No mês em que se comemora o dia das crianças cabe retomarmos brevemente as transformações ocorridas no lugar social da infância, que vem desembocando na mistura entre o cuidado, a medicalização, a otimização de habilidades valorizadas pelo nosso código cultural e a patologização de comportamentos infantis.
As formas de constituição familiar nas últimas décadas têm nos surpreendido tanto pela polivalência de expressões como pelo aumento da complexidade das relações. Embora as metamorfoses da família venham ocorrendo com certa rapidez, elas são fruto de signos culturais engendrados ao longo da história. Os deslocamentos de lugares e funções de cada membro da família, assim como para a determinação de um espaço privilegiado no que diz respeito à criança têm implicações afetivas que se desenrolam entre os indivíduos do grupos.
A infância se tornou um tempo particular da constituição para o qual é necessário preparo, com o intuito de produzir indivíduos capazes para o trabalho e adultos saudáveis. O discurso sobre a infância tem sido orientado à prevenção, ao aprimoramento, à saúde mental plena e às políticas educativas que legitimam a intervenção médica na esfera privada, especialmente em se tratando das relações familiares e da criação das crianças. A maternidade científica vem sendo confundida com os cuidados dispensados aos filhos. Os critérios científicos (como marcadores biológicos e a observação de sinais e sintomas) são utilizados como norte para a detecção das diversas etapas do desenvolvimento fisiológico e psicológico “normal” dos indivíduos, com vistas a descobrir uma possível inadaptação infantil ao ambiente escolar, familiar e social. A partir de critérios tecnicistas são decretados os estados de normal e patológico.
Para além do discurso e desejo parentais com os quais as crianças devem se confrontar para, enfim, ascender ao seu lugar de sujeito, o período cronológico da infância se transformou em um período particular da constituição humana, assolado por inúmeras expectativas e demandas. Todavia, autores como Ariès (2003) e Donzelot (1986) salientam que historicamente a infância nem sempre ocupou este lugar social. Ariès (2003) pontua que aquilo que se compreende por infância e adolescência foram invenções marcantes do Ocidente ocorridas na passagem do século XVIII para o século XIX, posto que a produção da qualidade de vida da população dependeria do investimento massivo nestas etapas do desenvolvimento, sobretudo nos registros da saúde e da educação. Para tanto, seria indispensável preparo técnico e prevenção com vistas a forjar indivíduos produtivos, capazes para o trabalho e saudáveis.
Ariès (1978) afirma que o sentimento de infância praticamente só ocorreu a partir da Renascença. Até o século XVII, a criança ocupava um papel periférico na família, não havia lugar para a infância no mundo ocidental, no sentido de uma particularidade infantil diferenciada do mundo do adulto. Os pintores ocidentais retratavam as crianças como pequenos adultos, assim, a criança não era ontologicamente diferente do adulto. O sentimento de infância só surgiu no final do século XVII, quando a criança começou a ser vista como centro do grupo familiar. Para Casey (1992), a criança na Idade Média mantinha um relacionamento especial com a comunidade e não com os pais. As pessoas assumiam posições de poder em idade prematura, tornando-se adultas muito cedo.
Tal atitude de indiferença em relação à infância é justificada como consequência direta da demografia da época, a infância era vista como uma fase sem importância já que se faziam muitas crianças para se conservar apenas algumas. Ou seja, a criança mantinha-se em um lugar anônimo e intercambiável.
Conforme Donzelot (1986), a partir de meados do século XVIII, floresceu uma abundante literatura sobre a conservação das crianças.
Badinter (1985) e Ariès (1978) observam que a atitude de indiferença em relação à infância só se modificou a partir de um discurso econômico e pedagógico do final do século XVIII. Tal discurso apontou para a importância da população para um país. Ao se preocuparem com a produção, os economistas atribuíram à criança um valor mercantil, ela passou a ser potencialmente uma riqueza econômica.
O advento da modernidade e o aparecimento da criança na estrutura familiar coincidem com uma preocupação moral e educacional visando o seu desenvolvimento em nome do ideal de um adulto moldado de acordo com as normas sociais. Na modernidade, a família se reduziu em relação ao número de seus membros e se condensou em torno dos pais e dos filhos, ou seja, a família fechou-se em seu núcleo. A mulher ganhou poderes em função da valorização da maternidade e dos denominados “instintos maternos”. Cabia à mulher ser o agente de investimento na prole e fazer a mediação entre a criança, a escola e os cuidados médicos. A partir do século XVIII e com a organização da família baseada em laços mais estreitos se iniciou o combate à tradição patriarcal.
De acordo com Foucault (1988), nesse momento histórico, uma população qualificada passou a ser considerada a riqueza de uma nação. Nesse sentido, boas condições de saúde e educação seriam critérios fundamentais para forjar uma população qualificada. Por esse motivo, a criança se tornou objeto de grande investimento, tendo em vista que ela condensaria a concepção de que a criança é o futuro da nação. A figura da mãe, sendo complementar a essa perspectiva, seria aquela que cuidará das crianças e, por isso, passou a ser valorizada. No final do século XIX, o homem viu-se reduzido a provedor econômico da família, deixando para a mulher o papel de educar, amar e cuidar dos filhos. Assim, a cada carência paterna o Estado se propunha a substituir o faltoso criando novas instituições. Pode-se notar uma mudança do patriarcado familiar para o patriarcado estatal.
Todos colocavam em questão os costumes educativos do seu século, se preocupavam com a administração do abandono de menores e os altos índices de mortalidade infantil. Valendo-se destes índices de mortalidade infantil e das precárias condições de saúde dos adultos, a higiene conseguiu impor às famílias uma educação física, moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da época. Esta educação, dirigida sobretudo às crianças, deveria revolucionar os costumes familiares. Por seu intermédio, os indivíduos aprenderiam a cultivar o gosto pela saúde.
Em consequência disso, o Estado aceitou “medicalizar” suas ações políticas reconhecendo o valor político das ações médicas. A noção chave que selou este acordo foi a salubridade. Entre os trunfos da superioridade médica, um dos mais importantes consiste na técnica de higienização das populações, que suscitou o interesse do indivíduo por sua própria saúde. A saúde da população passou a se inscrever nas políticas de Estado e se configurar como uma forma de controle social (Costa, 1999). Assim, foi através da medicalização de suas ações que o Estado passou a intervir na esfera privada com vistas a regular os corpos dos indivíduos.
Desde a década de 1840 até o final do século XIX, as leis que editam normas protetoras da infância se multiplicaram. Para compreendermos o alcance estratégico desse movimento de normalização da relação adulto-criança é preciso observar que o que essas medidas visavam era de natureza indissociavelmente sanitária e política, procurando corrigir a situação de abandono das crianças das classes trabalhadoras como também reduzir a capacidade sócio-política dessas camadas, a transmissão autárquica dos saberes práticos, a liberdade do movimento e de agitação que resulta do afrouxamento das antigas coerções comunitárias. Diante desse panorama, nota-se que a luta filantrópica contra o abandono e a exploração de crianças era também uma luta contra os enclaves populares que permitiram a autonomia dos laços entre as gerações.
Na família contemporânea, a crescente democratização da esfera privada está atualmente na ordem do dia. A democracia significa que a oportunidade para que a força do melhor argumento seja preponderante, em contraposição a outros modos de se tomar decisão (Giddens, 1993). Na contemporaneidade, tem ocorrido a democratização da vida pessoal e familiar, incluindo a relação pais-filhos.
As pesquisas voltadas para novas configurações familiares ressaltam as mudanças no funcionamento da família, destacando a convivência concomitante de lógicas tradicionais e modernas, que aumentam o grau de complexidade das relações familiares. A renegociação de posições e papéis na família sofre influência de modelos igualitários, transformando a estrutura familiar em uma espécie de rede fraterna, na qual a hierarquização e a autoridade tendem a ser constantemente questionadas. A parentalidade passa a ser definida não somente pela biologia, mas por fatores sócio-afetivos e civis, sendo determinada cada vez mais pelo social que age por meio de especialistas. O social passa a modelar a relação entre pais e filhos intermediado pela ação dos profissionais de saúde, educadores e representantes da lei, figuras do terceiro social.
Um exame aprofundado do lugar social da infância na contemporânea não pode desconsiderar fatores importantes como a terceirização dos cuidados com as crianças, a medicalização e a patologização da infância, a epidemia de diagnósticos que recaem sobre as crianças, a complexidade dos sintomas infantis, o bullying, TDAH e as patologias compulsivas infantis. É fundamental ter em mente que as fronteiras entre o normal e o patológico são porosas, não são estáticas, sobretudo em se tratando de saúde mental.
Diante disso, não se pode perder de vista que as crianças vêm sendo convocadas a se enquadrarem em padrões e exigências sociais rígidas que demandam agendas cheias, o desempenho de múltiplas tarefas e habilidades específicas em períodos cada vez mais precoces da sua existência. O desenvolvimento de habilidades pessoais e sociais, assim como o tempo necessário a constituição psíquica, têm sido solapados por uma exigência de aquisição de competências que se ancora e se fixa no discurso da medicalização da infância.
Referências
ARIÈS, P. (1978). A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC.
BADINTER, F. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
DONZELOT, J. (1986). A política das famílias. Rio de Janeiro: Graal.
FOUCAULT, M. (1988). Madness and civilization: A history of insanity in the age of reason. Vintage.
GIDDENS, Anthony. (1993). A transformação da intimidade. São Paulo: Editora Unesp.