Este é o último ‘blog’ da série. Concluo agora a apresentação da abordagem desenvolvida pelos colegas britânicos de psicologia. Qual é a resposta para a questão: “O que nós fazemos ao invés de diagnosticar as pessoas?”.
Essa é a questão que todos devemos formular quando de fato estamos buscando uma alternativa ao diagnóstico psiquiátrico.
E a resposta é muito simples: “Nós ouvimos as histórias delas”.
É essa a orientação fundamental do Modelo Poder, Ameaça e Sentido (PTMF em inglês).
O PTMF desafia a forma como o modelo biomédico da psiquiatria aborda as formas de sofrimento psíquico, comportamentos perturbados e perturbadores que usualmente são considerados como sintomas de alguma “doença mental”.
Pois bem: “Ouvir a história que nos é narrada”. Ao narrar a sua história o sujeito está nos respondendo às seguintes questões: “o que lhe aconteceu?”, “como o ocorrido lhe afetou?”, “que sentido foi dado ao ocorrido?”, “o que foi feito, que respostas foram dadas?”, e, finalmente “quais os recursos disponíveis para resolver o problema?”. São as questões que o PTMF sugere que sejam colocadas para se entender o “sofrimento psíquico” e agir para o enfrentar.
Você deve estar se perguntando em que esse Modelo difere dos modelos de diagnóstico psiquiátrico ou mesmo psicológico. Essa pergunta é muito boa. É por isso que as autoras (Boyle & Johnstone, 2020, p. 127-128) nos alertam para os seguintes aspectos:
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O efeito da atração exercido pela narrativa dominante do diagnóstico psiquiátrico e seu contexto mais amplo de suposições das ciências naturais.
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A contradição inerente em combinar narrativas do diagnóstico psiquiátrico com as narrativas psicológicas.
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O papel dos discursos, especialmente aqueles de gênero, classe, etnia e medicalização do sofrimento psíquico, e como esses discursos podem permitir que o significado dos outros sejam impostos.
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Os impactos do poder coercitivo, legal e econômico.
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A natureza e impacto das desigualdades nos ambientes psiquiátricos.
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A prevalência de abusos do poder interpessoal dentro das relações.
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O papel do poder ideológico, expressado através das narrativas e suposições acerca do individualismo, realização, responsabilidade pessoal, papeis de gênero, e assim por diante.
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O papel mediador das respostas de base biológica às ameaças.
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A importância de se entender a função e o propósito das respostas às ameaças.
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Os sentidos culturais específicos, sistemas de crenças e formas de expressão.
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Autoajuda e ação social junto com, ou ao invés de, intervenção profissional.
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A importância das narrativas comunitárias, valores e crenças espirituais, para dar suporte à cura e reintegração do grupo social.
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Reconhecimento da natureza variada, pessoal e transitória de todas as narrativas e a necessidade da sensibilidade, arte e respeito no apoio ao desenvolvimento e expressão delas, seja qual for a forma que elas tomam.
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A necessidade de transmitir uma mensagem geral que é normalizante, não patologizante (seja em termos médicos ou psicológicos): ‘Você está vivendo uma experiência compreensível e por conseguinte uma reação adaptativa às ameaças e dificuldades. Muitos outros nas mesmas circunstâncias sentiram o mesmo.”
O PTMF tem explicitamente uma perspectiva intersubjetiva. Você que já conhece a abordagem feita pelo Diálogo Aberto (Finlândia) deve ter percebido que há muita coisa em comum. Assim como tem muita coisa em comum com a Terapia Narrativa ou os Ouvidores de Vozes, por exemplo.
Em termos genéricos eu diria que a perspectiva da intersubjetividade descreve os processos psíquicos e o desenvolvimento das mentes em termos da sua conhecida interatividade. O que é distinta da perspectiva intrapsíquica ou da perspectiva biomédica da psiquiatria. A ênfase é dada nos processos intersubjetivos, na correspondência e na transformação mútua entre os sujeitos em interação. O que implica em sujeitos (mentes diferentes) mutuamente afetando uns aos outros. Coerentemente com as evidências científicas, o PTMF propõe que as patologias do poder e da dominação sejam desmascaradas. Que se tenha atenção para as narrativas de traumas individuais e coletivos e que se acompanhe os processos sociais de cura.
O PTMF é um modelo que orienta como as histórias podem ser formuladas em terapia e serviços de saúde mental, levando em conta as diferentes teorias e técnicas psicoterapêuticas. Mas também vai além dessas formas tradicionais de produzir sentido, ao dar igual valor à arte, poesia, dança, música e assim por diante. Também reconhece as muitas formas de narrativas que ajudam o sujeito a lidar com o seu sofrimento ao nível do grupo social, através de rituais comunitários ou baseados na fé, cerimônias, lendas etc. O PTMF também vem sendo usado por grupos de suporte entre pares. Portanto, o PTMF não é um guia técnico que necessita que as pessoas tenham alguma expertise acadêmico-profissional em saúde mental para poder utilizá-lo.
As estratégias que podem ser empregadas, segundo as autoras Boyle e Johnstone (2020, p. 129-130):
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Relações seguras na infância
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Apoio aos parceiros atuais, famíla e amigos para o suporte prático e emocional, proteção, testemunho, validação
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Saber lidar com emoções opressoras ao liberar/expressar/processar sentimentos (por exemplo, escrevendo, exercício, terapias alternativas, criatividade e artes, abordagens com foco na compaixão, atenção plena [‘mindfulness’], meditação
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Auto-cuidados – por exemplo, nutrição, exercício, descanso, terapias alternativas
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Encontrar papeis sociais e atividades que deem sentido
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Acesso a recursos materiais/capital cultural/educação e assim por diante
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Acesso à informação/perspectivas alternativas
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Aspectos de identidade positivos e socialmente valorizados
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Destrezas/habilidades – inteligência, desenvoltura, determinação, talentos
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Recursos físicos – força, saúde, habilidades esportivas
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Sistemas de crenças – fés, valores e assim por diante
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Práticas culturais na comunidade, rituais, cerimônias e intervenções
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Conexões com o mundo natural
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Dar força um ao outro em campanhas, ativismo
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Criando/encontrando novas narrativas/significados/crenças/valores, ativismo dos ‘sobreviventes”
Aqui no Brasil, no campo da reforma psiquiátrica, inúmeras abordagens de natureza psicossociais trabalham com inúmeros desses recursos. Temos um ‘know-how’ diversificado e uma inestimável riqueza de experiências. Contudo, não podemos fazer de conta que a nossa dependência ao “modelo biomédico” da psiquiatria não causa inúmeros problemas para a assistência psicossocial, com inúmeros danos aos “usuários” e à sociedade em geral. Certamente que se houvéssemos nos libertado do “modelo biomédico” da psiquiatria a qualidade dos serviços prestados seria um exemplo para o mundo inteiro. A propósito, sugiro a leitura do recente documento da OMS com recomendações que reivindicam uma radical mudança no paradigma da assistência em saúde mental. Confiram também a entrevista dada por Michelle Funk, quem fez parte do processo de elaboração deste documento da OMS.
Não deixem de ler as fontes originais do PTMF, já citadas em ‘blogs’ anteriores.
Com isso concluo a série de ‘blogs’ que me propus escrever. As minhas palavras finais é que temos que fazer uma reforma da reforma psiquátrica brasileira. E não a retrocessos ao já conquistado em décadas de lutas e de experiências exitosas.
Citação:
Boyle, M., & Johnstone, L. (2020). The Power Threat Meaning Framework. An alternative to psychiatric diagnosis. PCCS Books Ltd.