Um recente estudo observacional, que buscou saber o que aconteceu com as pessoas após uma primeira internação por esquizofrenia, concluiu que a interrupção do tratamento com antipsicótico está associada a maiores riscos de morte e rehospitalização (Tiihonen et al., 20181). Este é o último artigo de um grupo de pesquisadores finlandeses especializados em análises complexas de dados de registros populacionais e, ao contrário de muitos outros dados, sempre acham que o tratamento medicamentoso a longo prazo é bom para a sua saúde. Eles têm ligações extensas com empresas farmacêuticas que produzem antipsicóticos.
O último estudo usa os registros da população finlandesa que registram mortes e episódios de hospitalização e um registro de prescrição de antipsicóticos. O resultado principal foi uma variável que foi chamada de ‘falha do tratamento’, que consistiu em uma combinação de rehospitalização e morte. É um pouco curioso o uso de uma medida combinada, já que a morte e a readmissão tendem a mostrar diferentes padrões de ocorrência e diferentes associações. Outra característica curiosa é que as pessoas que interromperam os antipsicóticos nos primeiros 30 dias após a alta hospitalar foram excluídas da análise, sem qualquer justificativa aparente.
O estudo tem uma amostra grande, e eu presumo que os registros usados sejam abrangentes, de modo que o acompanhamento tenha sido bem completo. Não obstante, a confiabilidade dos dados sobre o uso de antipsicóticos tem sido questionada (De Hert et al., 20102). Os autores apontam as limitações dos ensaios clínicos randomizados na coleta de dados de acompanhamento a longo prazo e oferecem seu estudo como uma contribuição que pode ajudar a preencher essa lacuna. No entanto, há vários problemas bem reconhecidos nesse tipo de estudo e devemos ser muito cautelosos ao aceitar suas conclusões pelo que de imediato aparece.
O principal problema é que se trata de um estudo ‘observacional’ e não um ensaio clínico randomizado. Um estudo observacional é quando se olha para os resultados de pessoas que têm uma condição de saúde determinada e que recebem tratamento da maneira usual. Não se intervém ativamente como se faria em um estudo randomizado para garantir que as pessoas que fazem o tratamento sejam praticamente as mesmas que as que não recebem tratamento. Estudos observacionais desse tipo podem fornecer resultados completamente opostos aos daqueles obtidos em ensaios clínicos randomizados. Isso aconteceu no caso da droga para insuficiência cardíaca, a espironolactona, por exemplo. Um estudo randomizado controlado mostrou que a espironolactona reduz o risco de morte em cerca de 30%, mas uma análise cuidadosamente combinada dos dados observacionais verificou incorretamente que o seu uso aumentava o risco de morte em cerca de 30% (Freemantle et al., 2013[i]).
Os autores de estudos observacionais estão cientes de que as pessoas que tomam remédios tendem a diferir de maneiras importantes das que não o fazem (ou mesmo daquelas que descontinuam cedo, o que é o foco do estudo finlandês) e que essas diferenças podem estar relacionadas ao resultado do objeto de interesse e não pode ser capturado em ajustes estatísticos durante a análise. Por exemplo, pessoas que são prescritas espironolactona podem ser mais velhas ou mais jovens, e podem estar mais ou menos doentes, do que aquelas que não são. Por essa razão, os autores de estudos observacionais costumam fazer grandes esforços para combinar cuidadosamente usuários e não usuários em uma variedade de fatores, tanto demográficos quanto relacionados à saúde. Eles podem construir ‘escores de propensão’ que combinam um número de variáveis que predizem a exposição ao tratamento que é objeto de interesse, e combinam pessoas que são e não são tratadas de acordo com essas pontuações. Isto é o que os autores da análise de espironolactona fizeram. No entanto, no presente estudo, as pessoas foram pareadas apenas pelo tempo em que estavam tomando antipsicóticos. Idade e sexo foram controlados na análise subsequente, mas parece não ter havido qualquer tentativa de controlar os numerosos outros fatores que podem influenciar os resultados como são morte e readmissão. Em uma análise prévia da mortalidade para o mesmo grupo, as seguintes variáveis foram controladas de alguma forma: idade, sexo, duração da doença, tratamento hospitalar prévio devido à tentativa de suicídio, diagnóstico de esquizofrenia, câncer e doença cardíaca isquêmica (Tiihonen et al., 2009[ii]). Os autores ainda foram criticados por não incluírem variáveis que podem ter efeitos importantes sobre a mortalidade, como status socioeconômico, uso indevido de substâncias, indicadores de estilo de vida pouco saudável e fatores detalhados de risco cardiovascular (De Hert, Correll, & Cohen, 2010). A gravidade dos sintomas, o status funcional, o apoio social, o uso de outros medicamentos e vários outros fatores também podem afetar as chances de morte prematura ou de readmissão hospitalar. No entanto, no presente estudo, não houve esforço para comparar os pacientes com quaisquer fatores de risco em potencial. Os autores argumentaram que a duração do tratamento antipsicótico é uma medida indireta da gravidade, mas isso parece improvável, já que eles estavam apenas observando a duração do tratamento após a primeira hospitalização. Portanto, é improvável que a correspondência conduzida neste estudo tenha resultado em grupos com níveis semelhantes de fatores de risco subjacentes para os desfechos objeto de interesse.
No entanto, com o cuidado de comparar as pessoas, o verdadeiro problema dos estudos observacionais é que provavelmente haverão diferenças residuais entre as pessoas que tomam o medicamento e as que não o fazem, o que pode estar relacionado ao resultado. Na análise do tratamento com espironolactona, apesar da tentativa mais sofisticada de correspondência, os resultados ainda estavam completamente em desacordo com aqueles obtidos em ensaios clínicos randomizados.
Essas diferenças ocorrem porque a decisão sobre quem continua e quem interrompe o tratamento em estudos observacionais não é aleatória. É uma decisão tomada por pacientes ou clínicos que provavelmente está relacionada a outros fatores que predizem o desfecho. Por exemplo, sabemos que as pessoas que estão em conformidade com qualquer tratamento, incluindo placebo, têm melhores resultados do que aquelas que não estão em uma variedade de condições. Na Iniciativa de Saúde da Mulher, por exemplo, mulheres que apresentaram alta adesão ao placebo tiveram menores taxas de fraturas de quadril, ataques cardíacos, morte por câncer e morte por todas as causas em comparação àquelas que apresentaram baixa adesão (Curtis et al., 2011). Parece que as pessoas que aderem ao tratamento recomendado têm outras características que as levam a que se saem bem. Elas podem ser mais fisicamente ou mentalmente saudáveis, mais propensas a se engajar com outros aspectos do tratamento e podem ter mais apoio social. Por outro lado, as pessoas que interrompem a medicação podem estar mais doentes, com maior risco de negligenciar sua saúde de outras maneiras e podem ter um estilo de vida mais caótico e menos apoio social. Não sabemos quais fatores desconhecidos estão influenciando os resultados, e é improvável que possamos identificar e avaliar tudo o que é relevante.
As decisões dos médicos para prescrever ou parar a medicação também não são aleatórias. Em particular, os médicos podem evitar prescrever uma droga com complicações físicas conhecidas em alguém que já tenha fatores de risco para o desenvolvimento dessas complicações. Eles não podem prescrever olanzapina para alguém que já tem diabetes, por exemplo. Portanto, se você observar os dados dos cuidados clínicos de rotina, você pode achar, ao contrário das evidências farmacológicas, que a olanzapina tem menor probabilidade de estar associada à diabetes do que outras drogas. Da mesma forma, quando alguém está seriamente doente fisicamente, os médicos podem decidir parar alguns medicamentos. Como os antipsicóticos são conhecidos por serem cardio-tóxicos, os médicos podem decidir não usar essas drogas se alguém pode desenvolver uma doença cardíaca, por exemplo.
Não conhecer as causas de morte no presente estudo torna os números ainda mais difíceis de interpretar. Os números apresentados nas informações suplementares sugerem que as pessoas que nunca usaram antipsicóticos desde a alta hospitalar tiveram o maior número de mortes, seguidas por aquelas que descontinuaram os antipsicóticos no período de um ano, mas aquelas que interromperam os antipsicóticos após períodos mais longos não apresentaram maiores taxas de morte em comparação com aqueles que continuaram com os antipsicóticos, embora o número de mortes para esses grupos tenha sido pequeno. As mortes que ocorreram após a hospitalização (que podem incluir a admissão em um hospital geral) também não seriam registradas nesses dados, no entanto, o que pode subestimar o risco de morte em geral.
Na comparação não emparelhada (nenhum grupo combinado é fornecido para essa comparação), o risco de rehospitalização foi apenas ligeiramente maior entre os não usuários em comparação com os usuários contínuos de medicação antipsicótica (HR 1,24 IC 1,18-1,30). Na comparação dos grupos de utilizadores contínuos e dos descontínuos ‘emparelhados’, o risco de rehospitalização aumenta com uma duração mais longa do tratamento antes da interrupção (ver figura).
No entanto, a análise é o que é conhecido como análise de ‘sobrevivência’ ou ‘tempo para evento’. Os números e proporções de pessoas hospitalizadas de fato foram comparáveis entre usuários contínuos e descontinuadores, mas o tempo de seguimento foi menor. O acompanhamento terminou no momento da rehospitalização (ou quando as pessoas mudaram de status antipsicótico – isto é, quando os descontínuos começaram a usar antipsicóticos novamente, ou quando os usuários pararam de tomá-los), o que sugere que as readmissões ocorreram mais cedo em pessoas que interromperam antipsicóticos, mas não necessariamente mais comumente. Esse achado é consistente com outras evidências mostrando que interromper os antipsicóticos traz o risco de recaída, mas pode não influenciá-lo a longo prazo. Isso foi demonstrado no estudo Wunderink de pessoas com primeiro episódio de psicose (Wunderink et al., 20136).
O foco em eventos de curto prazo também explica a discrepância entre o presente estudo e os achados do estudo de Martin Harrow, sugerindo que as pessoas que evitam o tratamento contínuo de longo prazo obtêm melhores resultados, incluindo taxas mais baixas de recaída e níveis mais altos de funcionamento e recuperação, em comparação com usuários contínuos (Harrow et al., 2012). O estudo de Harrow et al. também foi observacional, é claro, e está, portanto, aberto aos vieses que surgem quando o tratamento não é alocado aleatoriamente. É possível que os resultados do estudo de Harrow e cols. sejam explicados por uma associação entre o tratamento a longo prazo e um pior prognóstico, por exemplo.
Outra explicação são os diferentes períodos de acompanhamento. Embora o estudo finlandês se apresente como um acompanhamento de 20 anos, essa é a duração máxima, e a maioria das pessoas só foi acompanhada por pouco mais de um ano. As pessoas que não usaram antipsicóticos tiveram a maior duração mediana de acompanhamento ao longo dos 408 dias, os usuários contínuos foram acompanhados por uma média de 376 dias, e, por sua vez, as pessoas que interromperam os antipsicóticos foram acompanhadas apenas por uma mediana entre 122 e 134 dias (ou seja, pouco mais de quatro meses). Os benefícios que os não usuários de antipsicóticos mostram no estudo de Harrow et al. começam a se tornar visíveis nos quatro anos de acompanhamento. Assim, diferentemente do estudo de Harrow e cols. que acompanhou todo mundo durante 20 anos, o presente estudo não está nos dizendo nada sobre o resultado em longo prazo das pessoas que tomam antipsicóticos. Pode estar nos dizendo que é mais provável que as pessoas recaiam no período imediato após a interrupção dos antipsicóticos, embora, dadas as advertências sobre os estudos observacionais, devamos ser cautelosos quanto a ir tão longe. Mas certamente não nos diz o que acontece nos próximos 20 anos.
Então, o que devemos fazer desta última oferta que nos está sendo feita? Primeiro, porque não é um ensaio randomizado, esse estudo não fornece evidências convincentes ou conclusivas de que interromper a medicação antipsicótica causa re-hospitalização ou morte. As pessoas param os antipsicóticos por todos os tipos de razões e em todos os tipos de circunstâncias que podem estar relacionadas à re-hospitalização ou à morte, independentemente do seu uso ou não de antipsicóticos.
Em segundo lugar, este não é um estudo de uma redução controlada e gradual de antipsicóticos com o apoio de profissionais. Alguns casos de descontinuação podem ter sido desse tipo, mas a maioria provavelmente foi interrompida sem o conhecimento da equipe clínica, e alguns podem ter sido descontinuações causadas por doenças físicas.
Precisamos de evidências de ensaios clínicos randomizados, como o estudo Wunderink (Wunderink, Nieboer, Wiersma, Sytema e Nienhuis, 2013), e o estudo RADAR em andamento, para mostrar se uma redução gradual e sustentada e a descontinuação do tratamento antipsicótico aumentam as taxas de re-hospitalização e, em caso afirmativo, em quanto. Apenas uma tentativa na qual a decisão de continuar ou descontinuar o tratamento é feita de modo randomizado é que pode evitar os preconceitos inerentes à análise de dados observacionais e fornecer uma resposta confiável.
Referências Bibliográficas:
- Tiihonen, J., Tanskanen, A., & Taipale, H. (2018). 20-Year Nationwide Follow-Up Study on Discontinuation of Antipsychotic Treatment in First-Episode Schizophrenia. Am. J. Psychiatryappiajp201817091001, doi:10.1176/appi.ajp.2018.17091001 (doi).
- De Hert, M., Correll, C. U., & Cohen, D. (2010). Do antipsychotic medications reduce or increase mortality in schizophrenia? A critical appraisal of the FIN-11 study. Schizophr. Res.117, 68-74.
- Freemantle, N., Marston, L., Walters, K., Wood, J., Reynolds, M. R., & Petersen, I. (2013). Making inferences on treatment effects from real world data: propensity scores, confounding by indication, and other perils for the unwary in observational research. BMJ347, f6409.
- Tiihonen, J., Lonnqvist, J., Wahlbeck, K., Klaukka, T., Niskanen, L., Tanskanen, A., & Haukka, J. (2009). 11-year follow-up of mortality in patients with schizophrenia: a population-based cohort study (FIN11 study). Lancet 374, 620-627.
- Curtis, J. R., Larson, J. C., Delzell, E., Brookhart, M. A., Cadarette, S. M., Chlebowski, R., Judd, S., Safford, M., Solomon, D. H., & Lacroix, A. Z. (2011). Placebo adherence, clinical outcomes, and mortality in the women’s health initiative randomized hormone therapy trials. Med. Care 49, 427-435, doi:10.1097/MLR.0b013e318207ed9e (doi).
- Wunderink, L., Nieboer, R. M., Wiersma, D., Sytema, S., & Nienhuis, F. J. (2013). Recovery in Remitted First-Episode Psychosis at 7 Years of Follow-up of an Early Dose Reduction/Discontinuation or Maintenance Treatment Strategy: Long-term Follow-up of a 2-Year Randomized Clinical Trial. JAMA Psychiatry.
- Harrow, M., Jobe, T. H., & Faull, R. N. (2012). Do all schizophrenia patients need antipsychotic treatment continuously throughout their lifetime? A 20-year longitudinal study. Psychol. Med. 1-11.