OMS e ONU se juntam às chamadas para se transcender o modelo biomédico da psiquiatria

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Acabou de ser publicado em Psychology Today, de autoria de John Read:

Os milhares ao redor do mundo que criticam uma abordagem excessivamente biológica para compreender e ajudar uns aos outros, quando estamos com alguma forma de sofrimento psíquico, são frequentemente descartados como “radicais” ou “extremistas” ou “ideólogos”. Os críticos da abordagem do “modelo médico” dominante, promovido pela psiquiatria biológica e pelas empresas farmacêuticas, são frequentemente rotulados e denegridos como sendo “antipsiquiatria”, quando nos vemos sendo contra uma má ciência e contra tratamentos ineficazes e inseguros.

No entanto, até mesmo alguns psiquiatras proeminentes se pronunciaram contra o papel corruptor das empresas farmacêuticas e o modelo simplista que eles promoveram para vender seus produtos. Em 2005, o Dr. Steven Sharfstein, então Presidente da Associação Psiquiátrica Americana, escreveu: “Se formos vistos como meros empurradores de comprimidos e funcionários da indústria farmacêutica, nossa credibilidade como profissão estará comprometida. Ao abordarmos estas questões das Grandes Farmacêuticas [‘Big Pharma’] devemos examinar o fato de que, como profissão, permitimos que o modelo bio-psico-social se tornasse o modelo bio-bio-bio”.

No mesmo ano, seu colega britânico, o professor Mike Shooter, presidente do Royal College of Psychiatrists, repreendeu seus colegas em termos inequívocos:

“Não posso ser a única pessoa a ficar doente com a exibição de grupos de psiquiatras na recepção do aeroporto com tantos presentes com eles, sendo que eles poderiam muito bem ter o nome da empresa farmacêutica tatuado na testa”.

Mais recentemente a mensagem foi retomada por não menos do que as Nações Unidas, na pessoa de seu “Relator Especial sobre o direito de todos ao gozo do mais alto padrão de saúde atingível” (2014-2000), Dainius Pūras. Em 2019, o Dr. Pūras, um psiquiatra lituano, escreveu:

“As políticas atuais de saúde mental foram afetadas em grande parte pela assimetria de poder e pelos preconceitos devido ao domínio do modelo biomédico e das intervenções biomédicas. Este modelo levou não apenas ao uso excessivo de coerção no caso de deficiências psicossociais, intelectuais e cognitivas, mas também à medicalização de reações normais às muitas pressões da vida, incluindo formas moderadas de ansiedade social, tristeza, timidez, absentismo e comportamento antissocial.

“…Esta mensagem pode promover o uso excessivo de categorias de diagnóstico e expandir o modelo médico para diagnosticar patologias e fornecer modalidades de tratamento individuais que levam a uma medicalização excessiva. A mensagem desvia as políticas e práticas de abraçar duas abordagens modernas poderosas: uma abordagem de saúde pública e uma abordagem baseada nos direitos humanos … A medicalização excessiva é especialmente prejudicial às crianças, e as tendências globais para medicalizar questões psicossociais e de saúde pública complexas na infância devem ser abordadas mais fortemente com uma vontade política”.

Em 10 de junho, a Organização Mundial da Saúde se associou, com um documento de 300 páginas intitulado “Orientação sobre Serviços de Saúde Mental Comunitária: Promovendo Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos”. O documento surgiu de um grupo da ONU liderado pela Dra. Michelle Funk, uma psicóloga que é Diretora da Unidade de Políticas, Lei e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS. [Nota do editor: confira a entrevista da Dra. Michelle Funk, publicada no MIB, para você saber de mais detalhes.] O Documento argumenta:

“O foco predominante dos cuidados em muitos contextos continua a ser o diagnóstico, a medicação e a redução dos sintomas. Determinantes sociais críticos que afetam a saúde mental das pessoas, tais como violência, discriminação, pobreza, exclusão, isolamento, insegurança no emprego ou desemprego, falta de acesso à moradia, redes de segurança social e serviços de saúde, são frequentemente negligenciados ou excluídos dos conceitos e práticas de saúde mental. Isto leva a um diagnóstico exagerado do sofrimento humano e a uma dependência excessiva de drogas psicotrópicas, em detrimento de intervenções psicossociais.

“É necessária uma mudança fundamental dentro do campo da saúde mental, a fim de pôr fim a esta situação atual. Isto significa repensar políticas, leis, sistemas, serviços e práticas nos diferentes setores que afetam negativamente as pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais, assegurando que os direitos humanos sustentem todas as ações no campo da saúde mental. No contexto específico dos serviços de saúde mental, isto significa um movimento em direção a práticas mais equilibradas, centradas na pessoa, holísticas e orientadas à recuperação, que considerem as pessoas no contexto de suas vidas como um todo, respeitando a sua vontade e preferências no tratamento, implementando alternativas à coerção, e promovendo o direito das pessoas à participação e inclusão comunitária”.

O documento oferece 22 exemplos internacionais interessantes do caminho a seguir, incluindo Diálogo Aberto, Soteria Berne, Tupu Ake na Nova Zelândia, e Grupos de Apoio dos Ouvidores de Vozes.

O estimado jornalista e militante Robert Whitaker comentou:

“O relatório da OMS é um acontecimento marcante”. Uma reformulação global da saúde mental está claramente em andamento, e os programas-modelo destacados nesta publicação da OMS, a maioria dos quais de origem bastante recente, falam de iniciativas do mundo real que estão surgindo em todos os lugares”.

Bolsões anteriormente isolados de ativistas – pacientes, familiares, pessoal de saúde mental e pesquisadores – estão se unindo cada vez mais em organizações globais, como o Instituto Internacional para Retirada de Drogas Psiquiátricas e a Sociedade Internacional para Abordagens Psicológicas e Sociais da Psicose, para citar apenas duas.

Será mais difícil para os defensores do modelo médico, ou para a ONU e a OMS, rejeitar tais organizações como radicais extremistas e antipsiquiatria. O tempo para uma mudança de paradigma fundamental na saúde mental pode, finalmente, estar se aproximando.

Artigo escrito por John Read

Leia a matéria na íntegra clicando aqui →

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Reforma Psiquiátrica no Brasil: diagnóstico psiquiátrico e alternativas (4)

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Este é o último ‘blog’ da série. Concluo agora a apresentação da abordagem desenvolvida pelos colegas britânicos de psicologia. Qual é a resposta para a questão: “O que nós fazemos ao invés de diagnosticar as pessoas?”.

Essa é a questão que todos devemos formular quando de fato estamos buscando uma alternativa ao diagnóstico psiquiátrico.

E a resposta é muito simples: “Nós ouvimos as histórias delas”.

É essa a orientação fundamental do Modelo Poder, Ameaça e Sentido (PTMF em inglês).

O PTMF desafia a forma como o modelo biomédico da psiquiatria aborda as formas de sofrimento psíquico, comportamentos perturbados e perturbadores que usualmente são considerados como sintomas de alguma “doença mental”.

Pois bem: “Ouvir a história que nos é narrada”. Ao narrar a sua história o sujeito está nos respondendo às seguintes questões: “o que lhe aconteceu?”, “como o ocorrido lhe afetou?”, “que sentido foi dado ao ocorrido?”, “o que foi feito, que respostas foram dadas?”, e, finalmente “quais os recursos disponíveis para resolver o problema?”. São as questões que o PTMF sugere que sejam colocadas para se entender o “sofrimento psíquico” e agir para o enfrentar.

Você deve estar se perguntando em que esse Modelo difere dos modelos de diagnóstico psiquiátrico ou mesmo psicológico. Essa pergunta é muito boa. É por isso que as autoras (Boyle & Johnstone, 2020, p. 127-128) nos alertam para os seguintes aspectos:

  • O efeito da atração exercido pela narrativa dominante do diagnóstico psiquiátrico e seu contexto mais amplo de suposições das ciências naturais.
  • A contradição inerente em combinar narrativas do diagnóstico psiquiátrico com as narrativas psicológicas.
  • O papel dos discursos, especialmente aqueles de gênero, classe, etnia e medicalização do sofrimento psíquico, e como esses discursos podem permitir que o significado dos outros sejam impostos.
  • Os impactos do poder coercitivo, legal e econômico.
  • A natureza e impacto das desigualdades nos ambientes psiquiátricos.
  • A prevalência de abusos do poder interpessoal dentro das relações.
  • O papel do poder ideológico, expressado através das narrativas e suposições acerca do individualismo, realização, responsabilidade pessoal, papeis de gênero, e assim por diante.
  • O papel mediador das respostas de base biológica às ameaças.
  • A importância de se entender a função e o propósito das respostas às ameaças.
  • Os sentidos culturais específicos, sistemas de crenças e formas de expressão.
  • Autoajuda e ação social junto com, ou ao invés de, intervenção profissional.
  • A importância das narrativas comunitárias, valores e crenças espirituais, para dar suporte à cura e reintegração do grupo social.
  • Reconhecimento da natureza variada, pessoal e transitória de todas as narrativas e a necessidade da sensibilidade, arte e respeito no apoio ao desenvolvimento e expressão delas, seja qual for a forma que elas tomam.
  • A necessidade de transmitir uma mensagem geral que é normalizante, não patologizante (seja em termos médicos ou psicológicos): ‘Você está vivendo uma experiência compreensível e por conseguinte uma reação adaptativa às ameaças e dificuldades. Muitos outros nas mesmas circunstâncias sentiram o mesmo.”

O PTMF tem explicitamente uma perspectiva intersubjetiva. Você que já conhece a abordagem feita pelo Diálogo Aberto (Finlândia) deve ter percebido que há muita coisa em comum. Assim como tem muita coisa em comum com a Terapia Narrativa ou os Ouvidores de Vozes, por exemplo.

Em termos genéricos eu diria que a perspectiva da intersubjetividade descreve os processos psíquicos e o desenvolvimento das mentes em termos da sua conhecida interatividade. O que é distinta da perspectiva intrapsíquica ou da perspectiva biomédica da psiquiatria. A ênfase é dada nos processos intersubjetivos, na correspondência e na transformação mútua entre os sujeitos em interação. O que implica em sujeitos (mentes diferentes) mutuamente afetando uns aos outros. Coerentemente com as evidências científicas, o PTMF propõe que as patologias do poder e da dominação sejam desmascaradas. Que se tenha atenção para as narrativas de traumas individuais e coletivos e que se acompanhe os processos sociais de cura.

O PTMF é um modelo que orienta como as histórias podem ser formuladas em terapia e serviços de saúde mental, levando em conta as diferentes teorias e técnicas psicoterapêuticas. Mas também vai além dessas formas tradicionais de produzir sentido, ao dar igual valor à arte, poesia, dança, música e assim por diante. Também reconhece as muitas formas de narrativas que ajudam o sujeito a lidar com o seu sofrimento ao nível do grupo social, através de rituais comunitários ou baseados na fé, cerimônias, lendas etc. O PTMF também vem sendo usado por grupos de suporte entre pares. Portanto, o PTMF não é um guia técnico que necessita que as pessoas tenham alguma expertise acadêmico-profissional em saúde mental para poder utilizá-lo.

As estratégias que podem ser empregadas, segundo as autoras Boyle e Johnstone (2020, p. 129-130):

  • Relações seguras na infância
  • Apoio aos parceiros atuais, famíla e amigos para o suporte prático e emocional, proteção, testemunho, validação
  • Saber lidar com emoções opressoras ao liberar/expressar/processar sentimentos (por exemplo, escrevendo, exercício, terapias alternativas, criatividade e artes, abordagens com foco na compaixão, atenção plena [‘mindfulness’], meditação
  • Auto-cuidados – por exemplo, nutrição, exercício, descanso, terapias alternativas
  • Encontrar papeis sociais e atividades que deem sentido
  • Acesso a recursos materiais/capital cultural/educação e assim por diante
  • Acesso à informação/perspectivas alternativas
  • Aspectos de identidade positivos e socialmente valorizados
  • Destrezas/habilidades – inteligência, desenvoltura, determinação, talentos
  • Recursos físicos – força, saúde, habilidades esportivas
  • Sistemas de crenças – fés, valores e assim por diante
  • Práticas culturais na comunidade, rituais, cerimônias e intervenções
  • Conexões com o mundo natural
  • Dar força um ao outro em campanhas, ativismo
  • Criando/encontrando novas narrativas/significados/crenças/valores, ativismo dos ‘sobreviventes”

Aqui no Brasil, no campo da reforma psiquiátrica, inúmeras abordagens de natureza psicossociais trabalham com inúmeros desses recursos. Temos um ‘know-how’ diversificado e uma inestimável riqueza de experiências. Contudo, não podemos fazer de conta que a nossa dependência ao “modelo biomédico” da psiquiatria não causa inúmeros problemas para a assistência psicossocial, com inúmeros danos aos “usuários” e à sociedade em geral. Certamente que se houvéssemos nos libertado do “modelo biomédico” da psiquiatria a qualidade dos serviços prestados seria um exemplo para o mundo inteiro. A propósito, sugiro a leitura do recente documento da OMS com recomendações que reivindicam uma radical mudança no paradigma da assistência em saúde mental. Confiram também a entrevista dada por Michelle Funk, quem fez parte do processo de elaboração deste documento da OMS.

Não deixem de ler as fontes originais do PTMF, já citadas em ‘blogs’ anteriores.

Com isso concluo a série de ‘blogs’ que me propus escrever. As minhas palavras finais é que temos que fazer uma reforma da reforma psiquátrica brasileira. E não a retrocessos ao já conquistado em décadas de lutas e de experiências exitosas.

Citação:

Boyle, M., & Johnstone, L. (2020). The Power Threat Meaning Framework. An alternative to psychiatric diagnosis. PCCS Books Ltd.

A fuga de Lázaro e a ‘loucura’ como espetáculo

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Quando Guy Debord escreveu “A Sociedade do Espetáculo” (1967), imagino eu que ele não tinha em mente, o que são hoje, as redes sociais, aqueles eram tempos da televisão onde um pequeno e seleto grupo de humanos e humanas tinham a chance de mostrar a sua imagem para milhares de pessoas. Contudo, Debord, analisando o fenômeno do espetáculo desde sua aparência até sua essência e apreendendo sua dinâmica, escreveu o seu livro, que eu vou chamar de “profético”. Porque, olhando com os olhos de hoje, onde estamos cada vez mais imersas na internet, ao passo que vamos tentando fazer de nossas vidas individuais um espetáculo consumível por tantas pessoas quanto a internet for capaz de alcançar, ou melhor engajar; também vamos ficando cada vez mais sedentas de conteúdos que possam ser espetacularizados e, portanto, consumíveis.

Assim, Debord já no início de sua obra afirma: “O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. (…) Ele é a afirmação omnipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo” (p. 09).

Para este autor, todas as formas de espetáculo servem à lógica do consumo, inclusive a informação. E esta, se antes chegava em horários específicos, pela televisão, escritas em jornais impressos diários ou semanais, hoje ela está ao alcance de nossas mãos 24 horas por dia sendo repetida e atualizada. E o mesmo tema toma conta das pautas de diversos sites, com chamadas (“chapéus” como se diz na gíria jornalística) cada vez mais criativas e que aguçam nossa curiosidade para nos fazer, então, clicar. Se a TV se vende e nos vende, chamando a gente de audiência, a internet disputa nossos cliques ou likes, e aí vale toda a criatividade de quem escreve para chamar seu público ao clique/consumo.

Ao fim e a cabo é mais uma das expressões da alienação, que coisifica seres humanos e nos reduz ao produto a ser vendido, como explica Mészáros:

“A alienação caracteriza-se, portanto, pela extensão universal de ‘vendabilidade’, a transformação de tudo em mercadoria, pela conversão dos seres humanos em ‘coisas’, para que eles possam aparecer como mercadorias no mercado.” (Mészáros, 2006, p.39 )

Este é o movimento que estamos assistindo há duas semanas com a chamada “Caçada de Lázaro”, classificado pela polícia e a mídia como um todo como “serial killer”. O termo em inglês não é por acaso, pois justamente nos remete aos espetáculos fílmicos hollywoodianos que nos acostumamos a consumir, onde uma pessoa passa a cometer crimes em série, em geral com doses de suspense sobre a identidade do criminoso e terminam com ação contundente da elite da polícia. E, claro, não se pode esquecer que nas histórias da telona, o tal serial killer é sempre uma pessoa com algum diagnóstico psicopatológico e, por esta razão, dono de uma mente misteriosa a ser investigada, despido de sentimentos de empatia para com o outro, insensível à morte de suas vítimas, cruel, por um lado, mas absolutamente inteligente e genial, por outro.

Os roteiros fictícios, sempre vão costurando uma narrativa que nos faz sempre questionar *Como pode um ser humano ser cruel assim?”. E explicam tal comportamento sempre de forma metafísica e, desta forma, associam à cultos satânicos, a possessão demoníaca, que, infelizmente, não raras as vezes, são colocados quase que em pé de igualdade a um diagnóstico psicopatológico ou é o próprio diagnóstico que é tomado como justificativa dos comportamentos considerados bizarros, estranhos. E, não por acaso, todos esses elementos de narrativa, podem ser notados também nas diversas matérias que cobrem a chamada “caçada à Lázaro”.

Como matéria de jornal, no entanto, lida com a realidade, o que não faltam são vozes de “especialistas” em “personalidade criminosa” para explicar o comportamento de alguém que consideram ser “psicopata”. Alguém que estes “especialistas” sequer viu alguma vez na vida, sequer conversaram com ele e sequer avaliaram seu comportamento frente a frente, mas ainda assim, são uníssonos em dizer que seu comportamento é “incorrigível”. Traçam seu “perfil psicológico” e, como místicos que apontam características de personalidade a cada signo; os tais especialistas da área Psi, sob o signo então do diagnóstico escolhido no catálogo disponível de doenças, distribuem características de personalidade ao sujeito, de quem só ouviram falar pelas manchetes de jornal.  É a irracionalidade da racionalidade burguesa.

Como diz Debord, todo esse espetáculo: “É o coração da irrealidade da sociedade real.”

Todavia, do lado real dessa história, que não foi imaginada, que não está sendo atuada com falas decoradas e marcações de cena, mas vem sendo roteirizada pela mídia tal qual uma série policial, estão as pessoas reais que sofrem com toda essa tragédia, das vítimas de Lázaro às vítimas dessa narrativa preconceituosa, racista e desumanizadora.

Ao longo da última semana, veio a público denúncias de abuso de poder cometido pelos policiais que atuam na “caçada”, líderes religiosos dos terreiros de religiões de matriz afro que ficam próximos onde o suspeito possa estar escondido, denunciam práticas de agressão física, verbal e desrespeito com seus símbolos sagrados. Locais que foram fotografados e tidos como sendo onde Lázaro supostamente praticava rituais. Colando, então, a imagem dele com rituais chamados pela mídia de satânicos, quando na verdade representam rituais de adoração e manifestação da fé dos povos de terreiro e sequer tinham qualquer ligação com o suspeito.

A este fato, somam-se os depoimentos de pessoas que moram na região e que denunciam que suas casas estão sendo invadidas, portas arrombadas, métodos violentos de interrogação, com agressões físicas e verbais, a fim de encontrarem quaisquer pistas que possam levar a captura do suspeito. Coisas que a gente achava que eram práticas apenas da polícia de determinados estados quando invadem favelas. A constante exposição das vítimas, da família do rapaz, de seu histórico de vida tem composto o espetáculo midiático dessa trágica história que, de informação para a população nada tem de útil, pois só tem servido para propagar racismo religioso, preconceito e medo.

Medo direcionado a determinadas pessoas que possam expressar características semelhantes às que estão sendo atribuídas ao homem suspeito, escondido na mata: homem, pobre, negro e supostamente com alguma psicopatologia. Essas são características que, de forma generalizada, na dinâmica de produção e reprodução cotidiana, acabam sendo associadas às pessoas em sofrimento psíquico. E nesse discurso, explicitamente desumanizador, a desumanização do sofrimento psíquico, seja nos discursos de periculosidade seja nos da genialidade da “loucura”, contribui para ideologia dominante justificar sua necropolítica. Que para Mbembe (2018) é mais do que matar as pessoas, mas é expor elas a condições que as deixe mais vulnerável à morte.

A expressão da soma de todos esses elementos da narrativa midiática sobre o caso Lázaro: no dia 17 de junho (sexta-feira), um jovem maranhense (23 anos), em sofrimento psíquico e que fazia acompanhamento psiquiátrico desde criança, teria publicado mensagens de “apoio a Lázaro”, policiais civis, então, invadiram sua casa e, na frente de seu avô, atiraram e o mataram.

Mistificar, glamourizar ou patologizar são verbos comuns no teatro das sombras que criam narrativas rasteiras em tragédias tão mais graças e complexas. O que aparenta ser objetivo, científico e circunscrito ao processo descritivo de um único sujeito serve como combustível para opressões históricas, atalhos retóricos. A espetacularização da violência e a reprodução do reducionismo sobre a loucura são munições que caminham juntas no show da barbárie que banaliza a vida, a morte e o que supõem ser ciência e justiça.

Referências:

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018.

MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.

Mad in Brasil recebe ‘blogs’ de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir como um fórum público para uma discussão- em termos gerias – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

A OMS e a Grande Mudança na Saúde Mental : Entrevista com Michelle Funk

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Michelle Funk é a Chefe da Unidade de Política, Direito e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental e Uso de Substâncias da Organização Mundial da Saúde. Ela criou e lidera a Iniciativa de Direitos de Qualidade da OMS que visa avaliar e melhorar os padrões de direitos humanos nos serviços existentes e fazer avançar a plena implementação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD).

Nesta entrevista, discutimos o lançamento da nova “Orientação sobre Serviços de Saúde Mental Comunitária”: Promoção de Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos“. O documento se baseia nos princípios da recuperação e nas abordagens baseadas em direitos. Ele apresenta exemplos bem sucedidos de melhores práticas na prestação de serviços de saúde mental respeitando a dignidade, passando à coerção zero e eliminando a negligência e o abuso. Entre as melhores práticas apresentadas no documento estão o Diálogo Aberto como praticado em Tornio, Finlândia, Soteria Berne na Suíça, Afiya House no oeste de Massachusetts, Basal Exposure Therapy na Noruega e Hearing Voices Support Groups. [confira a matéria publicada no MIB escrita por Robert Whitaker.]

A Orientação se baseia no impulso criado pela voz crítica de Dainius Pūras, ex-Relator Especial da ONU sobre o Direito à Saúde https://www.madinamerica.com/2020/05/bringing-human-rights-mental-health-care-interview-dainius-puras/. Puras criticou o domínio do modelo biomédico no campo da Saúde Mental e destacou os danos associados a ignorar os determinantes sociais da saúde que afetam a saúde mental de uma pessoa, tais como violência, pobreza, falta de nutrição adequada, instabilidade habitacional, falta de cobertura de saúde universal, discriminação e outros.

Em nossa conversa, Michelle Funk descreveu o processo de engajamento das partes interessadas e pessoas com experiência vivida durante a elaboração e desenvolvimento do documento, os desafios de garantir representação geográfica, dadas as desigualdades globais e as esperanças para o futuro.

A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.

Ana Florence: Eu queria começar falando um pouco sobre sua carreira. Como você decidiu trabalhar em saúde pública e saúde global?

Michelle Funk: Minha formação em toda a universidade foi em psicologia e saúde pública. Meu mestrado, de fato, foi uma especialização em Psicologia Clínica, e minha tese de doutorado foi sobre Estratégias de Prevenção de Riscos de Doenças Cardiovasculares. Portanto, um foco muito grande na saúde pública e na saúde global.

Depois, após meus estudos universitários, liderei um grande estudo de pesquisa da OMS sobre Intervenção Precoce para o Consumo Perigoso de Álcool, que foi realmente o que me colocou em contato com a Organização Mundial da Saúde. Na verdade, foi através deste estudo que fui convidada a me associar à OMS e também a expandir este trabalho para a saúde mental.

Florence: Como é um dia na vida de Michelle Funk?

Funk: Em meu trabalho, tenho a responsabilidade global de apoiar os países no desenvolvimento de suas políticas e leis sobre saúde mental, e isto requer várias etapas. Assim, analisar de perto o que está sendo feito hoje e o que está tendo bons resultados, assim como o que não está tendo bons resultados nos países.

Também envolve assegurar que a orientação esteja de acordo com as normas internacionais de direitos humanos. Significa consultar de perto uma gama completa de interessados, incluindo organizações ou pessoas com deficiência, indivíduos com experiência vivida, profissionais da saúde mental, organizações da sociedade civil, formuladores de políticas e muitos outros.

Então, a grande tarefa é realmente reunir todas essas informações em uma orientação facilmente compreensível e de fácil digestão, que seja realmente sensível aos diversos contextos socioeconômicos que os países enfrentam e, naturalmente, aos diferentes níveis de desenvolvimento dos sistemas de saúde dos países.

Florence: Quais são as coisas em que você está mais interessada, e quais são as coisas que você se orgulha de fazer ao longo da sua carreira?

Funk: Em minha posição, tenho visto quantas pessoas estão vivendo tantas situações ruins, difíceis e desmotivantes nos serviços de saúde mental. Ajudar a mudar esta situação tem sido muito importante para mim, e o fato de eu pensar que isto está acontecendo agora me deixa orgulhosa.

Basicamente, acho que tenho muito orgulho de contribuir para uma nova direção para a saúde mental, que é uma abordagem baseada em direitos que coloca as pessoas usando serviços, pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais, em primeiro lugar em toda a história da saúde mental. Aqui, o que é importante é que as preferências das pessoas precisam ser respeitadas – que suas opiniões contam e são primárias.

Quando as pessoas sabem que sua voz está sendo ouvida e sua voz conta dentro da Organização Mundial da Saúde, isso realmente fortalece as pessoas que muitas vezes não são ouvidas ou escutadas a respeito das questões que mais as afetam. Isso tem sido extremamente importante no trabalho que faço para que tudo isso aconteça.

Também estou orgulhosa de que, ao longo dos anos, através do trabalho que desenvolvemos, tenho sido capaz de trazer muitas partes interessadas à mesa para chegar atrás deste trabalho, muitas das quais antes estavam relutantes. Isto é realmente encorajador e traz muito otimismo sobre as mudanças que são possíveis e as mudanças já estão acontecendo.

Florence: Será que poderíamos passar ao novo documento de orientação que foi publicado em 10 de junho?

Funk: Antes de mais nada, deixe-me explicar um pouco sobre essa orientação da OMS. É a nova orientação da Organização Mundial da Saúde para os países sobre como criar serviços de saúde mental comunitária centrados na pessoa e baseados em direitos. Dentro desta Orientação, destacamos serviços de boas práticas de todo o mundo que se alinham com critérios-chave de direitos humanos, fundamentados na convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (CRPD), incluindo o respeito à capacidade legal, práticas não coercitivas, participação e inclusão comunitária.

Este Guia também fornece informações detalhadas sobre como cada um dos serviços implementa explicitamente estes critérios da CRPD na configuração e execução do serviço.  Gostaria de dizer que este Guia é o primeiro de seu tipo, portanto, será extremamente importante, e já faz muitos anos que ele está sendo feito também.

Em termos de processo, isso envolveu muitos meses de pesquisa intensiva e muitas rodadas de consultas profundas com todos os principais grupos de interessados e especialistas em países de todo o mundo.

Isso inclui pesquisas e consultas sobre todos os diferentes tipos de serviços que existem e estão sendo executados em diferentes países, bem como consultas para revisar e comentar as minutas e ajudar com as revisões das diferentes minutas no que temos hoje em termos de orientação técnica final.

Florence: É um documento fascinante, e parece ser algo inteiramente novo e único. Uma das peças muito interessantes deste novo documento de orientação é a conexão entre os direitos humanos e a recuperação [‘recovery’]. Essa conexão não é óbvia em muitos lugares, inclusive nos Estados Unidos. Você poderia nos dizer por que é importante combinar essas duas estruturas?

Funk: Sim, eu posso. Na verdade, é uma pergunta extremamente boa de se fazer, e não é tão óbvia para todos. É importante combinar as estruturas porque a abordagem dos direitos humanos e a abordagem da recuperação compartilham valores e princípios comuns.

Ambas as abordagens promovem direitos-chave como igualdade, não discriminação, capacidade legal, consentimento informado e inclusão comunitária. A principal diferença, porém, entre os direitos humanos e as abordagens baseadas na recuperação é que a abordagem dos direitos humanos impõe obrigações aos países para promover estes direitos.

Mais especificamente, o motivo fundamental para reunir essas estruturas, que é a chave, é que é importante mostrar seu alinhamento uns com os outros para assim trazer uma voz mais poderosa para defender e implementar mudanças.

A Estrutura de Recuperação tem seu próprio público que pode não entender a linguagem dos direitos humanos e, vice-versa, o público de direitos humanos pode não entender a linguagem da recuperação. Incorporar ambas as estruturas e mostrar como elas se alinham pode reunir esses grupos ou circunscrições importantes em bases comuns e para um propósito comum.

Florence: Penso que isto será bem recebido por ambas as comunidades e espero que crie uma oportunidade de trabalhar em conjunto. O Relator Especial sobre o direito à saúde, Dainius Pūras, também foi entrevistado por mim (veja esta entrevista aqui). Você pode falar sobre uma mudança de paradigma que ele propôs? Qual foi a importância disso para o desenvolvimento da Orientação?

Funk: Bem, a mudança de paradigma de um modelo biomédico para um modelo de direitos humanos é na verdade a base da nova Orientação do Serviço Comunitário de Saúde Mental da OMS, incluindo os serviços mostrados e as recomendações feitas.

Todos os serviços estão unidos por várias características, e estas incluem o direito à capacidade legal, em outras palavras, o direito de tomar decisões sobre todos os aspectos da vida de uma pessoa.

Em segundo lugar, a ausência de práticas coercitivas, tais como tratamento forçado, isolamento e restrição.

Em terceiro lugar, participação, o que significa que pessoas com experiência vivida estão executando serviços ou têm um papel fundamental na decisão de como os serviços são projetados e executados.

E em quarto lugar, a inclusão comunitária, que se refere ao apoio que as pessoas recebem para acessar serviços e benefícios de bem-estar social, moradia, emprego e oportunidades educacionais, acabará permitindo que as pessoas vivam e sejam incluídas na comunidade.

Este é o novo paradigma. Este novo modelo e paradigma de direitos humanos permeia tudo o que estamos promovendo nesta nova Orientação sobre serviços de saúde mental comunitária.

Florence: Há outra questão que eu acho relevante para este documento. Tem havido críticas em torno do domínio ocidental da arena global da saúde mental. Como o Guia lidou com isso?

Funk: Bem, buscamos boas práticas, serviços baseados em direitos de todo o mundo em todas as regiões. Também procuramos contribuições de todas as partes interessadas em no mundo inteiro, incluindo o Sul Global.

Mas tendo dito isso, com certeza, existe um fator limitador. Esse fator limitador estava em torno do fato de que precisávamos selecionar boas práticas que tivessem resultados de avaliação. Isto tendia a uma seleção tendenciosa na direção de países de alta renda onde há mais fundos para completar as avaliações.

Entretanto, ao mesmo tempo, realmente fizemos o melhor para compensar este viés para obter uma representação geográfica dos serviços e representação dos países de baixa, média e alta renda.

Florence: A questão da pesquisa, avaliação e financiamento é tão grande no Sul Global, e vinda do Brasil, eu tenho vivido a experiência com isso, devo dizer. É muito apreciado que a Orientação tenha encontrado formas de contornar isso e conseguido incluir vários exemplos de boas práticas no Sul Global. De certa forma, eu acho que a Orientação realmente parece estar à frente de seu tempo, especialmente considerando onde se encontra atualmente a psiquiatria convencional e o predomínio do modelo biomédico. Com isso em mente, o que foi mais desafiador no desenvolvimento deste documento?

Funk: O que era mais desafiador era encontrar boas práticas que realmente se alinhassem com os critérios de direitos humanos da CRPD. A etapa adicional em cima de tudo isso era encontrar aqueles tipos de serviços que também tinham uma avaliação.

Como você mencionou, a maioria dos serviços do ‘mainstream’ não atende a estes critérios, particularmente os critérios da CRPD, e há tão poucos serviços por aí que realmente estão avaliando o que estão fazendo.

Portanto, isso foi particularmente desafiador e realmente aponta para a necessidade de se investir em serviços baseados em direitos como os que descrevemos na Orientação da OMS, avaliá-los e comparar custos e resultados com os serviços convencionais, que é realmente o que fazemos no documento da Orientação.

Florence: Esperamos que a Orientação tenha impacto na forma como os serviços são financiados e na forma como a pesquisa é conduzida. Já estou vendo muitas maneiras pelas quais isto pode nos ajudar a seguir em frente. Pergunto-me, voltando a uma idéia mais geral de todo o seu trabalho, o que você acha mais gratificante no que você faz?

Funk: O que é mais gratificante para mim é colaborar com pessoas com experiência vivida, aprendendo com elas e integrando esse aprendizado ao meu trabalho. Ver, ouvir e ler tantas pessoas que realmente apreciam o trabalho que está sendo feito, isso também tem sido incrivelmente gratificante.

Tivemos muitas pessoas nos procurando, por exemplo, para agradecer à Organização Mundial da Saúde por este trabalho. Ouvimos as pessoas dizerem que o trabalho mudou completamente sua perspectiva e mudou suas práticas. Antes de receber o treinamento através da Iniciativa QualityRights, elas não sabiam os danos que haviam causado às pessoas, nem que poderiam fazer as coisas de maneira diferente.

Portanto, ouvir tantos comentários como esse todos os dias fez com que o trabalho e as lutas para completá-lo realmente valesse a pena e fosse gratificante, para saber que o que nos propusemos fazer está sendo alcançado, e estamos recebendo esse feedback para dizer que sim, está ocorrendo.

Florence: O que foi mais surpreendente, ou o que continua a surpreendê-lo em seu dia-a-dia?

Funk: Foi surpreendente ver quantas pessoas, grupos e organizações existem lá fora que querem que esta mudança aconteça.

Nos últimos dois anos mais ou menos, sinto que houve uma mudança – uma onda de pessoas de todas as áreas e disciplinas e movimentos, exigindo cada vez mais uma mudança significativa na saúde mental e exigindo o alinhamento total das políticas, leis e serviços com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e o fim da coerção que vemos na saúde mental.

Penso que este movimento está crescendo em confiança e ganhando impulso e resultando em um número crescente de países explorando seriamente como eles podem criar serviços e sistemas orientados para os direitos humanos melhores e mais responsivos.

Quando você está trabalhando em uma espécie de ambiente próprio com seus próprios grupos de interesse ao seu redor, você às vezes esquece que existe todo um outro mundo lá fora nos países, no terreno, na comunidade, que estão desesperados para que esta mudança aconteça. É bom ver isso.

Florence: Se as pessoas não sabiam o que é a OMS, agora certamente sabem. Tem estado na mídia diariamente, e a pandemia da COVID realmente trouxe a importância deste trabalho daqui para a frente. Também se tem falado sobre como a COVID-19 afeta a saúde mental das pessoas, e muita da conversa tem sido em torno da epidemia potencial de doenças mentais após a pandemia da COVID-19. Como podemos assegurar um foco nos direitos humanos e determinantes sociais neste tempo, especialmente com este tipo de atenção à saúde mental que a COVID tem trazido?

Funk: Quero dizer, pode ser interessante observar os tipos de problemas e as questões de saúde mental relacionadas à COVID para entender melhor como podemos abordar melhor a saúde mental neste contexto.

Obviamente, a COVID-19 tem levantado algumas questões importantes em torno da saúde mental e como ela pode ser afetada negativamente. Quero passar em revista algumas das questões-chave. Há medo, preocupação e estresse de infecção e morte, perda de membros da família e perda de renda e meios de subsistência, o que tem sido extremamente significativo no aumento da angústia, ansiedade e outras questões de saúde mental.

Também temos alguns impactos importantes sobre as pessoas que já tinham condições de saúde mental preexistentes. Às vezes, o estresse amplificou sua angústia e seu estado de saúde mental. Vimos como o estigma e a discriminação criam isolamento para as pessoas que têm condições e deficiências relacionadas à saúde mental. Isto é ampliado durante o isolamento pela COVID quando elas estão sendo afastadas das rotinas e atividades normais e tendo o efeito de se tornarem ainda mais isoladas e angustiadas.

Vimos também como o isolamento privou muitas pessoas de serviços essenciais e do apoio que elas recebiam antes da pandemia. Temos visto alguns impactos horríveis em ambientes institucionais, tais como hospitais psiquiátricos e casas de assistência social, onde as pessoas têm sido realmente desproporcionalmente afetadas pela COVID. Muitas pessoas morrendo.

Além disso, muitas pessoas, particularmente pessoas mais velhas,residentes nos lares para idosos, foram realmente separadas de suas famílias, de seus entes queridos, o que resultou em um enorme custo emocional.

É importante destacar todos esses aspectos, os aspectos de saúde mental da COVID-19 porque a pandemia realmente reforça o papel crítico dos determinantes sociais da saúde e a necessidade de uma abordagem baseada nos direitos humanos que se concentre nesses aspectos sociais em vez de conceituar as questões de saúde mental como uma doença.

Portanto, os serviços de saúde mental, suportes e intervenções precisam se envolver com estas importantes questões da vida para realmente abordar as questões de saúde mental. Os determinantes sociais da saúde e seu papel realmente vieram à tona durante a pandemia da COVID-19, mas eles sempre estiveram presentes. É justamente agora, que está mais na consciência e atenção das pessoas, que precisamos aproveitar essa oportunidade para garantir que essas sejam as questões críticas abordadas nos serviços de saúde mental e nos sistemas de saúde mental no futuro.

Florence: Acho que as questões já estavam lá, mas agora elas são tão óbvias que está se tornando muito difícil de ignorar. Com isso em mente, o fato de que estas coisas são tão óbvias agora, você está otimista sobre alguma mudança que vem e vai na direção certa?

Funk: Com certeza. Talvez você já tenha percebido isso a partir de minhas respostas anteriores. Sem dúvida, estou otimista quanto à mudança que está por vir. Acho que na verdade já começou. Acho que vai continuar. Muitos grupos agora estão exigindo uma mudança radical, uma verdadeira transformação da agenda da saúde mental.

Florence: O que vem a seguir para você após o documento de orientação?

Funk: Sim, muita coisa está por vir. Ainda não terminamos nosso trabalho.

Já começamos a trabalhar em novas orientações em torno de leis e políticas relacionadas à saúde mental que obedecem aos padrões de direitos humanos – a CRPD ou a convenção que eu já mencionei. Tem havido muita demanda por isso por parte dos países, o que é realmente uma boa notícia.

Estamos realmente interessados em desenvolver esta orientação, finalizá-la e disponibilizá-la aos países para que possam desenvolver novas políticas e estruturas legais para complementar a orientação de serviços baseados em direitos que acabamos de lançar, bem como nosso trabalho anterior com os materiais de treinamento QualityRights para promover mudanças de atitude e práticas, em linha com a abordagem baseada nos direitos humanos.

[Se você gostou, não deixe de compartilhar em suas redes sociais. A boa informação promove a saúde mental.]

Pesquisa Internacional com os Usuários de Antidepressivos. Você quer participar?

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Tablet overdose. Depression and problem. Hand surrounded by many pills.

Por favor, reserve um tempo para preencher isto!
– Pesquisa Internacional sobre Retirada de Antidepressivos –
Autores: Mark Horowitz PhD, Joanna Moncrieff PhD, John Read PhD e Ed White PhD

Os autores acima estão realizando uma pesquisa (anônima) para captar as experiências dos usuários de antidepressivos que estão buscando deixar de fazer uso de seus antidepressivos. A pesquisa levará aproximadamente 30-45 minutos.

Como psiquiatra e defensor da desprescrição de antidepressivos, Dr. Mark Horowitz  tem sido a principal referência a motivar este trabalho, querendo entender o que tem funcionado ou não para as pessoas quando elas reduzem/retiram os antidepressivos. A ideia é que as experiências dos usuários dos antidepressivos possam ser usadas para ajudar a construir serviços de saúde dedicados a apoiar as pessoas que desejam a desprescrição de antidepressivos. Como muitos de vocês devem saber, Horowitz também é o co-autor do novo “Stopping AD Tapering Guidance” do Reino Unido.

Esta pesquisa internacional, cujo link está abaixo, faz perguntas que ajudarão os pesquisadores a entender (anonimamente) as experiências pessoais dos usuários dos antidepressivos. E também dará a oportunidade aos usuários de fornecer os seus próprios pensamentos e opiniões sobre o que eles querem dos serviços de saúde e o que está errado atualmente nesta área. Os resultados contribuirão para que protocolos oficiais usados pelos médicos/psiquiatras sejam alterados, aperfeiçoados.

Aqui no Brasil a problemática dos dependentes químicos dos antidepressivos é alarmante. Se você está passando por essa experiência, o que você diz tem uma enorme importância. Se você não é vítima desse problema, certamente conhece alguém que esteja nessa situação.

Você também pode se oferecer para ser entrevistado e fornecer seus dados de experiência de vida com a retirada, no caso em que você queira participar mais ativamente do processo da pesquisa.

A pesquisa está guiada passo a passo.

Compartilhe!

A pesquisa → https://j.mp/3grPFtT

Tablet overdose. Depression and problem. Hand surrounded by many pills.

 

A OMS faz apelo por mudanças radicais na saúde mental global

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Durante a última década, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem promovido regularmente o objetivo de melhorar a “saúde mental global”. Embora muitas vezes tenha falado da importância do apoio social e de outras alternativas não relacionadas à droga, seus esforços ajudaram a difundir um padrão biomédico de atendimento. As ideias ocidentais sobre diagnósticos, os fundamentos biológicos dos transtornos psiquiátricos e o uso regular de drogas psiquiátricas têm sido promovidos. Os críticos deste esforço falam dele como uma colonização médica. Hoje, 10 de junho, a Organização Mundial da Saúde lançou um documento de 300 páginas intitulado “Guidance on Community Mental Health Services” (Orientação sobre Serviços de Saúde Mental Comunitária): Promovendo Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos”. Em grande medida, os autores abraçam uma agenda de mudanças – e uma reconceptualização da saúde mental – que os leitores da comunidade Mad encontrarão como sendo familiar. Os melhores serviços práticos destacados no documento incluem Diálogo Aberto como praticado em Tornio, Finlândia; Soteria Berne na Suíça; Afiya House no oeste de Massachusetts; Basal Exposure Therapy na Noruega; e Hearing Voices Support Groups, entre outros.

A orientação da OMS surgiu de um grupo nas Nações Unidas liderado por Michelle Funk, que é chefe da unidade de Política, Direito e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS. Assim como Dainius Pūras, durante seu tempo como Relator Especial da ONU para a Saúde, pediu uma revolução na saúde mental, este documento da OMS apela para uma mudança em grande escala. Os autores escrevem:

Embora alguns países tenham tomado medidas críticas para o fechamento de instituições psiquiátricas e assistenciais, a simples mudança dos serviços de saúde mental para fora desses ambientes não levou automaticamente a melhorias dramáticas no atendimento. O foco predominante dos cuidados em muitos contextos continua a ser o diagnóstico, a medicação e a redução dos sintomas.

Determinantes sociais críticos que afetam a saúde mental das pessoas, tais como violência, discriminação, pobreza, exclusão, isolamento, insegurança no emprego ou desemprego, falta de acesso à moradia, redes de segurança social e serviços de saúde, são freqüentemente negligenciados ou excluídos dos conceitos e práticas de saúde mental. Isto leva a um diagnóstico exagerado do sofrimento psíquico humano e a uma dependência excessiva de drogas psicotrópicas em detrimento de intervenções psicossociais – um fenômeno que tem sido bem documentado, particularmente em países de alta renda. Também cria uma situação em que a saúde mental de uma pessoa é predominantemente abordada dentro dos sistemas de saúde, sem interface suficiente com os serviços e estruturas sociais necessários para abordar os determinantes acima mencionados.

Como tal, esta abordagem é, portanto, limitada em sua consideração de uma pessoa no contexto de toda sua vida e experiências. Além disso, as atitudes e mentalidades estigmatizantes que existem entre a população em geral, os formuladores de políticas e outros com relação a pessoas com deficiências psicossociais e condições de saúde mental – por exemplo, que elas correm o risco de prejudicar a si mesmas ou a outros, ou que precisam de tratamento médico para mantê-las seguras – também levam a uma ênfase excessiva nas opções de tratamento biomédico e a uma aceitação geral de práticas coercitivas, tais como admissão e tratamento involuntário ou reclusão e restrição.

O documento da OMS estabelece uma abordagem tripla para “repensar” os serviços de saúde mental. Os autores argumentam que os países precisam adotar uma abordagem de direitos humanos como princípio governante, adotar concepções de recuperação centradas na pessoa e abraçar serviços que forneçam apoio ambiental e psicossocial para pessoas que lutam com questões de saúde mental.

Direitos Humanos como Princípio Governante

Em 2008, entrou em vigor a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD). Agora foi ratificada por 181 países (mas não pelos Estados Unidos). A CRPD declara que as pessoas com deficiência devem gozar dos mesmos direitos e liberdades fundamentais que todos os demais e, em essência, proíbe a hospitalização forçada e o tratamento forçado.

Entretanto, os autores da OMS observam que nenhum dos ratificantes da CRPD adotaram políticas e leis “totalmente alinhadas com esta exigência da CRPD”. Uma abordagem dos direitos humanos à saúde mental, afirmam, requer a “criação de serviços livres de coerção”. Eles detalham os danos que advêm do tratamento forçado:

A percepção da necessidade de coerção está incorporada aos sistemas de saúde mental, inclusive na educação e treinamento profissional, e é reforçada através da legislação nacional de saúde mental e outras legislações. As práticas coercitivas são difundidas e cada vez mais utilizadas em serviços em países do mundo inteiro, apesar da falta de provas de que elas oferecem quaisquer benefícios, e da significativa evidência de que elas levam a danos físicos e psicológicos e até mesmo à morte. Pessoas sujeitas a práticas coercitivas relatam sentimentos de desumanização, desresponsabilização, desrespeito e desobediência às decisões sobre questões que as afetam. Muitos experimentam isso como uma forma de trauma ou re-traumatização que leva a um agravamento de sua condição e ao aumento das experiências de angústia. Práticas coercitivas também minam significativamente a confiança e a credibilidade das pessoas nos profissionais dos serviços de saúde mental, levando as pessoas a evitar a busca de cuidados e apoio como resultado. O uso de práticas coercitivas também tem conseqüências negativas para o bem-estar dos profissionais que as utilizam.

No modelo biomédico, diz-se que as pessoas com “doença mental” grave sofrem de anasognosia, falta de discernimento sobre sua doença, e isto se torna a justificativa declarada para a hospitalização e tratamento forçados. Isto é o que dá à sociedade e aos provedores poder de tutela sobre aqueles com problemas de saúde mental e deficiências.

Este documento da OMS, ao exortar as sociedades a criar serviços livres de coerção e a promulgar leis e políticas que proíbam tal coerção, está apoiando uma mudança radical nos serviços globais de saúde mental. Proibir a hospitalização forçada e o tratamento mudaria drasticamente a estrutura de poder existente que apóia o modelo biomédico e alteraria o teor de todos os cuidados de saúde mental.

Reconceptualizando a “Recuperação”(‘Recovery’)

O modelo biomédico de saúde mental é um modelo de “doença” e, portanto, a noção de recuperação [‘recovery’] está associada a uma redução dos sintomas. O indivíduo está em recuperação de uma doença, e os medicamentos psiquiátricos são entendidos como um tratamento de primeira linha para ajudar as pessoas a se recuperarem desta forma.

Os autores da OMS argumentam que os prestadores de serviços precisam adotar uma compreensão diferente da recuperação, que surge da escuta daqueles com experiência vivida. O que eles querem para si mesmos? Quais são seus objetivos? O que eles veem como suas necessidades? Eles consideram isto como uma “abordagem de recuperação”.

A abordagem de recuperação não depende apenas dos serviços de saúde mental. Muitos indivíduos podem e criam seu próprio caminho para a recuperação, podem encontrar apoio natural e informal entre amigos e familiares e entre redes e comunidades sociais, culturais, religiosas e outras, e podem se unir para apoio mútuo na recuperação. Entretanto, a introdução da abordagem de recuperação dentro dos serviços de saúde mental é um meio importante para assegurar que os cuidados e apoio prestados às pessoas que desejam ter acesso aos serviços considerem a pessoa no contexto de toda a sua vida e experiências.

Embora a abordagem de recuperação possa ter nomes diferentes em países diferentes, os serviços que adotam esta abordagem seguem certos princípios-chave. Tais serviços não se concentram principalmente em “curar” as pessoas ou tornar as pessoas “normais novamente”. Em vez disso, esses serviços se concentram em apoiar as pessoas para identificar o que a recuperação significa para elas. Eles apoiam as pessoas para ganhar ou recuperar o controle de sua identidade e vida, ter esperança no futuro e viver uma vida que tenha significado para elas – seja através do trabalho, relacionamentos, engajamento comunitário ou alguns ou todos eles. Eles reconhecem que a saúde mental e o bem-estar não dependem predominantemente de serem “livres de sintomas”, e que as pessoas podem experimentar problemas de saúde mental e ainda desfrutar de uma vida plena.

Modelos de Programas

A orientação da OMS fala da necessidade de que as sociedades desenvolvam serviços de saúde mental não coercitivos e que respeitem os princípios dos direitos humanos estabelecidos na CRPD, e que promovam a recuperação centrada na pessoa, como descrita acima. A publicação apresenta 22 programas desse tipo. Embora “nenhum seja perfeito”, escrevem os autores, “estes exemplos fornecem inspiração e esperança, pois aqueles que os estabeleceram deram passos concretos em uma direção positiva em direção ao alinhamento com a CRPD”.

Aqui está uma breve descrição de cada programa modelo:

Alternativas à hospitalização: centros de crise

Afiya House em Massachusetts. Este centro de repouso aberto em 2012 e que apoia pessoas em dificuldade, servindo assim como uma alternativa à hospitalização. Ele é operado pela Wildflower Alliance (antiga Western Mass Learning Community), que é formada por pessoas que se identificam como pares, tendo enfrentado seus próprios “desafios de interrupção de vida, tais como diagnósticos psiquiátricos, traumas, falta de moradia, problemas com substâncias e outras questões”. A Afiya House pode acomodar três pessoas de cada vez, e as pessoas em crise podem ficar por até sete noites. Link de vídeo.

Link House em Bristol, Reino Unido. Fundada em 2010, a Link House é um centro residencial para mulheres que estão passando por uma crise de saúde mental e estão desabrigadas ou incapazes de viver em casa devido a problemas de saúde mental. A casa, com cozinha e jardim compartilhados, tem espaço para 10 mulheres de cada vez, que podem ficar por até quatro semanas. Ela foi projetada como uma alternativa para a admissão em um hospital psiquiátrico. O foco está no apoio social, em vez de cuidados “médicos”. Link de vídeo.

Serviço de Diálogo Aberto para Crises na Lapônia, Finlândia. Este serviço ambulatorial oferece uma intervenção baseada em psicoterapia para indivíduos da Lapônia Ocidental que apresentam uma crise de saúde mental. A equipe de serviço é composta por 16 enfermeiras, uma assistente social, um psiquiatra, um psicólogo, um terapeuta ocupacional e uma secretária. A psicoterapia “tenta promover o potencial de auto-exploração e autodeterminação do cliente”. Link de vídeo.

Tupu Ake no sul de Auckland, Nova Zelândia. Criada em 2008, esta casa de “recuperação”, que conta com uma equipe de pares, oferece uma alternativa à hospitalização. Ela pode acomodar 10 pessoas que estão em crise para estadias de até uma semana. Ela também oferece um programa de apoio diário para até cinco pessoas. Link de vídeo.

Credit: Wise Management Services Ltd, courtesy of Tupu Ake

Serviços de saúde mental com base hospitalar

Unidade de Terapia de Exposição Basal no Hospital Blakstad em Asker, Noruega. Esta unidade está equipada com seis leitos e fornece cuidados psicossociais chamados de terapia de exposição basal (BET) para pessoas com condições complexas de saúde mental que não se beneficiaram dos cuidados convencionais. A BET se concentra na aceitação de pensamentos amedrontadores, sentimentos e experiências internas como uma forma de auto-regulação e lidar com os desafios existenciais; e procura ajudar os pacientes a reduzir ou afinar os medicamentos psiquiátricos. Link de video.

Kliniken Landkreis Heidenheim General Hospital na Alemanha. Em 2017, o hospital introduziu um serviço de saúde mental flexível, orientado ao usuário e baseado na comunidade, que tem sido citado por seu foco na prevenção da coerção. Todos, inclusive aqueles detidos no hospital, têm o direito de recusar medicamentos e, de 2011 a 2016, nenhum paciente foi forçado a tomar um medicamento psiquiátrico. Desde aquela época, devido a ordens judiciais, aproximadamente uma pessoa por ano tem sido tratada à força com medicamentos no hospital. Link de video.

Soteria em Berna, Suíça. Em funcionamento desde 1984 e modelada após a Soteria House que operou na Califórnia durante os anos 70, a Soteria Berne oferece um centro residencial de crise hospitalar para aqueles que vivem em estados extremos (ou que têm um diagnóstico de psicose ou esquizofrenia.) A Berne House está localizada em uma área residencial e tem 10 quartos para indivíduos e dois funcionários. Os residentes podem ficar por até três meses. A filosofia da Soteria é que “estar com” os outros durante uma crise pode ser terapêutico, com baixo ou nenhum uso de medicamentos antipsicóticos. Link de video.

Centros comunitários de saúde mental

Clínica Aung em Yangon, Mianmar. Esta clínica oferece uma extensa gama de serviços de apoio ambulatorial que são projetados para ajudar as pessoas a permanecerem fora dos hospitais e instituições de longa permanência. O pessoal, que inclui cinco funcionários de apoio de pares (ex-usuários), trabalha de perto com escolas, empregadores e organizações locais para ajudar os usuários dos serviços a participar de atividades comunitárias. As exposições de arte permitem que os usuários de serviços vendam sua arte. Há também um clube de culinária semanal e apoio para treinamento em alfabetização, matemática, administração de dinheiro e carpintaria. Link de video.

Credit: Aung Clinic, Myanmar

CAPs III em São Paulo, Brasil. Centros comunitários de saúde mental no Brasil foram estabelecidos para servir como alternativas aos hospitais psiquiátricos. Os CAPs III, em São Paulo, proporcionam um ambiente familiar onde as pessoas em crise podem ficar por até 14 dias. O centro utiliza uma abordagem baseada em direitos e centrada nas pessoas para o atendimento psicossocial que é projetada para promover a autonomia, resolver desequilíbrios de poder e aumentar a participação social. Link de video.

Phoenix Clubhouse em Hong Kong. Isto faz parte de uma rede internacional de clubhouses que fornecem apoio vocacional e educacional baseado na comunidade para pessoas que utilizaram serviços de saúde mental. A casa de Hong Kong funciona desde 1998 e ajuda as pessoas a permanecerem fora dos hospitais enquanto alcançam objetivos sociais, financeiros e vocacionais. Link de video.

Serviços de saúde mental de apoio entre pares

Grupos de apoio de Vozes Auditivas. O Movimento Hearing Voices começou na Holanda no final dos anos 80. Atualmente existem redes de Ouvidores de Vozes em 30 países. Um princípio fundamental do Movimento de Ouvidores de Vozes é que ouvir vozes é uma parte normal da experiência humana, e que ao invés de ter suas vozes reprimidas por medicamentos, as pessoas devem ser encorajadas a desenvolver sua própria compreensão de suas experiências de audição de voz. Link de video.

Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria no Quênia. A USP-K é uma organização nacional, baseada em membros que conta com grupos de apoio de pares para reunir pessoas com deficiências psicossociais e condições de saúde mental. Os grupos buscam apoiar, promover e defender os direitos dos indivíduos de viver e trabalhar como membros comuns de suas comunidades.

Credit: USP, Kenya

Apoio aos colegas do Sudeste de Ontário no Canadá. Esta organização fornece apoio de pares em cinco hospitais do sudeste de Ontário, e apoio de um-para-um para as pessoas após sua alta do hospital. Os pares fornecem assistência, amizade e apoio por até um ano após a alta de uma pessoa, procurando minimizar o risco de re-hospitalização. Link de video.

Serviços de saúde mental de alcance comunitário

Atmiyata em Gujarat, Índia. Estabelecido em 2017, este serviço voluntário comunitário apoia as pessoas que experimentam sofrimento emocional em comunidades rurais do estado de Gujarat, no oeste da Índia. A compaixão compartilhada é o princípio central de seu trabalho, pois eles procuram construir a aceitação comunitária das pessoas que lutam com condições de saúde mental e proporcionar-lhes acesso a benefícios de assistência social. Link de video.

Credit: Atmiyata, Gujarat

Banco da Amizade no Zimbábue. Criada em 2006, a Friendship Bench conta com conselheiros leigos para apoiar as pessoas que experimentam sofrimento emocional. O serviço de proximidade oferece empatia, conhecimento da comunidade local e cultural, e técnicas formais de solução de problemas. O serviço de aconselhamento gratuito está ligado ao centro de saúde primário local, e geralmente é entregue do lado de fora em um banco de madeira. Link de video.

Foco em casa em West Cork, Irlanda. Criado em 2006, este serviço fornece apoio prático e emocional às pessoas com condições de saúde mental que vivem em áreas rurais. Os membros da equipe incluem pessoas com experiência vivida. A equipe se concentra em ajudar as pessoas a permanecerem ativas em suas comunidades, desenvolver habilidades de vida independente e ter acesso a educação e oportunidades de emprego.

Naya Daur em Bengala Ocidental, Índia. Este é um projeto emblemático de uma ONG sediada em Kolkata-, e procura fornecer apoio comunitário, tratamento e cuidados a pessoas desabrigadas que têm uma condição de saúde mental ou deficiência psicossocial. Um foco principal é ajudar as pessoas a se conectarem com suas comunidades locais de uma forma de apoio e ajudá-las a desenvolver relacionamentos de longo prazo. Link de video.

Personal Ombudsman, Suécia. O sistema de ouvidoria pessoal na Suécia foi lançado em 2000. Os ombudsmen pessoais são assistentes sociais treinados, advogados, ou têm formação em medicina, enfermagem, psicologia ou psicoterapia. Cada ombudsman pessoal trabalha com 13 a 20 clientes de cada vez, fornecendo assistência em assuntos familiares, assistência médica, moradia, finanças, emprego e integração comunitária. O serviço tem sido descrito como uma “amizade profissional”. Link de video.

Serviços de apoio à vida

Viver de mãos dadas na Geórgia. Esta ONG oferece instalações de vida comunitária independente para pessoas com deficiências psicossociais de longo prazo, incluindo pessoas que foram previamente institucionalizadas. A Hand in Hand abriu seis casas em Gurjanni e Tbilisi que acomodam um total de 30 adultos. Os residentes preparam comida, cuidam da casa e do jardim, participam de passatempos, participam de vários eventos culturais e são encorajados a interagir com seus vizinhos. As casas foram estabelecidas depois que o país, em 2015, estabeleceu um plano de cinco anos para a desinstitucionalização de seu sistema de saúde mental. Link de video.

Novamente em casa em Chenai, Índia. Fundada em 2015, Home Again oferece moradia para mulheres com condições de saúde mental de longo prazo que estão sem teto ou vivendo na pobreza em três estados da Índia: Tamil Nadu, Kerala, e Maharashtra. O serviço é impulsionado pela convicção de que viver na comunidade em um ambiente familiar ou doméstico é um direito humano básico. As pessoas que utilizam o serviço são encorajadas a se envolverem com todos os aspectos da vida comunitária, incluindo trabalho, lazer, recreação e oportunidades sociais. Link de video.

KeyRing Living Support Networks, Reino Unido. Desde 1990, a KeyRing tem fornecido serviços de apoio à vida para pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais em mais de 100 comunidades em toda a Inglaterra e País de Gales. Cada rede administra cerca de 10 lares a uma distância de caminhada uns dos outros para que os residentes possam se conectar uns com os outros e se envolver mais na comunidade. Link de video.

Vidas Compartilhadas na Grã-Bretanha e na Irlanda do Norte. O Shared Lives é uma forma de assistência social apoiada pelo Estado que opera em todo o Reino Unido, que fornece apoio às pessoas em um ambiente comunitário. As Famílias de Vidas Compartilhadas fornecem apoio para as pessoas em crise, oferecendo uma alternativa à hospitalização. Link de video.

Uma Nova Narrativa

Embora os modelos de “bons cuidados” identificados no documento da OMS operem em ambientes diferentes, todos compartilham uma filosofia semelhante: o respeito pela autonomia do indivíduo com dificuldades de saúde mental e a crença de que proporcionar abrigos acolhedores e uma conexão com a comunidade, com oportunidades para o desenvolvimento de amizades, pode ajudar as pessoas a alcançar um tipo de recuperação que seja significativo para elas.

A orientação da OMS não gasta muita energia criticando o modelo biomédico de cuidado, mas há uma mensagem implícita em todas as suas páginas: esse modelo de cuidado falhou, e o que é necessário agora é repensar de forma fundamental aquilo que é possível. Os autores escrevem:

Uma mudança fundamental dentro do campo da saúde mental é necessária, a fim de acabar com esta situação atual. Isto significa repensar políticas, leis, sistemas, serviços e práticas nos diferentes setores que afetam negativamente as pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais, assegurando que os direitos humanos sustentem todas as ações no campo da saúde mental. No contexto específico dos serviços de saúde mental, isto significa um movimento em direção a práticas mais equilibradas, centradas na pessoa, holísticas e orientadas à recuperação que consideram as pessoas no contexto de suas vidas inteiras, respeitando sua vontade e preferências no tratamento, implementando alternativas à coerção, e promovendo o direito das pessoas à participação e inclusão comunitária.

Este é o próprio apelo à mudança que o Mad in America (MIA) vem promovendo desde o seu início. Olga Runciman, membro da diretoria da Mad in America, é nomeada na orientação da OMS como uma das especialistas que forneceram “direção estratégica” para esta declaração política. Outros que fizeram blog para Mad in America ou foram entrevistados em podcasts da MIA – como Sera Davidow e Pat Bracken – contribuíram para o relatório.

O relatório da OMS é um acontecimento marcante. Ele conta como a Organização Mundial da Saúde, seguindo os passos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o trabalho do ex-Relator Especial da ONU para a Saúde Dainius Pūras, está agora apelando para uma mudança profunda. Uma reformulação global da saúde mental está claramente em andamento, e os modelos de programas destacados nesta publicação da OMS, a maioria dos quais são de origem bastante recente, falam de iniciativas do mundo real que estão surgindo em todos os lugares.

Por que as gêmeas que tinham tudo “sucumbiram”?

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Publicado pela BBC, dia 18 de junho de 2021.

Nascidas em novembro de 2001, elas eram consideradas como brilhantes desde tenra idade.

O próprio Ian Gould [pai], um gêmeo, diz que a filosofia deles como pais era “expô-las a tanta diversão e atividade quanto possível”.

Eles falam das meninas dançando balé junto à piscina nas férias no Egito, de sua participação em várias equipes esportivas e de seu “hobby de toda a vida delas”, a equitação.

[…] Ian e Jane dizem que começaram a aparecer os sintomas iniciais na infância delas mostrando que as coisas “não estavam certas”.

Isto incluía Sam arrancando seus cílios, sobrancelhas e cabelos. Em testes psicométricos, as meninas receberam as notas mais baixas que sua escola já havia visto .

“Nós somos apenas pais. Não somos treinados para juntar os pontos assim e, infelizmente, nenhum dos profissionais o fez”, diz Jane.

Em 2014, quando a família vivia em Fulbourn, Cambridgeshire, amigos levantaram preocupações de que Sam e Chris estavam postando “pensamentos suicidas e anoréxicos” nas mídias sociais. Um ano depois, descobriu-se que Sam havia se automutilado.”

[…] Eles decidiram desistir de suas carreiras para se concentrar em ajudar suas filhas.

Aos 14 anos, em maio de 2016, Chris fez uma tentativa de tirar sua própria vida.

No mês seguinte, Chris revelou que ela e Sam haviam sido abusadas sexualmente desde os cinco anos de idade até a adolescência, e nomeou seu suposto abusador.

Jane diz que a revelação os deixou em “choque total”.

“Não quero que você interprete mal a palavra acreditar, porque em nenhum momento nós não acreditamos nelas, mas isso é o que o seu cérebro lhe diz – isso não pode ser verdade”.

‘Nós nos esforçamos ao máximo para proteger nossas meninas; como isso pode ter acontecido e nós não sabíamos disso’.

[…] Em certo sentido, este momento lhes proporcionou uma oportunidade.

“Pensamos é isso, é a resposta que temos procurado, por que duas garotas que tinham tudo a seu favor estão se desmoronando?”.

A polícia de Hampshire investigou o caso, mas, numa época em que as meninas estavam lutando com sua saúde mental, elas não queriam dar provas em vídeo, o que Ian diz ser a única opção oferecida a elas.

Os policiais encerraram o caso no final de 2016, nunca tendo entrevistado o suposto abusador.

“Tivemos que dizer às meninas que a polícia não ia fazer nada a respeito, que eles não iam nem mesmo entrevistá-lo”, diz Ian.

“Essa é a coisa que realmente me fica na cabeça”.

Chris e Sam se sentiram “invalidadas e não acreditavam em nós”, acrescentam seus pais.

As meninas eram “as melhores apoiadoras uma da outra” e eram “ardentemente, intensamente leais”, diz Jane.

Ambas passaram um tempo em unidades de saúde mental como pacientes internadas, mas foram separadas, de acordo com o procedimento padrão em torno de irmãos.

Apesar de estarem a 70 milhas (113km) uma da outra, elas estavam determinadas a permanecer em contato.

Mas Chris foi transferida para uma unidade diferente que não permitia nenhuma forma de comunicação, que seus pais dizem que foi “a pior separação”.

Ian e Jane lutaram para que suas filhas fossem diagnosticadas com uma doença mental específica, apesar de mostrarem sinais de um emergente transtorno borderline de personalidade.

Jane diz que parecia que o transtorno era um “diagnóstico de Voldemort” para crianças, comparando-o ao personagem Harry Potter que não pode ser nomeado.

“Como eles não o nomeavam, não podíamos nos educar sobre ele”, diz ela.

“As meninas estavam desesperadas para saber o que havia de errado com elas, elas mesmas o disseram – ‘por que eu me sinto assim, o que há de errado comigo?'”

Os profissionais se recusaram a dar-lhes uma resposta, embora, com o passar do tempo, a resposta se tenha tornado cada vez mais clara [sobre seu diagnóstico].

Ambas as meninas tinham uma paixão por rock pesado e a família foi ao festival Reading em agosto de 2018.

Em 1º de setembro, Sam e seus pais assistiram juntos a um filme e tudo parecia normal.

Mas ela foi encontrada morta por sua mãe no dia seguinte. Ela tinha 16 anos de idade.

A morte de Sam teve um profundo impacto sobre Chris, que viu os paramédicos tentarem ressuscitá-la.

Chris dormiu uma noite na cama de sua irmã, mas nunca mais se sentiu capaz de passar a noite na casa da família. Ela fez 17 anos em novembro; seu primeiro, e único, sem Sam.

Seus pais ficaram “muito gratos” por um nível de flexibilidade após a morte de Sam que normalmente não era oferecido pela unidade de saúde mental próxima, dirigida pelo Cambridgeshire and Peterborough NHS Foundation Trust (CPFT).

Chris se tornou “mais parecido com um paciente-dia”.

Mas, tragicamente, Chris tirou sua própria vida em 26 de janeiro de 2019, quatro meses depois de sua irmã.

Perguntados sobre o impacto que a morte de Sam teve sobre Chris, Ian e Jane disseram quase em uníssono: “isso a matou”.

Jane acrescenta: “A partir daquele momento, ela diria a qualquer um… foi um caso de “quando” e não “se” ela foi se juntar a sua irmã”.

“Nossa vida inteira girava em torno de ‘como podemos tentar fazer valer a pena viver a vida de Chris? Como podemos mantê-la viva para ajudá-la a ver que ela pode ser uma gêmea sobrevivente e fazer uma vida para si mesma”?

“Embora ela ainda tivesse problemas de saúde mental, durante 2018 ela tinha começado realmente a colocar sua vida de volta nos eixos. Se Sam não tivesse morrido, ela estaria agora na universidade fazendo algo fantástico, e não temos nenhuma dúvida sobre isso”.

No inquérito de Chris no mês passado, os profissionais aceitaram que havia “inconsistências” em seu diagnóstico, que o médico legista achou “confusas” para Chris.

Ambos os pais planejam se concentrar na conscientização dos problemas que suas filhas enfrentaram, à medida que se reconciliam com suas mortes. Jane diz que quer que aqueles com influência vejam sua história e “compreendam o quanto a sociedade falha com a saúde mental das pessoas, particularmente dos jovens”.

Se você está se sentindo emocionalmente angustiado, ajuda e apoio estão disponíveis através da BBC Action Line.

Leia a matéria na íntegra → 

Reforma Psiquiátrica: diagnóstico psiquiátrico e alternativas (3)

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Este é o quarto de uma sequência de blogs que estou escrevendo para analisar alguns aspectos da reforma psiquiátrica que considero como sendo críticos. Venho apresentando a proposta construída pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia.

 

O que vimos até agora:

  • A dependência da assistência em saúde mental aos critérios de diagnóstico do DSM / CID. Suas consequências.
  • Uma compreensão dos princípios básicos do PTMF e como eles diferem daqueles do modelo biomédico.
  • Um entendimento do que a abordagem do PTMF quer dizer: poder, ameaças, significado e respostas às ameaças. 

Por que nós necessitamos de identificar padrões gerais no sofrimento psíquico?

Como você leitor provavelmente se deu conta, o PTMF se baseia em uma ampla gama de ideias, abordagens e críticas com as quais você se sente já familiarizado. Muitas das terapias existentes e estratégias de autoajuda são muito consistentes com os princípios do PTMF. Por exemplo, o Diálogo-Aberto, a Rede dos Ouvidores de Vozes, a terapia de narrativa e outras abordagens que já não seguem a perspectiva do diagnóstico. O PTMF pode ser visto como uma estrutura muito ampla que acomoda e suporta uma gama de modelos específicos.  Ele também pode ser usado para identificar lacunas nessas abordagens, que com muita frequência surgem por ser dada a devida atenção para a operação do poder e dos significados ideológicos a ele associados.

Será que necessitamos de identificar padrões gerais? Não estaríamos uma vez mais reproduzindo a lógica de classificar formas de pensar, sentir e agir em termos do que é patológico versus o normal? Assim sendo, ao propor substituir o modelo de diagnóstico psiquiátrico por um outro supostamente alternativo, não estaríamos trocando seis por meia dúzia?  E verdade que o PTMF é uma estrutura global para identificar padrões de sofrimento emocional, experiências incomuns e comportamento perturbador. Contudo, suas pretensões teóricas e éticas é que possa funcionar como uma alternativa de fato ao diagnóstico e classificação psiquiátrica do que é normal e do que é patológico.

O Padrão Fundamental

É considerado como sendo o “padrão fundamental” porque sustenta todos os outros, não importa se aplicado a um indivíduo, família, grupo ou ao nível populacional.

  • Todas as formas de adversidade são mais comuns em contextos de desigualdade e outras formas de privação, discriminação, marginalização e injustiça social.
  • Discursos sociais e significados ideológicos dão forma a experiência e expressão do sofrimento.
  • As relações de apego interrompidas muito cedo são uma forma de adversidade em si próprias, e preparam o cenário para respostas emocionais mediadas biologicamente às adversidades subsequentes.
  • Uma grande parte do impacto da adversidade pode ser explicada por fatores que exacerbam a experiência de ameaça. Isso inclui quanto mais precoce for a idade de desenvolvimento; sentir-se preso em uma armadilha; ameaça interpessoal e intencional; imprevisibilidade e falta de controle sobre a ameaça; ameaças repetidas e múltiplas; invasão física; ameaça crônica de fundo; e falta de alguém em quem confiar e agir como protetor.

Esse diagrama nos ajuda a ter uma visão global da abordagem do PTMF.

O “padrão fundamental” é assim definido: “Desigualdades econômicas/sociais e significados ideológicos que dão suporte à operação negativa do poder resultam em níveis mais elevados de insegurança, falta de coesão, medo, desconfiança, violência e conflito, preconceito, discriminação, e adversidades sociais e relacionais em todas as sociedades. Isso tem implicações para todo o mundo, e particularmente para aqueles com identidades marginalizadas. Limita a capacidade dos cuidadores para fornecer às crianças relações seguras durante a sua infância, que por si só é perturbador para o desenvolvimento da criança, como também compromete a sua capacidade para manejar o impacto de adversidades futuras. Adversidades são correlacionadas, de tal modo que a sua ocorrência em um momento do passado da pessoa e/ou no presente, o que cria a possibilidade dela experimentar outras adversidades subsequentes. Aspectos tais como dano intencional, traição, impotência, aprisionamento e imprevisibilidade aumentam o impacto dessas adversidades, e isso não é apenas cumulativo, mas sinérgico. Com o passar do tempo, a operação da interação complexa de adversidades resulta em uma probabilidade muito maior de experimentar sofrimento emocional e comportamentos perturbados ou perturbadores. A forma dessas expressões de sofrimento é moldada pelos recursos disponíveis, pelos discursos sociais, pelas capacidades corporais e ambiente cultural, e a sua função central é promover segurança emocional, física e social e sobrevivência. Na medida em que as adversidades se acumulam, o número e a gravidade dessas respostas crescem em conjunto, junto com outros indesejados resultados de saúde, comportamental e social. Na ausência de fatores ou intervenções atenuantes, o ciclo é então criado para continuar nas novas gerações.” (Johnstone & Boyle, 2018, p. 195).

Padrões Gerais e suas características

Já vimos como os padrões em medicina estão baseados em descrições das várias maneiras nas quais as coisas podem ir mal com os nossos corpos. Mas quando se fala em pensamentos, sentimentos e comportamentos humanos, nós necessitamos fazer uma grande mudança em direção a tipos de padrões muito diferentes, que são primariamente moldados pelas complexas interações baseadas no significado com os nossos meios ambientes físicos, sociais e culturais. Nossos corpos estão inevitavelmente envolvidos em algum nível. Mas como bem dizem as autoras, reconhecer as reações corporais frente às adversidades não é o mesmo que tentar entender o sofrimento psíquico em termos de padrões na biologia.

Os padrões do PTMF podem ser descritos como respostas à operação negativa do poder, incorporadas e baseadas em significados.

As características dos padrões gerais:

  • Os padrões não estão baseados em relações de causa-efeito entre o que acontece com as pessoas e se, ou como, elas podem experimentar o sofrimento. Isso ocorre pelo fato que tudo é moldado pelos significados que nós criamos acerca das circunstâncias complexas de nossas vidas e as fontes de poder disponíveis para nós.
  • Como resultado, os padrões são, e serão sempre, soltos e sobrepostos, provisórios e incertos. Não há nenhum “padrão para a psicose” ou para o “transtorno da personalidade”, e tampouco não se espera por um simples encaixe entre uma narrativa pessoal e um padrão específico mais amplo. Isso não é um fracasso dos padrões. É simplesmente como as coisas são no campo do sofrimento emocional humano, e significa que há sempre esperança por mudança.
  • Há regularidades, ou modo comuns de responder às ameaças, que estão enraizadas em nossa biologia, em nossas sociedades e em nossas culturas. Os padrões do PTMF refletem essas regularidades.
  • Os padrões ultrapassam noções “normal” e “anormal” e “mentalmente doente” e “mentalmente sano”. Os padrões se aplicam a todos nós humanos afetados em algumas áreas de nossas vidas pela operação negativa do poder, nós todos experimentamos ameaças, nós todos damos sentido ao que se passa conosco e com os outros, e nós todos usamos respostas às ameaças.
  • Os padrões podem ser usados para apoio à construção ou coconstrução, de narrativas livres da lógica do diagnóstico e histórias a respeito das vidas das pessoas.

O documento descreve padrões do poder negativo e ameaças comuns. Em “blogs” anteriores eu os apresentei de uma forma mais ampla.  Acho que neste “blog” vale a pena eu apresentar com mais detalhes formas de significado e de respostas às ameaças muito comuns entre todos nós.

Formas de significar as situações e experiências frente as ameaças do poder (“Que significado você dá a essas situações e experiências?” “Que sentido você dá a isso?”)

Inseguro, assustado, atacado Encurralado
Abandonado, rejeitado Derrotado
Indefeso, impotente Fracassado, inferior
Desesperançado Culpado, condenável, responsável
Invadido Traído
Controlado Envergonhado, humilhado
Emocionalmente oprimido Senso de injustiça
Emocionalmente “vazio” Perda de sentido
Isolado, solitário Contaminado, mal
Excluído, alienado Pária, perigoso
Ruim, sem valor Diferente/anormal

 

Respostas às ameaças (“Que tipos de Respostas às Ameaças você tem usado?”, “O que você fez para sobreviver?”)

Tipos de respostas comuns entre nós:

Preparar-se para “lutar” ou atacar; preparar-se para “fuga”, escapar, buscar segurança; resposta de “congelamento”; hipervigilância, respostas de surpresa, insônia; pânico, fobias; codificação de memória fragmentada; supressão de memória (amnésia; ouvir vozes; dissociação (perdendo a noção e tempo/lugar; vários graus de divisão de consciência); despersonalização, desrealização; flashbacks; pesadelos; entorpecimento emocional, achatamento, indiferença; entorpecimento corporal; pensamentos persecutórios; regressão emocional, afastamento; sustentar crenças incomuns; problemas de atenção/concentração; auto-imagem e sentido de si confusa/imagem instável; discurso e comunicação confusos e confundidos; auto-agressão de vários tipos; auto-negligência; dieta, fome infringida a si próprio; gula, comer demais; auto-silenciamento; autocondenação e autopunição; ódiio ao corpo; pensamentos compulsivos; realização de rituais e outros “comportamentos de segurança”; coletar, acumular; evitação / uso compulsivo da sexualidade; impulsividade; raiva, fúria; agressão e violência; pensamentos e ações suicidas; desconfiança dos outros; empatia reduzida; uso de drogas, álcool e fumo; sensações somáticas – tensão, vertigem, dor física, zumbido; sensações de calor ou frio, exaustão, irritação da pele, problemas gastrointestinais e muitas outras reações corporais; defesas emocionais: grandiosidade, negação, externalização, projeção, idealização; intelectualização (evitação de sentimentos e sensações corporais); estratégias relacionais; rejeição e manutenção de distanciamento emocional; etc., etc.

Exemplos de respostas às ameaças mais comuns nas crianças e nos jovens:

Problemas com o comer / dormir Bater, morder
Concentração pobre, distrair-se Medo extremo de separação
Impulsividade Fobias
Fazer xixi na cama Crueldade com animais
Tiques nervosos, ficar se coçando Retirada emocional, regressão
Roubo Evasão
Atraso na fala e no desenvolvimento Relações ruins com seus colegas
Intimidar os outros Comportamento sexualizado
Fugir de casa

 

No próximo “blog” quero concluir essa apresentação do PTMF. Irei transcrever alguns casos trabalhados com a abordagem do PTMF.

Para concluir este “blog”, reitero a sugestão que você procure acessar as referências originais, porque o que estou fazendo aqui é simplesmente buscar despertar o seu interesse para conhecer o conteúdo do PTMF.

Sintomas infantis diante do divórcio: medicalização e judicialização das relações familiares

Unhappy little kids sister and brother covering ears, suffering from noisy parents argument, angry mother and father shouting and quarreling on background, family conflict, children and divorce

Os sintomas infantis comportam características que mobilizam articulações entre os saberes da medicina, da psicanálise e do direito. Eles se apresentam como dispositivos primordiais para uma compreensão ampliada das questões que atravessam a infância na contemporaneidade, como a medicalização e judicialização das relações familiares.

De acordo com Foucault (1963), ao estudar a tradição da clínica médica, entende-se por sintoma a forma como a doença se manifesta. Os sintomas representam uma verdade sobre a patologia que se encontra exposta ao olhar clínico sensível à diferença, em relação a um estado que se define como sendo a saúde. Por ser a transcrição primeira da doença, os sintomas deixam transparecer uma figura invariável, visível e/ou invisível da patologia. Zafirian (1986) acrescenta que para se produzir um diagnóstico em medicina, no quadro da atividade médica, há sinais funcionais, físicos, biológicos, entre outros, que referidos ou não a uma etiologia conhecida permitem classificar o doente em uma categoria. Todavia, no âmbito psiquiátrico, no que tange ao sofrimento psíquico, torna-se mais complexo seguir o procedimento médico, posto não haver um sinal objetivo nem um sintoma patognomônico determinante da patologia mental. Esta se inscreve como um distúrbio de comportamento em relação a uma norma estabelecida, entretanto, a formulação da própria norma varia conforme o meio, a cultura e o período sócio-histórico.

Foucault (1963) pontua que a psicanálise tanto deriva como rompe com a clínica médica, sobretudo no que se refere à noção de sintoma. Diferentemente do sintoma médico, o sintoma psicanalítico adquiriu o estatuto de porta-voz da verdade do sujeito. Nesse sentido, o sintoma não representa a verdade da doença, porém, não deixa de se referir a uma verdade: a verdade do sujeito do inconsciente.

Ansermet (2003) explica que se para o médico o que se manifesta sinaliza algo estabelecido em seu saber, para o analista, em contrapartida, o sintoma possui caráter enigmático e sujeito à decifração.

Especificamente em relação aos sintomas infantis, Dolto (2013) aponta para a articulação estrutural entre o sintoma da criança, o discurso, a fantasia e o desejo dos pais. Para a autora, a criança expressa através dos seus sintomas as consequências de um conflito vivo em seus pais. A criança suporta inconscientemente o peso das tensões e interferências da dinâmica emocional em ação nos pais, cujo efeito de contaminação mórbida é tão intenso quanto mais se guarda ao seu redor o silêncio e o segredo.

Pedir a uma criança para estruturar-se sobre algo que não é dito, que foi silenciado a ela, significa exigir a negação de uma parte de si mesma. Assim, pensamos que a angústia infantil se presentifica enquanto sintoma, principalmente quando a criança e os pais não conseguem traduzir o seu sofrimento em palavras.

A situação de angústia se caracteriza pela impossibilidade de utilizar a palavra como mediadora. Desse modo, o excesso de angústia transborda e pode produzir crises e sintomas nas crianças. O processo de colocar o sofrimento em palavras mediante uma escuta analítica viabiliza que a supertensão promovida pela angústia possa ser dissipada. Assim, compreendemos os sintomas como uma linguagem inconsciente associada ao corpo e ao esquema corporal. Para Dolto (2017): “Estes sintomas que endividam a liberdade de viver são também meios de expressar o sofrimento de um ser humano atingido em seu narcisismo (p.310)”.

Nos casos de divórcio, por haver diversas nuances no processo e por exigir dos cônjuges um árduo trabalho psíquico, consideramos o divórcio litigioso como um processo potencialmente traumático que remonta às identificações primordiais, estando assim suscetível à transmissão psíquica transgeracional. Com efeito, observa-se que os traumas são terrenos férteis para a transmissão psíquica transgeracional, pois ficam fora da possibilidade de processamento psíquico, de simbolização e da linguagem. Os restos traumáticos podem ser repetidos ao longo de sucessivas gerações sob a forma de sintoma.

No litígio conjugal os pais estão preocupados em vencer a disputa judicial e não se importam com as “armas” que serão utilizadas no embate. No fogo cruzado encontra-se a criança, cuja constituição psíquica depende dos seus modelos identificatórios.

Quando um casal, antes ligado pelos laços do amor, passa a brigar movido por vingança, ódio ou pelos bens adquiridos, a criança não é incluída neste conflito sem consequências. A associação entre conflitos conjugais e angústia nos filhos é enunciada quer seja por meio de atos e sintomas, quer seja por meio dos próprios discursos dos pais. As investigações sobre o imbricamento entre o sintoma infantil e o conflito parental demandam um minucioso aprofundamento clínico-teórico, tendo em vista que por vezes a criança pode se identificar com o próprio conflito e relacionar a sua importância na vida dos seus pais com a intensidade do conflito. A presença dos pais adquire um papel central no tratamento infantil, de suma importância, tendo em vista o enlace fantasístico, fantasmático, discursivo comum que une os pais e a criança sintomaticamente. Contudo, a pluralidade de fatores presentes no sintoma infantil vem sendo solapada em benefício de uma leitura estreita, localizacionista e patologizante do sofrimento e da angústia infantil, cuja tônica é posta no funcionamento cerebral da criança.

A partir do DSM-5, foram categorizadas em termos descritivos situações como o abuso infantil, a criança afetada pela relação dos pais e sofrimento pela ruptura conjugal, entre outros acontecimentos que sugerem a fusão dos discursos médico e jurídico. A inclusão destes novos itens parece abrir espaço para a inclusão da Síndrome da Alienação Parental (SAP) em manuais diagnósticos psiquiátricos. Esta síndrome foi descrita inicialmente pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner na década de 1980 para designar casos de um distúrbio infantil que acometeria, especialmente, menores de idade envolvidos em situações de disputa de guarda entre os pais. Na visão do autor, esta síndrome se desenvolve a partir de programação ou lavagem cerebral realizada por um dos genitores para que o filho rejeite o outro responsável (Gardner, 2001).

Desde os escritos de Gardner havia a expectativa de que a denominada SAP fosse incluída no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-V, pela Associação Americana de Psiquiatria. E, atualmente, observamos a presença de duas categorias diagnósticas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a saber: V 61.03 (Z 63.5) Ruptura da Família por Separação ou Divórcio e V 61.29 (Z 62.898) Criança Afetada por Sofrimento na Relação dos Pais. Entretanto, vale mencionar que diversas categorias diagnósticas listadas no referido manual têm contribuído para o incremento de pesquisas com vistas a que se disponibilizem novos medicamentos no mercado, medicalizando massivamente as crianças e judicializando cada vez mais as relações familiares. A despeito das polêmicas e controvérsias que atravessam este assunto, a proposta de Gardner difundiu-se rapidamente no Brasil e em outros países, levando
alguns a pensar que a suposta síndrome havia se tornado uma epidemia em todo o
mundo.

Nesse fluxo, houve intensa mobilização da opinião pública e, a comoção gerada em torno do sofrimento de crianças que supostamente seriam vítimas da SAP culminou na elaboração da Lei nº. 12.318/10. Esta lei teria como objetivo identificar e punir os genitores tidos como responsáveis pela alienação parental dos filhos. Todavia, apesar do esforço e da empenhada atuação multidisciplinar no judiciário, principalmente do poder geral de cautela do juiz no propósito de suprimir a alienação, é comum no final do processo não se conseguir provar a alienação parental (Sousa & Brito, 2011) nem as situações de abuso descritas no manual.

Próchno, Paravidini e Cunha (2011), ao analisarem criticamente a SAP, relativizam o protagonismo feminino do papel de alienador. Segundo a pesquisa destes autores, a mulher não necessita mais do marido para garantir a sua sobrevivência, portanto, ela pode tomar iniciativas em separações conjugais, sem com isso carregar consigo qualquer sentimento de culpa ou vingança. O que antes era exceção, hoje é um fato corriqueiro. Divórcios e separações conjugais fazem parte da realidade conjugal. Nüske e Grigorieff (2015) acrescentam que quando existem filhos, o final da conjugalidade não representa o fim da família, mas sim a sua transformação de família nuclear em binuclear. Sob este prisma, o divórcio não enseja um distanciamento paterno ou materno-filial, visto que a separação não se resume à família parental.

Presenciamos a crescente judicialização das relações familiares associada ao adoecimento dos laços filiativos e afiliativos. Parece que o excesso de demandas judiciais em busca de resoluções para as questões familiares não tem como contraponto dispositivos que possibilitem a composição e a elaboração destas questões. Se por um lado, o sistema judiciário não consegue fazer frente a tudo que lhe chega, seja na quantidade de casos, seja na complexidade dos assuntos, por outro, as medidas judiciais não se mostram eficientes (e suficientes).

A transposição das desavenças conjugais para o judiciário requer a
participação efetiva da psicologia no trabalho com as famílias que chegam à Justiça
como forma de auxiliar o restabelecimento da saúde psíquica individual e familiar.
A participação da psicologia não se resume a confecção de laudos, relatórios e
pareceres. O caráter avaliativo não se sobrepõe à necessidade de ações coletivas e
individuais para o reestabelecimento da saúde mental dos indivíduos envolvidos no
litígio.

O trabalho integrado e interdisciplinar voltado para a saúde mental e para os aspectos psicopatológicos presentes no divórcio pode contribuir sobremaneira para aliviar o judiciário do excessivo número de processos e demandas judiciais, reduzir a judicialização das relações e apresentar soluções estruturadas e eficazes para a resolução efetiva do litígio.

Eletrochoque, vozes, paralisia: histórias de presos políticos em manicômios

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Publicado em UOL. O portal acaba de tornar público um documento inédito que mostra 24 casos de presos políticos que foram internados pela ditadura militar em instituições psiquiátricas. Esse número provavelmente é maior do que o identificado pela reportagem. A reportagem conta a história de alguns desses presos políticos.

Dos 24 casos, pelo menos 22 foram submetidos a tortura em prisões comuns, antes de serem internados. É o caso de Paulo Benchimol, que passou a ouvir vozes parecidas “com [a voz de] um daqueles agentes que me interrogaram” e que diziam “que estava de volta para as mãos do diabo”. Já S.R. perdeu a memória depois de dez dias de choques elétricos. Nas instituições onde foram internados, alguns presos políticos continuaram a sofrer maus-tratos. Em Pernambuco, J.S. ficou “dois anos com dificuldades na fala e locomoção” devido à alta dosagem de medicamentos psiquiátricos que recebeu. No Rio, Solange Gomes foi tratada com eletrochoque e convulsoterapia (indução de convulsões)”.

A LUTA ANTIMANICOMIAL: ontem, hoje e sempre!!!

Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/06/14/historias-presos-politicos-manicomios.htm?cmpid=copiaecola

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