[1] Tenney ressalta,

Na cidade de Nova York, com as equipes de Tratamento de Ação Assertiva, 18% das pessoas submetidas a tratamentos ambulatoriais involuntários são brancas, o restante, pessoas de cor. E, de maneira mais geral, os ataques psiquiátricos mais pesados chegam a pessoas de cor. E até que esse movimento se torne reflexivo de quem exatamente está sendo perseguido pela psiquiatria, estaremos tristemente errando o alvo. (p.77)

A pesquisadora Dra. China Mills é um dos principais críticos do Movimento pela Saúde Mental Global porque “reconfigura a resistência ao colonialismo como doença mental”, a fim de “deslegitimar essa resistência” [2].

Você pode ver quase que a mesma linguagem em muitos dos escritos sobre Saúde Mental Global como a que você vê nos escritos coloniais clássicos. Você vê a mesma agressão ou demonização de outras formas de cura na medida que elas são vistas como irracionais. (p.203)

Mills conclui que é impossível “descolonizar práticas como a Saúde Mental Global ou a psiquiatria” porque “a psiquiatria e a psicologia estão ligadas ao pensamento colonial e ao racismo científico”. (P.194)

O estudioso indígena Michael fornece um exemplo do modelo medicalizante:

Acabei de visitar minha reserva semana passada. Que bagunça! Há um médico em período integral lá fazendo nada além de prescrever medicamentos psiquiátricos. E isso não faz sentido. Nunca houve um médico presente quando as pessoas estavam doentes de doenças reais. Nem mesmo um dentista. (p.153)

Abolição

Em sua própria entrevista, Burstow descreve algumas das experiências angustiantes que a obrigaram a se tornar uma ativista antipsiquiatria, co-fundou a Coalizão Contra o Ataque Psiquiátrico em Toronto e estabeleceu a inovadora Bolsa Bonnie Burstow em Antipsiquiatria.

Quando perguntado o que ela quer dizer com “abolindo” a psiquiatria, Burstow responde,

Não apenas [a psiquiatria] deixar de ter poder do Estado, como também não seria sustentada pelo Estado. Não receberia financiamento, não seria promovida pelo Estado. Deixaria de ser oficialmente reconhecida como uma disciplina “médica”. “(P.167)

Questionada sobre como a abolição poderia ser alcançada, ela explica:

Tanto quanto posso ver, existem dois caminhos a seguir, e um é a oposição direta. Foi o que Gandhi fez quando disse: violaremos suas leis e obstruiremos os negócios como os existentes. E a outra é criar experimentos, experimentando novas maneiras de ajudar as pessoas. (p.202)

Burstow observa que ações bem-sucedidas exigem alavancagem.

A alavancagem de Gandhi surgiu do grande número de pessoas envolvidas – dificilmente você poderia prender toda a população da Índia. E pode-se entrar em greve e comprometer a economia – o que é também alavancar. Aqui está a dificuldade: pessoas psiquiatrizadas quase não têm influência. Este é um grupo que é drogado e tem dificuldade em sustentar a ação. (p.213)

Financiamento

Kim Wichera na Alemanha, Ian Parker no Reino Unido e Tatiana Castillo no Chile descrevem a dificuldade de obter fundos para serviços alternativos sem sucumbir ao controle do Estado. Na Berlin Runaway House, “uma casa altamente solidária e democrática para os sem-teto que tentam escapar da psiquiatria”

Não temos permissão para abordar certos tipos de coisas em nossa casa. Por exemplo, temos que ter uma certa porcentagem de assistentes sociais. E isso está ligado à questão do financiamento. Temos que ter pelo menos uma assistente social em casa para cada dois residentes. (p.88)

Castillo relata,

É difícil para nós adquirir espaços de graça, e as universidades nos ajudam muito com isso. Mas agora eles podem querer colocar a sua marca em nossos eventos e ter alguma opinião sobre o que fazemos. (p.111)

Burstow descreve o destino da Soteria House na década de 1970:

Uma das coisas que sabemos sobre a Soteria House original é que ela funcionou tão incrivelmente bem que as autoridades a fecharam, pois era uma prova clara de uma realidade que o estabelecimento não queria saber: que os chamados esquizofrênicos não precisam use drogas – de fato, eles se recuperavam sem elas. Cortar o financiamento, é isso o que as autoridades fazem quando algo não médico é mostrado como realmente funciona. (p.131)

Para contornar as limitações da ação direta e a falta de financiamento, Burstow propõe um “modelo de atrito”.

O modelo de atrito da abolição da psiquiatria baseia-se na consciência de que você não pode se livrar da psiquiatria durante a noite. Se você quer a abolição da psiquiatria, precisa se desgastar pouco a pouco na instituição. (p.215)

Na melhor das hipóteses, uma estratégia de desgaste pode morder os calcanhares da gigante psiquiátrica, e Burstow reconhece que é necessário muito mais.

Revolução

Tatiana Castillo apela à revolução:

Não precisamos de uma revolução no que é chamado de “saúde mental”, mas de uma revolução social maior. (p.117)

Don Weitz concorda:

Eu não acho que a organização nos EUA ou no Canadá tenha tornado o sistema social visível. Precisamos de um ataque ao próprio sistema. (p.129)

Robert Whitaker concorda: “Precisamos ter uma ‘revolução’. Precisamos começar de novo”.

Você tem que refazer tudo. E não apenas a instituição [da psiquiatria]. Você precisa refazer toda a resposta da sociedade sobre como cuidamos de nós mesmos e uns dos outros. (p.62)

Como podemos refazer tudo quando o Estado é tão eficaz em neutralizar a oposição ao status quo?

Cooptação

A advogada de direitos humanos Tina Minkowitz lamenta o “eterno problema” da cooptação, onde ativistas individuais e programas inovadores são absorvidos pelas instituições estabelecidas e se tornam ineficazes.

Minkowitz ajudou a redigir a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que declara: “a detenção baseada na deficiência é ilegal sob o direito internacional e obriga os estados a remover esse poder da psiquiatria”. A implementação dessa decisão foi um grande desafio.

Fomos marginalizados por mudanças na Aliança Internacional para Deficiências [AID], que foi assumida pelos funcionários, resultando em uma centralização do poder. A AID tornou-se uma maneira de a ONU “administrar” o movimento internacional da deficiência. (p.171)

A Parker expressa preocupações semelhantes:

Cada vez mais psiquiatras estão treinando [Open Dialogue] e convertendo-o em psiquiatria. E está funcionando como uma nova oportunidade para a psiquiatria colar as pessoas essencialmente em suas famílias. (p.101)

O estudioso indígena Roland Chrisjohn condena como o Estado impõe condições genocidas às comunidades indígenas e, em seguida, atrai prestadores de serviços indígenas para sistemas psiquiátricos que patologizam a raiva e o desespero legítimos de seus próprios povos.[3]

Por que apelamos ao Estado para aliviar a opressão quando o Estado é uma fonte de opressão tão potente? Burstow enfatiza: “Qualquer que seja a intenção, recorrer ao opressor é a solução que só pode levar ao desastre.” (P. 21)

Dilema

A entrevista de Tenney aborda o dilema de como equilibrar a necessidade de ativismo político com a necessidade de apoio social imediato. Esse problema confunde todos os movimentos contra a opressão.[4]

Quando a necessidade de apoio imediato é esmagadora, como normalmente acontece, os esforços para suprir essa necessidade podem desviar a energia da luta política mais ampla. No entanto, sem uma luta política vibrante, os apoios alternativos estremecem ou são absorvidos pelas instituições estabelecidas.[5]

O desafio é proporcionar alívio imediato (reforma) e também organizar-se contra o sofrimento sistêmico (revolução) de maneira a promover os dois objetivos. Grupos da Internet não podem resolver esse problema. Como afirma Tenney,

Com um grande número de pessoas diferentes, de uma forma ou de outra, conectando-se através do meio, o que você tem não é mais indivíduos com a mesma mentalidade se reunindo. E o que resulta disso é conflito. Também propósitos cruzados. Enquanto estou tentando organizar o ativismo, outros estão usando esses locais em grande parte como um local de apoio mútuo. E esses objetivos muito diferentes realmente não funcionam bem juntos. (p.73)

Burstow e Mills discutem brevemente se devemos ou não apoiar os esforços para manter ou expandir os serviços de ‘saúde mental’. Deveríamos agradecer a perda de tais programas como um benefício social que enfraquece o domínio da psiquiatria? Ou isso encorajaria o Estado a financiar serviços benéficos, como assistência à infância, benefícios por incapacidade e assistência habitacional?

Em nível prático, devemos apoiar os prestadores de serviços que estão em greve para melhorar o acesso à psicoterapia? [6 ] Ou devemos nos opor aos seus esforços para aumentar o alcance da psiquiatria e do lado dos seus empregadores e do Estado? Aumentar o poder do Estado para esmagar as demandas dos trabalhadores facilita a opressão de todos os rebeldes.

Para resolver esse problema, precisamos entender a natureza do Estado moderno e distinguir entre lutas que podem desafiar a fundação da sociedade existente e aquelas que podem ser cooptadas para fortalecer o sistema como um todo.[7]

O Estado

A classe capitalista criou o Estado moderno como uma arma para derrotar a aristocracia feudal. No processo de centralização do poder do Estado,

Todo interesse comum foi imediatamente separado da sociedade, arrancado das atividades dos próprios membros da sociedade e transformado em objeto de atividade do governo – de uma ponte, uma escola e uma propriedade comunitária de uma aldeia, às ferrovias, à riqueza nacional e à Universidade Nacional da França.[8]

O Estado capitalista removeu o controle da medicina da Igreja, assumindo o treinamento e o licenciamento de profissionais médicos que, por sua vez, deviam satisfazer as demandas do Estado, que incluíam o controle de “pessoas loucas” [9].

Os médicos resistiram a serem vistos como agentes do controle do Estado, por isso criaram um falso senso de autonomia ao interpretar as demandas do Estado como problemas médicos que necessitam de tratamento. Joanna Moncrieff escreve,

Explicações médicas para a loucura e a abordagem médica do tratamento são enxertadas em um sistema mais antigo de organização e controle social. Uma vez transformada em medicalização, ela obscurece as funções subjacentes, mas o sistema permanece, em essência, um empreendimento moral e político.[10]

Interpretar sofrimento, não-conformidade e rebelião enquanto problemas médicos muda a responsabilidade de um sistema social defeituoso para indivíduos ‘defeituosos’ que precisam de tratamento ‘. Hoje, todas as disciplinas médicas, não apenas a psiquiatria, localizam a patologia no indivíduo e, na prática, desconsideram o impacto prejudicial das condições sociais.[11]

Minkowitz acredita que o progresso dependerá de “romper o relacionamento entre o estado e a psiquiatria”. (P.162) Isso é possível?

O sistema médico forma um ramo de um aparato estatal que, como Marx escreveu, “envolve a sociedade viva como uma jibóia”. O Estado define o que é medicina: as escolas e instalações médicas são reguladas pelo Estado; somente profissionais licenciados pelo Estado podem praticar medicina; e os profissionais médicos são obrigados a fazer cumprir as leis do Estado, mesmo que isso prejudique seus pacientes.

A classe capitalista exige que um Estado repressivo imponha seu domínio sobre a sociedade. Se pudéssemos separar o ramo da psiquiatria da árvore do Estado, teria que se criar outro ramo para servir a mesma função de controle social. Portanto, qualquer estratégia para abolir a psiquiatria que não inclua o desmantelamento do Estado e o fim da regra de classe pode, na melhor das hipóteses, substituir uma forma de coerção do Estado por outra.

Poder Social

A oposição à coerção psiquiátrica é desastrosa porque não tem potencial revolucionário por si só. Tivemos ganhos na década de 1970 porque combinamos forças com outros movimentos contra a opressão. Perdemos esses ganhos, como todos os grupos oprimidos, porque nos deixamos dividir.

Para adquirir o poder social que precisamos para arrancar a psiquiatria coercitiva e o Estado que a exige, devemos unir forças com todos os outros grupos oprimidos e, especialmente, o maior grupo oprimido, a classe trabalhadora.

Os trabalhadores são sistematicamente privados do poder social e econômico. Sua opressão se manifesta em saúde desproporcionalmente pior, menor tempo de vida, escolas inferiores, mais exposição a toxinas industriais, mais pobreza e maior estresse.

Enquanto indivíduos oprimidos podem ser encontrados em todas as classes sociais, a natureza discriminatória da opressão mantém a maioria deles na classe trabalhadora. Como resultado, a classe trabalhadora não é apenas o maior grupo oprimido, mas também inclui o maior número de pessoas de todos os outros grupos oprimidos, incluindo os psiquiátricos oprimidos.

Os trabalhadores têm um poder coletivo maciço. Eles podem interromper o fluxo de lucro e redirecionar a produção para atender às necessidades humanas. Essa é uma alavancagem!

Solidariedade

Para exercer seu poder, os trabalhadores devem colocar seus interesses comuns à frente de suas diferenças. É uma questão de praticidade. Trabalhadores que estão juntos podem ganhar mais. Aqueles que não conseguem desafiar o sexismo, o racismo e outros fanatismos divisivos são derrotados.

Atualmente, os protestos contra o governo estão varrendo o mundo, à medida que milhões de pessoas se levantam contra décadas de austeridade e desigualdade cada vez maiores. Protestos prolongados perturbam a sociedade, forçando as pessoas comuns a organizar a provisão de comida, creche e assistência aos aflitos de novas maneiras que atendam às suas necessidades, não às de seus governantes.[12]

Se a revolta global se tornar poderosa o suficiente para acabar com o governo capitalista, essas novas formas de organização podem crescer na nova sociedade de que tanto precisamos, uma sociedade que trate a todos como igualmente dignos de contribuir e igualmente dignos de satisfazer suas necessidades.

À medida que o capitalismo se afunda mais profundamente na crise, as raízes sistêmicas da opressão se tornam mais óbvias, assim como a necessidade de solidariedade na ação. Hoje,

Uma nova geração de ativistas está procurando identificar e explicar como militarismo, imperialismo, armas nucleares, degradação ambiental, desigualdade econômica bruta e desumanização por raça, religião, gênero e sexualidade se reforçam e se legitimam, e muitos concluíram que ninguém pode efetivamente se opor sem abordar todos eles. [13]

Conclusão

O valor deste livro está em seu estilo de conversação, na diversidade dos entrevistados e em um animado formato de resposta a perguntas que convida o leitor a entrar na conversa. Muito mais questões foram levantadas do que poderiam ser tratadas nesta revisão.

Apesar de um preço elevado que o coloca fora do alcance de muitos ativistas, recomendo The Revolt Against Psychiatry como um trampolim para uma discussão mais ampla sobre como podemos combater o estrangulamento da psiquiatria.

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  11. Rosenthal, S. (2019). Rebel Minds: Class war, mass suffering, and the urgent need for socialism. ReMarx Publishing
  12. Orwell, G. (1938). Homage to Catalonia
  13. Appy, C.G. (2019) Recovering the legacy of GI dissent, in Carver, R., Cortright, D. & Doherty, B. (Eds). Waging peace in Vietnam: U.S. soldiers and veterans who opposed the war. New York: New Village Press

Identidade e Emancipação: a experiência de usuários de CAPS no Blog Libertando a Mente

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Recentemente falamos aqui no Mad in Brasil sobre o Libertando a mente, um projeto de que utiliza o blogue como ferramenta de inclusão digital e social. Hoje o Blog Libertando a Mente está no ar e vamos falar um pouco sobre os processos que envolveram o lado social dessa dupla proposta de inclusão.

Em abril de 2018 um grupo de usuários do Centro de Atenção Psicossocial Carlos Augusto da Silva Magal (CAPS-Magal) ocupou uma sala do Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (Laiss) na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Naquela ocasião funcionários do Caps souberam das atividades de inclusão digital realizadas pelo laboratório e enxergaram ali uma oportunidade. A situação foi um pouco caótica e suscitou nos profissionais presentes a necessidade de um método. A experiência deu origem ao projeto de divulgação científica “Eu quero entrar na rede: um blogue sobre saúde mental construído por pessoas em sofrimento psíquico”, que alguns meses depois seria aprovado no Edital para Projetos de Divulgação Científica da Vice-presidência de Educação, Informação e Comunicação da Fundação Oswaldo Cruz (VPEIC/FIOCRUZ).

O Projeto aprovado contava a coordenação do professor Paulo Amarante e formava uma parceria entre o Laiss, o CAPS Mangal e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS). Uma equipe multidisciplinar, que incluiu profissionais da área da saúde e das ciências humanas e sociais dos três parceiros, passou a pensar como o se daria essa experiência comunicativa. Tendo como base projetos de inclusão anteriormente realizados no Laiss pelo professor André Pereira Neto, ficou definido que os 10 usuários selecionados pelos profissionais da CAPs Magal receberiam uma bolsa de 100 reais e os encontros seriam semanais no Laiss, sob minha mediação.

Cidadãos sem documentos

No primeiro dia a equipe do Laiss esperava pelos usuários no laboratório, eles seriam acompanhados até lá por um profissional do CAPs. No horário marcado eles não chegaram, 10 minutos de atraso se seguiram à uma ligação do profissional que os acompanhava avisando que eles não poderiam entrar pois estavam sem seus documentos. A sede da Fiocruz fica localizada na Cidade do Rio de Janeiro, entre as comunidades de Manguinhos e da Maré, e possui duas entradas, uma de cada lado, pela Avenida Leopoldo de Bulhões e pela Avenida Brasil. É exigido, daqueles que entram a pé no espaço da instituição, documentação de identificação.

O episódio se repetiria mais algumas vezes e acabou gerando o questionamento: por que várias dessas pessoas, moradoras de comunidade constantemente expostas à violência, não portavam documentos de identificação? A resposta foi simples e cruel: porque depois de anos de curatela, silenciamento e limitação de acesso à diferentes tipos de espaço, alguns deles não apreenderam esse código de convivência que, por mais simples que seja, compõe o “ser cidadão”. Eles vinham de uma vivência limitada de cidadania, o que José Murilo de Carvalho1 vai chamar de cidadania incompleta.

O primeiro passo do projeto não foi ensinar sobre a reforma psiquiátrica ou comunicação, mas, nesse ponto, sobre ser um cidadão ‘comum’. Esse processo envolveu a desconstrução de profissionais envolvidos no projeto e dos próprios usuários. Como nós profissionais, desde sempre cidadãos e constantemente portadores de direitos e deveres, entre eles o de se identificar quando solicitado por uma autoridade, poderíamos ensinar para um indivíduo socialmente silenciado e invisibilizado que ele precisava andar com seus documentos? E ainda mais importante: como um indivíduo considerado louco, vítima constante de estigmatização, pode entender que ele é cidadão comum? Nessa experiência está refletida a cidadania do doente, citada por Susan Sontag2 em sua reflexão acerca da doença como metáfora. Uma cidadania que é diferente para saudáveis e adoecidos.

O começo do projeto envolveu uma conversa com os usuários acerca dos perigos que envolviam moradores de favela, alguns deles negros e especialmente atingidos pela violência urbana a que todos estão expostos, circularem por territórios violentos sem nenhuma forma de identificação. Iniciado o processo de compreensão acerca do tema, cada um ganhou um crachá que os identifica como alunos do Laiss e permite a circulação no espaço da Fiocruz. Foi surpreendente como aquele pedaço de papel dentro de um plástico pendurado por um cordão foi emancipador.

O território da ciência

Eles não dependiam mais de um profissional do CAPs para entrar da Fiocruz, não eram mais intrusos naquele espaço da ciência. Tal fato se tornou visível em uma primeira atividade de texto, na qual foi solicitado que eles fizessem um pequeno relato sobre o que sabiam da Fiocruz e sua relação com ela. Em geral eles falaram da experiência de serem bem recebidos e alguns deles falaram sobre a admiração que tinham com a instituição, mas que era acrescida do distanciamento, de um olhar estrangeiro, como é possível perceber em um dos relatos:

Bem, apesar de nunca ter entrado no núcleo da Fiocruz, sempre tive curiosidade em conhecer o lugar. Sempre passei pela Av. Brasil e observava o museu que até mesmo a distância é notável.”

Mesmo sendo moradores da região e tendo o Castelo símbolo da instituição como parte do cenário cotidiano, eles eram externos à ela. Uma parte deles nunca havia entrado na Fiocruz ou apenas para eventos para externos, como campanhas de vacinação, com exceção de um deles que havia feito um curso de agente comunitário. Essa é uma questão que nos leva a pensar como na maioria das vezes o ‘território’ do qual tanto falamos em nossos estudos de saúde carregam em si uma lógica de alteridade. Mesmo pensando o território como simbólico, quando tratamos de regiões periféricas e de favela ele é na maioria das vezes lá fora, ocupado por indivíduos outros.

Pouco a pouco, a liberdade de circular pela Fiocruz fez deles parte. Se transformaram de pessoas que não carregavam documentos e eram barrados na portaria, a transeuntes comuns que passam pelos seguranças da portaria de cabeça erguida. 

O relato de outro usuário mostra como a identificação como alunos indiferenciados, sem a marca do estigma, permitiu a eles uma nova experiência como indivíduos, permitido a construção de relações mais iguais e um sentimento de pertencimento ao espaço científico:

O Laiss que abriu as portas para nós entramos no mesmo mundo que as pessoas “normais” vivem, no projeto “Eu quero entrar na rede”. Então a primeira visão que eu tive sobre a Fiocruz foi ótima, pessoas bem receptivas, segurança e é um lugar super calmo e respeitoso. Todas as pessoas são educadas conosco, não somos vistos apenas como pessoas especiais e sim como alunos de um novo projeto.”

Essa experiência nos mostrou que pensar saúde mental é pensar a identidade. Pensar novas formas de construir o saber sobre saúde mental e também novas formas de construir o ser indivíduo e cidadão. Desconstruir os muros mentais é fazer de qualquer território o território da loucura e da ciência, e portanto, de inclusão e emancipação.

Bibliografia:

1 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

2 SONTAG, Susan. A doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. Rio De janeiro: Companhia de bolso, 2007.

Coringa e Saúde Mental

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Publicado na Radis, seu primeiro podcast de “Na escuta”.  É Uma análise do filme O Coringa.

“No primeiro podcast (conteúdo em áudio disponível na internet) produzido pela Radis, o pesquisador Fernando Freitas, do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz), conversa com o editor Adriano de Lavor sobre as questões de saúde mental levantadas pelo filme Coringa. ‘O Coringa passa a vida inteira sendo desprezado, humilhado, não tendo lugar ou vez. Até mesmo como usuário do sistema de saúde. Fica evidente a precariedade com que o Estado trata as questões mentais. O usuário não é ouvido, as suas experiências não são consideradas relevantes’”.

Veja e ouça a matéria na íntegra, clicando aqui →

Psicofármacos e Mulheres brasileiras: sobre o que nos fala essa relação?

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Mulheres e Psicofármacos. Esta combinação que não se estreia nas páginas deste artigo encontra nos meandros da história muitos caminhos e descaminhos. Entre tentativas de cura, terapêutica e cuidado, a verdade é que muito se foi produzido no palco da patologização e medicalização de corpos considerados femininos e, especialmente, daqueles que, sendo femininos, não foram reconhecidos como tal, e, logo, seguiram adoentados pela ciência vigente.

Vale lembrar que nos primeiros escritos psiquiátricos já encontrávamos publicações como Système Physique et Moral de la Femme, de Roussel, de 1755, Rapports du Physique et du Moral de L’Homme, de Cabanis, de 1803, e Histoire Physiologique de la Femme, de Lachaise, de 1825. Para os autores citados, as diferenças entre homens e mulheres se expressariam organicamente e apontariam para a inferioridade feminina e predisposição para o enlouquecimento. A noção de que “na medida em que são mulheres, são também doentes e são doentes porque são mulheres” (ROHDEN, 2001, p. 30) ocupou os tratados psiquiátricos dos séculos XVIII e XIX através de estudos que se voltavam para ossos, pélvis, crânios e sangue de mulheres, a partir do interesse no orgânico louco “feminino” (ROHDEN, 2001).

Ao relacionar sexo e gênero, pelo viés dos órgãos genitais, a medicina passou a definir cientificamente a lógica cisgênera. Ou seja, o padrão de normalidade restringiu-se às pessoas que se identificam com o gênero a elas designado, numa relação entre vagina e sexo feminino, assim como pênis e sexo masculino. Desta forma, patologizou-se a homossexualidade e a transexualidade, classificado-as como desvio sexual e distúrbio mental. Apenas na década de 1990 ser gay, lésbica ou bissexual deixou ser considerado uma patologia e somente no ano de 2018 a OMS retirou a transexualidade da lista de doenças mentais. Apesar disso, a medicalização de uma sexualidade doente ainda se faz presente, como nos lembra v, 2015.

Vale pontuar que os métodos que definiram a normalidade e a anormalidade femininas, pela Psiquiatria, aproximaram- se da ciência racial, tanto em relação aos seus recursos quanto às superioridades do corpo não só do homem, mas também do branco. As hierarquias raciais e de gênero, afirmadas por determinadas medicinas, construíram e reforçaram estereótipos de lascívia, perversão e desordem mental relacionadas às mulheres negras (CUNHA, 1989).

O fortalecimento da lógica médica hegemônica sobre as mulheres ganha força, nos dias atuais, através da medicalização. Neste processo amplo, situações como dificuldades econômicas e sociais, questões próprias da vida individual ou coletiva passam a ser definidas e tratadas como condições médicas. Apesar de não se reduzir ao uso de medicamentos, este pode ser um importante analisador da medicalização de sofrimentos, queixas e demandas sociais de mulheres, muitas vezes se baseiam em certos padrões relacionados ao “feminino”.

Já no início do século XX, propagandas de fármacos relacionavam a imagem da mulher  à geradora e cuidadora do lar, estando sua sanidade física e mental relacionada ao útero e aos ovários sadios.  O tônico “A Saúde da Mulher” prometia a ação contra doenças e a rápida suspensão da menstruação e regulação dos ciclos menstruais. Os anúncios garantiam, inclusive, que crises conjugais poderiam ser amenizadas, uma vez que atitudes intempestivas, consideradas típica das mulheres, estariam estabilizadas graças ao controle de seu corpo feminino. O organismo vulnerável e a ciência como moderadora dessas apreensões era a ideia a ser vendida:

“Mas esquecem as Senhoras de que si por um lado a Natureza estabeleceu para a Mulher um organismo delicado, sujeito permanentemente a complicações de toda a sorte, a Sciencia põe a seu alcance os meios de corrigir-lhe as irregularidades e prevenir os soffrimentos. Um dos meios, por exemplo, que está ao alcance de todas as mulheres, de todas as idades: o uso d’ A Saude da Mulher.”

(A SAÚDE DA MULHER apud CUNHA; NASCIMENTO, 2007).

Essa proposta ainda não se tornou obsoleta. Mastroianni et al (2008), em pesquisa sobre propagandas de medicamentos psicoativos no país, revelaram a construção da depressão e da ansiedade como sintomatologias femininas. Nas propagandas houve predomínio de mulheres (62,8%), sendo estas quatro vezes mais frequentes que os homens. Nestas, eram retratadas uma maioria de jovens adultas, brancas, em atividade de lazer, em suas casas ou em contato com a natureza. Os autores concluíram que a mensagem transmitida era a de que os medicamentos tratam sintomatologias de desconforto do dia-a-dia, induzindo a um apelo da prescrição medicamentosa. E aqui podemos somar: relacionando o bem viver à juventude e à branquitude.

A apresentação de fármacos como soluções de tratamento para o orgânico feminino louco vem ganhando dimensões notáveis. Carvalho e Dimenstein (2003) realizaram um levantamento de estudos que se voltavam para o tema, realizados na década de 1980 e 1990, e destacaram dados que se repetiam em diversos locais do país: mulheres como maioria de consumidoras. Aproximando-nos de pesquisas mais recentes, Prado, Francisco e Barros (2017) apontaram que o uso dos psicofármacos foi 48% maior em mulheres. Destes, 52,6% eram medicamentos antidepressivos.

Assini e Back (2017), voltando-se para farmácias privadas em Monte Carlo (SC), concluíram que as mulheres representavam 68% das usuárias. Pesquisando em serviços públicos de saúde, Mendonça e Teixeira (2005) constataram que as mulheres representaram 63,4% das usuárias desses medicamentos. Diehl, Manzini e Becker (2010) apontaram para que as mulheres representam 81, 5% das usuárias de medicação antidepressiva em um Centro de Saúde em Florianópolis. Carlini et al. (2006), em inquérito realizado em 108 cidades brasileiras, verificou que 69% das pessoas que faziam uso de medicação psicotrópica eram mulheres, sendo estas as principais consumidoras de medicamentos benzodiazepínicos sem prescrição médica. Já Rabelo (2011), em duas cidades de Goiás, observou que às mulheres eram receitadas 2,07 vezes mais ansiolíticos do que aos homens, uso que se mantinha por volta de 9 a 10 anos. Na pesquisa de Mendonça et al. (2008), as mulheres também consumiam duas vezes mais ansiolíticos que os homens, número que aumentava conforme o avanço da idade.

Nas entrevistas realizadas por Carvalho e Dimenstein (2003) com usuárias e médicos, a eliminação dos “sintomas” apareceu diretamente vinculada com a medicação, mesmo que reconhecido que os sofrimentos se referiam às questões sociais ou familiares. Para os profissionais entrevistados por Oliveira et al. (2011), a medicação era entendida como “coisa de mulher”, e como o que poderia manter a tranquilidade, chegando mesmo à conclusão de que: “a cachaça está para o homem assim como o Diazepam está para a mulher”. Já na pesquisa de Mendonça et al. (2008) os médicos associavam a velhice das mulheres a uma fragilidade emocional, sendo o remédio necessário para que a vida doméstica fosse mantida e se evitassem rancores, ressentimentos e se promovesse a harmonia familiar.

Para ginecologistas e obstetras, entrevistados por Gilbert et al. (2006), as mulheres utilizariam dos sofrimentos mentais ou “adoeceriam” o próprio corpo para fugir de obrigações sociais e familiares ou mesmo como simulação a fim de se obter atenção. Nas falas dos profissionais, as mulheres eram marcadas por um “drama, mas também foi usual a figura da “promíscua”. Nos dois casos, seria papel do médico manter a sexualidade das mulheres sob controle, a partir de um equilíbrio hormonal, medicação psiquiátrica ou mesmo conselhos.

Essas pesquisas nos aproximam de um importante processo de medicalização como fio condutor de uma lógica de atenção tecnicista, dicotomizada e fragmentada. Como chamam atenção as pesquisas citadas, muitas vezes, as mulheres que buscam os serviços de saúde em busca de medicação têm demandas graves de emprego, moradia, salário justo, educação, assim como procuram o setor médico com queixas relativas a conflitos cotidianos e familiares. Em muitos casos, a medicação acaba sendo uma resposta rápida e superficial até mesmo a sofrimentos vinculados ao racismo (RABELO, 2011).

As ponderações sobre o racismo são fundamentais em nossa discussão, principalmente considerando a escassez de estudos que se voltem para o processo de medicalização referente às mulheres negras e travestis ou transexuais, apesar do aumento dos estudos sobre o público feminino. Mesmo no material sobre a medicalização da vida, construído pelo Ministério da Saúde (2018), os aspectos referentes a raça/ etnia não ganham centralidade.

Nesse contexto, o estudo de Medeiros Filho et al (2018) merece destaque ao se perguntar sobre a questão racial em uma pesquisa sobre o uso de psicofármacos em uma USF. Os pesquisadores desvelaram que, entre os usuários, houve uma prevalência de mulheres pretas e/ou pardas, com baixa renda e escolaridade, que desempenhavam atividades laborais em casa e com adoecimento crônico.

Salvo o estudo supracitado e algumas outras exceções, de maneira geral, os dados sobre as mulheres racializadas e o uso desses medicamentos ganham destaque apenas em pesquisas que se voltam para instituições asilares, prisionais ou de cumprimento de medidas socioeducativas [1]. O  silenciamento em relação às mulheres negras, mas também em relação às mulheres travestis e transexuais e seu cotidiano patologizado  nos convoca:  com que mulheres de fato nos preocupamos quando falamos de medicalização do corpo feminino?

O aumento expressivo de psicotrópicos e ansiolíticos por usuárias da rede de saúde pública brasileira nos aponta para que as consumidoras são, em sua maioria, mulheres pobres e negras, a quem o Estado não chega pelas políticas públicas de assistência, saúde, educação, trabalho, cultura e lazer, mas a quem rapidamente apresenta seus braços através de instituições asilares e alto índice de uso de medicamentos. Mulheres que vivem as duplas jornadas de trabalho, e que são, atualmente, as principais chefes de família, responsáveis pelas crianças, doentes e idosos. Mulheres que, quando habitantes de territórios de favela, vivenciam a violência cotidiana e acompanham seus filhos vítimas diretas ou indiretas do tráfico ou do Estado repressor e apenas encontram o remédio psiquiátrico como resposta em serviços públicos cada vez mais sucateados e precarizados.

Acionamos a interseccionalidade, forjada pelas feministas negras [2], e importante disparador conceitual de feministas indígenas, comunitárias e do sul global. Critica-se, aqui, qualquer tentativa de redução das mulheres -em suas experiências de opressão, exploração e agências -a uma homogeneização. Marcadas pelas relações de gênero, mas também de raça, classe, orientação sexual, identidade de gênero, religiosidade, estatuto migratório, idade, entre outras, a patologização de mulheres se apresenta interseccionalizada nas práticas e ações psiquiatrizantes, diferenciando mulheres de homens, mas também as mulheres entre si, através de relações hierarquizadas que se acirram quanto mais sofisticado se torna o método de medicalização que ganha materialidade nos corpos daquelas sobre quem recai.

Referências Bibliográficas

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Obs. Este artigo sintetiza problemáticas e debates apresentados nos artigos Pereira e Amarante (2017) e Pereira (2018)

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Notas de pé de página:

[1] Importantes estudos são os de Magno (2019) e Arruda (2017)

[2] A autoria do conceito é referenciada a feminista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw, que o utilizou pela primeira vez no final da década de 1980. Apesar disso, vale lembrar que outras ativistas e teóricas já apontavam para a importância de se considerar as relações raciais nos debates sobre gênero, a exemplo das brasileiras Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, entre outras.

Alternativas ao “modelo biomédico” da Psiquiatria

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O 3 Seminário Internacional A EPIDEMIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS foi um êxito. Neste ano foram dois os principais focos: alternativas ao diagnóstico psiquiátrico e alternativas ao tratamento psicofarmacológico.

O diagnóstico psiquiátrico e o tratamento psicofarmacológico são os dois pilares que sustentam o modelo “biomédico” da Psiquiatria. Uma falácia científica dominante na assistência em saúde mental. Um modelo para dar conta da saúde mental e que produz resultados práticos nefastos para a maioria dos seus usuários, sejam os profissionais de saúde, sejam principalmente os próprios pacientes.

Você pode ter acesso ao conteúdo de todo o Seminário no Youtube.

Aqui eu coloco como destaque o que Lucy Johnstone (Reino Unido) e Peter Groot (Holanda) trouxeram para nós. No final desta matéria há links para que você possa baixar os vídeos das suas intervenções. As intervenções de Lucy Johnstone e de Peter Groot merecem destaque pelas inovações que tanto um quanto o outro propõem.

E é importante que você leia esta Declaração. Trata-se de uma proposta encaminhada ao final do Evento, para que seja divulgada e discutida.  Participe, comentando e enviando sugestões e/ou reformulações.  O Documento é apenas uma referência para abrir o debate entre nós. Seu propósito é que reorientemos a política da assistência em saúde mental em nosso país. Divulge o conteúdo deste Documento e ponha-o em discussão.

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DECLARAÇÃO 

3 SEMINÁRIO INTERNACIONAL A EPIDEMIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS

Considerando que:

  • O direito à saúde mental é um direito inclusivo, entendido como sendo não apenas com referência à qualidade dos serviços hoje disponibilizados.
  • Que as chamadas ‘boa saúde mental’ e o ‘bem-estar’ não podem ser definidas pela ausência de algum sintoma, mas pelas condições estruturais da sociedade, tais como o ambiente social, psicossocial, político, econômico e físico, na medida que possibilitem que indivíduos e populações vivam uma vida de dignidade, com pleno gozo de seus direitos e em busca equitativa de seu potencial.
  • Que os serviços de saúde mental sofrem de um foco excessivo em abordagens ultrapassadas, através das quais a maioria dos recursos é alocada ao tratamento individual para condições diagnosticadas de saúde mental, incluindo medicamentos psicotrópicos e cuidados institucionais. E que esse desequilíbrio continua a reforçar uma lacuna de equidade, evidência e implementação.

Participantes reunidos no 3 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas,realizado na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/FIOCRUZ), nos dias 29, 30 e 31 de Outubro de 2019, propõem às seguintes recomendações:

  1. O fortalecimento das iniciativas nacionais e internacionais para a implementação de alternativas seguras e eficazes ao ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria hoje dominante na assistência em saúde mental.
  2. O remodelamento das orientações clínicas e das condições para que tais orientações sejam seguidas.
  3. O aprimoramento das informações para os pacientes e os trabalhadores em saúde mental a respeito das drogas psiquiátricas prescritas, e a criação de meios para tornar possível o ‘informe consentido e esclarecido’ e a tomada de ‘decisões compartilhadas’ por clínicos e pacientes.
  4. O aprimoramento do suporte disponível no sistema assistencial para pacientes que sofrem com a dependência química ou com a retirada das drogas prescritas. O fortalecimento dos movimentos de usuários e de ex-usuários e o reconhecimento que a sua participação ativa é essencial para o êxito seja das prestações de serviço, formulação de políticas de saúde mental, pesquisa, seja para o próprio ensino dos profissionais de saúde mental.
  5. A criação e o fortalecimento de meios de interação para a formação de uma comunidade latino-americana e internacional comprometida com a construção de alternativas de assistência que garantam melhores condições de saúde mental para todos.

Alternativas ao “tratamento psicofarmacológico”: as “tiras de afunilamento”. Palestra de Peter Groot.

Alternativas ao DSM/CID.  O documento oficial da Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia. Palestra de Lucy Johnstone.

A mesa-redonda a respeito dos paradigmas “biomédico” da Psiquiatria e “atenção psicossocial”.

Medicamentos antidepressivos mostram pouco benefício clínico para transtorno depressivo maior

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Publicado em Psychiatry Advisor: mais evidências sugerem não haver benefícios significativos se tratar a depressão maior com o uso de antidepressivos. Levando em consideração  a dependência química criada pelos antidepressivos, há um impasse: vale a pena tratar a depressão com os antidepressivos? Desta vez, são evidências publicadas no respeitado periódico científico BMJ Evidence-Based Medicine.

“Um estudo publicado na BMJ Evidence-Based Medicine encontrou apenas benefícios mínimos para o uso de antidepressivos no tratamento do transtorno depressivo maior (MDD).

“Janus Christian Jakobsen, MD, PhD, da Copenhagen Trial Unit, Centro de Pesquisa Clínica de Intervenção, Rigshospitalet, Copenhagen University Hospital, Dinamarca, e colegas revisaram evidências da eficácia de antidepressivos em comparação com placebo em pacientes com MDD. Eles realizaram pesquisas pelos termos “depressão” e “antidepressivos” na Cochrane Library, BMJ Best Practice e PubMed, visando análises de 1990 a junho de 2019.”

Confira a matéria na íntegra →

O envolvimento da indústria na pesquisa pode influenciar os estudos em direção a resultados positivos, e os critérios de exclusão em ensaios clínicos randomizados podem distorcer os dados.

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