A Medicalização dos Índios Xukuru de Cimbres

A medicalização afasta os povos indígenas de suas formas tradicionais de cuidado ligadas à natureza e à liderança espiritual do Pajé.

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O artigo Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres de autoria das pesquisadoras Valquiria F. B. Barbosa, Luana B. Cabral e Ana Carla S. Alexandre, todos do Instituto Federal de Pernambuco, e publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, traz um tema muito relevante para a saúde mental brasileira, e ainda pouco tratado pela academia, o uso de psicofármacos pela população indígena.

O processo de medicalização favorece a perda da autonomia por parte do sujeito, a despolitização dos problemas sociais e a desvalorização do contexto, desconsiderando que a saúde é uma experiência complexa, que vai mais além da falta de doença. Dessa forma, o sujeito é culpabilizado e suas experiências individualizadas.

“Envolve modelos de atenção à saúde e estratégias de cuidados e tratamento que focalizam comportamentos individuais. Esse processo encontra forte apoio na indústria de produtos farmacêuticos e, ao mesmo tempo, ignora os contextos dos sujeitos e coletividade, reduzindo as explicações de problemas e ignorando os fatores sociais, culturais, psicológicos ou ambientais que influenciam o fenômeno.”

A medicalização do sofrimento é ainda mais grave quando olhamos para os povos indígenas. O conceito de saúde para eles está ligado à terra e à ideia de harmonia com a natureza.

“O conceito de saúde para esses povos está relacionado à terra e à harmonia com a natureza, entendida como construção coletiva, inserida num sistema de organização próprio, que contempla o equilíbrio do corpo. Assim, alguns elementos são considerados
fundamentais à saúde, como: autonomia, cidadania plena, propriedade da terra, uso exclusivo dos recursos naturais e integridade dos ecossistemas específicos.”

O estudo proposto pelas autoras é descritivo, desenvolvido na comunidade indígena Xukuru de Cimbres, localizada no município de Pesqueira – PE, no ano de 2016. Em 2001 o povo de Xukuru de Ororubá vivenciou uma batalha interna que gerou a divisão em dois grupos: o Xukuru de Ororubá e o Xukuru de Cimbres. Após a morte de dois indígenas que eram aliados dos Xuruku de Ororubá, houve a divisão da comunidade. Os índios Xukuru de Cimbres migraram para as periferias da cidade de Pesqueira -PE, onde ficaram sujeitos às condições precárias de vida e trabalho.

Da amostra de 75 indígenas, 8% utilizam psicotrópicos. Entre os psicotrópicos consumidos 78,67% fazem uso de Benzodiazepínicos, 17,33% fazem uso de antidepressivos e 4% fazem uso de outros psicotrópicos como Barbitúricos, Antipsicóticos e compostos do Lítio. O maior uso de psicofármacos é realizado por mulheres, na faixa etária de 30 a 59 anos, que possuem uma renda maior que um salário mínimo.

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“A maioria dos usuários de psicotrópicos dos três grupos não procura o pajé, correspondendo a 93,22% (55) dos que usam BZD e 100% dos
usuários de Antidepressivos (13) e outros psicotrópicos (3). Já no quesito tempo de uso, a maioria dos grupos estudados utiliza o psicotrópico há mais de 2 anos, resultado representado por 83,05% (49) dos que usam BZD; 76,92% (10), dos que utilizam Antidepressivos; e 66,67% (2) dos que consomem outros psicotrópicos.”

O fato dos Xukuru de Cimbres estarem afastados da aldeia faz com que eles se afastem também da natureza e de seus recursos, assim como da liderança espiritual do pajé, responsável por curar as doenças do corpo e da alma, ocasionando em uma perda de referência.

“(…) faz-se perceptível o impacto do desaldeamento, desterritorialização e aculturação na predominância de práticas terapêuticas alopáticas características do modelo biomédico, em detrimento das práticas tradicionais de cura indígenas, que envolvem rituais, rezas, banhos, chás e beberagens.”

É necessário maior interesse e investimento no estudo da saúde mental indígena, principalmente frente aos ataques recebidos por essa população. A luta pela preservação do território indígena, o desmatamento, a falta de recursos naturais, entre outros acontecimentos atuais, são possivelmente causas de adoecimento para essa população. Apenas medicar essas queixas e sofrimentos é uma forma de calar esses sujeitos, ao invés de resolver as causas do adoecimento relacionadas à violação dos direitos indígenas.

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BARBOSA, Valquiria Farias Bezerra; CABRAL, Luana Beserra; ALEXANDRE, Ana Carla Silva. Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 24, n. 8, p. 2993-3000,  ago.  2019 . (Link)

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Graduada em Psicologia pela UERJ, especialista em Terapia Familiar pelo IPUB/UFRJ, com ênfase em saúde mental. Pesquisadora auxiliar do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial(LAPS/ENSP/Fiocruz) Produtora e apresentadora do podcast Enloucast. Além de atuar como psicóloga clínica. Áreas de interesse: Saúde Mental, Terapia Sistêmica, Diálogo Aberto, Construcionismo Social, Medicalização e Patologização da vida