Paulo Amarante e Sidarta Ribeiro Participam do Programa Caminhos da Reportagem na Tv Brasil com o Tema Medicalização da Vida

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No dia 30 de julho de 2023 às 22 horas foi ao ar pela Tv Brasil o programa Caminhos da Reportagem com o tema “Medicalização da Vida”. Participaram Paulo Amarante, psiquiatra e pesquisador do LAPS/ENSP e do CEE/Fiocruz, Renato Malcher, neurocientista e professor da UNBa, o biólogo e neurocientista Sidarta Ribeiro, do CEE/Fiocruz, o sanitarista Luiz David Castiel, da ENSP/Fiocruz, médico sanitarista, e Reginaldo Arcuri presidente do Grupo FarmaBrasil.

“Estamos ficando cada vez mais doentes por efeito da própria medicina” (Paulo Amarante)

A reportagem debateu os temas da patologização e medicalização da vida, com o objetivo de questionar se realmente a sociedade está mais “saudável” tomando remédios ou mais adoecida e, assim, desmistificar o mito de que tudo se resolve através do uso de medicamentos.

Na reportagem Paulo Amarante menciona, como o marketing é utilizado pela indústria farmacêutica como o intuito de demonstrar que o medicamento é a única solução para o tratamento, sendo que qualquer psiquiatra consciente e bem informado sabe que os problemas psíquicos não são somente biológicos, causados por neurotransmissores, e o quanto é necessário ter uma atenção para cuidados da vida como: hábitos alimentares, história de vida, atenção e estresse do dia a dia.

Já Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil, afirma que o objetivo da indústria farmacêutica é sempre avançar na cura e na estabilização das doenças. “O lucro, como qualquer atividade num sistema capitalista de livre iniciativa, é parte essencial, é necessário para a empresa pagar salários, impostos, manter a sua estrutura funcionando. É da lógica do sistema”, defende.

No entanto, Sidarta Ribeiro fala sobre a hiperfarmacologização que levou de forma reducionista o quanto se olha para a depressão como um problema biológico, o mesmo levanta um questionamento “dormir, se alimentar e fazer exercícios são a base da saúde humana há 300 mil anos. Por que não seria agora? ”.

“… Medicalização excessiva que caracteriza as últimas décadas, ela é na verdade, infelizmente, um reflexo de um conflito de interesses, entre a indústria farmacêutica e a medicina” (Sidarta Ribeiro)

Luiz David Castiel, critica a indústria farmacêutica por estimular o consumo de remédios. “O papel da indústria farmacêutica é o papel que as indústrias têm, que é produzir determinados objetos para serem consumidos”.

A reportagem trata ainda da hiperpatologização de casos de Transtorno do Espectro Autista e do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade e, ainda, da importância da medicação em determinadas situações.

LINK para acessar a reportagem completa:  https://tvbrasil.ebc.com.br/caminhos-da-reportagem/2023/07/medicalizacao-da-vida

Revista Plural traz temas emergentes da Saúde Mental

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A Revista Plural é uma publicação semestral de caráter técnico-científico que contribui para o debate de temas atuais de interesse para a comunidade de psicólogas e psicólogos, e para a sociedade em geral. Esse semestre, sob o título: Temas emergentes da Saúde Mental, são abordados temas como: contrarreforma psiquiátrica, deficiência e sexualidade, Lgbtfobia, imigração e refugiados, além de questões de ódio. Com artigos assinados por Geni Nuñez, Karla Garcia, Adriana Lobo, Daniel Kerry, Gustavo Machado, Marcela de Andrade Gomes e Marcos Ferreira,

Geni Núñez, a partir de um olhar indígena, aborda a “Psicanálise Civilizada”, enquanto Karla Garcia debate a despsicopatologização da sexualidade de mulheres com deficiência intelectual, a professora Adriana Lobo aborda a contrarreforma psiquiátrica e revisita questões relevantes sobre o uso de drogas, exclusão social e a dimensão ético-política da atuação da Psicologia. O colaborador de CRP-12, Daniel Kerry dos Santos explora a importância em desconstruir a escuta cisgênera e heterossexual, e Marcela de Andrade Gomes analise questões relativas às migrações, saúde mental e política. Também falando sobre imigrantes, Gustavo da Silva Machado, desenvolve sua visão e expertise no tema. Encerrando os temas desta edição, Marcos Ferreira reflete sobre questões de ódio e o papel da psicologia na conjuntura social

A revista é um material rico que vai proporcionar um olhar crítico para todos da Área da Saúde Mental e Saúde Coletiva, por isso o Mad in Brasil indica.

LINK para acessar a revista → https://drive.google.com/file/d/1jJPkUWPfUqCQZz-mjZZF3wF7X0wLufbf/view?usp=drivesdk

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 5: Diagnósticos Psiquiátricos Não São Confiáveis ​​(Parte Um)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, o autor apresentará o livro. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.

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“É improvável que as pessoas questionem as premissas subjacentes de suas ocupações, nas quais muitas vezes têm uma grande participação financeira e emocional.”
—Judi Chamberlin, ex-paciente mental(102)

No protocolo para meu estudo de livros de psiquiatria, observei que eles deveriam
mencionar que os diagnósticos psiquiátricos são baseados em critérios arbitrários; que há
grande variação interobservador quando vários psiquiatras avaliam os mesmos pacientes
independentemente; que os transtornos psiquiátricos podem voltar a desaparecer, sem
tratamento; que os psiquiatras estão dispostos a mudar seus diagnósticos; e que os
pacientes podem ter seus diagnósticos removidos com base em uma segunda opinião ou
acompanhamento mais longo.

Também observei que os médicos não devem apresentar diagnósticos adicionais em
pessoas que recebem drogas psicoativas porque seus efeitos adversos podem imitar os
critérios usados ​​para outros diagnósticos. Portanto, muitas vezes é impossível dizer qual é
qual, por ex. se um paciente em tratamento para depressão ou TDAH também vier a sofrer
de transtorno bipolar ou se os sintomas observados forem meramente efeitos adversos dos
medicamentos.(7,8)

Os psiquiatras geralmente ignoram esse problema fundamental e podem até dizer que o
tratamento medicamentoso “desmascarou” o novo transtorno, o que é uma das razões pelas quais o contato com o sistema psiquiátrico costuma levar a vários diagnósticos e
polifarmácia e por que problemas temporários de saúde mental muitas vezes se tornam
crônica.

Havia muito pouco nos livros didáticos que sugeriam qualquer uma dessas questões
essenciais. Um livro observou que os psiquiatras tentaram tornar os diagnósticos confiáveis
​​e garantir que os médicos concordassem em como usá-los.(18:24) Mas não explicava que os diagnósticos psiquiátricos são altamente duvidosos e não citava nenhum estudo sobre a
variabilidade do observador.

Na mesma página, esse livro observa que o diagnóstico é afirmado ou rejeitado com base
no curso da doença e nos resultados do tratamento.(18:24) Há dois problemas óbvios com essa afirmação. Primeiro, a realidade é que não é possível remover um diagnóstico errôneo. Numerosos pacientes tentaram e foram rejeitados. Em segundo lugar, é uma evidência circular. Se dermos a todos um diagnóstico de esquizofrenia, e alguns melhorarem quando tratados com pílulas para psicose, o diagnóstico é confirmado para esses pacientes e rejeitado para os demais. Se dissermos que pode chover amanhã e pode não chover, e depois deixamos o “curso do tempo” decidir o que é certo, isso não prova nada sobre nossas capacidades como meteorologista.

Mais à frente, este livro apontava sobre os critérios diagnósticos para depressão que são
sintomas que a maioria das pessoas experimenta de vez em quando: tristeza, dificuldade de concentração, problemas de sono, etc., mas que o importante é, em primeiro lugar, que os sintomas devem ultrapassar um certo limiar clínico antes que possam ser considerados um distúrbio, o que requer experiência clínica para determinar; e em segundo lugar, que devem estar presentes há mais de 14 dias.(18:119)

Isso se resume ao melhor amigo dos psiquiatras, a experiência clínica, que não é
tranquilizadora para os pacientes que eles rotulam e estigmatizam por toda a vida com seus diagnósticos, que muitas vezes estão errados.(7) Se você é um paciente, como você se opõe à experiência clínica de um psiquiatra? Você está fadado a perder, com três argumentos: você não é psiquiatra; você não tem experiência clínica; e como você tem um distúrbio de saúde mental, pode não ser capaz de pensar com clareza sobre si mesmo.
É problemático usar um diagnóstico como depressão para explicar uma experiência.(10:14)
Se me perguntassem por que alguém está se sentindo deprimido e eu respondesse que é
porque ela tem depressão, então uma pergunta legítima a fazer é: “Como você sabe que
esse sentimento de desânimo é causado pela depressão?” A única resposta que posso dar
é que sei que é depressão porque ela está se sentindo deprimida. Se tentarmos usar uma
classificação que só pode descrever para explicar, acabamos com uma tautologia ou
pensamento circular. Uma descrição não pode explicar a si mesma. Mau humor e depressão
são sinônimos; não podemos usar um para explicar o outro.

A Associação Psiquiátrica Americana (APA) proclamou em 2021 que o transtorno
depressivo maior é uma doença médica comum e grave que afeta negativamente como
você se sente, pensa e age.96 Isso está errado. A APA deu vida a algo que é apenas um
nome e, portanto, não pode causar nada. Este é um erro muito comum na psiquiatria.
Como os critérios diagnósticos foram reduzidos, não surpreende que os estudos tenham
mostrado que mais pessoas são superdiagnosticadas do que subdiagnosticadas para
depressão.(103) O termo “transtorno depressivo maior” tornou-se contraditório em termos,
pois agora inclui casos de depressão leve, embora tais casos não são graves, nem
depressão, nem mesmo um distúrbio.(103)

Um livro descreveu a depressão agitada, com inquietação de torcer as mãos, turbulência
interna ou andar persistente, e disse que, como os pacientes são incapazes de encontrar
descanso, muitas vezes são altamente suicidas.(18:119) O que os autores descreveram são os principais sintomas da acatisia , um dos danos mais perigosos das pílulas de psicose e depressão. Acatisia é um estado de extrema inquietação e turbulência interior. Literalmente significa que você não pode ficar parado. Você pode sentir vontade de bater os dedos, mexer-se ou mexer as pernas.

Mas os autores não contaram a seus leitores sobre isso ou disseram como se pode
distinguir entre as duas condições, o que parece quase impossível. Isso também é uma
questão de experiência clínica?

Eu não estou brincando. Em 2015, fui convidado para palestrar em um hospital da Dinamarca pela organização psiquiátrica da região.(8-18) Rasmus Licht, professor de psiquiatria e especialista em transtorno bipolar, também lecionou. Perguntei a ele como ele poderia saber, quando fez o diagnóstico de bipolar em um paciente que recebeu um medicamento para o TDAH, que não eram apenas os danos causados ​​pelos medicamentos que ele via porque são muito semelhantes aos sintomas que os médicos usam ao diagnosticar o transtorno bipolar.

Fiquei pasmo quando ele disse que um psiquiatra era capaz de distinguir entre essas duas
possibilidades.

Rasmus disse muita coisa que não estava correto, o que ilustrou o que a psiquiatria faz com seu próprio povo. Quando o conheci, ele era um jovem brilhante que me impressionou. Eu fui um dos examinadores quando ele defendeu seu doutorado sobre mania 17 anos antes e não o via há todos esses anos. Foi chocante observar como ele havia assimilado as ideias erradas da psiquiatria. Nos correspondemos um pouco depois, mas não consegui convencê-lo de que ele estava errado.

Uma das coisas que Rasmus escreveu foi que “é mencionado na CID-10 [CID é a
Classificação Internacional de Doenças da OMS] e no DSM-IV [Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais da APA] que se a mania ocorre apenas quando o
paciente recebeu um antidepressivo ao mesmo tempo, este fala contra o transtorno bipolar,
pois entende-se que poderia ser mania induzida por drogas. No entanto, em contraste, o
DSM-5 tomou as consequências de estudos epidemiológicos recentes e escreveu que,
mesmo que ocorra uma mania durante o tratamento com um antidepressivo, isso deve ser
percebido como um transtorno bipolar verdadeiro, ou seja, primário. Então, neste caso, você fala contra um conhecimento melhor.”

Eu me perguntei como era possível para Rasmus acreditar em tal absurdo. É uma bobagem
postular que uma mania que ocorre durante o tratamento com uma pílula para depressão é
um novo distúrbio quando pode muito bem ser um dano causado por drogas. É um truque
inteligente que os psiquiatras usam para se distanciar dos danos que causam e de sua
responsabilidade. A culpa é sempre do paciente, nunca dele ou de seus medicamentos, é a
mensagem que eles passam, também em seus livros didáticos.

Deveria ser proibido fazer novos diagnósticos enquanto o paciente ainda estiver em
tratamento com drogas psicotrópicas e, se os psiquiatras não resistirem à tentação,
deveriam chamá-lo provisoriamente de transtorno induzido por drogas.

Em um de meus livros, descrevo uma paciente, Stine Toft, que nunca foi maníaca, exceto
quando recebeu uma pílula para depressão, mas também recebeu o diagnóstico de
bipolar.(8:5) O que a psiquiatria fez com ela foi devastador, mas tão típico, que publiquei sua história no site Mad in America.(104)

Stine foi seriamente ferida. Ela foi informada de que sua condição definitivamente duraria
pelo resto de sua vida; ela foi tratada com pílulas para depressão, antiepilépticos e uma
pílula para psicose; engordou 50kg; perdeu cerca de 14 anos de sua vida para a psiquiatria; perdeu o marido; chegou perto do suicídio; e se aposentou por invalidez.
O marido de Stine a salvou. Ele perguntou rapidamente “o que era a doença”, porque não
conseguia ver. Depois de um ano e meio, ela se rendeu e concordou em retirar a medicação. Ela sofreu uma fase de abstinência excruciante porque não recebeu a
orientação necessária. Demorou dois anos e meio. Foi quando ela conheceu dois dos meus
livros (7,46) e descobriu que tudo o que ela havia vivido era conhecido e perfeitamente normal. Foi chocante para ela ler sobre como é uma prática vista como normal e ser exposta ao inferno pelo qual passou, mas também libertador ao descobrir que não estava doente e que não havia nada de errado com ela.

Stine está bem hoje. Tornou-se coach e psicoterapeuta e ajudou muitos pacientes a reduzir
gradualmente os comprimidos para depressão, com grande sucesso. Ela não vê mais sua
família. Eles mantiveram a alegação de que ela estava doente e só precisava tomar a
medicação. Stine dá palestras, mas acha difícil transmitir a mensagem. Ela já havia dado
palestras sobre ser bipolar, o que foi fácil. As pessoas gostam de ver uma pessoa doente e
ouvir sua história. Mas a história de sucesso de um sobrevivente psiquiátrico que questiona
todo o sistema não é considerada interessante.

Um caso especial de diagnósticos errôneos são os diagnósticos post-mortem. Dois livros
didáticos afirmaram que 50% dos suicídios ocorrem em pessoas deprimidas,(17:358,18:129) e um terço que, de longe, a maioria das pessoas que se mataram tinha um distúrbio psiquiátrico que exigia tratamento.16:534 No entanto, um diagnóstico post-mortem é altamente tendencioso. O viés de aceitabilidade social ameaça a validade de tal diagnóstico retrospectivo. Os parentes muitas vezes buscam explicações socialmente aceitáveis ​​e podem não estar cientes ou relutantes em revelar certos problemas, particularmente aqueles que geram vergonha ou colocam parte da culpa em si mesmos. Além disso, o diagnóstico de depressão é feito questionando o paciente, e não se pode falar com um morto.

Um livro didático, que tinha um psicólogo como um de seus dois editores, era
marcadamente diferente dos outros. Ele citou o médico canadense William Osler (que
morreu em 1919): “É muito mais importante saber que tipo de paciente tem uma doença do que que tipo de doença um paciente tem”. colocar o ser humano no centro é organizar a
saúde mental com respeito à integridade e autodeterminação do indivíduo, e que, em uma
prática clínica baseada em evidências, o tratamento deve ser adaptado às percepções
pessoais, sentimentos, e expectativas e não apenas ao diagnóstico e às muitas vezes
escassas evidências associadas a ele.

Os autores escreveram que, “No livro veremos a pessoa por trás do diagnóstico.”(17:35) Mais tarde, o livro repetiu que é a percepção do paciente de si mesmo e de seu mundo que está no centro.(17:136) Essa visão é radicalmente diferente dos outros livros didáticos em que o paciente é o receptor passivo de medicamentos e é repreendido se não quiser tomá-los por ser chamado de não aderente ou resistente ao tratamento, ou por falta de percepção de sua doença.

Este livro observou que existem fortes interesses econômicos por trás do diagnóstico de
novas condições, por exemplo, o uso de medicamentos para TDAH aumentou
dramaticamente e o diagnóstico de TDAH está sendo usado cada vez mais, também sobre
coisas que não são desviantes ou constituem um distúrbio, como dificuldade de
concentração, inquietação, inquietação motora e impulsividade em crianças.(17:51)
Isto está certo. O TDAH é uma construção americana e, a cada revisão do DSM, um número maior de crianças encontra-se acima do limiar para o diagnóstico.(10:33) O TDAH é produto de interesses comerciais, políticos e institucionais estabelecidos. Em nenhum lugar da história desse diagnóstico houve qualquer descoberta científica significativa. (10:35) São as roupas novas do imperador.

O livro mencionou que estudos mostram que o menino mais novo da classe tem um risco
cerca de 30% maior de receber um diagnóstico de TDAH do que as outras crianças.17:51
Na verdade, é pior do que 30%. Conforme observado acima, 50% a mais das crianças
nascidas em dezembro estavam em tratamento medicamentoso para o TDAH do que as
nascidas em janeiro na mesma classe.(51)

O livro observou que os diagnósticos psiquiátricos têm pouca validade e não nos dizem
muito sobre a natureza, o curso e o tratamento das doenças.(17:212) A confiabilidade dos
diagnósticos também foi questionada: os médicos chegarão ao mesmo diagnóstico? Tanto
sim como não.(17:214) Os critérios diagnósticos são arbitrários, havendo grande aversão da população ao uso de diagnósticos psiquiátricos, que são mais estigmatizantes do que úteis para o médico.(17:215)

Esse ceticismo foi repetido 703 páginas depois, em um capítulo sobre a história da
psiquiatria:(17:918) Podemos confiar nos diagnósticos, e o que eles realmente nos dizem
sobre as doenças dos pacientes? O movimento antipsiquiátrico depois de 1968 foi dirigido
em particular contra os diagnósticos, que eram considerados não confiáveis, estigmatizantes e alienantes: “Quem é que está louco?”

Grande parte do livro era tradicional e cheio de erros. Mas o capítulo sobre a história da
psiquiatria na Dinamarca foi tão ousado que desconfiei que os autores deviam ser
psiquiatras aposentados ou prestes a se aposentar, ou de outra profissão. Eu tinha razão.
Apenas um dos três autores era psiquiatra, nascido em 1949. Os outros dois eram psicólogo e historiador da medicina.

Os autores explicaram que slogans como “o paciente é um especialista em sua própria vida” desafiaram a atitude paternalista tradicional da psiquiatria, e que o movimento de
recuperação – com a atitude básica de que os pacientes podem se recuperar e voltar à vida
fora do sistema de tratamento, como pacientes que são tratados para doenças não
psiquiátricas – tem sido particularmente importante na psiquiatria social.(17:910)

Os autores ainda observaram que não há relação entre as evidências disponíveis, as
diretrizes clínicas nacionais e o conteúdo dos pacotes de tratamento, e que a imagem da
psiquiatria permanece pressionada devido a casos de supermedicação e muita
coerção.(17:919)

Eles encerraram o capítulo dizendo que um dos maiores problemas é a alta mortalidade
entre pacientes psiquiátricos.(17:920) Isso não foi discutido nos outros livros ou mencionado no texto principal deste livro, mas no final de um livro enorme, sob o título A história da psiquiatria na Dinamarca, começando na página 910. Os alunos são muito orientados para os resultados e priorizam o que leem. Poucos alunos lerão essas 23 páginas, embora estejam entre as mais importantes em todos os cinco livros didáticos.

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Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui .

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Mad in America hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Marco Guedes: Psicólogo, aluno de pós-graduação em Saúde Mental e Atenção psicossocial (ENSP/FIOCRUZ).

 

 

 


 

Fatores socioeconômicos são os principais contribuintes para o aumento das mortes por suicídio, aponta estudo

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Um novo estudo destaca a conexão entre fatores socioeconômicos e taxas de suicídio. De acordo com o estudo, o desemprego, a desigualdade educacional e o acesso inadequado a cuidados médicos estavam entre os correlatos identificados do aumento de mortes por suicídio. 

O estudo, conduzido por Shannon Lange do Institute for Mental Health Policy Research (Instituto de Pesquisas Políticas de Saúde Mental) em Ontário, Canadá, foi publicado no The Lancet Regional Health: Americas. 

A equipe de pesquisa examinou duas décadas de dados e identificou vários fatores sociais e econômicos que desempenharam um papel nas taxas de mortalidade por suicídio da região. Eles escrevem:

“Especificamente, usando 20 anos de dados, identificamos os seguintes fatores contextuais como tendo contribuído para as taxas de mortalidade por suicídio na região, a saber: uso de álcool, desigualdade educacional, gastos com saúde, taxas de homicídios, uso de drogas intravenosas, número de médicos empregados, densidade populacional e taxa de desemprego”. 

 

Taxa de mortalidade por suicídio padronizada por idade entre homens e mulheres e a tendência ao longo do tempo na Região das Américas, 2000–2019. Os diamantes indicam pontos de inflexão identificados. AAPC: Variação percentual média anual; APC: Variação percentual anual.

 

Os pesquisadores queriam determinar por que as Américas (Norte, Sul e Central) viram um aumento nas mortes por suicídio nas últimas décadas, enquanto outras partes do mundo experimentaram um declínio nas taxas de mortalidade por suicídio. 

Para realizar o estudo, eles reuniram as taxas de mortalidade por suicídio, por idade e sexo, para 33 países das Américas de 2000 a 2019. Uma ampla variedade de fatores contextuais foi incluída na análise, retirada de organizações como o Banco Mundial e pesquisas como o Estudo da Carga Global de Doenças (GBD). Isso permitiu que os pesquisadores comparassem as mudanças ao longo do tempo, ao mesmo tempo em que observavam como diferentes fatores se aplicavam em outros países. 

A baixa densidade populacional, a taxa de desemprego e o acesso precário a cuidados médicos foram associados ao aumento das taxas de suicídio tanto para homens quanto para mulheres. No entanto, os pesquisadores observaram que o suicídio envolve fatores socioculturais que são afetados por sexo e gênero, portanto, eles também determinaram fatores específicos exclusivos de homens e mulheres(1).

Somente para os homens, o suicídio aumentava se houvesse mais homicídios e se o abuso de álcool e drogas fosse mais prevalente. Apenas para as mulheres, o suicídio foi aumentado por taxas mais altas de desigualdade educacional.

“Embora a maioria dos fatores contextuais identificados pareçam relativamente intuitivos e sejam apoiados pela literatura atual”, escrevem os autores, “a proporção do país com uma densidade populacional moderada é menor à primeira vista”.

“No entanto, recentemente, Steelsmith et al. descobriram que, entre 1999 e 2016, as taxas de suicídio foram mais altas e aumentaram mais rapidamente nas áreas rurais do que nas grandes cidades metropolitanas dos EUA; sugerindo que as áreas rurais podem ser mais sensíveis ao impacto da privação social do que os condados metropolitanos. Embora aumentar a densidade populacional de um país não seja uma estratégia realista de saúde pública para reduzir a taxa de mortalidade por suicídio, pode valer a pena explorar a conexão social a as oportunidades cívicas como potenciais estratégias de prevenção do suicídio”. 

Os esforços atuais de “prevenção do suicídio” concentram-se principalmente no indivíduo e envolvem principalmente o fornecimento de tratamento psiquiátrico aqueles considerados em riscos. No entanto, não está claro o quão eficaz essa estratégia tem sido, uma vez que as taxas de suicídio continuam a aumentar, apesar do aumento significativo das taxas de tratamento de saúde mental nos Estados Unidos. 

Em alguns casos, os próprios tratamentos administrados para a prevenção do suicídio podem estar causando mais mal do que bem. Por exemplo, descobriu-se que os antidepressivos – muitas vezes prescritos para problemas emocionais leves nos Estados Unidos – mais do que dobram o risco de suicídio. Estudos também descobriram que a hospitalização involuntária (forçada) – comum para aqueles que expressam pensamentos suicidas – leva ao aumento do suicídio e também impede os jovens de pedir ajuda no futuro. E rastrear adolescentes para depressão também não melhora os resultados. 

Embora o suicídio seja frequentemente visto como parte de uma  doença neurobiológica teórica(como a depressão), os preditores mais consistentes de suicídio são sentimentos intensos de dor, desesperança e solidão, que são os efeitos de muitos dos correlatos encontrados neste estudo – desigualdade, falta de assistência médica, baixa densidade populacional, desemprego, etc. 

Assim, os pesquisadores escrevem que, em vez de focar no individuo, o meio mais eficaz de prevenção do suicídio é a mudança social:

“Medidas multissetoriais voltadas para a saúde e o bem-estar sócia na sociedade, que são informadas e desenvolvidas com base em evidências sobre fatores contextuais locais, devem ser enfatizadas nas iniciativas de prevenção do suicídio”. 

(1) O estudo estratificou os participantes em categorias “masculinas” e “femininas”. Usei os termos “homens e mulheres” ao longo do artigo para facilitar a leitura, mas também deve ser observado que o estudo não forneceu nenhuma informação sobre experiências trans ou não binárias.

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Lange, S., Cayetano, C., Jiang, H., Tausch, A., & Oliveira e Souza, R. (2023). Contextual factors associated with country-level suicide mortality in the Americas, 2000–2019: a cross-sectional ecological study. The Lancet Regional Health: Americas, 20(100450). https://doi.org/10.1016/j.lana.2023.100450 (Link) 

 


Tradução de Marco Guedes: Psicólogo, aluno de pós-graduação em Saúde Mental e Atenção psicossocial (ENSP/FIOCRUZ).

 

 


 

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 4: Os distúrbios psiquiátricos são causados por um desequilíbrio químico?

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Nota do editor: Nos próximos meses, o Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a forma como os manuais didáticos se referem ao desequilíbrio de vários neurotransmissores como causa de transtornos psiquiátricos e se há alguma evidência para apoiar essa noção. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

Quando dou palestras para pacientes psiquiátricos, metade ou mais dizem que seus médicos disseram que eles estão doentes porque têm um desequilíbrio químico no cérebro.

Meus colegas que trabalham com pacientes a nível terapêutico têm a mesma experiência. Mas, quando confrontados com isso, os principais psiquiatras são rápidos em negar que algum psiquiatra tenha dito isso a alguém, ou dizem que abandonaram a ideia décadas atrás. Isso não está correto.

Ainda hoje, em uma das cinco regiões da Dinamarca, a psiquiatria de base hospitalar menciona em sua página inicial:[81]

“A esquizofrenia é um distúrbio no cérebro… As pessoas com esquizofrenia apresentam distúrbios em certas áreas do cérebro onde o neurotransmissor dopamina está ativo. Outros distúrbios no cérebro também são vistos.”

“A medicação antidepressiva atua em alguns dos processos químicos que estão desequilibrados no cérebro na depressão. A medicação normaliza, entre outras coisas, o nível do hormônio do estresse cortisol e os neurotransmissores cerebrais serotonina e norepinefrina”.

“Os distúrbios afetivos são doenças mentais relacionadas a um desequilíbrio químico no cérebro. Isso leva a problemas de saúde mental como depressão, mania ou uma combinação de ambos”.

“Os exames de imagem mostraram que as pessoas com TDAH apresentam alterações em vários locais do cérebro na área responsável pelo planejamento, controle dos impulsos e atenção. As células do cérebro usam diferentes neurotransmissores para se comunicarem umas com as outras. Se você tem TDAH, verá distúrbios nessas substâncias… os níveis dos neurotransmissores dopamina e norepinefrina são baixos. O tratamento médico do TDAH aumenta a quantidade dos dois neurotransmissores no cérebro, melhorando a função cerebral.”

“O medicamento atua em alguns dos processos químicos no cérebro relacionados ao transtorno de ansiedade … a medicação antidepressiva normaliza a quantidade do neurotransmissor serotonina no cérebro”.

O texto sobre TDAH foi particularmente enganoso. Ele indicou que sabemos exatamente onde estão os problemas no cérebro e que eles podem ser corrigidos como uma chave que se encaixa em uma fechadura.

A indústria farmacêutica também propaga essa falsa narrativa. Uma pesquisa feita em 2007 com estudantes universitários dos Estados Unidos descobriu que 92% tinham visto ou ouvido falar que a depressão é causada por um desequilíbrio químico no cérebro e 89% deles tinham visto isso na TV. [82] Canais de TV nos EUA estão cheios de anúncios de medicamentos controlados e essa doutrinação é muito eficaz.

Esquizofrenia e transtornos relacionados

As informações nos manuais didáticos eram muitas vezes bem detalhadas: as anormalidades na psicose incluem alterações na neurotransmissão e nos sinais hormonais; [18:27] eles incluem migração de neurônios e formação de sinapses, que por sua vez levam a mudanças estruturais e funcionais no cérebro, incluindo aumento dos ventrículos ventrais, como expressão de atrofia; [18:94] PET scans encontraram disfunção no córtex pré-frontal e no hipocampo; [18:94] As varreduras de PET e SPECT mostraram aumento da síntese e liberação de dopamina em muitos pacientes psicóticos, localizados principalmente no corpo estriado associativo (a cabeça do núcleo caudado); [16:562] e os complexos de sintomas estão bem correlacionados com a disfunção de certas áreas cerebrais em exames de PET. [18:90]

Também somos informados de que há patologia das sinapses,[19:228] e que os achados são robustos de que há aumento da síntese e liberação de dopamina no corpo estriado associativo.[16:215]

No entanto, um manual observou que nem todos os pacientes apresentam alterações no sistema de dopamina.[16:221] Isso contradiz a hipótese de que as pessoas se tornam psicóticas porque têm muita dopamina em seus cérebros e a verdade é que nunca foi documentado que qualquer uma das grandes doenças psiquiátricas seja causada por um defeito bioquímico no cérebro. Além disso, não há nenhum teste biológico que possa nos dizer se alguém tem um determinado transtorno mental.

A hipótese da dopamina tem sido aceita como base para o uso de drogas para psicose,[18:17] mas é o contrário. As drogas para psicose diminuem a dopamina e, portanto, os psiquiatras alegaram, fortemente pressionados pela indústria farmacêutica, que a doença é causada por muita dopamina. Eles publicaram uma enorme variedade de estudos ruins que supostamente mostram isso. Mas o fato é que os estudos que afirmam que um transtorno mental comum, como psicose ou depressão, começa com um desequilíbrio químico no cérebro, não são confiáveis.[7:247]

Em 2003, o enorme engano tornou-se demais para seis sobreviventes psiquiátricos. Eles ficaram tão zangados com as histórias contadas por seus psiquiatras que enviaram uma carta à Associação Psiquiátrica Americana (APA) e outras organizações afirmando que iniciariam uma greve de fome a menos que evidências cientificamente válidas fossem fornecidas de que as histórias contadas ao público sobre transtornos mentais fossem verdadeiras.[5:331]

Eles pediram evidências de que as principais doenças mentais são doenças cerebrais de base biológica e que qualquer droga psiquiátrica pode corrigir um desequilíbrio químico. Eles também exigiram que as organizações admitissem publicamente se não pudessem fornecer tais evidências.

O diretor médico da  APA tentou escapar dizendo que “as respostas às suas perguntas estão amplamente disponíveis na literatura científica”. Em seu livro, A arte de ter razão, o filósofo Arthur Schopenhauer chama esse truque deplorável de “Postular o que precisa ser provado”.[83]

A greve de fome acabou quando as pessoas começaram a ter problemas de saúde, mas a APA blefou. Ele declarou em um comunicado à imprensa que não “seria distraído por aqueles que negam que transtornos mentais graves são condições médicas reais que podem ser diagnosticadas com precisão e tratadas com eficácia”.

Schopenhauer diz sobre este truque: “Se você está sendo derrotado, você pode fazer uma manobra de distração – isto é, você pode de repente começar a falar de outra coisa, como se isso tivesse relação com o assunto em disputa e fornecesse um argumento contra seu oponente. … é um atrevimento se não tem nada a ver com o caso e só é introduzido para atacar seu oponente.”

Este é um dos muitos exemplos de que a psiquiatria é mais uma religião do que uma ciência. Os líderes religiosos não poderiam ter inventado um blefe melhor, se as pessoas exigissem provas de que Deus existe: “Nós, padres e cardeais, não seremos distraídos por aqueles que negam que Deus existe e conhece os problemas das pessoas e pode tratá-los com eficácia”.

É importante perceber que uma diferença nos níveis de dopamina entre pacientes com diagnóstico de esquizofrenia e pessoas saudáveis – mesmo que existisse – não pode nos dizer nada sobre o que iniciou a psicose.

Se uma casa pega fogo e encontramos cinzas, isso não significa que foram as cinzas que incendiaram a casa. Da mesma forma, se um leão nos ataca, ficamos terrivelmente assustados e produzimos hormônios do estresse, mas isso não prova que foram os hormônios do estresse que nos assustaram. Era o leão.

As pessoas com psicose muitas vezes sofreram experiências traumáticas no passado, então devemos ver esses traumas como fatores causais contribuintes e não reduzir o sofrimento a algum desequilíbrio bioquímico que, se existir, é mais provável que seja o resultado da psicose do que sua causa.

Um manual didático [16:238] listou um estudo mostrando que nove pessoas com risco ultra-alto de psicose que mais tarde desenvolveram psicose, tinham maior capacidade de síntese de dopamina no corpo estriado, com um enorme tamanho de efeito de 1,18, do que 29 voluntários saudáveis.[84] Houve uma correlação positiva entre a capacidade de síntese de dopamina e a gravidade dos sintomas, mas esses estudos não podem nos dizer o que inicia uma psicose. Essas pessoas já estavam doentes (já tinham visto o leão) quando foram recrutadas para o estudo, embora ainda não preenchessem formalmente os critérios para o que constitui uma psicose.

Distúrbios afetivos

De acordo com os manuais didáticos, os quadros depressivos estão associados a uma influência no eixo do córtex hipotálamo-hipófise-adrenal (eixo HPA);[19:210] prováveis distúrbios no sistema nervoso central e neurotransmissores;[17:357] e cortisol elevado.[17:357,18:122]

No entanto, também encontrei visões alternativas. Três psicólogos levantaram a hipótese de que a depressão deveria ser devida a um desequilíbrio químico – transmissão monoaminérgica insuficiente – e que a melhora se devia ao restabelecimento dos níveis sinápticos normais de serotonina e norepinefrina.[20:430] Eles observaram, com referências, que isso não concorda com a observação de que o efeito ocorre após semanas de tratamento e que há outras razões para considerar a hipótese insuficiente.

A hipótese de que os pacientes deprimidos carecem de serotonina foi rejeitada de forma convincente.[2,85,86] Algumas drogas que diminuem a serotonina (ex. tianeptina ) ou não aumentam a serotonina (ex. mirtazapina) também parecem funcionar para a depressão [2,5,87] e os ratos geneticamente privados de serotonina no cérebro não estão deprimidos mas comportam-se como os outros ratos.[88] Além disso, seria difícil explicar por que essas drogas parecem funcionar na fobia social, que não é considerada uma doença de falta de serotonina. [86]

Quando disse em palestras para psiquiatras e outros médicos que muitos pacientes haviam sido informados de que tinham um desequilíbrio químico, recebi respostas raivosas exigindo que eu documentasse minhas supostas alegações. Meus colegas obviamente não gostam de admitir que informam mal seus pacientes. Referi-me ao que os pacientes, profissionais de saúde e outros me contaram, e a sites onde os pacientes compartilham suas experiências, mas isso é interpretado como se eu não soubesse do que estou falando, como se não tivesse valor para ouvir os testemunhos dos pacientes.

Quando argumentei que a documentação na internet é muito convincente porque os pacientes tiveram consistentemente as mesmas experiências, disseram-me que eram apenas anedotas que, além disso, não haviam sido publicadas em um periódico revisado por pares. Como se isso fizesse alguma diferença.

Essa negação organizada é perturbadora. Em um estudo dinamarquês de 493 pacientes deprimidos ou bipolares de 2005, 80% concordaram com a frase: “Os antidepressivos corrigem as mudanças que ocorreram em meu cérebro devido ao estresse ou problemas”.[89]

O mito de que um desequilíbrio químico no cérebro é a causa da depressão e de outros transtornos psiquiátricos não vai desaparecer. Em 2018, minha vice-diretora do Institute for Scientific Freedom, Maryanne Demasi, e eu coletamos informações sobre depressão em 39 sites populares em 10 países (Austrália, Canadá, Dinamarca, Irlanda, Nova Zelândia, Noruega, África do Sul, Suécia, Reino Unido, e EUA). Descobrimos que 29 sites (74%) atribuíram a depressão a um desequilíbrio químico ou alegaram que as pílulas para depressão poderiam consertar ou corrigir tal desequilíbrio.[90]

Os psiquiatras usam esse mito para convencer seus pacientes de que devem continuar tomando drogas que prefeririam evitar por causa de seus efeitos nocivos. Em 2013, o presidente da Associação Psiquiátrica Dinamarquesa, Thomas Middelboe, descreveu o termo desequilíbrio químico como uma metáfora que a psiquiatria aprendeu para explicar doenças cujas causas são desconhecidas.[91]

Como ilustrado acima, a dissonância cognitiva também desempenha um papel. Em 2014, debati com Poul Videbech – editor do manual didático sem referências [18] – em uma reunião pública organizada por estudantes de medicina. Depois de documentar que muitas pessoas estão em tratamento com pílulas para depressão e sugerir que diminuíssem os medicamentos, Videbech disse, na frente de 600 pessoas, incluindo pacientes e seus parentes: “Quem tomaria insulina de um diabético?” [7:249]

Um ano depois, quando publiquei meu primeiro livro sobre psiquiatria [7] e fui entrevistado em um jornal,[92] Videbech disse na mesma página que sabia há 20 anos que a teoria do desequilíbrio químico era simples demais e que era ultrajante que eu havia dito que ele e seus colegas ainda acreditavam nisso.

Bem, o mito sobre o desequilíbrio químico é apenas uma coisa do passado quando questionado. O professor de psiquiatria Birte Glenthøj também foi entrevistado e confirmou que o mito estava vivo: “Sabemos por pesquisas que pacientes que sofrem de esquizofrenia têm, em média, aumento da formação e liberação de dopamina, e que isso está ligado ao desenvolvimento dos sintomas psicóticos. O aumento da atividade da dopamina também é observado antes que os pacientes recebam medicamentos antipsicóticos pela primeira vez, portanto, não tem nada a ver com a medicação”.

Em 2017, Videbech postulou novamente que, quando as pessoas estão deprimidas, há um desequilíbrio no cérebro.[93] Além disso, ele e outro professor de psiquiatria, Lars Kessing, escreveram em suas duas contribuições para o Manual para Pacientes, que tem status oficial na Dinamarca e está disponível na Internet, que a depressão é causada por um desequilíbrio químico.[94,95]

Reclamei com o editor, mas não cheguei a lugar nenhum. Kessing e Videbech mudaram algumas coisas menores e introduziram novas afirmações que tornaram seus artigos ainda piores. Reclamei de novo, e de novo sem sucesso, e a desinformação sobre o desequilíbrio químico continuou. Em sua atualização, Kessing acrescentou: “Sabe-se que as drogas antidepressivas estimulam o cérebro a produzir novas células nervosas em certas áreas”. Videbech escreveu o mesmo, mas não havia referências. Se isso estiver correto, significa que as pílulas para depressão são prejudiciais às células cerebrais, pois o cérebro forma novas células em resposta a uma lesão cerebral. Isso está bem documentado, por exemplo, para terapia de eletrochoque e pílulas para psicose.[11]

Alguns psiquiatras importantes, incluindo Kessing,[89] consideram seus pacientes ignorantes, mas devo dizer que o nível de ignorância entre eles sobre sua própria especialidade é espantoso. Quando uma hipótese é rejeitada repetidamente, não importa o quanto as pessoas tenham manipulado o projeto de pesquisa e os dados, é hora de enterrá-la para sempre.

Isso não vai acontecer. O mito do desequilíbrio químico não é uma questão de ciência, mas de dinheiro, prestígio e interesses corporativos. Você pode imaginar um cardiologista dizendo: “Você tem um desequilíbrio químico em seu coração, então você precisa tomar este medicamento pelo resto de sua vida”, quando ela não tem a menor ideia do que está falando?

Os manuais didáticos não usavam o termo desequilíbrio químico diretamente, mas muitas declarações foram feitas sobre drogas que corrigem o que se dizia ser super ou subprodução de mensageiros químicos no cérebro.

O mito sobre o desequilíbrio químico pode ser o mais prejudicial dos muitos mitos da psiquiatria. Ele tende a manter os pacientes presos no papel de receptores passivos de drogas nocivas por anos ou talvez por toda a vida. Obviamente, é mais difícil para os pacientes desistir da terapia medicamentosa se acreditarem que recebem um medicamento que corrige algo que está errado com eles. Os pacientes costumam dizer que têm medo de adoecer novamente se pararem de tomar o medicamento por causa desse mito.

Em 2014, a APA escreveu em seu site: “Antidepressivos podem ser prescritos para corrigir desequilíbrios nos níveis de substâncias químicas no cérebro. Esses medicamentos não são sedativos, estimulantes ou tranqüilizantes. Nem são formadores de hábito. Geralmente, os medicamentos antidepressivos não têm efeito estimulante naqueles que não sofrem de depressão”. [7:276]

Este é um ato incrível de mentir para o público. Tudo isso está errado, e pessoas saudáveis podem desenvolver dormência e mania e podem se tornar suicidas com pílulas para depressão. [2:179] Até janeiro de 2021, o site da APA ainda afirmava que medicamentos psiquiátricos podem ajudar a corrigir desequilíbrios na química do cérebro.[96]

Um artigo de 2022 demonstrou até que ponto os psiquiatras ainda propagam o mito dos desequilíbrios químicos.[97] Todos os seis manuais didáticos influentes dos EUA e do Reino Unido publicados de 1990 a 2010 que foram examinados pelos autores, apoiam a teoria, pelo menos em algumas seções, e dedicam uma cobertura substancial a ela. A maioria das 30 revisões altamente citadas da etiologia da depressão a apoiaram, como fez a maioria dos 30 trabalhos de pesquisa sobre o sistema da serotonina.

TDAH

Os livros didáticos observaram que o desenvolvimento psicopatológico no TDAH envolve mudanças epigenéticas e desregulação bioquímica e hormonal adquirida precocemente;[19:52] que uma desregulação de dopamina e noradrenalina no cérebro é provavelmente muito importante para a mudança na função cerebral;[19:113] e que distúrbios de certas áreas do córtex e gânglios da base estão em áreas principalmente controladas pela dopamina. [18:229] Nada disso pode ser fundamentado.

Transtornos de ansiedade

Um livro didático mencionou que a serotonina é importante para a patogênese do TOC. [19:162] Não havia referências, mas isso nunca foi comprovado como correto.

Inflamação, uma das últimas modas em psiquiatria

A inflamação é um dos últimos modismos da psiquiatria.[7:289] Um manual didático observou o papel da inflamação no desenvolvimento da depressão, mas não explicou qual era o significado disso.[17:911]

Dois dos editores de um dos manuais [16] foram coautores de uma revisão sistemática de 2014 sobre 14 ensaios de celecoxibe, um chamado anti-inflamatório não esteroidal (AINE), que mostrou um efeito sobre a depressão, com um tamanho de efeito de 0,34.[98]

No entanto, muitos dos pacientes tinham artrite.[98] Não surpreende que os analgésicos pareçam reduzir a depressão. Mesmo se ignorarmos isso e presumirmos provisoriamente que os AINEs têm efeito sobre a depressão, o tamanho do efeito de 0,34 é tão pequeno que não é clinicamente relevante (ver Capítulo 8).

Há outra razão pouco conhecida pela qual a meta-análise não pode documentar que a inflamação desempenha um papel na depressão. É que, apesar do nome, os anti-inflamatórios não esteróides não têm efeitos anti-inflamatórios.

Quando a recém-sintetizada cortisona foi dada pela primeira vez a 14 pacientes com artrite reumatóide em 1948 na Clínica Mayo em Rochester, Minnesota, o efeito foi milagroso.[99] Os resultados foram tão impressionantes que algumas pessoas acreditaram que a cura para a artrite reumatóide havia sido descoberta, mas os sérios danos dos corticosteróides rapidamente amorteceram o entusiasmo.

Ao chamar os novos analgésicos de anti-inflamatórios não esteróides, as empresas criaram a ilusão de que seu efeito era semelhante ao dos esteróides, mas sem seus sérios danos. Esse truque de marketing foi altamente eficaz e os AINEs são tão usados que são uma das razões mais importantes pelas quais nossos medicamentos controlados são a terceira principal causa de morte, depois de doenças cardíacas e câncer.[46:8]

Perguntei a muitos reumatologistas sobre a documentação de que as drogas são anti-inflamatórias, mas não recebi respostas úteis. Portanto, eu mesmo estudei o assunto.

Com cirurgiões ortopédicos, fiz um ensaio controlado por placebo em 173 pacientes com distorções agudas do tornozelo, onde medimos o edema por volumetria, usando o pé saudável como controle da quantidade de água deslocada.[100] Usando um desenho fatorial, nós randomizamos os pacientes duas vezes: para um grupo que foi instruído a imobilizar o pé e recebeu muletas e para um grupo que foi instruído a andar o mais normalmente possível, apesar da dor; e para naproxeno e placebo.

A mobilização reduziu rapidamente o edema. Após 2-4 dias, a diferença de volume foi de 42 mL quando os pacientes foram omobilizados em comparação com o uso de muletas (P = 0,01). Em contraste, não houve efeito significativo de naproxeno (P = 0,42; diferença de 11 mL em comparação com placebo). Assim, a mobilização era anti-inflamatória, o que o naproxeno não era, e também levava a uma recuperação muito mais rápida.

O efeito menor e não significativo do naproxeno pode ser real e simplesmente uma consequência do efeito do medicamento sobre a dor, o que aumentaria a mobilização. A empresa que vende naproxeno, Astra-Syntex, forneceu o medicamento de teste cego, mas não gostou de nossos resultados, que eram ruins para o marketing. Seu estatístico garantiu que os resultados mais importantes não fossem publicados e que o relatório do estudo fosse um jargão ininteligível para o médico comum. Mas guardei uma cópia do relatório estatístico, e é por isso que posso contar a história verdadeira.

Também fiz uma meta-análise dos ensaios controlados por placebo de AINEs. As drogas não reduziram o inchaço das articulações dos dedos medido por anéis de joalheiro em pacientes com artrite reumatóide.[101]

Não devemos tratar a depressão com AINEs, algumas das drogas mais letais que temos. [6:155]

 

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Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

 


Tradução de Letícia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Uso de Psicofármacos por Populações Acometidas por Desastre

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O artigo O uso de psicofármacos por populações acometidas por desastres: uma revisão integrativa aborda como os desastres naturais e não naturais, além de ceifarem vidas, podem expor sobreviventes ao risco de desenvolvimento de múltiplos desfechos negativos, destacando a ocorrência de problemas de saúde mental. Nesse contexto, o objetivo foi reunir estudos que abordem o uso de psicofármacos, antidepressivos e/ou benzodiazepínicos entre populações afetadas de forma direta ou indireta por desastres naturais e não naturais.

Dados sobre o artigo:

  • A coleta e análise dos dados foram realizadas por duas revisoras independentes e as divergências resolvidas por uma terceira revisora.
  • Foram incluídos 13 artigos nesta revisão, incluindo artigos que abordavam a utilização de medicamentos psicofármacos (antidepressivos e/ou benzodiazepínicos) por indivíduos pertencentes a populações afetadas, de forma direta ou indireta, por desastres naturais ou não.
  • Foram excluídos estudos conforme os seguintes critérios: 1) estudos de revisão, cartas, editoriais ou estudos em animais; 2) que avaliaram indivíduos hospitalizados; 3) que avaliaram indivíduos com menos de 18 anos; 4) que avaliavam o uso de medicamentos não psicofármacos, ou psicofármacos diferentes de antidepressivos ou benzodiazepínicos.
  • Foram recuperadas as seguintes informações nos artigos incluídos: data e local do estudo; tipo de desastre; população ou amostra estudada; fonte de dados; período analisado; medicamentos avaliados no estudo (conforme classe terapêutica – antidepressivos e/ou benzodiazepínicos). Os resultados foram sintetizados de forma narrativa e foi conduzida uma análise descritiva.

Os desastres podem ser definidos como eventos adversos, sendo classificados como: desastres humanos, que são gerados pelas ações ou omissões humanas (acidentes de trânsitos, incêndio industriais), e os desastres naturais, causados pelo impacto de um fenômeno natural de grande intensidade sobre uma área, podendo ou não ser agravado pelas atividades humanas. Impactos ambientais só são tidos como desastres ambientais quando os seus danos e prejuízos são incalculáveis e de difícil restituição. Caso contrário, é apenas um evento natural.

Seguindo essa perspectiva, tem-se que os danos humanos oriundos dos desastres podem exceder a capacidade de respostas dos serviços de saúde, comprometer seu funcionamento adequado e desencadear consequências a curto, médio e longo prazo. Neste sentido, cabe destacar que, por sua complexidade, o enfrentamento dos desastres representa um grande desafio para a saúde pública, uma vez que afeta a saúde pública de diversas formas. É comum observar-se o aumento no diagnóstico de transtornos mentais em grande parte da população acometida pelos desastres.

Há um aumento no diagnóstico de transtornos de saúde mental  em pessoas que foram expostas a desastres, eles incluem: o transtorno de estresse agudo, o transtorno de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade, pânico, luto complicado, raiva e sofrimento psicológico em geral. Nestes casos, se adotam abordagens não farmacológicas e farmacológicas. Destacam-se como tratamento farmacológico nesses casos, os antidepressivos e benzodiazepínicos.   

Considerando que o uso desses dois fármacos deve ser devidamente avaliado de forma individualizada e completa, emerge a necessidade de identificar o que há na literatura sobre o manejo farmacológico dos transtornos de saúde mental oriundos à exposição a desastres. Dessa forma, o artigo se insere neste contexto com o objetivo de reunir estudos que abordem o uso de psicofármacos, antidepressivos e/ou benzodiazepínicos, entre populações afetadas de forma direta ou indireta por desastres naturais e não naturais. Com um total de 596 artigos retornaram da estratégia de busca, após análise e exclusão de acordo com critérios previamente definidos, foram incluídas 13 publicações, sendo avaliado diferentes tipos de desastres.

Exemplos dessas avaliações diferentes:

Mediante um naufrágio que ocorreu no Reino Unido, sobreviventes alegaram um aumento no consumo de antidepressivos. Também foi mais pronunciada a utilização dessa classe terapêutica por mulheres e por pessoas de ambos os sexos que moravam próximas a uma indústria na França em que houve uma explosão de nitrato de amônio. Após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, 3% dos sobreviventes atendidos por psiquiatras voluntários obtiveram uma prescrição de antidepressivos.

O uso dessa classe de medicamentos também foi avaliado para desastres não naturais.

Após uma explosão de uma fábrica de fogos de artifícios na Holanda, foi observado que a incidência do uso de qualquer benzodiazepínico por sobreviventes do desastre foi aproximadamente duas vezes maior, quando comparada à incidência de uso por pacientes pertencentes ao grupo de referência. Mediante a ocorrência do ataque terrorista, nos Estados Unidos, 23% dos pacientes que foram atendidos por psiquiatras voluntários tiveram benzodiazepínicos prescritos.

É perceptível pelo artigo o aumento na utilização dos psicofármacos em diferentes períodos e independentemente da causa do desastre, assim como os indivíduos expostos a essas situações podem ser mais diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático e outras comorbidades como ansiedade, depressão, mania e distimia.

Os antidepressivos configuram o tratamento farmacológico de primeira escolha nos casos de transtorno de estresse pós-traumático, com destaque para os inibidores seletivos da recaptação da serotonina. Entretanto, na prática clínica, os benzodiazepínicos são comumente utilizados como adjuvantes, apesar de seu uso não ser recomendado, sobretudo entre pessoas que apresentarem pouco controle de impulsos.  Além da necessidade de se fazer um tratamento efetivo, de curto prazo, é necessário que seja realizado acompanhamento ao longo prazo dessas populações acometidas por desastre. Esse acompanhamento deve ser feito não só no contexto da saúde, mas também no contexto social, já que o bem-estar da população dependem de múltiplos fatores.

Como conclusão, o artigo aponta as consequências interdisciplinares e intersetoriais que os desastres causam, bem como o aumento no consumo de ambas as classes de medicamentos após o desastre, e reafirma a necessidade de gestores e profissionais que atuam na saúde pública terem uma visão ampla a respeito dos desastres e suas consequências e, a partir disso, formularem políticas e ações que atuem diretamente sobre as populações acometidas.

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LUZ, M.M. et al. Uso de psicofármacos por populações acometidas por desastres: uma revisão integrativa. Revista Amazônia: Science & Healthv. 11 n. 1 (2023) (link)

 

 

Lançamento do E-book do 6º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas

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Saiu o e-book do 6º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, realizado de modo virtual em 2022. O e-book “O modelo biomédico fracassou? Quais as perspectivas?” contém todas as mesas do seminário transcritas e editadas. Encontra-se disponível para baixar, gratuitamente, aqui → (link)

 

CEE Fiocruz divulga entrevista com Paulo Amarante

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No dia 20 de junho de 2023 foi publicado no site do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) – Fiocruz: www.cee.fiocruz.br, a entrevista com Paulo Amarante, um dos pioneiros da luta antimanicomial no Brasil e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz) e do Centro de Estudos Estratégicos Antônio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz).

Amarante destaca a importância da forma como o termo saúde mental vem sendo generalizado e se naturalizando, de forma perigosa:

“… essa minha crítica ao termo saúde mental sendo utilizado como sinônimo, no cotidiano, de determinado bem-estar psicológico, um estado psíquico, espiritual, de falta de sofrimento. Temos que pensar o quanto dessas questões, relacionadas ao bem-estar, à condição de uma experiência de vida que não seja de sofrimento, estão associadas, também, a outras condições sociais, culturais e de vida.”

O individualismo exacerbado e a busca exagerada por reconhecimento, também, são questões que o preocupam: “Vivemos uma grande falta social que é esse lugar inalcançável de uma felicidade que ninguém está encontrando”, constata, ao refletir a respeito da construção da subjetividade e da concepção ocidental sobre saúde mental.

Crítico da forma como a psiquiatria vem patologizando experiências de vida e medicalizando sofrimentos psíquicos, muitas vezes causados pelo “apagamento e a invisibilidade social” no contexto de hiperliberalismo, Amarante vê nas experiências coletivas de práticas culturais e esportivas uma alternativa para estimular o bem-estar social. A promoção à saúde, em sua avaliação, não pode se resumir às idas do paciente ao centro de saúde.

Por fim, ele aborda o debate relacionado à edição, em 2023, da Resolução 487, pelo Conselho Nacional de Justiça, instituindo a Política Antimanicomial do Poder Judiciário.  Após mais de vinte anos da criação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216), a Resolução busca sua aplicação quanto ao procedimento judicial ou investigatório de pessoas com transtorno mental, que implicará no fechamento dos antigos manicômios judiciais e na substituição do tratamento realizado nesses locais por outros não asilares.

“Quando começamos o processo da Reforma Psiquiátrica, os psiquiatras questionavam como tratar alguém psicótico, que não fosse por internação integral compulsória, em que a pessoa fique totalmente à mercê do tratamento médico. Mas nós mostramos na prática como se faz tratamento territorial com cuidado e liberdade.”

Para ler a entrevista completa acesse: https://cee.fiocruz.br/?q=Entrevista-Paulo-Amarante

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 3: Os distúrbios psiquiátricos são detectáveis em uma varredura cerebral?

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Brain imaging. Appealing glad happy boy holding and studying brain imaging while wearing huge glasses

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute como os manuais didáticos retratam os dados de imagens cerebrais para diagnósticos psiquiátricos e as falhas desse tipo de pesquisa. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

De acordo com a narrativa psiquiátrica, a psiquiatria é construída sobre o modelo biopsicossocial da doença que leva em conta a biologia, a psicologia e os fatores socioambientais ao explicar por que as pessoas adoecem. [8]

A realidade é muito diferente. Desde que o presidente da Sociedade Americana de Psiquiatria Biológica, Harold Himwich, em 1955, surgiu com a ideia absurda de que pílulas para psicose funcionam como insulina para diabetes,[4:46] a psiquiatria biológica tem sido o modelo de doença predominante.

Apesar de 15 anos de intenso estudo, não consegui encontrar nenhuma contribuição importante da psiquiatria biológica para nossa compreensão das causas dos transtornos psiquiátricos e como eles devem ser tratados.

A forte crença na psiquiatria biológica também é dominante nos manuais didáticos. Há muito sobre estudos de varredura cerebral e química cerebral e, comparativamente, pouco sobre traumas, outros fatores psicossociais, pobreza, discriminação e outras condições de vida precárias, embora sejam determinantes importantes para transtornos psiquiátricos. [35,36,61]

Um manual didático foi particularmente enganoso ao observar que fatores causais sociais, como pobreza, solidão e falta de moradia, são de natureza mais indireta e contribuem para a manutenção de doenças já estabelecidas. [18:27]

Um pouco de luz aparecia aqui e ali. Em outro momento, no mesmo manual, outros psiquiatras contradizem isso. Eles escreveram que melhorias gerais nos padrões de moradia, oportunidades de trabalho e apoio familiar têm grande importância para a prevenção primária, e que traumas, como perdas e abuso físico e emocional, são fatores importantes para o desenvolvimento de psicopatologia. [18:293]

Em outro manual, observou-se, com referência,[62] que os traumas da infância estão associados à metilação elevada no DNA do fator neurotrófico derivado do cérebro em pacientes com transtorno de personalidade limítrofe e que aqueles que respondem à psicoterapia têm uma diminuição na metilação do DNA.[17:41] No entanto, o artigo citado mostrou que, para todos os pacientes, a psicoterapia aumentou significativamente a metilação. Assim, as informações do manual didático eram enganosas, pois obviamente não se pode separar os que responderão antecipadamente dos que não responderão. Os autores do artigo até culparam os pacientes pela calamidade: “Os respondedores fracos foram os principais responsáveis [minha ênfase] pelo aumento”.

Os autores dos manuais didáticos fizeram um grande esforço para convencer seus leitores de que a origem dos problemas psiquiátricos não deveria ser buscada nas condições de vida das pessoas, mas no cérebro. Assim, eles propagaram a ideia de que os transtornos psiquiátricos são percalços individuais e não algo que vem principalmente de fora do indivíduo e afeta secundariamente o cérebro.

Dizem-nos que a psiquiatria biológica criou resultados importantes em genética, psicofarmacologia e técnicas de imagem,[17:919] e que estudos de imagem na depressão levaram a um maior conhecimento do papel do hipocampo, o que produziu resultados clinicamente relevantes.[17:910] Muito convenientemente, os autores “esqueceram” de nos dizer de que maneira os estudos de imagem foram úteis para os médicos.

Um dos manuais didáticos explicava que a neuropsiquiatria é um desenvolvimento adicional do que antes era chamado de psiquiatria biológica.[17:207] Mas uma ideia errônea não se torna baseada em evidências ou útil, dando-lhe um novo nome. E postular que bilhões de pessoas têm cérebros errados, que essencialmente é o que a psiquiatria biológica faz, é o pior possível.

Esquizofrenia e distúrbios relacionados

Os manuais didáticos afirmavam ser indiscutível que a esquizofrenia tem um fundo neurobiológico;[20:401] que a esquizofrenia[16:207,18:39,18:79] e os distúrbios afetivos têm uma base orgânica;[18:39] e que ressonância magnética e a Tomografia por emissão de pósitrons (PET scan) mostraram atrofia cerebral e metabolismo cerebral perturbado em pacientes com esquizofrenia e depressão.[18:27]

Ao declarar a esquizofrenia uma doença orgânica, os psiquiatras se concentraram em estudos de imagens cerebrais e na química do cérebro, e as informações nos manuais didáticos costumavam ser muito detalhadas. Por exemplo, um deles observou que pacientes com esquizofrenia têm ventrículos aumentados, lobos temporais menores (giro temporal superior), estruturas temporais mediais menores (hipocampo, amígdala e para-hipocampo) e lobos frontais menores.[19:227] Em particular, a massa cinzenta parecia ter sido afetada. Foi alegado que, como várias dessas alterações ocorrem já no início da doença, elas provavelmente não são resultado de medicação de longo prazo.[19:227]

Essas alegações são contraditas por estudos que descobriram que as pílulas para psicose encolhem o cérebro de acordo com a dose e que a doença não poderia explicar essas mudanças,[63,64] mas os autores dos manuais didáticos evitaram comentar esses estudos bem conhecidos.

Um dos manuais admitiu que parte da redução na massa cinzenta observada com PET scans ou RMF (ressonância magnética funcional, que mede as pequenas mudanças no fluxo sanguíneo que ocorrem com a atividade cerebral) pode ser causada pelo uso de pílulas para psicose, mas acrescentou que várias alterações ocorrem já no início da doença e que também ocorrem alterações cerebrais naqueles que posteriormente desenvolvem psicose. [17:309] Outro mencionou que, embora as alterações cerebrais fossem pequenas, elas também foram observadas em pessoas que não receberam pílulas para psicose antes.[16:221]

O problema com tais declarações é que os estudos de varredura do cérebro são altamente pouco confiáveis, como explicarei em detalhes abaixo. Se algum estudo confiável tivesse mostrado isso, teria sido um grande triunfo para a psiquiatria biológica e teríamos ouvido falar deles incessantemente, mas não o fazemos e, em ambos os casos, os autores não deram nenhuma referência às suas notáveis reivindicações.

Outro manual afirmava estar bem fundamentado que havia alterações neuroanatômicas; que pacientes psicóticos têm ventrículos aumentados e 4% menos massa cinzenta do que pessoas saudáveis; e que os pacientes do primeiro episódio também apresentaram isso, embora em menor grau do que em pacientes crônicos.[20:405] Por outro lado, os autores também observaram que os achados eram contraditórios, com referência a uma meta-análise de mais de 18.000 indivíduos com esquizofrenia,[65] e observaram que, embora haja uma perda progressiva de tecido cerebral ao longo do tempo, é muito difícil separar fatores causais, por exemplo, drogas e abuso de drogas. 20:406

Essa honestidade não durou muito. Os mesmos autores afirmaram que a psicose não tratada aumenta a perda de volume cerebral e que é provável que as pílulas para psicose possam oferecer alguma proteção. Isso nunca foi mostrado e é extremamente improvável. Pílulas para psicose não protegem o cérebro; eles prejudicam o cérebro de várias maneiras (veja o Capítulo 7). Muitos estudos mostraram que as pílulas para psicose matam as células nervosas,[4:176,5:63] e encolhem o cérebro também.[63,64]

Distúrbios afetivos

Para distúrbios afetivos, as opiniões dos autores dos manuais didáticos foram mais divididas do que para psicoses. Alguns estavam muito confiantes de que as doenças são biológicas, enquanto outros tinham reservas.

Dizem-nos que os quadros depressivos estão associados a alterações neurobiológicas; que há alteração inespecífica da substância branca;[17:357] que as dificuldades cognitivas nos distúrbios afetivos podem estar relacionadas à neurodegeneração;[17:358] que RM e PET sugerem um componente biológico significativo;[18:113,18:122] que a depressão prolongada não tratada pode explicar a atrofia cerebral que pode ser medida;[18:124] e que crianças bipolares têm diminuição do volume da amígdala e uma conexão alterada entre o córtex pré-frontal, os gânglios da base e o sistema límbico.[19:216]

Um manual observou que a depressão recorrente ou prolongada causa atrofia do hipocampo.[16:267,16:557] No mesmo livro, no entanto, outros autores escreveram que não estava claro se as hiperintensidades da substância branca no bipolar eram causadas pela doença ou pelo tratamento ou estavam presentes antes de qualquer um deles.[16:295]

Essa foi uma das raras admissões nos manuais de que as mudanças observadas nas varreduras cerebrais podem ser causadas pelas drogas. Normalmente, essa possibilidade era totalmente ignorada, como também ocorre em artigos científicos. O editor de um dos manuais didáticos[18] , o professor Poul Videbech, publicou em 2004 uma meta-análise de estudos de imagem[66] onde relatou que a depressão causa uma redução de 9% no tamanho do hipocampo, citado por um dos manuais didáticos.[20:433] Discutindo as limitações de seu estudo, Videbech observou que estudos transversais, como os que ele incluiu na meta-análise, não podem concluir sobre a causalidade. Ele perguntou: “A depressão causa encolhimento do hipocampo ou os indivíduos com hipocampos pequenos são suscetíveis à depressão?”

Não ocorreu a Videbech que as pessoas com depressão são tratadas com pílulas para depressão e que poderiam ser as pílulas que causavam a atrofia cerebral. Ele não mencionou essa possibilidade, nem mesmo ao discutir os fatores de confusão, incluindo estresse e abuso de álcool. Ele observou que, em três estudos, um volume menor no hipocampo direito ou densidade reduzida no esquerdo “estava associado à má resposta à medicação antidepressiva” e que, se esse resultado for confirmado, “é clinicamente muito interessante como potencial preditor de resposta ao tratamento”.

Não consigo entender esta frase. Parece-me que Videbech sugeriu que, talvez no futuro, todas as pessoas deprimidas deveriam fazer uma tomografia cerebral. Isso não vai acontecer.

TDAH

Estranhamente, o TDAH – um dos diagnósticos mais controversos em toda a medicina – foi considerado um dos transtornos psiquiátricos com as evidências mais fortes de uma etiologia neurobiológica.[17:612] Foi chamado de distúrbio do desenvolvimento neurológico,[16:462] ou distúrbio do desenvolvimento neuropsiquiátrico,[17:610] caracterizado principalmente por fatores de risco biológicos, e não principalmente pela exposição a fatores de risco psicossociais e eventos estressantes na infância.[19:51] Alegou-se que o TDAH representa uma disfunção de órgão cerebral e que estudos clínicos e neurorradiológicos mostraram atividade disfuncional nos lobos frontais.[19:112]

Historicamente, o TDAH era chamado de “disfunção cerebral mínima” e o foco estava em um dano cerebral estrutural que ninguém jamais havia visto. [17:610]

O fato é que o TDAH é uma construção social e que nenhum estudo confiável mostrou qualquer origem biológica para essa construção, ou que os cérebros das pessoas com esse diagnóstico são diferentes dos cérebros de outras pessoas.[7,10] Um livro que observou que as varreduras de TC e RM mostraram menos tecido cerebral e menos substância branca reconheceu que existem muitos problemas metodológicos com estudos de imagem.[17:612]

Em contraste, um capítulo sobre TDAH escrito por dois psicólogos não tinha reservas.[20:469] Alegou, com referências, que os pacientes diagnosticados com TDAH têm tamanho menor especialmente do núcleo caudado direito, cerebelo e volume total do cérebro;[67] que possuem menos substância cinzenta no núcleo caudado direito, córtex pré-frontal ventromedial e giro cingular rostral, que não estão relacionados ao uso de medicamentos para TDAH;[68] e que as varreduras de RMF também mostraram diferenças para pessoas saudáveis.[69]

Seria uma perda de tempo ler esses artigos porque toda a literatura sobre digitalização é altamente não confiável (veja abaixo nesta página). Mas brevemente, o primeiro estudo foi uma meta-análise de estudos de ressonância magnética que incluiu todas as regiões em todos os estudos e encontrou reduções globais para indivíduos com TDAH em comparação com indivíduos de controle, com um tamanho de efeito de 0,41.[67] Um tamanho de efeito tão grande é uma medida da quantidade de viés nos estudos revisados e não de diferenças verdadeiras. Em outras palavras: lixo entra, lixo sai.

O segundo estudo também foi uma meta-análise, predominantemente de estudos muito pequenos, que sabemos serem pouco confiáveis.[68] Incluiu dois conjuntos de dados, e um tinha apenas 34 pacientes com TDAH nos estudos, em média, o outro apenas 16 pacientes.

O terceiro estudo incluiu 20 pacientes com TDAH.[69]

Todos os três artigos e outros semelhantes devem ser ignorados. Os psicólogos se vestiram de cientistas sérios e depois citaram puro lixo.

Transtornos de ansiedade

Um manual didático observou que estudos de imagem cerebral mostraram alterações na amígdala em crianças com transtornos de ansiedade, mas mencionou que não se sabia se essa era a causa do distúrbio ou uma consequência dele.[19:146]

Os outros não tinham tais reservas. Dois psicólogos escreveram que os pacientes com TOC têm uma disfunção no circuito frontostriatal do cérebro, que é a conexão entre os lobos frontais e os gânglios da base e o tálamo, e que o metabolismo no núcleo caudado direito era reduzido se os pacientes tivessem tomado pílulas para depressão ou receberam terapia cognitivo-comportamental.[20:479]

Outros autores escreveram que os pacientes com TOC tinham atrofia cerebral e aumento da massa cinzenta, mas não ofereceram referências para apoiar essa afirmação surpreendente.[17:418]

Dizem-nos que os gânglios da base, o tálamo e a parte orbitofrontal do córtex estão envolvidos;[19:162] que alguns estudos mostraram normalização da hiperatividade dopaminérgica no corpo estriado após tratamento com pílulas para depressão ou terapia cognitivo-comportamental;[17:419] que estudos de imagem mostraram hiperatividade do córtex orbitofrontal e do núcleo caudado em pacientes com TOC que desapareceram com tratamento bem-sucedido com drogas ou psicoterapia;[16:364] e que drogas eficazes ou terapia comportamental podem normalizar as áreas cerebrais afetadas.[19:162]

As duas últimas sentenças são tautologias. Eles contêm informações vazias como na frase: Vai chover amanhã ou não vai chover. Se for utilizado um tratamento “eficaz” ou “bem-sucedido”, as alterações cerebrais são normalizadas. Se não estiverem normalizados, o tratamento não foi eficaz ou o paciente resistiu ao tratamento. Esta é uma situação ganha-ganha que parece confirmar algo que não está correto, ou seja, que existem alterações cerebrais em primeiro lugar.

Estudos de varredura cerebral são altamente não confiáveis

Devemos ser altamente céticos em relação aos resultados dos estudos de imagem. Os manuais didáticos não demonstravam muitas dúvidas, mas aquele em que todos os três editores eram psicólogos observou que eles estavam cientes das limitações dos métodos usados nos estudos de imagem e questionaram as descobertas feitas.[20:10]

Outro observou que as descobertas obtidas com varreduras estruturais e funcionais eram inconsistentes e variadas, especialmente aquelas obtidas com varreduras de RM funcionais que medem pequenas mudanças no fluxo sanguíneo para várias áreas do cérebro enquanto o paciente realiza várias tarefas.[17:329]

Toda essa área é uma confusão de pesquisas altamente duvidosas.[7:233]

Uma meta-análise de 2009 descobriu que a taxa de falsos positivos em estudos de neuroimagem está entre 10% e 40%.[70] E um relatório de 2012 escrito para a Associação Psiquiátrica Americana sobre biomarcadores de neuroimagem concluiu que “nenhum estudo foi publicado em revistas indexadas pela Biblioteca Nacional de Medicina examinando a capacidade preditiva da neuroimagem para distúrbios psiquiátricos para adultos ou crianças”.[71]

Um bom trabalho de pesquisa às vezes pode tornar redundantes centenas de estudos ruins. Este é o caso de uma revisão sistemática de 2012 por Joshua Carp que pesquisou o estado metodológico da arte em uma amostra aleatória de 241 estudos RMF.[72]

Carp descobriu que muitos dos estudos não relatavam detalhes metodológicos críticos sobre o desenho experimental, aquisição de dados ou análise, e muitos estudos eram insuficientes. Os métodos de coleta e análise de dados foram altamente flexíveis. Os pesquisadores usaram 32 pacotes de software exclusivos e havia quase tantos canais de análise exclusivos quanto estudos. Carp concluiu que, como a taxa de resultados falsos positivos aumenta com a flexibilidade do projeto, o campo da neuroimagem funcional pode ser particularmente vulnerável a falsos positivos. Menos da metade dos estudos relatou o número de pessoas rejeitadas na análise e os motivos da rejeição, e o tamanho médio da amostra por grupo foi de apenas 15, o que gera um enorme risco de publicação seletiva daqueles resultados com os quais os pesquisadores já concordam. A ordem dos procedimentos de processamento também permite flexibilidade substancial nas análises.

A replicação é essencial para a confiabilidade da ciência, e os artigos científicos devem relatar procedimentos experimentais com detalhes suficientes para permitir que investigadores independentes reproduzam os experimentos. Isso está longe de ser o caso em estudos de imagem.[72]

Carp publicou outro estudo importante em 2012.[73] Ele procurou estimar a flexibilidade da análise de neuroimagem submetendo um único experimento de RMF aos vários procedimentos de análise exclusivos descritos na literatura. Considerando todas as combinações possíveis dessas estratégias, ele criou 1 canais de análise exclusivos.

“Quase todos os voxels no cérebro mostraram ativação significativa em pelo menos um canal de análise. Em outras palavras, um pesquisador suficientemente persistente determinado a encontrar ativação significativa em praticamente qualquer região do cérebro tem grande probabilidade de sucesso. Da mesma forma, nenhum voxel foi significativamente ativado em todos os canais. Assim, um pesquisador que espera não encontrar nenhuma ativação em uma determinada região (por exemplo, para refutar uma hipótese concorrente) pode certamente encontrar uma estratégia metodológica que produzirá o resultado nulo desejado … O relatório de análise seletiva pode ocorrer sem a intenção ou mesmo a consciência do investigador. Por exemplo, se os resultados de um novo experimento não concordam com estudos anteriores, os pesquisadores podem ajustar os parâmetros de análise até que os resultados ‘corretos’ sejam observados.”

Em um estudo de múltiplos observadores publicado em 2020, os pesquisadores pediram a 70 equipes independentes que analisassem o mesmo conjunto de dados, testando as mesmas 9 hipóteses ex-ante.[74] O conjunto de dados incluiu dados de RMF de 108 indivíduos, cada um executando uma das duas versões de uma tarefa que foi usada anteriormente para estudar a tomada de decisões sob risco. As equipes foram questionadas se cada hipótese era suportada com base em uma análise corrigida de todo o cérebro (sim ou não). Em média, nas 9 hipóteses, 20% das equipes relataram um resultado diferente da maioria das equipes, que estava a meio caminho entre a consistência completa entre as equipes e os resultados completamente aleatórios. Este estudo demonstrou que as escolhas analíticas têm um efeito importante nos resultados relatados.

Em 2021, os pesquisadores relataram que, depois de alertarem em 2016 que existem tantas fontes ou erros nos estudos de imagem que os achados não devem ser considerados definitivos, mas apenas sugestivos, 24 estudos de ressonância magnética apareceram no JAMA Psychiatry e 22 no American Journal of Psychiatry descrevendo diferenças em tais varreduras em amostras de pacientes psiquiátricos.[75] Todos os 46 estudos concluíram que suas descobertas são evidências de mudanças na estrutura do cérebro.

Em 2022, outros pesquisadores usaram três dos maiores conjuntos de dados de neuroimagem disponíveis, incluindo um total de cerca de 50.000 indivíduos para quantificar os tamanhos de efeito e a reprodutibilidade dos estudos de associação em nível cerebral (BWAS – brain-wide association studies) em função do tamanho da amostra.[76] O tamanho médio da amostra foi de apenas 23 pessoas. Os pesquisadores descobriram que a reprodutibilidade do BWAS requer amostras com milhares de pessoas.

Como escreveu um comentarista, o estudo mostrou que quase todas as pessoas diagnosticadas com depressão terão a mesma conectividade cerebral de alguém sem o diagnóstico, e quase todas as pessoas diagnosticadas com TDAH terão o mesmo volume cerebral de alguém sem TDAH.[77] No entanto, nos pequenos estudos, as correlações eram quase sempre maiores que 0,2 e às vezes muito maiores, o que, como escreveram os pesquisadores, não deve ser acreditado.

O método convencional para lidar com esse problema é aumentar o limiar de significância estatística. No entanto, isso vai sair pela culatra nesses pequenos estudos de ressonância magnética porque, inadvertidamente, garante que apenas as maiores – e, portanto, as menos prováveis de serem verdadeiras – diferenças cerebrais acabem passando no teste de significância e sendo publicadas.

A experiência do editor-chefe da Molecular Brain também é relevante a ser considerada ao avaliar os méritos dos estudos de varredura cerebral em psiquiatria. Em 2020, ele descreveu o que aconteceu quando pediu para ver os dados brutos em 41 dos 180 manuscritos que manuseou.[78] A pedido dele, 21 dos 41 manuscritos foram retirados pelos autores, e ele rejeitou outros 19 “por causa de dados brutos insuficientes”, o que sugeria que os dados brutos poderiam não existir, pelo menos em alguns dos casos. Assim, apenas 1 dos 41 artigos (2%) passou no teste de razoabilidade.

Infelizmente, os estudos de varredura do cérebro têm um componente psicológico. As pessoas são mais propensas a acreditar no que não entendem, o que significa que quanto mais o resultado estiver embutido em estatísticas ininteligíveis, mas aparentemente avançadas, mais provável será que os leitores acreditem.

Os pesquisadores cunharam o termo “fascínio sedutor das explicações da neurociência” (SANE-seductive allure of neuroscience explanations), que é um fenômeno real. Vários estudos mostraram que as pessoas confiam mais em estudos com linguagem e gráficos da neurociência, especialmente se houver imagens cerebrais.[79,80]

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

 


Tradução de Letícia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

 

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Relembrando a Oficina “Nada Sobre Nós Sem Nós”

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REGISTRO HISTÓRICO

Há exatamente 15 anos aconteceu a Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiências, que ocorreu em 2008. A oficina foi realizada com artistas com deficiência físicas que, por suas especificidades, não conseguiam exercer suas atividades artísticas, tais como acesso ao palco do teatro ou um camarim adequado, dentre outras situações que eram impeditivas por falta de estratégias de acessibilidade.

A política proposta se dirigia tanto parra artistas quanto o público espectador em geral, pois suas singularidades não eram previstas nas políticas de inclusão.  Desta forma, os artistas com deficiência e  o público PCD (Pessoa Com Deficiência) foram beneficiados por essa oficina, a qual proporcionou acesso a peças, exposições, shows, dentre outros eventos artísticos, que até então, não tinham audiodescrição, libras, legendas e etc.

A concepção da oficina foi iniciada na gestão do então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, e continuadas pelo Ministro Juca Oliveira, e com o ator Sergio Mamberti, que respondia pela Secretaria Nacional da Identidade e da Diversidade Cultural (SID), seguido por Ricardo Lima e Américo Córdula.

 

Trata-se de um marco, porque, pela primeira vez, o lema “Nada sobre Nós sem Nós”, sugerido pelos próprios artistas com deficiência, foi utilizado no país.  O lema explicita numa denúncia e numa injustiça: as políticas públicas eram feitas para eles e não com eles, e por eles. As pessoas com deficiência se sentiam objetos de propostas, e não sujeitos, protagonistas delas.

A oficina foi realizada pelo LAPS (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial) de Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fiocruz, em conjunto com a Secretaria Nacional da Identidade e da Diversidade Cultural, do Ministério da Cultura.

A iniciativa foi um espaço importantíssimo para artistas com deficiência de todos os cantos, de todas as partes do Brasil. Artistas que vieram expor as suas dificuldades, as suas ideias, as suas propostas, que foram incorporadas em dois grandes desdobramentos práticos: um foi a criação do edital “Nada sobre Nós sem Nós”, que premiou dezenas de projetos realizados, no Brasil inteiro, na medida em que as premiações eram distribuídas levando em conta critérios de regionalização. O segundo desdobramento foi a elaboração de uma nota técnica do Ministério da Cultura (NT 01/2009), que foi adotada como política de estado com orientações de medidas inclusivas para teatros, cinemas, museus e demais casas de arte e cultura e inclusive para rádios e emissoras de TV, assim como uma orientação para editais, inclusive a Lei Rouanet.

A oficina representou um enorme avanço, porque o Brasil, como signatário da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural foi um dos primeiros países a adotar medidas práticas de inclusão de pessoas com deficiência na arte e na cultura.

O relatório final e os vídeos (pioneiros na utilização de audiodescrição e libra simultaneamente) estão disponíveis na página do LAPS → https://laps.ensp.fiocruz.br/

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