Psiquiatra Descreve seu Papel no Modelo de Atendimento do Diálogo Aberto

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Em um novo artigo, o psiquiatra finlandês Kari Valtanen, do Distrito Hospitalar da Lapônia Ocidental e da Universidade de Jyväskylä, discutiu seu papel como psiquiatra em uma abordagem de Diálogo Aberto. Valtanen possui extenso treinamento em Diálogo Aberto e trabalha no Distrito de Assistência Médica da Lapônia Ocidental, onde está imerso em todo um sistema psiquiátrico baseado nos princípios e aplicações do Diálogo Aberto. No artigo, ele descreve como o psiquiatra está posicionado dentro dos sete princípios do Open Dialogue e explica por que esse posicionamento é vital ao trabalhar com clientes e famílias que sofrem estresse ou crises na saúde mental.

“Os psiquiatras devem estar cientes de seu papel como parte de uma equipe e evitar estabelecer uma posição hierárquica que possa silenciar a cultura dialógica e polifônica da equipe”, escreve Valtanen. “Para trabalhar dialogicamente e compartilhar a responsabilidade sobre os processos de tratamento, uma cultura democrática no local de trabalho é um pré-requisito. O psiquiatra tem um papel fundamental para estabelecer e nutrir esse ambiente democrático. ”

Kari Valtanen, Child and Adolescent Psychiatric Services, Western Lapland Hospital District, Finland; University of Jyväskylä, Jyväskylä, Finland

A abordagem do Diálogo Aberto é um modelo de intervenção precoce orientado para a família, desenvolvido na década de 1980 na Lapônia Ocidental da Finlândia. Ela se diferencia de outros métodos na maneira como “considera o cliente e sua família como participantes ativos, e não como objetos de tratamento em seu planejamento e implementação, com foco psicoterapêutico”. O processo envolve uma equipe para trabalho de cada caso específico em que cada membro é orientada para a prática dialógica.

Valtanen escreve que o diálogo promove “novas palavras, entendimentos e oportunidades” e cria espaço para “ouvir as diferentes vozes de todos e responder a elas e aprender contextos únicos para as manifestações de cada cliente”.

No Diálogo Aberto, Valtanen explica, “que apoiar o indivíduo e a agência da família desde o início do trabalho é priorizado acima da avaliação profissional da situação ou do diagnóstico do indivíduo.” Quando os profissionais são rápidos demais para tirar conclusões ou interpretações de uma situação ou decisões do cliente, pode levar a uma redução no envolvimento com o cliente, a família e a rede. ”

Os sete princípios que orientam a abordagem do Diálogo Aberto, derivados de programas de pesquisa e treinamento em psicoterapia, incluem atendimento imediato, orientação para a família e a sua redesocial, responsabilidade, flexibilidade e mobilidade, continuidade psicológica, tolerância à incerteza e diálogo. Abaixo, o autor oferece suas observações sobre a relação entre esses valores e o papel do psiquiatra como membro da equipe.

  1. Não deve haver necessidade de encaminhamento de um psiquiatra para que haja acesso ao tratamento psiquiátrico, embora o psiquiatra não esteja frequentemente disponível para a consulta inicial devido ao pequeno número de psiquiatras. O atendimento imediato é garantido em crises graves. Quer dizer, os outros membros da equipe podem ouvir e responder às preocupações da família e às diferentes perspectivas.
  2. Os psiquiatras devem receber treinamento adicional no trabalho com famílias e redes, em oposição à formação típica, permitindo que eles colaborem com a equipe e contribuam para conversas dialógicas. A assistência estar orientada para a família e para a sua rede social é considerado como sendo um “recurso essencial para entender e apoiar indivíduos em crises”.
  3. A responsabilidadeestá na capacidade da equipe de “levar em consideração várias questões importantes durante o processo …” A disponibilidade do psiquiatra para consultas é apoiar a colaboração e gerar um senso de segurança.
  4. Flexibilidadeé um recurso crítico em uma abordagem-adaptada-às necessidades do tratamento. Os psiquiatras deste modelo participam de visitas domiciliares e se esforçam para fazer reuniões de equipe.
  5. A continuidade envolve cuidar da relação terapêutica entre família e equipe. Embora o psiquiatra não tenha tempo para trabalhar tão próximo quanto os outros membros da equipe em relação a essa parte do processo de tratamento, seu papel pode ser o de respeitar o processo da equipe e trabalhar para não atrapalhá-lo.
  6. “Para restaurar a agência do indivíduo e da rede, é importante que um psiquiatra, juntamente com os outros membros da equipe, não se apresse em encontrar soluções de tratamento ou entender os outros com muita prontidão.” É encorajada a tolerância à incerteza para ajudar os psiquiatras e outros membros da equipe para que diminuam a velocidade para obter as soluções e assim arriscarem a negligenciar o conhecimento do cliente para aliviar a sua situação.
  7. O principal objetivo do Diálogo Aberto é criar dialogismo ou diálogo entre todos os membros da equipe envolvidos no tratamento. Os psiquiatras podem contribuir para ouvir todas as perspectivas e oferecer seu próprio entendimento.

Devido à posição de poder dos psiquiatras como profissionais médicos, Valtanen sugere um senso de consciência da sua influência potencial ao avaliar indivíduos com esses diferenciais de poder. “Poder substancial é usado quando as experiências de vida das pessoas são interpretadas e definidas por profissionais”, explica ele. Em vez disso, os profissionais podem se comprometer com a colaboração e o compartilhamento de entendimentos diferenciados, ou ‘vozes’, abertos para revisão contínua de suas percepções, opiniões, decisões.

“O que é crucial no tratamento é manter no centro os clientes e familiares e seu senso de agência. A agência ou as definições dos profissionais, incluindo o psiquiatra, não são tão essenciais. ”

Por fim, Valtanen ressalta a esperança de que as preocupações do cliente e da família sejam priorizadas.

“As experiências de vida, contextos sociais, questões de saúde, e assim por diante de cada ser humano, são únicas, multidimensionais e complexas. É importante que as pessoas sejam ouvidas em suas situações únicas de vida e que os médicos não tentem entender muito rapidamente. A compreensão gradual e contínua avança o processo de tratamento-adaptado-às necessidades, adaptada especificamente às necessidades do cliente e sua rede, e não ao diagnóstico. ”

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Valtanen, K. (2019). The psychiatrist’s role in implementing open dialogue model of care. Australian and New Zealand Journal of Family Therapy. DOI: 10.1002/anzf.1382 (Link)

 

Entrevista com o Dr. Edmar Oliveira

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Em: MEMÓRIAS DA SAÚDE MENTAL. PROGRAMA DE VOLTA PARA CASA. Núcleo da Saúde Mental Álcool e Drogas, da FIOCRUZ/Brasília, em parceria com a UNIFESP, UNB, UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAÍA, UFRJ e INSTITUTO PINEL.

O entrevistado é o Dr. Edmar Oliveira, um dos ícones da reforma psiquiátrica brasileira.

O Dr. Edmar conta a sua trajetória, desde o interior do Piauí onde nasceu, até ir para o atual Hospital Nise da Silveira (RJ), nos anos 80. Ele conta o por quê da sua preferência clínica pelo tratamento dos ‘psicóticos’, bem com as suas diversas experiências enquanto gestor de serviços de assistência psiquiátrica que foram da maior importância no processo de reforma psiquiátrica em nosso país. É exemplar o seu compromisso de vida com a clínica, mesmo sendo gestor.

A respeito das residências para os pacientes egressos dos manicômio, merece destaque para o que ele diz ser uma “clínica do morar”:

“Ou bem essa coisa [moradia] é terapêutica ou é residência. Não pode é haver essa ambiguidade (…) O que eu quero fazer é uma ‘clínica do morar’ não uma ‘clínica do CAPS’. A ‘clínica do CAPS’ é a clínica do transtorno. Enquanto que o que eu estou fazendo é uma ‘clínica do morar’.  Essa ‘clínica’ é diferente. Porque a ‘clínica do morar’ não é da Psiquiatria, é a clínica da sociabilidade, é de um outro campo.”

A entrevista de Edmar de Oliveira é eloquente das diferenças entre uma reforma psiquiátrica baseada no ‘modelo biomédico’, comprometida com a hegemonia da Psiquiatria, e uma reforma que visa garantir aos seus usuários uma clínica baseada em um outro paradigma.

Em tempos contemporâneos, o que vem sendo explicitamente defendido é que a assistência em saúde mental esteja integralmente baseada no ‘modelo biomédico’. Quer dizer, que a assistência não apenas seja mantida com o diagnóstico psiquiátrico e o tratamento psicofarmacológico, como tem sido os pilares da Psiquiatra ‘reformada’ nestas últimas décadas. Mas que haja o retorno ao clássico ‘hospitalocentrismo’.

O testemunho de vida dado por Edmar Oliveira certamente nos ajuda a melhor entender os dilemas e as perspectivas que a reforma psiquiátrica brasileira hoje enfrenta.

Confira a entrevista na íntegra →

Suicídio Entre os Povos Indígenas Guarani e Kaiowá

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O Suicídio entre o povo Guarani e Kaiowá é tema do artigo Onde e Como se Suicidam os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: Confinamento, Jejuvy e Tekoha, de autoria de Pamela Stalino, Marcos L. Mondardo e Roberto C. Lopes, todos da Universidade Federal da Grande Dourados (MS).

O objetivo do trabalho foi analisar onde e como ocorrem os suicídios destes dois povos indígenas na contemporaneidade. Para tal, os autores realizaram uma pesquisa qualitativa de análise documental, com reportagens publicados nos principais jornais do estado do Mato Grosso do Sul. A partir da combinação dos descritores: suicídio, Guarani, Kaiowá, índio e indígena, a busca foi realizada em 23 jornais, mas apenas 12 deles apresentaram as combinações exigidas. A amostra selecionada foram de 100 reportagens que informaram 105 ocorrências de suicídio  no período de 2002 a 2018.

O artigo inicia com uma retrospectiva histórica sobre a luta pelo direito à saúde dos povos indígenas brasileiros, desde a criação da Funai em 1967 até a criação do Sesai em 2010 (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Depois, o artigo apresenta dados do Ministério da Saúde sobre a mortalidade por suicídio dos povos indígenas, quase três vezes maior que os da população em geral, e até mesmo maior que as taxas mundiais apresentadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Dentre os suicídios de indígenas, os casos entre Guarani e Kaiowá das reservas indígenas da região sul de MS são os maiores do estado.

A saúde para os Guarani e Kaiowá está estreitamente ligada à questão da luta pela terra. Portanto, os autores decidiram analisar a situação da saúde indígena por meio do debate de território e territorialidade, na luta pela terra. Apesar das concepções e modalidades de territórios e territorialidades entre os povos indígenas variarem, é comum entre os diferentes povos que o território seja fundamental para a produção de saúde.

“O território para os povos originários é fundamental para a produção de saúde  e reelaboração cultural de seus modos de ser por meio da relação entre natureza, cultura e relações de poder/resistência.”

A pesquisa detectou que os municípios de Dourados e Amambai são aqueles que apresentam os maiores números de ocorrência, 40% e 21% respectivamente, o que coincide os Relatórios de violência contra os povos indígenas do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) do período de 2003 a 2013.

Após uma análise dos autores sobre os conflitos por terra nesta localidade, sobre a explicação que os indígenas dão para os suicídios e a importância da terra para esses povos, os autores concluem que o suicídio entre os povos Guarani e Kaiowá é um fenômeno grave e complexo, influenciado por questões históricas, cosmológicas e territoriais, próprias da luta pela territorialidade (teko). As questões histórias perpassam pela desterritorialização promovida pelo confinamento em reservas, a vivencia forçosa em pequenas áreas demarcadas pelo Estado, gerando falta de perspectiva de vida e produtiva nas reservas, a luta pela terra e os conflitos territoriais com os fazendeiros.

“Em que medida pode-se pensar que a prática por enforcamento se relaciona simbolicamente ao ato de calar-se, por não ter voz, não ser ouvido, ser marginalizado e invisibilizado?”

Dessa forma, ressalta-se a necessidade de políticas públicas afirmativas com equipes multidisciplinares, com diversos segmentos da sociedade, indígenas e não indígenas, e pesquisadores de diferentes áreas. Além disso, sugere-se a criação e implementação do CAPS indígena, com a participação de atores institucionais, como o Sesai e lideranças religiosas indígenas, valorizando assim o conhecimento tradicional, dos rituais respeitando a cosmologia de cada povo.

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STALIANO, Pamela; MONDARDO, Marcos Leandro; LOPES, Roberto Chaparro. Onde e Como se Suicidam os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: Confinamento, Jejuvy e Tekoha. Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 39, n. spe,  e221674,    2019 . (Link)

Como a Casa Soteria Cura?

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Image by Denise Husted from Pixabay

Um artigo recente publicado na Psychopathology explora os fatores de cura associados à abordagem alternativa de Soteria para o tratamento da psicose. O modelo Soteria baseia-se em relacionamentos pessoais, atividades interativas e no uso mínimo de medicamentos psiquiátricos em uma confortável ‘comunidade viva’, em oposição a um ambiente psiquiátrico convencional. Os autores explicam como esses fatores promovem a cura de indivíduos que sofrem da síndrome da esquizofrenia.

“Soteria representa uma abordagem alternativa ao tratamento da psicose aguda, proporcionando um ambiente social baseado na comunidade, relacionamentos pessoais (‘estar com’) e atividades compartilhadas significativas (‘fazendo com’) com uso mínimo de medicamentos neurolépticos”, escrevem o Dr. Daniel Nischk e Dr. Johannes Rusch. 

Image by Denise Husted from Pixabay

A história de Soteria enquanto abordagem em saúde mental remonta a 1971, quando o Dr. Loren Mosher, do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), abriu a primeira ‘Casa Soteria’ em Santa Clara, Califórnia. Embora as ideias radicais de Mosher tenham levado à sua renúncia do NIMH, seu trabalho se expandiu em todo o mundo, com casas na Hungria,Vermont e Israel, para citar algumas.

Soteria é bem conhecida por sua abordagem não médica, proporcionando aos que têm experiências de psicose aguda um ‘porto seguro’ durante esses estados extremos difíceis. Essa abordagem não médica inclui uma residência confortável e familiar, equipe assistencial formada por leigos e envolvimento em atividades e relacionamentos da vida cotidiana, em oposição à situação artificial de uma enfermaria psiquiátrica ou de serviços assistenciais no chamado ‘território’.

Pesquisas da Soteria House original apontaram resultados positivos, como benefícios relacionados à psicopatologia, trabalho, funcionamento social e a interrupção de medicamentos psiquiátricos.

Os princípios centrais de Soteria foram desenvolvidos por Loren Mosher e Luc Ciompi há mais de 30 anos e incluem:

  1. “A provisão de um pequeno ambiente terapêutico comunitário (semelhante a uma comunidade viva);
  2. Uma proporção significativa de funcionários leigos;
  3. A preservação do poder pessoal, das redes sociais e das responsabilidades comunitárias;
  4. Um estilo relacional ‘fenomenológico’, que visa dar sentido à experiência subjetiva de psicose de uma pessoa, desenvolvendo uma compreensão dela por ‘estar-com’ e ‘fazer-com’ os clientes; e
  5. Nenhum ou senão um antipsicótico em baixa dose, com todos os medicamentos psicotrópicos sendo tomados por opção e sem coerção.”

O artigo atual utiliza a fenomenologia e uma análise do ambiente social da casa da Soteria para descobrir os mecanismos de cura do modelo de tratamento. Muitas das idéias dos autores são derivadas da experiência com a Soteria House Reichenau na Alemanha, bem como de relatos publicados anteriormente sobre o modelo da Soteria. Os autores descrevem um entendimento fenomenológico da esquizofrenia, seguido de uma análise de como o ambiente de Soteria oferece uma oportunidade para os indivíduos recomporem um sentimento desordenado de si com segurança.

O Dr. Nischk e o Dr. Rusch começam explicando que alguns profissionais veem a esquizofrenia como um “distúrbio do eu mínimo ou essencial”. Em outras palavras, o sentimento subjacente de ser um “eu” capaz de pensar, sentir e agir por si próprio é perturbado. Isso leva a uma organização caótica da realidade, da flutuação da autoconsciência à dificuldade de navegar em um mundo social compartilhado com os outros. Experiências psicóticas anômalas, como delírio e paranoia, são descritas como uma tentativa de dar sentido a essa relação eu-mundo que se encontra desordenada.

“A partir desses distúrbios básicos, uma série de alterações experimentais consequenciais e compensatórias pode se desenvolver, incluindo um senso anormal de consciência e presença, experiências corporais alteradas e uma distinção frágil entre si e o outro”.

Os autores também vinculam esse núcleo perturbado à vida social, afirmando que a confusão da psicose coincide com a incapacidade de julgar os limites entre o eu e o outro. O eu central não é meramente ‘interno’, mas está relacionado às dificuldades em estabelecer um relacionamento de ‘eu-Outro’ que permitiria entender a si mesmo como um ‘eu’ em primeiro lugar.

“O desafio terapêutico pode, portanto, consistir em fornecer um ambiente social que considere as frágeis fronteiras interpessoais, oferecendo oportunidades de engajamento.”

Um dos efeitos desse distúrbio básico é a dificuldade de navegar em ambientes complexos. Os autores explicam que as enfermarias psiquiátricas convencionais costumam ter listas estranhas e alienantes de regras e demandas sociais, o que pode confundir as pessoas que sofrem de psicose. A casa Soteria, por outro lado, estabelece um ambiente ‘normal’. Isso pode ser tão simples quanto uma máquina de café, uma mesa com cadeiras e um baralho de cartas, todos situados em um ambiente pequeno e ‘aconchegante’ com carpete para atenuar o excesso de ruído.

Os papéis sociais também são bem definidos, como ‘hóspede” e ‘hospedeiro’, em vez da complexa hierarquia de um hospital psiquiátrico. Os autores argumentam que esse tipo de ambiente ‘normal’ é menos confuso e pode permitir um mundo mais relaxado e familiar para os indivíduos navegarem, reduzindo em última análise a tensão emocional.

Um dos pilares do modelo de Soteria é o que os autores chamam de ‘estar-com’. É descrito como semelhante à relação original entre cuidador e criança, a partir da qual o eu principal é estabelecido no desenvolvimento. Como a psicose é marcada por dificuldades com o relacionamento Eu-Outro, acredita-se que compartilhar espaço com indivíduos que sofrem de psicose pode ajudá-los a começar a desenvolver um Eu central mais robusto. Isso é alcançado através de uma forma atenciosa e atenta de se relacionar, correspondendo ao que os autores chamam de ‘sincronia’ ou ‘intercorporalidade’, explicada como o ritmo natural de ‘olhares, gestos e respostas afetivas’.

Indivíduos com um Eu central perturbado podem começar a sondar e testar com segurança os limites das pessoas que passam tempo com eles, levando a uma capacidade mais forte de refletir sobre si próprio e se ver como um indivíduo. Pode parecer o natural compromisso de sentar e conversar, passear juntos ou realizar tarefas mútuas.

“Isso pode preparar o terreno para outros atos de formação da individualidade, como trocar relatos em primeira e segunda pessoa, distinguir fantasias das percepções, verbalizar auto-perturbações difusas ou contextualizar experiências com relação ao tempo e ao local, aproximando novamente o processo ao que ocorre durante a infância e adolescência. Eventualmente, uma perspectiva de terceira pessoa pode ressurgir, a partir da qual o indivíduo pode refletir sobre suas suposições e experiências.”

Um segundo pilar é chamado de ‘fazer-com’. É descrito como uma extensão de ‘estar com’ no contexto do ambiente social de Soteria. Cozinhar, limpar e outras tarefas mútuas oferecem uma oportunidade para um maior envolvimento social e consolidação de um eu central mais forte, além de desenvolver habilidades essenciais para a vida, muitas vezes prejudicadas em indivíduos com diagnóstico de esquizofrenia.

Os efeitos de ‘fazer-com’ abrangem tudo, desde o fortalecimento dessas habilidades sociais e da vida necessárias até a construção de um ‘esquema motor’ mais coerente, à medida que os indivíduos que sofrem de psicose frequentemente enfrentam uma sensação de corpo e mente fragmentados. A repetição corporal e a solução de problemas, fundamentadas em um ambiente social seguro, podem fornecer um espaço de cura para essa fragmentação. Essas tarefas podem ajudar a treinar as habilidades de concentração e memória, reconstruindo a base social, cognitiva, emocional e corporal do eu central.

“Portanto, estar-fazendo-com enquanto uma maneira holística de responsabilidades comunitárias designadas mutuamente oferece vários caminhos para promover a restituição de uma vasta gama de aspectos da individualidade subjacentes a muitas habilidades mais elevadas, motoras e sociais”, escrevem os autores. “Em um contexto mais amplo, essa prática coletiva diária pode ajudar as pessoas com a síndrome da esquizofrenia a restabelecer maneiras de senso comum de interagir e, assim, reabitar seu mundo social …”

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Nischk, D., & Rusch, J. (2019). What makes Soteria work? On the effect of a therapeutic milieu on self-disturbances in the schizophrenia syndrome. Psychopathology, 1-8. (Link)

Carta de William James para sua filha deprimida

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Se você descobrir que seu filho está sofrendo de depressão, que palavras sábias você pode compartilhar? Sabemos, é claro, o que a indústria farmacêutica gostaria que você dissesse: “Você está passando por uma doença mental e temos que levá-lo a um psiquiatra o mais rápido possível, para que possamos obter uma receita para um antidepressivo”.

A principal maneira pela qual essa indústria de milhões de dólares e seus psiquiatras aliados buscam motivar os pais é explicar que ‘a depressão não tratada está associada a um aumento do risco de suicídio’. Isso parece funcionar, porque os pais tendem a saltar dessa declaração para o pensamento de que o tratamento com os chamados antidepressivos elimina esse risco ou o reduz significativamente. Mas as evidências disponíveis sugerem exatamente o oposto: que o uso de antidepressivos não reduz o risco de suicídio e parece aumentá-lo, de acordo com alguns estudos. Ao mesmo tempo, esses medicamentos estão associados a vários efeitos colaterais preocupantes, e muitos acham que, uma vez que eles começam a usá-los, pará-los pode levar a reações horríveis de abstinência.

Muito antes de esses medicamentos se tornarem disponíveis, William James, indiscutivelmente o psicólogo americano mais brilhante de todos os tempos, foi forçado a resolver esse problema quando sua filha de 13 anos, Peg, começou a lutar com a melancolia. Isso foi em maio de 1900, enquanto James estava sofrendo de problemas cardíacos. Depois de não conseguir um atendimento satisfatório dos médicos nos Estados Unidos, ele e sua esposa foram à Europa para ver se ele poderia encontrar um médico mais útil. Peg ficou com amigos da família, Sr. e Sra. Clarke, e seus filhos. Ao receber várias cartas de Peg expressando as dificuldades pelas quais estava passando, James escreveu uma resposta longa e atenciosa, que apresento para a consideração de vocês.

A carta

Querida Peg,

Sua carta chegou ontem à noite e explicou suficientemente a causa do seu longo silêncio. Evidentemente, você voltou a estar em mau estado de espírito e insatisfeita com o seu ambiente; e julgo que você ficou ainda mais insatisfeita com o estado interno de tentar consumir sua própria fumaça, sorrir e suportar, de modo a cumprir as ordens autoritárias de sua mãe feitas depois de você nos haver assustado com seus clamores trágicos e inexplicáveis em suas cartas anteriores. Bem! Acredito que você está tentando fazer o que um homem faz em circunstâncias difíceis, mas a pessoa aprende apenas gradualmente a fazer a melhor coisa; e o melhor para você seria escrever pelo menos semanalmente, mesmo que seja um cartão postal, e dizer como as coisas estão indo. Se você estiver de mau humor, não há mal algum em comunicar esse fato e definir o caráter dele ou descrevê-lo exatamente como você gosta. O ruim é derramar o conteúdo dos nossos demônios sobre os outros e deixá-los com eles, por assim dizer, nas mãos deles, como se fosse para eles fazerem algo a respeito. Foi isso que você fez em sua outra carta que tanto nos assustou, porque seus gritos de angústia eram tão excessivos e inexplicáveis ​​diante de qualquer coisa que você nos tenha de fato dito, e que nós não sabemos, mas é como que de repente você havia ficado louca. Esse é o pior tipo de coisa que você pode fazer. O tipo de coisa do meio é o que você faz dessa vez – a saber, ficar em silêncio por um período de duas semanas e, quando você escrever, ainda escreva misteriosamente sobre suas mágoas, não suficientemente esclarecidas.

Agora, minha querida garotinha, você chegou a uma época em que a vida interior se desenvolve e quando algumas pessoas (e no geral as que têm mais destino) descobrem que nem tudo é um canteiro de rosas. Entre outras coisas, haverá ondas de tristeza terrível, que duram algumas vezes por dias; e insatisfação consigo mesma, irritação com os outros e raiva com as circunstâncias e a pedregosa insensibilidade etc., etc., que juntos formam uma melancolia. Agora, por mais doloroso que seja, isso nos é enviado para uma iluminação. Sempre passa, e aprendemos sobre a vida com ela, e devemos aprender muitas coisas boas se reagirmos corretamente.

Da margem] (Por exemplo, você aprende o quão boa é sua casa, seu país e seus irmãos, e você pode aprender a ser mais atencioso com outras pessoas que, agora você aprende, podem ter suas fraquezas internas e sofrimentos também.)

Muitas pessoas sentem um prazer doentio em abraçá-lo; e alguns sentimentais podem até se orgulhar disso, como mostrando um bom tipo de sensibilidade dolorosa. Essas pessoas habitam regularmente a luxúria da angústia. Essa é a pior reação possível. Geralmente é um tipo de doença, quando a fortalecemos, decorrente do organismo ter gerado algum veneno no sangue; e não devemos nos submeter a ela uma hora a mais do que podemos evitar, mas aproveitar todas as chances de assistir a algo alegre ou cômico ou de participar de algo ativo que nos desvie desse medíocre sentimento interior. Como eu disse, quando passa sabemos mais do que sabíamos antes. E devemos tentar fazê-lo durar o mais curto tempo possível. O pior de tudo é que, enquanto estamos nele, não queremos sair disso. Nós odiamos isso e, no entanto, preferimos permanecer nele – isso faz parte da doença. Se nos encontrarmos desse modo, devemos nos obrigar a fazer algo diferente, encontrar pessoas, falar alegremente, nos dedicar a algum trabalho duro, nos tornar doce, etc .; e essa boa maneira de reagir é o que faz de nós um personagem valioso. A doença faz você pensar em si mesmo o tempo todo; e a saída é manter-se o mais ocupado possível, pensando nas coisas e nas outras pessoas – não importa qual seja o problema conosco.

Não tenho dúvida de que você está indo tão bem quanto sabe, minha queridinha Peg; mas temos que aprender tudo, e também não tenho dúvidas de que você saberá lidar melhor com tudo isso se voltar a experimentar, e logo desaparecerá, simplesmente deixando-a com mais experiência. O melhor para você agora, suponho, seria entrar o mais amigável possível no interesse das crianças Clarke. Se você gosta deles, ou agir como se gostasse deles, não precisa se preocupar se eles gostam de você ou não. Eles provavelmente irão, rápido o suficiente; e se não o fizerem, será o funeral deles, não o seu. Mas essa é uma ótima palestra, então vou parar. O melhor de tudo é que tudo isso é verdade….

Neste ponto da carta, James muda de assunto, explicando como está o tratamento para o problema cardíaco, o que ele tem feito para lidar com as coisas em casa, mesmo estando a milhares de quilômetros de distância, e expressando frustração com o frio, clima sem sol. Ele então conclui:

Sua mãe está dormindo e, sem dúvida, acrescentará uma palavra a isso quando acordar. Mantenha um coração alegre – “o tempo e a hora atravessam os dias mais difíceis” – e acredite em mim sempre como sendo o seu mais amoroso.

W.J.

Interpretação

A carta começa como resposta a uma carta que Peg escreveu aos pais depois de um longo silêncio. Aparentemente, ela foi levada a ficar em silêncio por causa de sua mãe, pedindo que, quando estivesse com um mau humor, tentasse “consumir sua própria fumaça”, sorrir e suportar.

Para aqueles que não estão familiarizados com a frase, significa aceitar agravos em silêncio e reagir com um esforço extra de trabalho duro, para que aqueles a seu redor não fiquem aborrecidos com a fumaça, a poeira e a fuligem de suas queixas. Claramente, James não estava satisfeito com essa abordagem. Assim, ele explica a Peg que a melhor coisa a fazer é se comunicar com os pais pelo menos semanalmente falando sobre como ela está, incluindo que compartilhe com eles se estiver de mau humor e descrevendo exatamente como ela gostaria que fosse.

As próximas palavras de James parecem contraditórias. Ele diz a Peg que a pior coisa para ela fazer é despejar os conteúdosde seu mau humor nos outros. E então ele escreve que, porque ela se refere à sua tristeza em sua carta mais recente de uma maneira muito misteriosa, ele deseja que ela seja mais aberta sobre isso.

Não tenho muita certeza de que distinção James estava tentando fazer aqui. Meu palpite é que ele estava tentando esclarecer o significado da carta anterior de sua esposa, o que levou Peg a interromper a comunicação por muito tempo.

James, no final, opta pot incentivar Peg a expressar o que ela está passando no modo como desejar. Gosto disso, principalmente se o que ela expressa é para ser recebido com empatia e amor. Observe que James assina sua carta com as palavras: “… acredite em mim sempre o seu W.J mais amoroso”. Acho que isso soa exatamente no tom certo.

Em outras partes da carta, James começa a considerar a experiência de Peg útil para produzir “uma iluminação”, se “reagirmos corretamente”. O caminho errado, segundo James, é adquirir o hábito de aceitar a aflição sem fazer nada construtivo sobre isso. O caminho certo é “aproveitar todas as chances de assistir a qualquer coisa alegre ou cômica ou participar de qualquer coisa ativa que nos desvie do nosso estado de sentimento interior mesquinho e insignificante”.

É interessante que James sugira que, quando agimos de maneira errada, “geralmente é uma espécie de doença, quando a fortalecemos, decorrente do organismo ter gerado algum veneno no sangue”. Dois anos depois, em seu livro clássico The Varieties of Religious Experience, ele se refere a esse tipo de teoria biológica como “simplória” e “conversa médica superficial”. Para explicar sua posição, ele escreveu que muitos indivíduos chamados de “saudáveis mentalmente” acreditam que aqueles que se preocupam têm uma ‘mente mórbida’ e ‘doente”, mas pode muito bem ser verdade que ‘o significado do mundo chegue ao nosso lar quando o colocamos mais no coração”. Como James, vejo que enquadrar essas experiências desafiadoras como um tipo de doença é falsificar a realidade. É muito mais útil ver essas experiências como ferramentas úteis que, se bem administradas, podem potencialmente nos fornecer alguma iluminação.

Também concordo que existe uma maneira certa e uma maneira errada de lidar construtivamente com nossos sentimentos de aflição, mas talvez sejamos diferentes em alguns aspectos específicos do que deva ser visto como errado. James afirmou na carta que devemos tentar fazer com que nossos sentimentos tristes durem o mais breve possível e não uma hora a mais do que podemos evitar.

Acredito que, em vez de lutar contra esses sentimentos deprimidos, devemos nos dar um tempo para estarcom eles, como faríamos se um velho amigo viesse nos visitar. Podemos passar esse tempo observando, de maneira não julgadora, as emoções que flutuam através de nós de maneira semelhante a um cientista observando um bando de pássaros voando no céu distante. Quando se trata de luto, não precisamos definir um prazo artificial para o qual “deveríamos” terminar o processo.

No entanto, assim como quando um amigo nos visita, depois de um tempo reconhecemos que é melhor seguir para outras atividades valiosas, exatamente como James recomenda. Porém mais tarde, porém, podemos voltar a nos deixar levar algum tempo para ficar com nossos sentimentos tristes mais uma vez, indo e voltando assim até que as partes mais difíceis dessas experiências tenham passado. Para mim, reservar um tempo para ficar com meus sentimentos como esse e também reservar um tempo para responder como sugere James, funciona muito bem. Da mesma forma, se pudermos ensinar nossos filhos a aceitar e lidar com esses fluxos e refluxos, é provável que beneficie a nós e a eles.

Não estou sugerindo que James discordaria de mim sobre esse assunto. Ele escreveu sua carta para Peg quando ele não estava se sentindo bem e, em um ou dois dias, com mais tempo para refletir, sem dúvida teria acrescentado muito mais nuances a esse tópico, algumas das quais poderiam estar de acordo com as minhas próprias visões.

Embora a carta não deva ser vista como um relato completo da posição de James sobre o que dizer a uma criança em circunstâncias semelhantes, ofereço-a porque fornece algumas ideias relevantes para os pais do século XXI que devem ser consideradas ao decidir qual a melhor forma de responder aos dilemas de seus filhos.

Diretrizes belgas recomendam que “as categorias do DSM não estejam no planejamento da Assistência em Saúde Mental”

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Photo Credit: Wikipedia Commons

Um relatório do Conselho Superior de Saúde da Bélgica (CSS) aconselha o governo sobre os problemas que afetam o atual modelo de diagnóstico do tratamento em saúde mental e faz recomendação para o não uso de categorias do DSM e CID para tratamento individual.

“O CSS observa que as ferramentas mais usadas para diagnosticar problemas de saúde mental (o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM – ou a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID – apresentam vários problemas e recomenda que sejam usado com cautela e que as categorias do DSM não estejam no centro do planejamento do atendimento”.

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O grupo de trabalho que compôs esse relatório incluiu pessoas com ‘formação em psiquiatria, expertise de experiências vividas, psicologia, sociologia e filosofia’.

O CCS identifica várias falhas na lógica e nos métodos dos manuais usados para diagnosticar pessoas com problemas de saúde mental.

  • O DSM e o CID baseiam-se na ideia de transtornos distintos categoricamente diferentes do funcionamento ‘normal’, tornando-os ‘doenças’. No entanto, todas as pesquisas sugerem que há uma sobreposição significativa entre os diagnósticos, muitos dos quais compartilham os mesmos critérios de diagnóstico.
  • Além disso, a diferença entre alguém com um diagnóstico e alguém supostamente ‘saudável’ é uma questão de grau – todos têm esses pensamentos e comportamentos, mas são diagnosticados como transtornos tomando como base no impacto que causam na vida cotidiana.
  • O DSM e o CID reforçam a noção de transtornos (distúrbios) biomédicos, apesar de a falta de evidências de problemas de saúde mental serem neurobiológicos. De acordo com o relatório, o ” ‘pensamento único’ (onde a suposição é de que a causa está puramente no cérebro ou nos genes) não tem base científica ”.
  • O modelo biomédico é promovido como capaz de diminuir o estigma – mas os pesquisadores mostraram repetidamente que as explicações biomédicas para problemas de saúde mental aumentam consistentemente o estigma de leigos e até de profissionais de saúde médica e mental.
  • As categorias de diagnóstico são inúteis para os indivíduos, uma vez que “não fornecem uma imagem dos sintomas, necessidades de manejo e prognóstico porque não têm validade, confiabilidade e poder preditivo”. Por exemplo, uma pessoa com diagnóstico de depressão pode estar dormindo totalmente durante o dia, sem comer e sentindo-se suicida, mas ainda capaz de experimentar atividades agradáveis. Outra pessoa pode ter insônia, comer demais, não se sentir suicida, mas não sente prazer nas coisas de que gostava – o mesmo diagnóstico, com duas experiências completamente diferentes.
  • Devido a essas preocupações, o CCS recomenda que “é mais útil entender a combinação de fatores que causam e manter os sintomas do que identificar uma categoria”.

O CCS argumenta ainda que o DSM é tão fundamentalmente defeituoso que não pode ser corrigido sem uma mudança completa de paradigma na maneira como documenta a saúde mental.

“O instrumento apresenta uma série de problemas fundamentais em termos de epistemologia, validade e confiabilidade. Estimamos que a qualidade do instrumento em sua configuração e forma atual não possam ser substancialmente melhoradas. ”

O  CCS pede uma reversão completa na maneira como o tratamento de saúde mental é buscado, obtido e reembolsado. Eles recomendam que um diagnóstico de saúde mental não seja necessário para que uma pessoa receba ajuda.

Eles recomendam que os problemas de saúde mental sejam tratados da seguinte maneira: uma narrativa dos problemas da pessoa, contextualizada com informações sobre as experiências de vida da pessoa, fornece a base para uma conversa sobre como será o “continuum que vai da crise para a recuperação”. Individual. A relação terapêutica é considerada a parte mais vital do processo de tratamento.

“Recomendamos considerar os transtornos psiquiátricos como interativos. Eles testemunham a luta entre pessoa e contexto, e as dificuldades vivenciadas na vida. Por um lado, eles testemunham a individualidade do estado mental de uma pessoa. Por outro lado, eles refletem os desafios que um indivíduo enfrenta em seu ambiente diário (como relacionamentos, circunstâncias sociais e costumes culturais). Além disso, queixas e transtornos psicológicos geralmente refletem uma luta com as incertezas existenciais humanas típicas. Esses componentes formam um todo sistêmico entrelaçado.”

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Superior Health Council. DSM (5): The use and status of diagnosis and classification of mental health problems. Brussels: SHC; 2019. Report 9360. (Link)

OS IMPACTOS NA SAÚDE MENTAL PRODUZIDOS PELA ATUAL CRISE POLÍTICO-INSTITUCIONAL NO BRASIL

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Desempregado vende boneca velha na calçada: luta pela sobrevivência

Publicado em DCM (Diário do Centro do Mundo).  Um conjunto de três matérias, assinadas pelo jornalista André Lobão, sobre os impactos na saúde mental produzidos pela crise econômica e sócio-política que a sociedade brasileira sofre nos últimos anos. Um retrato do Brasil dos tempos atuais.

“Em 2016, uma pesquisa coordenada pelo sociólogo Jessé Souza, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apontou a relação entre exclusão social e o uso do crack. A pesquisa foi encomendada pelo então Ministério da Justiça e Cidadania – Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.

‘Essas informações nos levaram a concluir que exclusão social e uso de crack provavelmente formam um ciclo vicioso que se retroalimenta e, pior, estende seu efeito mesmo àqueles que sequer fazem uso da droga. Coerentemente, quando perguntados pelos pesquisadores sobre o que esperavam de um tratamento para seu problema com as drogas, os usuários responderam com a reivindicação de um verdadeiro pacote de direitos sociais, para além dos serviços de saúde: moradia, educação, emprego, alimentação, banho etc. A resposta poderia ser a mesma vinda de qualquer jovem das periferias brasileiras”, diz Jessé, na apresentação do estudo.’

Na reportagem no centro do Rio de Janeiro, para aferir o impacto do desemprego nas ruas da cidade, os relatos colhidos indicam o consumo de drogas aumentou. Na avenida Presidente Vargas, perto da Central do Brasil, por exemplo, o consumo de crack é visto qualquer hora do dia.

Como apontou outra pesquisa, realizada pela Fiocruz, com com financiamento da SENAD/MJ (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – Ministério da Justiça), a maior parte dos usuários é formada por negros e negras — oito em cada dez.

(…)  Fernando Freitas, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/FIOCRUZ), avalia que a crise econômica agravou de fato o problema do consumo de drogas como o crack. Mas não só.

‘Sem dúvida, houve aumento, mas também para todos os tipos de drogas psicoativas, ilícitas como o próprio crack, e lícitas como o álcool, tabaco, e também das drogas psicoativas prescritas pelos médicos’, afirmou.

A angústia de não saber se terá como comer é um convite à entrada ao labirinto das drogas. No caso de quem vive nas ruas, as drogas prescritas por médicos estão longe da realidade. Ali o cotidiano é mais bruto (…)

O professor Fernando Freitas, doutor em psicologia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), explica que a crise está gerando uma contingente enorme de brasileiros tristes e sem esperança. Pode se tornar um problema de saúde pública.

‘O que é esperado neste Meio Ambiente?’, reflete. ‘É o aumento no número de pessoas sofrendo de tristeza, muitas vezes uma tristeza profunda, persistente, o que aumenta o número de pessoas com ansiedade, insônia, havendo o aumento do consumo de álcool, tabaco e das drogas ilícitas, além do aumento dos casos de suicídio’.”

Leia as matérias publicadas no DCM, na íntegra clicando nos títulos abaixo:

Desempregado vende boneca velha na calçada: luta pela sobrevivência

Medicamentos prescritos: você já passou por um período de dependência?

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Prescriptions counter at a Boots pharmacy in England. Photograph: Alamy

Saiu no The Guardian. Uma campanha pública para saber experiências com dependência química produzida pelas drogas psiquiátricas prescritas.

“Quase 12 milhões de pessoas na Inglaterra estão tomando remédios para dor, depressão ou insônia que podem causar dependência, de acordo com uma revisão do governo.

Metade das pessoas que tomam analgésicos opioides, benzodiazepínicos e pílulas para dormir os toma há um ano ou mais e mais de um quinto há mais de três anos.

A Public Health England disse que, embora possa haver boas razões para as pessoas usarem antidepressivos por um longo período, a prescrição generalizada de analgésicos opioides precisa mudar.

Gostaríamos de ouvir pessoas que acham difícil parar depois de tomar medicamentos que foram prescritos por um clínico. Também gostaríamos de saber mais sobre a situação de profissionais de saúde ou outras pessoas que lidaram com o problema.

Compartilhe suas histórias

 Gostaríamos de falar com pessoas que foram afetadas por esse problema. Você passou por um período de dependência depois de receber um medicamento prescrito por um médico? Foram oferecidos a você tratamentos alternativos? Você já teve sintomas de abstinência? Como é essa situação para médicos e outros profissionais de saúde?

Você pode entrar em contato preenchendo o formulário abaixo – anonimamente, se desejar. Um de nossos jornalistas entrará em contato antes de publicarmos o que você nos enviou.”

Para ver a matéria do The Guardian e participar da sua campanha, clique aqui →

Prescriptions counter at a Boots pharmacy in England. Photograph: Alamo

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[Nota dos Editores: Nos dias 29,30,31, de outubro de 2019,  na Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio (ENSP/FIOCRUZ), ocorrerá o III SEMINÁRIO INTERNACIONAL A EPIDEMIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS. Entre os convidados, o Dr. Peter Groot da Universidade de Maastrich. Peter Groot e Jim van_Os desenvolveram uma alternativa para clínicos e pacientes que estão buscando meios de reduzir/parar a medicação psiquiátrica, de forma segura e eficaz. São as chamadas ‘tapering strips’ (que em português poderia ser traduzido como ‘tiras de afunilamento’ ou ‘tiras de redução’), quer dizer, tiras em que o usuário diariamente toma uma dose reduzida da sua medicação, conforme um planejamento acordado por ambas as partes.

A pré-inscrição para o evento está aberta. ]

Doente de Brasil

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O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de troca da guarda. EVARISTO SA AFP

Publicado em El País, em 2 de agosto de 2019, artigo de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista. Embora longo, vale a pena ler na íntegra este artigo, de grande relevância para todos, especialmente para os profissionais de saúde mental.

Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana o rabo para as suas ideias. Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será também mastigado. Um tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar outras pessoas em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públicos a serviço do Estado, como os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir descaradamente sobre os números produzidos pelas próprias instituições governamentais desde que isso lhe convenha, como tem feito com as estatísticas alarmantes do desmatamento da Amazônia. O Brasil está nas mãos deste perverso, que reúne ao seu redor outros perversos e alguns oportunistas.”

“… É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos meses junto a psicanalistas e psiquiatras, e também a médicos da clínica geral, medicina interna e cardiologia, onde as pessoas desembarcam queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar. Um destes médicos, cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua clínica, atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do coração, o órgão, e, sim, com ansiedade extrema e/ou depressão. Está trabalhando mais, em consultas mais longas, e inseguro sobre como lidar com algo para o qual não se sente preparado.”

“…Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp. Aqui, um trecho: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer de Brasil”.”

Leia o artigo na íntegra, clicando aqui →

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de troca da guarda. EVARISTO SA AFP

A Política de Saúde Mental em Perigo no Brasil !

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O Caderno do CEAS publicou recentemente o artigo A violência da contrarreforma psiquiátrica no Brasil: um ataque à democracia em tempos de luta pelos direitos humanos e justiça social , de Ana Pitta e Ana Paula Guljor.

As autoras têm por objetivo contribuir sobre o debate acerca dos retrocessos e ameaças aos direitos humanos dos usuários da saúde mental, arduamente conquistados pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica. Elas fazem um percorrido histórico, em que relembraram como o movimento da Reforma Psiquiátrica foi amadurecendo até tornar-se política pública de diferentes governos, assim como conseguiu aprovar a importante lei 10.216 de 2001, a qual orienta sobre os direitos dos usuários, e que nasce a partir de um intenso debate e mobilização social.

No entanto, o artigo lembra que os avanços alcançados pelo movimento começou a sofrer ataques no final de 2015, quando foi nomeado para a Coordenação da Saúde Mental do Governo Federal, o antigo diretor de um dos maiores hospitais psiquiátricos da América Latina durante a Ditadura Militar. Após intensos protestos de usuários e profissionais, ele foi retirado do cargo. Algum tempo depois, em dezembro de 2017, houve a formulação da “Nova Política de Saúde Mental”, sem qualquer participação dos movimentos sociais, profissionais da saúde mental, usuários ou familiares, e por ironia, os maiores interessados no tema. Sobre a tal Nova Política:

” (…) traz apenas o retorno à hospitalização para usuários com transtornos mentais em hospitais psiquiátricos, e, em Comunidades Terapêuticas, para os usuários de álcool e outras drogas , multiplicando as camas de internação a números superiores aos tempos da “Indústria da Loucura”, quando o país gastava 97% dos recursos para o setor em hospitais (1982) e apenas 3% em estruturas comunitárias.”

Mas não para por aí, a rede ambulatorial também retorna a um modelo de prescrições de psicofármacos e guias de internação como sendo, oficialmente, a terapêutica principal. Se hoje já é difícil deslocar o saber biomédico de sua hegemonia com uma política que preconiza as estruturas comunitárias e que vem apostando nelas, quanto mais com uma política que explicitamente tem por único interesse o protagonismo do tratamento biomédico.

A nota técnica de 2018, ainda traz o retorno dos hospitais psiquiátricos na Rede de Atenção  Psicossocial, o que vai contra os princípios da própria atenção psicossocial, que pretende priorizar o tratamento comunitário e em liberdade. Dessa forma, o resultado é o retorno do dinheiro público para as redes hospitalares e comunidades terapêuticas, que apostam no enclausuramento. Mas lembremos que pela lei 10.216, os leitos psiquiátricos e de Álcool e Drogas deveriam ser estabelecidos nos Hospitais Gerais, o que praticamente não foi implementado na rede, com este decisão perderão ainda mais força.

Mais recentemente, ainda surgiu o documento “Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional sobre Drogas”, retirado do ar após uma enxurrada de críticas recebidas, que dá continuidade aos retrocessos nos direitos humanos dos usuários.

As autoras também destacam a dissociação da gestão das políticas de saúde mental do Ministério da Saúde e a de álcool e outras drogas, agora na Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED), no Ministério da Cidadania, ministério esse fortemente comprometido com as comunidades terapêuticas com amplo envolvimento político e religioso.

“Outros aspectos problemáticos, na Nota, são a defesa de ambulatórios
“especializados” desconsiderando a cobertura assistencial da Atenção Primária e o matriciamento por Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF, ou mesmo a rede dos mais de 2.000 CAPS espalhados no território nacional, garantindo, assim, atenção integral e descentralizada no território nacional. O único momento no qual a saúde mental da infância e juventude está contemplada tem a ver com internação em hospitais.”

Não é possível esquecer de dizer que, no que diz respeito às tecnologias de cuidado, apenas a defesa da eletroconvulsoterapia (ECT) tem garantia de financiamento na nota.

As autoras concluem apontando para a necessidade de incentivar o debate através de artigos de pesquisadores interdisciplinares sobre a temática. É necessário se reafirmar as conquistas da Reforma, ao mesmo tempo, em que é necessário criar novas possibilidades de resistência, de fortalecimento dos serviços de saúde mental, assim como repensar nossos pontos fracos na assistência, para consolidar ainda mais a eficácia e o apoio social à Reforma Psiquiátrica. Isto não é apenas dever dos profissionais da assistência e pesquisadores da área, mas de todos nós, usuários, familiares, estudantes, movimentos sociais democráticos e populares e as mídias de comunicação.

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PITTA, Ana Maria Fernandes; GULJOR, Ana Paula. A VIOLÊNCIA DA CONTRARREFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: UM ATAQUE À DEMOCRACIA EM TEMPOS DE LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA SOCIAL. Cadernos do CEAS: Revista crítica de humanidades, [S.l.], n. 246, p. 6-14, jun. 2019. (Link)

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