Britney Fala: Estamos Prontos para Ouvir?

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“Eu só quero minha vida de volta…a curatela deve acabar. Eu não deveria estar em uma curadoria se eu posso trabalhar e prover dinheiro e trabalhar para mim mesma e ainda pagar outras pessoas – não faz sentido…. basicamente, esta curadoria está me fazendo muito mais mal do que bem”.

—Britney Spears, June 23, 2021

Nos últimos 13 anos, o público e a imprensa têm se perguntado como Britney Spears realmente se sente ao viver sob uma tutela, um arranjo legal no qual um terceiro nomeado cuida das necessidades de uma pessoa incapacitada e toma decisões em nome dela. Agora nós sabemos. Ela se sente “traumatizada”.

Spears, que fará 40 anos em dezembro, está sob a curatela desde 2008, quando as dificuldades de saúde mental relatadas pelos fotógrafos de imprensa levaram seu pai, Jamie Spears, a solicitar uma supervisão temporária e depois permanente, jurídica em relação ao seu dinheiro e à sua vida pessoal. No dia 23 de junho, em uma audição online, transmitida pela grande mídia, a estrela pop pediu à juíza Brenda Penny, em termos inequívocos, que terminasse o acordo.

Seu testemunho apaixonado foi repleto de descrições de abuso emocional e físico e exploração financeira por seu pai e outros nomeados para supervisionar sua vida e bem-estar. Caso seja verdade, a situação descrita por ela tem sido tão ruim ou pior do que qualquer “teoria da conspiração” apresentada por ativistas da #FreeBritney:

Ser forçada a se apresentar, às vezes sete dias por semana sem intervalo, mesmo com uma temperatura de 102 graus. Tratamentos psiquiátricos forçados, incluindo drogar com doses vertiginosas de lítio e monitoramento constante. Forçada a usar anticoncepcionais e recusado o direito de se casar e ter um bebê – ou mesmo viajar no carro de seu namorado. Isolamento, ameaças e retaliação se ela não cumprir com as exigências. Avisos para ficar calada sobre suas desconfianças. Ausência de informação sobre seu direito de acabar com a curatela. E, a despeito dos insultos e ofensas, ser forçada a pagar os salários daqueles que ela alega estarem lhe prejudicando. Comparando suas circunstâncias com o tráfico sexual, Britney disse ao juiz que desejava processar seus tutores e ser autorizada a contar aos repórteres “o que eles fizeram comigo”.

Não Tão Pouco Comum

A transcrição de seu testemunho serve para justificar as preocupações dos fãs e dos defensores dos direitos das pessoas com deficiências. Ela também destaca não apenas as questões que tornam as tutelas em geral problemáticas, mas também o desrespeito e a desumanização enfrentados por pessoas que, como Britney, foram rotuladas mentalmente doentes e colocadas no sistema de saúde mental contra sua vontade.

Praticamente por definição, tutelas como a que a Spears está sob a guarda podem ser infantilizantes, removendo os direitos civis comuns e substituindo as escolhas dos tutores pelas da pessoa tutelada.  De acordo com Spears, ela é constantemente orientada para o que fazer e se sente “como se eu trabalhasse para as pessoas a quem pago”. Embora sua curadoria deva protegê-la, ela disse que qualquer ação não aprovada é punida com a remoção de privilégios, como ver seus filhos ou tirar férias.

Spears também afirma que foi forçada a passar por quatro meses de “reabilitação” depois de discordar com os curadores sobre uma rotina coreográfica, submetida a 10 horas por dia de reuniões terapêuticas não opcionais com médicos não familiarizados, e nunca foi deixada sozinha nem mesmo para se vestir. O “tratamento” envolvia drogar-se forçadamente com lítio, o que, segundo ela, a deixou praticamente incapaz de funcionar. E ela foi obrigada a comparecer à terapia três vezes por semana em um prédio público, onde “paparazzi da escória” fotografam suas sessões de saída em lágrimas. Este tipo de tratamento de saúde mental involuntário tem sido documentado em inúmeras histórias pessoais no Mad e em outros lugares.

Assim como a falta de credibilidade; as queixas dos pacientes de saúde mental sobre efeitos colaterais de drogas ou abuso psiquiátrico muitas vezes não são acreditadas.  Como disse Britney ao juiz: “A última vez que falei com você, simplesmente mantendo a curadoria, e também mantendo meu pai no circuito, me fez sentir como se eu estivesse morta, como se nada tivesse sido feito comigo, como se você pensasse que eu estivesse mentindo ou algo assim”.

Assim como a falta de credibilidade; as queixas dos pacientes de saúde mental sobre efeitos colaterais de drogas ou abuso psiquiátrico muitas vezes não são acreditadas.  Como disse Britney ao juiz: “A última vez que falei com você, simplesmente mantendo a conservadoria, e também mantendo meu pai informado, me fez sentir como se eu estivesse morta, como se nada me tivesse acontecida, como se você pensasse que eu estivesse mentindo ou algo assim”.

De recusar a falar com a imprensa ou contar aos fãs seus pesares, ela explicou: “É vergonhoso e desmoralizante o que eu passei. E essa é a principal razão pela qual nunca o disse abertamente… porque honestamente não acho que ninguém acreditaria em mim”.

Talvez o mais perturbador foi sua alegação de que os curadores não deixarão os médicos removerem seu DIU para que ela possa tentar engravidar de seu companheiro que há muito tempo está com ela. Alguns comentaristas compararam este tipo de controle médico à esterilização forçada, historicamente praticada em pessoas consideradas “inaptas” ou loucas e codificada no notório caso Buck v. Bell envolvendo uma mulher institucionalizada chamada Carrie Buck.  Considerada “fraca de espírito” e “promíscua”, Buck foi esterilizada depois que a Suprema Corte decidiu que o “bem-estar público” substituiu seus direitos individuais.

Escrutínio da mídia 

Como com as revelações do documentário de fevereiro “Framing Britney Spears”, a reação da imprensa ao seu discurso foi rápida e chocante, com as mídias apresentando líderes de audiência e comentaristas, desde a apresentadora do talk show conservador Megan McCain para a colunista jurídica liberal do The Nation agora convocando para #FreeBritney. Tanto os principais veículos de comunicação quanto os políticos chamaram a atenção para as ligações entre o caso de Spears e as questões relevantes das pessoas com problemas de saúde mental e direitos reprodutivos.

A âncora da MSNBC Joy Reid em seu segmento “The Absolute Worst” relatou que “o caso da Britney Spears de suposto abuso de curadoria pode acontecer com qualquer um”, e apontando que os tutores controlam pelo menos US$ 50 bilhões em ativos. Reid citou violações como colocar um DNR [‘Do Not Ressucitate’, um atestado médico para a morte natural] em um homem idoso que não queria morrer, e resumiu, “o caso de Britney está recebendo o reconhecimento que merece, e talvez isso desencadeará mudanças em um sistema tóxico muito necessitado de reforma”. Liberte Britney”!

A alegação de Britney de que ela é forçada a usar contraceptivos foi alvo de críticas particulares. Por exemplo, uma história do New York Times sobre o caso citado pela advogada e defensora dos direitos reprodutivos Ruth Dawson, que explicou que qualquer que seja a lógica dos curadores, “forçar alguém a estar em anticoncepção contra sua vontade é uma violação dos direitos humanos básicos e da autonomia corporal, da mesma forma que forçar alguém a engravidar ou permanecer grávida contra sua vontade o seria”. Um estudioso de direito da saúde disse ao Times: “É indizível”.

Uma coisa em que a mídia ainda não refletiu é seu próprio fracasso: Spears disse que sua família mentiu sobre ela para a imprensa, inclusive sobre o que ela descreveu como uma estadia de meses em uma instituição psiquiátrica e que – a despeito do que foi noticiado – ela não tinha parado de tomar sua medicação regular mesmo que não fosse isso o que ela queria. Ela também admitiu que as postagens em sua conta Instagram, onde ela afirmou estar feliz, refletiam a “negação” – um esforço para “fingir que estava tudo bem”. Por que os veículos de comunicação foram tão rápidos em acreditar no controle do que se passava? E se, como relatou o New York Times, os registros mostram que ela tem tentado acabar com a curadoria há anos, por que essa informação só vem à tona agora?

Qual é o próximo passo?

Seria de se pensar que, após ouvir as alegações de Spears e o desejo de processar sua família e sua equipe de curadoria, o juiz pediria uma investigação. Mas, no dito à imprensa, nada mais aconteceu. Para que Britney possa desfazer a curadoria, seu próximo passo é arquivar a documentação oficial solicitando este procedimento. (Ela tem pedido a seu advogado que o faça há algum tempo). Neste meio tempo, o juiz pode considerar suas exigências de mudanças, incluindo permitir que a estrela escolha seu próprio advogado e terapeuta.

Mesmo se Britney arquivar, sua independência está longe de estar assegurada, segundo os advogados citados em entrevistas à imprensa sobre o assunto.

Para ser removida da tutela, uma autoridade psiquiátrica “teria que declarar fatos mostrando que a curadoria não é mais necessária ou que os fundamentos para estabelecer a curadoria não existem mais”, disse o advogado de direito de família Alexander Ripps à BBC. Mas mostrar que alguém é capaz de administrar sua vida não é fácil de documentar quando o controle sobre essa vida é removido. Outro advogado, Christopher Melcher, perguntou: “Ela pode trazer conhecidos que tenham visto suas atividades diárias, que possam atestar que não houve comportamento errático? Ou será que ela tem estado tão isolada que não tem nenhuma dessas testemunhas favoráveis?”.

Este aparente beco sem saída [‘Catch-22’] é complicado pelo fato de Britney ter afirmado inúmeras vezes que não está disposta a se submeter às avaliações normalmente exigidas para encerrar uma curadoria. Como ela disse, “Eu não sinto que eu deva sequer estar em uma sala com alguém que me ofenda tentando questionar minha capacidade ou inteligência, se eu preciso ou não estar nesta estúpida curadoria”. Já fiz mais do que o suficiente”.

Além disso, se – como é provável – os tutores dela contestarem seu pedido, isso pode levar a litígios prolongados. Sarah J. Wentz, uma advogada especializada em curatela, disse à Variety “Os julgamentos podem levar anos…. Eu imagino que este seria um caso com muitos depoimentos, então você está se referindo a um julgamento completo”.

E se uma batalha judicial se seguir, sua família e outros guardiões podem ter a vantagem no “disse ele/ela assim ou assado”. Como Spears tem um diagnóstico de doença mental, eles (ou um médico contratado) poderiam argumentar que seu testemunho é um sinal de anosognosia, ou não ter consciência de que se está doente. Eles poderiam descrever suas alegações de abuso como delírios paranóicos. E poderiam retratar sua raiva, e admitir que ela chora todos os dias, como sinais de que ela pode estar correndo o risco de prejudicar a si mesma ou a outros, critérios freqüentemente usados para continuar o tratamento psiquiátrico involuntário.

Quanto à contracepção forçada, provavelmente é ilegal. De acordo com o Times, é raro em uma curadoria e apesar da “história sombria dos Estados Unidos… as decisões e legislações mais recentes sugerem que isso violaria um direito básico”.

Por outro lado, de acordo com Wentz, Britney pode de fato processar seus curadores em virtude da violação do dever fiduciário: “Se certas declarações que ela fez provaram que eles fizeram coisas no próprio interesse deles para encher seus bolsos contra o dela, esse é um caso mais fácil de provar do que algumas das questões mais delicadas, que são realmente difíceis de processar porque eles dirão que estavam tentando agir no melhor interesse dela”.

Lições maiores

Seja qual for o resultado, uma coisa é certa: Britney está usando sua voz para afirmar sua competência, seus direitos e seus desejos. E, pelo menos por alguns, ela está sendo ouvida. Mas como ela disse ao juiz, muitas pessoas fora das luzes da ribalta estão no mesmo barco: “Podemos sentar aqui o dia todo e dizer: oh, as curadorias estão aqui para ajudar as pessoas. Mas, senhora, há mil curadorias que também são abusivas“.

E isso inclui as tutelas que supervisionam as pessoas deficientes que não podem trabalhar e lutar com as tarefas diárias. Em uma sequência do Twitter sobre a declaração da Spears, o Projeto LETS da rede de apoio aos pares afirmou, em parte:

A saga de Britney Spears ilustra como é vital para os tribunais e a imprensa também dar uma base institucional para as vozes das pessoas com experiência vivida no sistema de saúde mental e seus defensores.

Mostra também a necessidade de revisar um sistema que tanto o governo quanto a mídia descobriram que é minimamente monitorado. Richard Calhoun, co-fundador da Coalizão para os Direitos dos Idosos e Deficientes, um grupo de defesa dos direitos humanos dos que estão sob curatela, disse à Mad in America: “Os tribunais em geral e o Tribunal de Los Angeles em específico proporcionam tão pouca supervisão, um profissional nomeado pelo tribunal pode rotineiramente apresentar notas fiscais com faturamento superior a 24 horas por dia e ninguém ergue uma bandeira vermelha dizendo “espere um minuto, isto nem sequer é possível”. Somente quando o público em geral perceber que pode ser a próxima vítima… é que o abuso

Entretanto, disse sua co-fundadora do CEDAR, Linda Kinkaid, MPH – que descreveu as tutelas como “morte civil” – o caso de Britney está definitivamente movendo a agulha na curatória na Califórnia. A mudança não se dá porque uma pessoa, neste caso Britney, se dirigiu ao tribunal. A mudança é impulsionada pela defesa dos direitos civis e pela cobertura da mídia. Pela primeira vez, a pessoa comum entende”.

Nota do editor: No momento em que foi realizada a matéria, a advogada de Britney Spears ainda não havia arquivado a papelada oficial para encerrar sua curadoria. Mas em 30 de junho, a juíza Penny recusou o pedido de Britney, apresentado no outono de 2020, para remover seu pai Jamie Spears como co-curador de suas finanças. No dia seguinte, o curador financeiro Bessemer Trust, recentemente confirmado como co-curador financeiro, pediu a demissão desse cargo depois de saber que a curadoria de Britney não era voluntária. Enquanto isso, Jamie Spears pediu uma investigação oficial das alegações de sua filha (o que, aparentemente, significaria ter suas próprias ações investigadas). A próxima audiência no caso de Spears é esperada em 14 de julho.

Sobreviventes Psiquiátricos enquanto Terapeutas Falam de Suas Dificuldades

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Young man silhouette balancing on slackline rope between two parallel worlds.

Em um artigo publicado no Journal of Humanistic Psychology, a psicóloga clínica Alexandra Adame entrevistou sobreviventes-terapeutas, sobreviventes da psiquiatria que trabalham como psicoterapeutas e conselheiros para compreender como as suas experiências moldaram as suas abordagens em relação à militância e à psicoterapia no sistema de saúde mental.

Os resultados sugerem que os participantes gerem a sua dupla identidade, encontrando formas de trabalho que honram as suas experiências como sobreviventes da psiquiatria e a sua formação como terapeutas, tudo isto enquanto interrogam as atitudes da nossa sociedade e a tolerância à loucura.

Young man silhouette balancing on slackline rope between two parallel worlds.

No seu cerne, o movimento dos sobreviventes da psiquiatria trata de lutar pelos direitos humanos no sistema de saúde mental liderado por aqueles que sofreram abusos e/ou opressão dentro dele. O movimento é caracterizado por uma postura radical de libertação da psiquiatria.

Muitas alternativas ao sistema de saúde mental geradas por este movimento incluem o apoio de pares como elemento central, tal como em projetos de ajuda mútua. Eles também geralmente evitam hierarquias e distinções na prestação de tratamento de saúde mental, vendo cada pessoa como sendo um expert na sua experiência.

Por esta razão, os terapeutas sobreviventes podem parecer estar em uma contradição. Para aprender mais sobre como entendem a sua dupla identidade no sistema de saúde mental, Adame fez uma investigação qualitativa aprofundada com terapeutas sobreviventes auto-identificados. Embora investigações anteriores tenham sido feitas sobre experiências de terapeutas sobreviventes, este estudo centrou-se nas lutas dos participantes para aprender a ser terapeutas eficazes e na forma como a identidade de sobreviventes informa os conhecimentos clínicos deles.

Os resultados deste estudo complicam as dicotomias nos discursos da militância, que perpetuam a mentalidade “nós contra eles” entre clínicos e pacientes, tanto no sistema de saúde mental como no movimento dos sobreviventes.

A investigação de Adame examina como os profissionais de saúde mental podem integrar a sua experiência de lutas e tratamentos de saúde mental no seu trabalho dentro e fora do sistema de saúde mental. Este estudo é também relevante para terapeutas interessados em promover uma abordagem humanista da sua prática clínica, enquanto eles avançam para uma mudança sistêmica.

Como parte deste projeto, Adame entrevistou cinco participantes que trabalham como profissionais de saúde mental que se auto-identificam como sobreviventes psiquiátricos. O estudo encontrou temas nas experiências dos sobreviventes-terapeutas, tais como inspirar-se no forte sentido de comunidade no movimento mais amplo, ligando-se intencionalmente aos seus clientes de uma forma não medicalizante, humanista e holística enquanto estão se envolvendo em modelos alternativos de cuidados. Este artigo centrou-se no caso de Matthew como um exemplo para proporcionar uma análise mais rica das conclusões do projeto.

Ao responder a perguntas sobre como a sua experiência no sistema de saúde mental os levou a envolverem-se no movimento dos sobreviventes, os participantes descreveram uma mudança. Enquanto inicialmente se sentiam isolados e prejudicados pelo sistema de saúde mental, os participantes construíram e integraram uma dupla identidade como sobreviventes-terapeutas, apesar de não terem modelos para fazer isso de forma eficaz. Por exemplo. Adame escreve:

“A experiência de não poder confiar em si próprio devido à abordagem desinteressada e patologizante dos médicos foi, nas palavras de Matthew, ‘extremamente prejudicial’. Para Matthew e outros na sua posição, eles foram levados a sentirem-se de outra forma quando o pessoal hospitalar e os médicos não quiseram ou não conseguiram relacionar-se com eles (ou pelo menos tentaram fazê-lo) de uma forma compassiva. Em vez disso, Matthew sentiu-se abandonado e ignorado numa época de crise, quando mais precisava de uma ligação humana genuína. A falta de compaixão humana e de empatia genuína no sistema de saúde mental… influenciou subsequentemente a forma como os sobreviventes psiquiátricos escolheram praticar quando mais tarde se tornaram eles próprios profissionais de saúde mental.”

Matthew, tal como outros terapeutas sobreviventes, desejava ser o terapeuta que gostaria de ter encontrado no sistema de saúde mental. Após a sua experiência, começou a trabalhar como terapeuta numa casa de tratamento alternativo. O seu desejo de se tornar terapeuta foi motivado pelo seu próprio interesse na cura bidirecional popular comum nas abordagens de apoio de pares.

“Matthew destaca um ponto-chave de coincidência entre o movimento de sobrevivência e o que os psicólogos humanistas têm escrito há anos – o papel central das relações humanas no processo de cura, e, mais amplamente, para o bem-estar geral na vida”, escreve Adamew. “Na veia de conceptualizações alternativas, Matthew continuou a desafiar a dicotomia socialmente construída entre doença mental e saúde/normalidade, que é uma crítica comum do movimento, mas que se tornou mais complicada quando se tem este ponto de vista sendo terapeuta.”

À medida que Matthew se tornou mais consciente de como a sua história psiquiátrica influenciou a sua prática clínica, viu-se a se identificar em demasiado com os clientes, o que, pensou ele, poderia suprimir a expressão de algumas das experiências dos seus clientes. Aprendeu a controlar-se ao responder aos seus clientes, refletindo sobre o significado e importância clínica da ressonância com as suas experiências.

Apesar da impossibilidade de plena mutualidade na relação terapêutica, Adame postula que os terapeutas sobreviventes podem usar os seus conhecimentos experimentais únicos para se ligarem às lutas dos seus clientes.

Independentemente de quão radicais são enquanto terapeutas, as experiências dos participantes refletem de alguma forma uma luta por fazerem de algum modo “parte da máquina” do sistema de saúde mental. A resposta de Matthew foi envolver-se na militância, participando em cenários alternativos de tratamento, tendo a sua própria prática de grupo fundamentada em valores do movimento dos sobreviventes e trabalhando para uma mudança social mais ampla.

Da sua perspetiva, é importante para o movimento dos sobreviventes evitar transformar todos os profissionais de saúde mental em antagonistas, o que poderia impedir um diálogo mais genuíno com os profissionais de saúde mental.

“Matthew falou em incluir e criar espaço para toda a gama de experiências humanas em nossa sociedade. Algumas pessoas querem ajuda e procuram-na sob a forma de terapia, e clínicos como Matthew estão lá para a fornecer. Mas o ponto a que Matthew chega é que há pessoas que não procuram ajuda, e que há outras que a sociedade determinou que ‘precisam’ de tratamento, que estão doentes e incapazes de fazer outra escolha por si próprias. É uma questão de como nós, como sociedade, abraçamos experiências diferentes, e por vezes perturbadoras, de seres humanos semelhantes.”

Foi perguntado aos participantes o que pensavam que os profissionais de saúde mental poderiam aprender com o movimento dos sobreviventes. Todos eles concordaram em abolir o tratamento psiquiátrico forçado e a grande importância do consentimento informado dos pacientes quando tomam medicamentos psiquiátricos. Além disso, os participantes identificaram a necessidade de opções de tratamento mais amplas para as pessoas em crise, para além da psiquiatria convencional, de modo a diminuir a dependência das pessoas do sistema.

Adame menciona algumas alternativas aos serviços psiquiátricos tradicionais, incluindo o Projeto Icarus, composto por aqueles rotulados com doença bipolar que procuram redefinir radicalmente a loucura. Ela também menciona comunidades alternativas para pessoas que procuram asilo em crises agudas, como a Soteria House ou a Family Care Foundation, um modelo alternativo de cuidados residenciais na Suécia. Outros grupos destacados incluem Open Dialogue, Hearing Voices Network, e MindFreedom.

No entanto, apesar das tensões entre sobreviventes e terapeutas, os participantes também viram espaço para o diálogo e a melhoria do sistema de saúde mental. Isto contrasta com as atitudes de alguns no movimento dos sobreviventes de que o sistema é irreconciliavelmente falho.

Ao apoiar os sobreviventes que trabalham no campo da saúde mental (por exemplo, os investigadores sobreviventes), sugere a criação de um espaço de encontro confidencial e de apoio em conferências anuais de organizações profissionais de psicologia, tais como a Sociedade de Psicologia Humanista, para que as pessoas se empenhem no diálogo entre os diferentes lados do sistema de saúde mental.

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Adame, A. L. (2014). “There needs to be a Place in Society for Madness”: The psychiatric survivor movement and new directions in mental health care. Journal of Humanistic Psychology, 54(4), 456–475. https://doi.org/10.1177/0022167813510207 (Link)

A Perspectiva Neurodesenvolvimentista como Construtora de Identidades Baseadas no Biológico

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A ascensão dos “transtornos do neurodesenvolvimento”, marcada pela publicação do DSM-V, e sua influência no campo da educação é o tema do artigo publicado pela revista de educação Movimento. Os autores, Thais Klein e Rossano Cabral trazem uma bibliografia selecionada com o intuito de expor os riscos da tentativa de associação entre psiquiatria, neurodesenvolvimento e educação, sendo a infância seu alvo principal.

Com a publicação do Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-V) surge um capítulo apresentado pela primeira vez, denominado “Transtornos do Neurodesenvolvimento”. Nele são agrupadas as deficiências intelectuais, o transtorno da comunicação, os transtornos específicos da aprendizagem, os transtornos motores e também o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e os transtornos do espectro autista. Substituindo a seção dos “Transtornos usualmente evidentes pela primeira vez na infância e adolescência.”

A perspectiva neurodesenvolvimentista se apoia na ideia de um desenvolvimento a longo prazo que teria início na infância e se estenderia até a vida adulta. Pretende-se definir critérios de normalidade e patologia a partir do desenvolvimento cerebral, produzindo uma “identidade cerebral”, ou seja, identidades baseadas na neurobiologia. Essa associação da psiquiatria é uma tentativa de trazer maior legitimidade biomédica, mas na prática não se sustenta em marcadores biológicos.

O agrupamento de transtornos como problemas do neurodesenvolvimento pretende construir um olhar longitudinal sore o curso dos transtornos mentais. Categorias antes consideradas como do âmbito da infância são estendidas para os adultos, como é o caso do TDAH. Para os autores, considerar a patologia como variação quantitativa e o normal ser reduzido à média estatística, na verdade esconde uma alteração qualitativa/valorativa.

“Alguns fatores, como o progresso das neurociências, o uso de neuroimagens pela mídia, dentre outros, ajudam a circunscrever esse cenário que coloca o cérebro como detentor das propriedades e autor das ações que definem o sujeito. O termo “sujeito cerebral” aponta para a crença de que o cérebro é a parte do corpo que engloba toda a identidade pessoal.”

As categorias diagnósticas são um campo que produz bioidentidades, isto é, uma construção da identidade baseado na corporeidade biológica, a aproximação entre self e corpo se torna quase absoluta. No contexto do TDAH é possível perceber um sutil deslocamento entre portar o transtorno para ser um TDAH.

Por outro lado, o movimento da neurodiversidade, dentro do campo de estudos sobre deficiência, acreditam que deficiência e doença não são fatos biológicos, mas construções socioculturais que tem como objetivo regulamentar corpos e cérebros. Portanto, as bioidentidades possuem singularidades que devem ser respeitadas e não essencialmente patologizadas, assim como outras diferenças tais como gênero, raça, credo, entre outras.

“O próprio termo transtorno (disorder) vem sendo substituído por condições (do espectro autista), não apenas nos textos dos ativistas da neurodiversidade e suas associações, mas também na própria literatura no campo do cognitivismo.”

Levando em consideração que a indústria farmacêutica tem seus esforços direcionados para a criação de novos mercados consumidores, a infância é seu alvo favorito. Principalmente, levando em consideração que caso um medicamento tenha seu uso aprovado para a infância nos EUA, sua patente pode ser estendida em até seis meses. Igualmente, psicofármacos para crianças são um mercado crescente, principalmente porque estes são os medicamentos mais consumidos pelas crianças e adolescentes norte-americanos.

Atualmente, as escolas estão absorvendo cada vez mais a ideologia do empreendedorismo, bem como o vocabulário da neurociência, o que acaba gerando um impacto inevitável na identidade da criança e do adolescente. Os tipos humanos diagnosticados passam a se enxergar, experimentar e descrever por meio das lentes do diagnóstico, impactando sua autopercepção.

Como conclusão, os autores afirmam que a perspectiva do neurodesenovimento é produtora (e produto) de uma certa maneira de conceber a infância, assim como de práticas de controle ligadas a essa fase do ciclo vital. Mas é importante deixar claro que a promessa neurodesenvolvimentista não se consumou. Há muitos obstáculos na tentativa de descrever com precisão uma etiologia biológica para os transtornos mentais. Dessa forma, a concepção do neurodesenvolvimento acaba produzindo uma compreensão do normal e do patológico que se aproxima de prescrições de cunho moral. É necessário que a escola se insira como agente desse processo, ao invés de receptora passiva.

 

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Klein, T.; Lima, C. R. A Epidemia de Diagnósticos e a Medicalização da Educação: desafios à formação e atuação docentes, Movimento- Revista de Educação, Niterói, ano 7, n. 15, p.106-132, set./dez., 2020. (Link)

Redefinindo a Britney: a Imprensa e o despertar do público para os danos da tutela

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Que diferença é que fazem dois anos.

Na primavera de 2019, os tabloides estavam treinando seu olhar sobre a saúde mental da estrela pop Britney Spears – que havia ressurgido recentemente da reabilitação depois de cancelar seu último show em Las Vegas – e a ascensão de um movimento de fãs #FreeBritney para sua libertação de uma década de “curadoria” da Califórnia. Chamado de tutela em outros Estados, o acordo dá a um terceiro aprovado pelo tribunal o controle sobre os assuntos de uma pessoa incapacitada, tipicamente idosa. No caso de Britney, o curado é seu pai, Jamie, e ele tem controlado quase todos os detalhes de suas finanças, saúde e vida pessoal desde seu “colapso” em 2008.

O espetáculo incomum de restringir um jovem adulto altamente funcional agitou a imprensa para ponderar sobre o assunto, com muitos artigos comentando se havia razão para Spears permanecer sob a curadoria. Como Mad in America encontrou em seu exame da cobertura da mídia sobre sua saúde mental publicado desde o início da curadoria, estes artigos refletiram atitudes convencionais sobre “doença mental” que são estigmatizantes e que encorajam uma legislação que promove o tratamento forçado. Eles também refletiram as opiniões de todos, exceto da própria Britney (as suas postagens lançamentos em sua conta Instagram frequentemente criptografada).

De acordo com essa narrativa, Britney – apesar de mais de uma década de aparente estabilidade e sucesso – precisava estar na curadoria para o seu próprio bem, alegadamente porque ela é muito “louca” e muito vulnerável à exploração para administrar a sua própria vida. Quaisquer argumentos em contrário eram vistos como teorias conspiratórias de fãs bem-intencionados, mas ignorantes.

Mas agora as coisas estão mudando tanto no mundo de Spears quanto na cobertura da mídia sobre seu caso. Estas mudanças trouxeram à tona a questão mais ampla dos direitos das pessoas rotuladas como mentalmente doentes ou deficientes – e levaram a pedidos de reforma.

De volta às luzes da ribalta

Desde o outono passado, Spears, agora com 39 anos, parece estar seguindo um caminho em direção à autonomia. Através de seu advogado nomeado pelo tribunal, Sam Ingham, ela solicitou que os documentos judiciais relacionados ao seu caso fossem abertos (para torná-los mais acessíveis ao público) e disse a um juiz que ela está “com medo de seu pai” e que “não voltará a atuar se [ele] estiver no comando de sua carreira”. A US Weekly, que a havia retratado anteriormente como instável e necessitada de TLC, colocou como manchete um artigo sobre a sua moção legal “Britney Spears está cansada de ser tratada como uma criança” e a descreveu como “lutando por sua liberdade“.

Alguns meses depois, Spears solicitou que seu pai deixasse de administrar suas finanças e fosse substituído por um fiduciário profissional, o Bessemer Trust. Isso não aconteceu; Bessemer e Jamie Spears agora compartilham essa tarefa, mas a mudança fez com que a coluna online THINK da NBC News publicasse um artigo de opinião que abordava a questão maior do abuso da tutela. No artigo, intitulado “Britney Spears’ Conservatorship Can Be Both Totally Legal and Quite Bad for Her. Many Are” [A Curadoria de Britney Spears pode ser totalmente legal e muito ruim para ela]. “Muitos são“, a jornalista Chandra Bozelko argumentou “os custos emocionais de uma curadoria de longo prazo, especialmente para uma pessoa capaz, e que os danos raramente aparecem em avaliações judiciais ou registros públicos“. Bozelko, que esteve sob tutela por uma década, escreveu que “despojar uma pessoa de sua agência não pode deixar de ser abusivo, mesmo quando os fiduciários estão fazendo seu trabalho“.

Mas essa foi a última vez que ouvimos falar sobre o assunto até a primeira semana de fevereiro de 2021, coincidindo com o 13º aniversário da curadoria de Spears. Nessa semana, o documentário Framing Britney Spears  foi lançado no canal FX. Produzido por uma equipe do The New York Times (que tinha relatado anteriormente de forma bastante acrítica sobre sua situação), o filme começa com filmagens dos ativistas #FreeBritney. Alguns minutos depois, a editora sênior do New York Times, Liz Day, faz a pergunta de um milhão de dólares do filme: “Isto é do interesse dela, é o que ela quer?”

O filme mistura fotos de arquivo e filmagens com novas entrevistas com parceiros de longa data, incluindo a sua amiga íntima e ex-assistente, Felicia Culotta. O filme também apresenta ativistas #FreeBritney, repórteres e fotógrafos de imprensa que a cobriram, e especialistas legais com familiaridade com o caso. Conta a rápida ascensão de Britney como uma estrela pop adolescente, o impacto emocional e prático da busca incessante da mídia por notícias e o tratamento muitas vezes hostil e obsceno que lhe foi dado antes de seu famoso colapso.

The film “Framing Britney Spears” featured clips from a 2003 interview with Diane Sawyer on ABC’s “Primetime” in which the host shamed the singer for her sexualized image.
(Left) Sawyer quoted Maryland First Lady Kendall Ehrlich, who issued a near-death threat to the singer. (Above) Spears was visibly upset by the comment.

 

 

 

 

 

 

Ao fazer isso, Framing Britney coloca os comportamentos frequentemente citados como evidência da doença mental de Spears em seu contexto. Rapsar a cabeça e bater no carro de um fotógrafo com um guarda-chuva são mostrados como as reações muito humanas de uma mulher sobrecarregada, pós-parto, sob incessante escrutínio público e assolada por lutas privadas, incluindo uma batalha pela custódia. Como Jude Ellison S. Doyle escreve na revista política e cultural GEN, “Como alguém poderia não sofrer traumas após este tipo de tratamento?” Doyle acrescenta, “Britney Spears não é uma antiga estrela pop feliz que ‘perdeu o controle’, ela é uma mulher que nunca teve controle de sua vida“. De fato, exceto por reportagens sobre as cenas de Britney nas instalações psiquiátricas, o filme não se detém na alegação de que ela sofre de uma condição crônica debilitante, como tem sido tantas vezes afirmado na imprensa.

O documentário também explora as realidades desconfortáveis de viver sob uma curadoria, incluindo um clipe de um documentário da MTV no qual Britney se queixa de como é sufocante ser constantemente contida e monitorada. “Quando eu lhes digo como me sinto, eles realmente não estão me ouvindo“, diz ela. “Eles estão ouvindo o que querem ouvir”. É ruim, e eu estou triste“. O filme também aponta irregularidades na forma como ela foi colocada sob a curadoria primeiramente e se pergunta se ela alguma vez vai sair.

Em uma cena, Adam Streisand, advogado que ela queria contratar para combater a curadoria em 2008, explica que o juiz considerou Britney incompetente, citando um relatório médico que o juiz se recusou a deixá-lo ver. “Senti que com base em minhas interações que ela era capaz de se colocar e me orientar e que o juiz deveria ter permitido isso“, diz Streisand.

Em outra cena, a advogada Vivian Lee Thoreen admite: “É o curador que tem a obrigação de dizer: ‘Eu não preciso mais de ser o curador, e aqui está o porquê’“, acrescentando mais tarde, “Eu não vi um curador que tenha terminado com uma curadoria“.

O filme também descreve os incentivos financeiros e possíveis conflitos de interesses que os curadores de Britney poderiam ter para mantê-la na situaçõ. O filme observa que seu pai recebeu uma porcentagem de seus altos ganhos financeiros em Las Vegas e que ela é obrigada a usar do seu patrimônio para pagar pelos seus próprios advogados e pelos advogados dos curadores – preocupações uma vez retratadas como sendo teorias de conspiração geradas por fãs.

Apesar de Spears não ter participado do filme (os produtores alegaram que trabalharam sem sucesso para alcançá-la), Framing Britney é notável por sua perspectiva empática. O filme encoraja os espectadores a se colocarem no lugar de Spears enquanto assistem à sua ascensão, queda e retorno, assim como à sua contínua contenção. Isto é um desvio do que vimos na cobertura anterior, que tendeu a favorecer as posições de seu pai e de seus manipuladores. A família, o advogado e o círculo interno de Britney se recusaram a ser entrevistados para o filme, embora alguns deles tenham aparecido em filmagens de arquivo.

Uma forte reação

Talvez por sua dor ser tão relatável, o filme rapidamente acendeu um alarme generalizado. As mídias sociais foram inflamadas pelo #FreeBritney, pelos comentários de apoio de advogados, tweets compartilhando trechos de documentos do tribunal e exigindo que figuras da mídia pedissem desculpas a Spears. A União Americana de Liberdades Civis (ACLU) que se ofereceu para representá-la no verão passado, reiterou o seu apoio em um Tweet:

Um tweet da ACLU diz: As curadorias muitas vezes resultam em pessoas com deficiências sendo despojadas de seus direitos civis”. Não importa as lutas que ela teve no passado, Britney Spears merece o direito de dirigir sua própria vida.

Em conjunto, os principais comentaristas culturais e os noticiários discutiram a misoginia retratada no filme: como Hollywood explora e perpetua narrativas perigosas sobre jovens estrelas, como nossa cultura falhou em ouvir e centrar as mulheres em suas próprias histórias, e como punimos aqueles considerados indisciplinados.

E a imprensa continuou a se concentrar nas lutas da estrela sob sua singular curadoria. No final de fevereiro, o pai de Spears entregou uma declaração oficial sobre Framing Britney no on Good Morning America  através da sua agora advogada, Vivian Lee Thoreen. Ele reiterou que a curadoria é para “proteger” sua filha e declarou erroneamente que Britney nunca procurou removê-lo; Thoreen mais tarde alegou erroneamente que Britney pode acabar com isso no momento que quiser. Então, em uma audiência em março, o advogado de Britney apresentou o pedido dela para destituir seu pai como curador de seus assuntos pessoais e ser substituído por Jodi Montgomery, uma fiduciária profissional que tem ocupado temporariamente essa função. Esses documentos do tribunal afirmam, sublinhado e em negrito, que Britney ainda “se reserva o direito de petição para a rescisão desta curadoria“.

Além da Britney

Logo e logo, a cobertura da imprensa gerada pelo filme e a batalha “Jamie vs. Britney” foi além da Britney para outra discussão importante: a questão mais ampla do abuso da tutela. Artigos de opinião e textos explicativos passaram a chamar a atenção para sua natureza excessivamente restritiva e documentaram o seu potencial de abuso. Estas reportagens continuaram por dois meses em revistas respeitadas sobre política e economia, bem como na imprensa de entretenimento.

Por exemplo, a jornalista Sara Luterman, que cobre os direitos das pessoas com deficiência, foi uma das primeiras a abordar “a história mais sombria que está fora das lentes“. Em The New Republic, ela escreveu que “Há uma questão mais ampla e sistêmica em jogo. Spears não é uma anomalia e, na realidade, a curadoria tem poucas salvaguardas e verificações. A pessoa jurídica é regularmente dos seus direitos … e ninguém pisca um olho. A maior diferença é que a Spears é famosa. A novidade da história é que as pessoas estão prestando atenção para a problemática“.

Luterman observa que muitas pessoas tão jovens ou mais jovens que Spears estão sob o controle de tutores, citando um relatório sobre um “o sistema escola-tutoria no qual a tutoria sobre os estudantes com deficiências intelectuais e de desenvolvimento que saem da escola é tratada como uma questão naturalizada“. Como Zoe Brennan-Krohn, uma advogada da equipe do Projeto de Direitos da Deficiência da ACLU lhe disse: “Há este padrão duplo onde, se você for percebido como tendo uma deficiência, suas preferências são subsumidas pelo que está em seu, cito, melhor interesse“.

Vários meios de comunicação publicaram artigos sobre como funcionam as curadorias e por que podem ser problemáticas para qualquer pessoa. Como o artigo de opinião escrito pelos professores de direito Rebekah Diller e Leslie Salzman apresentaram em Business Insider:

“Após exposições revelarem problemas críticos, muitos Estados reformaram suas leis nos anos 90. Hoje, na maioria dos estados, os tribunais devem considerar alternativas menos restritivas e adaptar estritamente qualquer ordem de tutela para preservar a máxima autonomia. No entanto, estas reformas, que são frequentemente ignoradas na prática, não foram suficientemente longe….”.

Elas resumem: “Como a tutela tem sido tradicionalmente justificada como um mecanismo de proteção, o sistema de tutela é manchado por uma cultura de paternalismo. Como resultado, muitos tribunais ainda erram ao conceder pedidos de tutela, mesmo quando alternativas menos restritivas seriam suficientes”.

Da mesma forma, The Economist publicou um artigo intitulado “Por que as Curadorias são controversas?” E responde a essa pergunta desta forma:

“Uma suposta doença mental parece ser a razão da situação da Sra. Spears, mas pouco se sabe publicamente sobre seu diagnóstico ou condição. Uma Curadoria despoja alguém de quase todos os seus direitos – tanto quanto a prisão ou a internação em um asilo – e somente um tribunal pode restituí-los. Isso é raro [itálico acrescentado]”.

O artigo também aponta isso:

“As lacunas jurídicas em nível Estadual, onde o assunto é regulamentado, facilitam a exploração. Por exemplo, alguns Estados permitem que os tribunais nomeiem ‘curadores de emergência’ sem notificar a pessoa em questão ou outros que possam vir em seu auxílio. O curador pode frequentemente vender bens, como uma casa, sem a aprovação extra do tribunal. O monitoramento pela justiça dificulta a captura de como os problemas estão sendo geridos”.

O que não vimos nestas matérias? A ideia de que os problemas da Britney – ou de qualquer pessoa – em saúde mental justificam que a curadoria seja colocada como resposta. Talvez porque ter um diagnóstico não seja a questão. Como Doyle opinou no GEN, “Spears provavelmente tem uma doença mental – ela passou por internações psiquiátricas – mas uma mulher que pode criar dois jovens enquanto mantém um emprego exigente em tempo integral como estrela pop não está incapacitada ao ponto de precisar de um tutor adulto“.

Da conversa à ação

O impulso gerado pela Framing Britney e a cobertura imprensa sobre o impacto das tutelas e curadorias levou a uma discussão sobre alternativas. Ele até mesmo provocou apelos bipartidários para uma ação política de reforma do sistema de tutela na Califórnia e além, que receberam ampla cobertura jornalística. Em uma época em que os democratas e republicanos não parecem concordar em nada, a reforma da tutela parece ser uma exceção.

O ex-governador do Arkansas e candidato presidencial republicano Mike Huckabee lançou esta tendência em um artigo de opinião de 27 de fevereiro na FoxNews online. Ele escreveu: “O enorme alcance da epidemia de abuso na curadoria vai muito além de Spears, mas muitas vezes é ignorado pelos principais veículos de notícias“.

Huckabee citou dezenas de casos de abuso de tutela em toda a América, como o da antiga guardiã nomeada pelo tribunal, Rebecca Fierle, “acusada de abuso de idosos e negligência após a morte de uma idosa aos seus cuidados“. As investigações sobre Fierle também revelaram supostamente conflitos de interesse assombrosos e dupla cobrança entre centenas de casos que ela tratou no estado. Ele concluiu que o tópico “merece uma reforma bipartidária nacional e uma campanha de base para proteger os membros mais vulneráveis de nossa sociedade apanhados por ela“.

Menos de duas semanas depois, os congressistas e membros do Comitê Judiciário da Câmara, Matt Gaetz (R-FL) e Jim Jordan (R-OH), atenderam a chamada de Huckabee. Gaetz emitiu um comunicado à imprensa anunciando que eles haviam enviado uma carta ao Presidente do Comitê Jerrold Nadler, “solicitando que o Comitê Judiciário da Câmara convoque uma audiência para rever e examinar a situação dos americanos presos injustamente em curadorias”. Gaetz declarou: “Se o processo de curadoria pode arrancar a ‘autonomia’ de uma mulher que estava no auge de sua vida e uma das mais poderosas estrelas pop do mundo, imagine o que ela pode fazer às pessoas que são menos poderosas e têm menos voz“. A carta também citou relatórios do Gabinete de Responsabilidade do Governo Federal e do Departamento de Justiça juntamente com comentários de um advogado da ACLU sobre a curadoria como uma questão de direitos de incapacidade.

A mudança gerou manchetes nas principais mídias, incluindo a Vanity Fair e as notícias nas redes sociais, assim como a imprensa de entretenimento.  Mas enquanto o assunto destacava a situação da estrela para se concentrar na questão mais ampla da reforma da tutela, as manchetes tendiam a enfatizar em demasia o ângulo das celebridades. Por exemplo: “Republicanos Matt Gaetz e Jim Jordan tentam libertar Britney Spears” (CBS); “Deputado da Flórida Matt Gaetz se junta à luta para libertar Britney Spears” (afiliado do ABC WPAC); “Gaetz se junta ao movimento ‘#FreeBritney’, chamadas para audiência nos conservatórios” (Fox News). A matéria da Fox News incluiu um segmento de vídeo no qual dois advogados debateram se deveriam acabar com a curadoria de Britney – mas passaram a oportunidade de discutir os prós e contras mais amplos do próprio sistema.

Da mesma forma, alguns meios de comunicação se concentraram principalmente no ângulo “Britney vs. Jamie” desta história, e na reação de seu pai à proposta Gaetz/Jordan. Tais peças, incluindo as da NBC, inclinaram-se a favor da curadoria e mencionaram a questão mais ampla apenas de passagem.

Talvez seja compreensível que a imprensa não tenha levado muito a sério a proposta política dos congressistas. Gaetz e Jordan não são conhecidos por suas credenciais em matéria de justiça social. E as leis de tutela são feitas a nível estadual, em vez de federal (um ponto que não se preocupam em tocar).

E quando surgiram acusações ligando Gaetz ao tráfico sexual, o assunto caiu das manchetes.

Entretanto, os legisladores do estado natal de Spears, na Califórnia, já estavam trabalhando em projetos de lei que, se aprovados, podem levar a verdadeiras reformas da curadoria – todas inspiradas no enquadramento de Britney Spears. Embora as manchetes sobre os projetos de lei, que apareceram no final de março, também tendiam a enfatizar demais o ângulo #FreeBritney, as próprias histórias explicavam como as novas leis propostas poderiam proteger os direitos civis das pessoas em enfermarias de hospitais psiquiátricos e evitar o abuso do sistema.

O projeto de lei 1194, apresentado pelo deputado Evan Low (Distrito D-28), propõe supervisão especial e treinamento para curadores, impõe penalidades para aqueles que não agem no melhor interesse do seu “protegido”, e protege contra conflitos de interesse.

O Projeto de Lei do Senado 602, do Senador Estadual John Laird (Distrito D-17) aumentaria a frequência das revisões sobre os curadores. E o Projeto de Lei 724 do Senado Estadual Democrata Ben Allen – aprovado pelo Comitê Judiciário Estadual em abril e encaminhado para uma audiência completa – permitiria que uma pessoa sujeita à curadoria escolhesse seu próprio advogado, mesmo quando sua capacidade mental estiver em questão.

O artigo do Los Angeles Times até apontou que alguns advogados acham que as leis não vão suficientemente longe, com um deles vendo a necessidade de reforma do tribunal também e outro dizendo que eles estão muito concentrados em pessoas como Spears e precisam olhar para a curadoria de forma mais “holística”.

A cobertura da MSNBC, que abrangeu tanto as audiências propostas pelo Gaetz quanto as novas leis estaduais, apresentou uma entrevista com Kathy Flaherty, Diretora Executiva do Projeto de Direitos Legais de Connecticut, que defende os indivíduos de baixa renda no sistema de saúde mental. Flaherty observou que as pessoas que lutam contra as condições de saúde mental podem recuperar a capacidade de administrar suas vidas. Ela explicou que as curadorias “não são necessariamente para privar alguém de seus direitos por toda a vida” e enumerou alternativas menos onerosas para a tomada de decisões assistidas.

In March on MSNBC’s “American Voices,” host Alicia Menendez interviewed attorney Kathy Flaherty of the Connecticut Legal Rights Project on how conservatorships can deprive disabled people of their rights.

Lições Aprendidas

Claramente, o Framing Britney levou a uma mudança na visão pública de Spears como sendo de alguma forma incapacitada. E forneceu ganchos de notícias para muitas conversas importantes e atrasadas. Ela até mesmo provocou uma ação política sobre tutela e, por extensão, sobre os direitos das pessoas com rótulos de doenças mentais. Mas estas questões não são novas. Vários relatórios governamentais e séries de artigos investigativos sobre problemas com a tutela foram publicados há anos – a Associated Press fez uma exposição já em 1987 – apenas para ser esquecida. Por que só agora estamos começando a levar a sério tanto o caso de Spears quanto o abuso da tutela?

Parte da mudança pode ser cultural. Uma maior consciência e preocupação com a justiça social faz agora parte do ‘zeitgeist’ – encapsulado pelos hashtags da mídia social #MeToo, #BlackLivesMatter, e #CriptheVote – e pode estar dando mais credibilidade aos princípios que animam o movimento #FreeBritney e às questões maiores que ele levanta.

Também, como escreveu P. David Marshall, professor e coordenador de pesquisa em Novas Mídias, Comunicação e Estudos Culturais na Universidade Deakin na Austrália, em The Conversation, “Um novo senso de conexão e responsabilidade para indivíduos famosos está surgindo: onde uma vez nós nos deparamos com as lutas públicas da Britney, Paris Hilton e Lindsay Lohan, agora há uma resposta mais preocupada. O público se tornou apoiador vocal dos vulneráveis, explorando as questões culturais de novas maneiras….Novas normas estão se desenvolvendo“.

Jessica Ford, professora de Cinema, Mídia e Estudos Culturais na Universidade de Newcastle, ecoou esta linha de pensamento em uma entrevista ao Sydney Morning Herald: “Não é mais culturalmente aceitável ridicularizar abertamente alguém por lutas com a sua própria saúde mental“. Ou, pode-se argumentar, assumir que ela precisa de outra pessoa para dirigir sua vida.

No rescaldo do filme, também parece haver uma compreensão de que, quando se trata de tutela, as histórias e as vozes dos sujeitos a ela são importantes. Este lado foi muitas vezes omitido na cobertura passada das lutas de Spears, racionalizada pelo fato de que ela raramente falava publicamente sobre sua curadoria – como se o silêncio implicasse em aquiescência. Agora que ela expressou o desejo, através de seu advogado, de retirar o poder de seu pai sobre sua vida, sua perspectiva está finalmente sendo reconhecida e até mesmo apoiada. E está surgindo um quadro diferente do que quando a mídia se concentrava principalmente na perspectiva daqueles que procuravam controlá-la.

Na semana passada, a BBC lançou seu próprio documentário sobre a curadoria de Britney Spears. De acordo com um recente post no Instagram, a cantora se sente re-traumatizada por tais filmes e se pergunta por que a mídia se concentra em seu passado e não em seu futuro. Mas se os últimos meses são alguma indicação, o futuro de sua curadoria, e o tópico mais amplo da tutela e dos direitos civis daqueles considerados doentes mentais, permanecerá no centro das atenções – e isso oferece a possibilidade de uma mudança real.

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*Nota: Por seu pedido, Britney Spears está agendada para se dirigir diretamente ao tribunal sobre sua curadoria em uma audiência de status em 23 de junho.

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N.E. Esta matéria foi publicada pelo MIA em 09 de maio de 2021. Dada a repercussão midiática, nos últimos dias,do fim da curadoria de Britney Spears, achamos conveniente fazer essa publicação no MIB. Além de dar ao nosso leitor informações mais detalhadas do caso, a nossa ideia é aproveitar a ocasião para chamar a atenção para a situação dos usários dos serviços em saúde mental aqui no Brasil. A nossa realidade não é a mesma da dos EUA, o Brasil é um dos 181 países signatários da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e os EUA não assinaram essa Convenção. Não obstante, os direitos das pessoas em tratamento por problemas de saúde mental no Brasil ainda são amplamente desrespeitados, com a internação involuntária, a falta do Consentimento Informado, o direito das pessoas ao tratamento sem o uso obrigatório de drogas psiquiátricas, o direito a contar com serviços para os que lutam contra a dependência química das drogas psiquiátricas.

OMS e ONU se juntam às chamadas para se transcender o modelo biomédico da psiquiatria

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Acabou de ser publicado em Psychology Today, de autoria de John Read:

Os milhares ao redor do mundo que criticam uma abordagem excessivamente biológica para compreender e ajudar uns aos outros, quando estamos com alguma forma de sofrimento psíquico, são frequentemente descartados como “radicais” ou “extremistas” ou “ideólogos”. Os críticos da abordagem do “modelo médico” dominante, promovido pela psiquiatria biológica e pelas empresas farmacêuticas, são frequentemente rotulados e denegridos como sendo “antipsiquiatria”, quando nos vemos sendo contra uma má ciência e contra tratamentos ineficazes e inseguros.

No entanto, até mesmo alguns psiquiatras proeminentes se pronunciaram contra o papel corruptor das empresas farmacêuticas e o modelo simplista que eles promoveram para vender seus produtos. Em 2005, o Dr. Steven Sharfstein, então Presidente da Associação Psiquiátrica Americana, escreveu: “Se formos vistos como meros empurradores de comprimidos e funcionários da indústria farmacêutica, nossa credibilidade como profissão estará comprometida. Ao abordarmos estas questões das Grandes Farmacêuticas [‘Big Pharma’] devemos examinar o fato de que, como profissão, permitimos que o modelo bio-psico-social se tornasse o modelo bio-bio-bio”.

No mesmo ano, seu colega britânico, o professor Mike Shooter, presidente do Royal College of Psychiatrists, repreendeu seus colegas em termos inequívocos:

“Não posso ser a única pessoa a ficar doente com a exibição de grupos de psiquiatras na recepção do aeroporto com tantos presentes com eles, sendo que eles poderiam muito bem ter o nome da empresa farmacêutica tatuado na testa”.

Mais recentemente a mensagem foi retomada por não menos do que as Nações Unidas, na pessoa de seu “Relator Especial sobre o direito de todos ao gozo do mais alto padrão de saúde atingível” (2014-2000), Dainius Pūras. Em 2019, o Dr. Pūras, um psiquiatra lituano, escreveu:

“As políticas atuais de saúde mental foram afetadas em grande parte pela assimetria de poder e pelos preconceitos devido ao domínio do modelo biomédico e das intervenções biomédicas. Este modelo levou não apenas ao uso excessivo de coerção no caso de deficiências psicossociais, intelectuais e cognitivas, mas também à medicalização de reações normais às muitas pressões da vida, incluindo formas moderadas de ansiedade social, tristeza, timidez, absentismo e comportamento antissocial.

“…Esta mensagem pode promover o uso excessivo de categorias de diagnóstico e expandir o modelo médico para diagnosticar patologias e fornecer modalidades de tratamento individuais que levam a uma medicalização excessiva. A mensagem desvia as políticas e práticas de abraçar duas abordagens modernas poderosas: uma abordagem de saúde pública e uma abordagem baseada nos direitos humanos … A medicalização excessiva é especialmente prejudicial às crianças, e as tendências globais para medicalizar questões psicossociais e de saúde pública complexas na infância devem ser abordadas mais fortemente com uma vontade política”.

Em 10 de junho, a Organização Mundial da Saúde se associou, com um documento de 300 páginas intitulado “Orientação sobre Serviços de Saúde Mental Comunitária: Promovendo Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos”. O documento surgiu de um grupo da ONU liderado pela Dra. Michelle Funk, uma psicóloga que é Diretora da Unidade de Políticas, Lei e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS. [Nota do editor: confira a entrevista da Dra. Michelle Funk, publicada no MIB, para você saber de mais detalhes.] O Documento argumenta:

“O foco predominante dos cuidados em muitos contextos continua a ser o diagnóstico, a medicação e a redução dos sintomas. Determinantes sociais críticos que afetam a saúde mental das pessoas, tais como violência, discriminação, pobreza, exclusão, isolamento, insegurança no emprego ou desemprego, falta de acesso à moradia, redes de segurança social e serviços de saúde, são frequentemente negligenciados ou excluídos dos conceitos e práticas de saúde mental. Isto leva a um diagnóstico exagerado do sofrimento humano e a uma dependência excessiva de drogas psicotrópicas, em detrimento de intervenções psicossociais.

“É necessária uma mudança fundamental dentro do campo da saúde mental, a fim de pôr fim a esta situação atual. Isto significa repensar políticas, leis, sistemas, serviços e práticas nos diferentes setores que afetam negativamente as pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais, assegurando que os direitos humanos sustentem todas as ações no campo da saúde mental. No contexto específico dos serviços de saúde mental, isto significa um movimento em direção a práticas mais equilibradas, centradas na pessoa, holísticas e orientadas à recuperação, que considerem as pessoas no contexto de suas vidas como um todo, respeitando a sua vontade e preferências no tratamento, implementando alternativas à coerção, e promovendo o direito das pessoas à participação e inclusão comunitária”.

O documento oferece 22 exemplos internacionais interessantes do caminho a seguir, incluindo Diálogo Aberto, Soteria Berne, Tupu Ake na Nova Zelândia, e Grupos de Apoio dos Ouvidores de Vozes.

O estimado jornalista e militante Robert Whitaker comentou:

“O relatório da OMS é um acontecimento marcante”. Uma reformulação global da saúde mental está claramente em andamento, e os programas-modelo destacados nesta publicação da OMS, a maioria dos quais de origem bastante recente, falam de iniciativas do mundo real que estão surgindo em todos os lugares”.

Bolsões anteriormente isolados de ativistas – pacientes, familiares, pessoal de saúde mental e pesquisadores – estão se unindo cada vez mais em organizações globais, como o Instituto Internacional para Retirada de Drogas Psiquiátricas e a Sociedade Internacional para Abordagens Psicológicas e Sociais da Psicose, para citar apenas duas.

Será mais difícil para os defensores do modelo médico, ou para a ONU e a OMS, rejeitar tais organizações como radicais extremistas e antipsiquiatria. O tempo para uma mudança de paradigma fundamental na saúde mental pode, finalmente, estar se aproximando.

Artigo escrito por John Read

Leia a matéria na íntegra clicando aqui →

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Reforma Psiquiátrica no Brasil: diagnóstico psiquiátrico e alternativas (4)

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Este é o último ‘blog’ da série. Concluo agora a apresentação da abordagem desenvolvida pelos colegas britânicos de psicologia. Qual é a resposta para a questão: “O que nós fazemos ao invés de diagnosticar as pessoas?”.

Essa é a questão que todos devemos formular quando de fato estamos buscando uma alternativa ao diagnóstico psiquiátrico.

E a resposta é muito simples: “Nós ouvimos as histórias delas”.

É essa a orientação fundamental do Modelo Poder, Ameaça e Sentido (PTMF em inglês).

O PTMF desafia a forma como o modelo biomédico da psiquiatria aborda as formas de sofrimento psíquico, comportamentos perturbados e perturbadores que usualmente são considerados como sintomas de alguma “doença mental”.

Pois bem: “Ouvir a história que nos é narrada”. Ao narrar a sua história o sujeito está nos respondendo às seguintes questões: “o que lhe aconteceu?”, “como o ocorrido lhe afetou?”, “que sentido foi dado ao ocorrido?”, “o que foi feito, que respostas foram dadas?”, e, finalmente “quais os recursos disponíveis para resolver o problema?”. São as questões que o PTMF sugere que sejam colocadas para se entender o “sofrimento psíquico” e agir para o enfrentar.

Você deve estar se perguntando em que esse Modelo difere dos modelos de diagnóstico psiquiátrico ou mesmo psicológico. Essa pergunta é muito boa. É por isso que as autoras (Boyle & Johnstone, 2020, p. 127-128) nos alertam para os seguintes aspectos:

  • O efeito da atração exercido pela narrativa dominante do diagnóstico psiquiátrico e seu contexto mais amplo de suposições das ciências naturais.
  • A contradição inerente em combinar narrativas do diagnóstico psiquiátrico com as narrativas psicológicas.
  • O papel dos discursos, especialmente aqueles de gênero, classe, etnia e medicalização do sofrimento psíquico, e como esses discursos podem permitir que o significado dos outros sejam impostos.
  • Os impactos do poder coercitivo, legal e econômico.
  • A natureza e impacto das desigualdades nos ambientes psiquiátricos.
  • A prevalência de abusos do poder interpessoal dentro das relações.
  • O papel do poder ideológico, expressado através das narrativas e suposições acerca do individualismo, realização, responsabilidade pessoal, papeis de gênero, e assim por diante.
  • O papel mediador das respostas de base biológica às ameaças.
  • A importância de se entender a função e o propósito das respostas às ameaças.
  • Os sentidos culturais específicos, sistemas de crenças e formas de expressão.
  • Autoajuda e ação social junto com, ou ao invés de, intervenção profissional.
  • A importância das narrativas comunitárias, valores e crenças espirituais, para dar suporte à cura e reintegração do grupo social.
  • Reconhecimento da natureza variada, pessoal e transitória de todas as narrativas e a necessidade da sensibilidade, arte e respeito no apoio ao desenvolvimento e expressão delas, seja qual for a forma que elas tomam.
  • A necessidade de transmitir uma mensagem geral que é normalizante, não patologizante (seja em termos médicos ou psicológicos): ‘Você está vivendo uma experiência compreensível e por conseguinte uma reação adaptativa às ameaças e dificuldades. Muitos outros nas mesmas circunstâncias sentiram o mesmo.”

O PTMF tem explicitamente uma perspectiva intersubjetiva. Você que já conhece a abordagem feita pelo Diálogo Aberto (Finlândia) deve ter percebido que há muita coisa em comum. Assim como tem muita coisa em comum com a Terapia Narrativa ou os Ouvidores de Vozes, por exemplo.

Em termos genéricos eu diria que a perspectiva da intersubjetividade descreve os processos psíquicos e o desenvolvimento das mentes em termos da sua conhecida interatividade. O que é distinta da perspectiva intrapsíquica ou da perspectiva biomédica da psiquiatria. A ênfase é dada nos processos intersubjetivos, na correspondência e na transformação mútua entre os sujeitos em interação. O que implica em sujeitos (mentes diferentes) mutuamente afetando uns aos outros. Coerentemente com as evidências científicas, o PTMF propõe que as patologias do poder e da dominação sejam desmascaradas. Que se tenha atenção para as narrativas de traumas individuais e coletivos e que se acompanhe os processos sociais de cura.

O PTMF é um modelo que orienta como as histórias podem ser formuladas em terapia e serviços de saúde mental, levando em conta as diferentes teorias e técnicas psicoterapêuticas. Mas também vai além dessas formas tradicionais de produzir sentido, ao dar igual valor à arte, poesia, dança, música e assim por diante. Também reconhece as muitas formas de narrativas que ajudam o sujeito a lidar com o seu sofrimento ao nível do grupo social, através de rituais comunitários ou baseados na fé, cerimônias, lendas etc. O PTMF também vem sendo usado por grupos de suporte entre pares. Portanto, o PTMF não é um guia técnico que necessita que as pessoas tenham alguma expertise acadêmico-profissional em saúde mental para poder utilizá-lo.

As estratégias que podem ser empregadas, segundo as autoras Boyle e Johnstone (2020, p. 129-130):

  • Relações seguras na infância
  • Apoio aos parceiros atuais, famíla e amigos para o suporte prático e emocional, proteção, testemunho, validação
  • Saber lidar com emoções opressoras ao liberar/expressar/processar sentimentos (por exemplo, escrevendo, exercício, terapias alternativas, criatividade e artes, abordagens com foco na compaixão, atenção plena [‘mindfulness’], meditação
  • Auto-cuidados – por exemplo, nutrição, exercício, descanso, terapias alternativas
  • Encontrar papeis sociais e atividades que deem sentido
  • Acesso a recursos materiais/capital cultural/educação e assim por diante
  • Acesso à informação/perspectivas alternativas
  • Aspectos de identidade positivos e socialmente valorizados
  • Destrezas/habilidades – inteligência, desenvoltura, determinação, talentos
  • Recursos físicos – força, saúde, habilidades esportivas
  • Sistemas de crenças – fés, valores e assim por diante
  • Práticas culturais na comunidade, rituais, cerimônias e intervenções
  • Conexões com o mundo natural
  • Dar força um ao outro em campanhas, ativismo
  • Criando/encontrando novas narrativas/significados/crenças/valores, ativismo dos ‘sobreviventes”

Aqui no Brasil, no campo da reforma psiquiátrica, inúmeras abordagens de natureza psicossociais trabalham com inúmeros desses recursos. Temos um ‘know-how’ diversificado e uma inestimável riqueza de experiências. Contudo, não podemos fazer de conta que a nossa dependência ao “modelo biomédico” da psiquiatria não causa inúmeros problemas para a assistência psicossocial, com inúmeros danos aos “usuários” e à sociedade em geral. Certamente que se houvéssemos nos libertado do “modelo biomédico” da psiquiatria a qualidade dos serviços prestados seria um exemplo para o mundo inteiro. A propósito, sugiro a leitura do recente documento da OMS com recomendações que reivindicam uma radical mudança no paradigma da assistência em saúde mental. Confiram também a entrevista dada por Michelle Funk, quem fez parte do processo de elaboração deste documento da OMS.

Não deixem de ler as fontes originais do PTMF, já citadas em ‘blogs’ anteriores.

Com isso concluo a série de ‘blogs’ que me propus escrever. As minhas palavras finais é que temos que fazer uma reforma da reforma psiquátrica brasileira. E não a retrocessos ao já conquistado em décadas de lutas e de experiências exitosas.

Citação:

Boyle, M., & Johnstone, L. (2020). The Power Threat Meaning Framework. An alternative to psychiatric diagnosis. PCCS Books Ltd.

A fuga de Lázaro e a ‘loucura’ como espetáculo

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Quando Guy Debord escreveu “A Sociedade do Espetáculo” (1967), imagino eu que ele não tinha em mente, o que são hoje, as redes sociais, aqueles eram tempos da televisão onde um pequeno e seleto grupo de humanos e humanas tinham a chance de mostrar a sua imagem para milhares de pessoas. Contudo, Debord, analisando o fenômeno do espetáculo desde sua aparência até sua essência e apreendendo sua dinâmica, escreveu o seu livro, que eu vou chamar de “profético”. Porque, olhando com os olhos de hoje, onde estamos cada vez mais imersas na internet, ao passo que vamos tentando fazer de nossas vidas individuais um espetáculo consumível por tantas pessoas quanto a internet for capaz de alcançar, ou melhor engajar; também vamos ficando cada vez mais sedentas de conteúdos que possam ser espetacularizados e, portanto, consumíveis.

Assim, Debord já no início de sua obra afirma: “O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. (…) Ele é a afirmação omnipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo” (p. 09).

Para este autor, todas as formas de espetáculo servem à lógica do consumo, inclusive a informação. E esta, se antes chegava em horários específicos, pela televisão, escritas em jornais impressos diários ou semanais, hoje ela está ao alcance de nossas mãos 24 horas por dia sendo repetida e atualizada. E o mesmo tema toma conta das pautas de diversos sites, com chamadas (“chapéus” como se diz na gíria jornalística) cada vez mais criativas e que aguçam nossa curiosidade para nos fazer, então, clicar. Se a TV se vende e nos vende, chamando a gente de audiência, a internet disputa nossos cliques ou likes, e aí vale toda a criatividade de quem escreve para chamar seu público ao clique/consumo.

Ao fim e a cabo é mais uma das expressões da alienação, que coisifica seres humanos e nos reduz ao produto a ser vendido, como explica Mészáros:

“A alienação caracteriza-se, portanto, pela extensão universal de ‘vendabilidade’, a transformação de tudo em mercadoria, pela conversão dos seres humanos em ‘coisas’, para que eles possam aparecer como mercadorias no mercado.” (Mészáros, 2006, p.39 )

Este é o movimento que estamos assistindo há duas semanas com a chamada “Caçada de Lázaro”, classificado pela polícia e a mídia como um todo como “serial killer”. O termo em inglês não é por acaso, pois justamente nos remete aos espetáculos fílmicos hollywoodianos que nos acostumamos a consumir, onde uma pessoa passa a cometer crimes em série, em geral com doses de suspense sobre a identidade do criminoso e terminam com ação contundente da elite da polícia. E, claro, não se pode esquecer que nas histórias da telona, o tal serial killer é sempre uma pessoa com algum diagnóstico psicopatológico e, por esta razão, dono de uma mente misteriosa a ser investigada, despido de sentimentos de empatia para com o outro, insensível à morte de suas vítimas, cruel, por um lado, mas absolutamente inteligente e genial, por outro.

Os roteiros fictícios, sempre vão costurando uma narrativa que nos faz sempre questionar *Como pode um ser humano ser cruel assim?”. E explicam tal comportamento sempre de forma metafísica e, desta forma, associam à cultos satânicos, a possessão demoníaca, que, infelizmente, não raras as vezes, são colocados quase que em pé de igualdade a um diagnóstico psicopatológico ou é o próprio diagnóstico que é tomado como justificativa dos comportamentos considerados bizarros, estranhos. E, não por acaso, todos esses elementos de narrativa, podem ser notados também nas diversas matérias que cobrem a chamada “caçada à Lázaro”.

Como matéria de jornal, no entanto, lida com a realidade, o que não faltam são vozes de “especialistas” em “personalidade criminosa” para explicar o comportamento de alguém que consideram ser “psicopata”. Alguém que estes “especialistas” sequer viu alguma vez na vida, sequer conversaram com ele e sequer avaliaram seu comportamento frente a frente, mas ainda assim, são uníssonos em dizer que seu comportamento é “incorrigível”. Traçam seu “perfil psicológico” e, como místicos que apontam características de personalidade a cada signo; os tais especialistas da área Psi, sob o signo então do diagnóstico escolhido no catálogo disponível de doenças, distribuem características de personalidade ao sujeito, de quem só ouviram falar pelas manchetes de jornal.  É a irracionalidade da racionalidade burguesa.

Como diz Debord, todo esse espetáculo: “É o coração da irrealidade da sociedade real.”

Todavia, do lado real dessa história, que não foi imaginada, que não está sendo atuada com falas decoradas e marcações de cena, mas vem sendo roteirizada pela mídia tal qual uma série policial, estão as pessoas reais que sofrem com toda essa tragédia, das vítimas de Lázaro às vítimas dessa narrativa preconceituosa, racista e desumanizadora.

Ao longo da última semana, veio a público denúncias de abuso de poder cometido pelos policiais que atuam na “caçada”, líderes religiosos dos terreiros de religiões de matriz afro que ficam próximos onde o suspeito possa estar escondido, denunciam práticas de agressão física, verbal e desrespeito com seus símbolos sagrados. Locais que foram fotografados e tidos como sendo onde Lázaro supostamente praticava rituais. Colando, então, a imagem dele com rituais chamados pela mídia de satânicos, quando na verdade representam rituais de adoração e manifestação da fé dos povos de terreiro e sequer tinham qualquer ligação com o suspeito.

A este fato, somam-se os depoimentos de pessoas que moram na região e que denunciam que suas casas estão sendo invadidas, portas arrombadas, métodos violentos de interrogação, com agressões físicas e verbais, a fim de encontrarem quaisquer pistas que possam levar a captura do suspeito. Coisas que a gente achava que eram práticas apenas da polícia de determinados estados quando invadem favelas. A constante exposição das vítimas, da família do rapaz, de seu histórico de vida tem composto o espetáculo midiático dessa trágica história que, de informação para a população nada tem de útil, pois só tem servido para propagar racismo religioso, preconceito e medo.

Medo direcionado a determinadas pessoas que possam expressar características semelhantes às que estão sendo atribuídas ao homem suspeito, escondido na mata: homem, pobre, negro e supostamente com alguma psicopatologia. Essas são características que, de forma generalizada, na dinâmica de produção e reprodução cotidiana, acabam sendo associadas às pessoas em sofrimento psíquico. E nesse discurso, explicitamente desumanizador, a desumanização do sofrimento psíquico, seja nos discursos de periculosidade seja nos da genialidade da “loucura”, contribui para ideologia dominante justificar sua necropolítica. Que para Mbembe (2018) é mais do que matar as pessoas, mas é expor elas a condições que as deixe mais vulnerável à morte.

A expressão da soma de todos esses elementos da narrativa midiática sobre o caso Lázaro: no dia 17 de junho (sexta-feira), um jovem maranhense (23 anos), em sofrimento psíquico e que fazia acompanhamento psiquiátrico desde criança, teria publicado mensagens de “apoio a Lázaro”, policiais civis, então, invadiram sua casa e, na frente de seu avô, atiraram e o mataram.

Mistificar, glamourizar ou patologizar são verbos comuns no teatro das sombras que criam narrativas rasteiras em tragédias tão mais graças e complexas. O que aparenta ser objetivo, científico e circunscrito ao processo descritivo de um único sujeito serve como combustível para opressões históricas, atalhos retóricos. A espetacularização da violência e a reprodução do reducionismo sobre a loucura são munições que caminham juntas no show da barbárie que banaliza a vida, a morte e o que supõem ser ciência e justiça.

Referências:

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018.

MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.

Mad in Brasil recebe ‘blogs’ de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir como um fórum público para uma discussão- em termos gerias – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

A OMS e a Grande Mudança na Saúde Mental : Entrevista com Michelle Funk

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Michelle Funk é a Chefe da Unidade de Política, Direito e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental e Uso de Substâncias da Organização Mundial da Saúde. Ela criou e lidera a Iniciativa de Direitos de Qualidade da OMS que visa avaliar e melhorar os padrões de direitos humanos nos serviços existentes e fazer avançar a plena implementação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD).

Nesta entrevista, discutimos o lançamento da nova “Orientação sobre Serviços de Saúde Mental Comunitária”: Promoção de Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos“. O documento se baseia nos princípios da recuperação e nas abordagens baseadas em direitos. Ele apresenta exemplos bem sucedidos de melhores práticas na prestação de serviços de saúde mental respeitando a dignidade, passando à coerção zero e eliminando a negligência e o abuso. Entre as melhores práticas apresentadas no documento estão o Diálogo Aberto como praticado em Tornio, Finlândia, Soteria Berne na Suíça, Afiya House no oeste de Massachusetts, Basal Exposure Therapy na Noruega e Hearing Voices Support Groups. [confira a matéria publicada no MIB escrita por Robert Whitaker.]

A Orientação se baseia no impulso criado pela voz crítica de Dainius Pūras, ex-Relator Especial da ONU sobre o Direito à Saúde https://www.madinamerica.com/2020/05/bringing-human-rights-mental-health-care-interview-dainius-puras/. Puras criticou o domínio do modelo biomédico no campo da Saúde Mental e destacou os danos associados a ignorar os determinantes sociais da saúde que afetam a saúde mental de uma pessoa, tais como violência, pobreza, falta de nutrição adequada, instabilidade habitacional, falta de cobertura de saúde universal, discriminação e outros.

Em nossa conversa, Michelle Funk descreveu o processo de engajamento das partes interessadas e pessoas com experiência vivida durante a elaboração e desenvolvimento do documento, os desafios de garantir representação geográfica, dadas as desigualdades globais e as esperanças para o futuro.

A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.

Ana Florence: Eu queria começar falando um pouco sobre sua carreira. Como você decidiu trabalhar em saúde pública e saúde global?

Michelle Funk: Minha formação em toda a universidade foi em psicologia e saúde pública. Meu mestrado, de fato, foi uma especialização em Psicologia Clínica, e minha tese de doutorado foi sobre Estratégias de Prevenção de Riscos de Doenças Cardiovasculares. Portanto, um foco muito grande na saúde pública e na saúde global.

Depois, após meus estudos universitários, liderei um grande estudo de pesquisa da OMS sobre Intervenção Precoce para o Consumo Perigoso de Álcool, que foi realmente o que me colocou em contato com a Organização Mundial da Saúde. Na verdade, foi através deste estudo que fui convidada a me associar à OMS e também a expandir este trabalho para a saúde mental.

Florence: Como é um dia na vida de Michelle Funk?

Funk: Em meu trabalho, tenho a responsabilidade global de apoiar os países no desenvolvimento de suas políticas e leis sobre saúde mental, e isto requer várias etapas. Assim, analisar de perto o que está sendo feito hoje e o que está tendo bons resultados, assim como o que não está tendo bons resultados nos países.

Também envolve assegurar que a orientação esteja de acordo com as normas internacionais de direitos humanos. Significa consultar de perto uma gama completa de interessados, incluindo organizações ou pessoas com deficiência, indivíduos com experiência vivida, profissionais da saúde mental, organizações da sociedade civil, formuladores de políticas e muitos outros.

Então, a grande tarefa é realmente reunir todas essas informações em uma orientação facilmente compreensível e de fácil digestão, que seja realmente sensível aos diversos contextos socioeconômicos que os países enfrentam e, naturalmente, aos diferentes níveis de desenvolvimento dos sistemas de saúde dos países.

Florence: Quais são as coisas em que você está mais interessada, e quais são as coisas que você se orgulha de fazer ao longo da sua carreira?

Funk: Em minha posição, tenho visto quantas pessoas estão vivendo tantas situações ruins, difíceis e desmotivantes nos serviços de saúde mental. Ajudar a mudar esta situação tem sido muito importante para mim, e o fato de eu pensar que isto está acontecendo agora me deixa orgulhosa.

Basicamente, acho que tenho muito orgulho de contribuir para uma nova direção para a saúde mental, que é uma abordagem baseada em direitos que coloca as pessoas usando serviços, pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais, em primeiro lugar em toda a história da saúde mental. Aqui, o que é importante é que as preferências das pessoas precisam ser respeitadas – que suas opiniões contam e são primárias.

Quando as pessoas sabem que sua voz está sendo ouvida e sua voz conta dentro da Organização Mundial da Saúde, isso realmente fortalece as pessoas que muitas vezes não são ouvidas ou escutadas a respeito das questões que mais as afetam. Isso tem sido extremamente importante no trabalho que faço para que tudo isso aconteça.

Também estou orgulhosa de que, ao longo dos anos, através do trabalho que desenvolvemos, tenho sido capaz de trazer muitas partes interessadas à mesa para chegar atrás deste trabalho, muitas das quais antes estavam relutantes. Isto é realmente encorajador e traz muito otimismo sobre as mudanças que são possíveis e as mudanças já estão acontecendo.

Florence: Será que poderíamos passar ao novo documento de orientação que foi publicado em 10 de junho?

Funk: Antes de mais nada, deixe-me explicar um pouco sobre essa orientação da OMS. É a nova orientação da Organização Mundial da Saúde para os países sobre como criar serviços de saúde mental comunitária centrados na pessoa e baseados em direitos. Dentro desta Orientação, destacamos serviços de boas práticas de todo o mundo que se alinham com critérios-chave de direitos humanos, fundamentados na convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência (CRPD), incluindo o respeito à capacidade legal, práticas não coercitivas, participação e inclusão comunitária.

Este Guia também fornece informações detalhadas sobre como cada um dos serviços implementa explicitamente estes critérios da CRPD na configuração e execução do serviço.  Gostaria de dizer que este Guia é o primeiro de seu tipo, portanto, será extremamente importante, e já faz muitos anos que ele está sendo feito também.

Em termos de processo, isso envolveu muitos meses de pesquisa intensiva e muitas rodadas de consultas profundas com todos os principais grupos de interessados e especialistas em países de todo o mundo.

Isso inclui pesquisas e consultas sobre todos os diferentes tipos de serviços que existem e estão sendo executados em diferentes países, bem como consultas para revisar e comentar as minutas e ajudar com as revisões das diferentes minutas no que temos hoje em termos de orientação técnica final.

Florence: É um documento fascinante, e parece ser algo inteiramente novo e único. Uma das peças muito interessantes deste novo documento de orientação é a conexão entre os direitos humanos e a recuperação [‘recovery’]. Essa conexão não é óbvia em muitos lugares, inclusive nos Estados Unidos. Você poderia nos dizer por que é importante combinar essas duas estruturas?

Funk: Sim, eu posso. Na verdade, é uma pergunta extremamente boa de se fazer, e não é tão óbvia para todos. É importante combinar as estruturas porque a abordagem dos direitos humanos e a abordagem da recuperação compartilham valores e princípios comuns.

Ambas as abordagens promovem direitos-chave como igualdade, não discriminação, capacidade legal, consentimento informado e inclusão comunitária. A principal diferença, porém, entre os direitos humanos e as abordagens baseadas na recuperação é que a abordagem dos direitos humanos impõe obrigações aos países para promover estes direitos.

Mais especificamente, o motivo fundamental para reunir essas estruturas, que é a chave, é que é importante mostrar seu alinhamento uns com os outros para assim trazer uma voz mais poderosa para defender e implementar mudanças.

A Estrutura de Recuperação tem seu próprio público que pode não entender a linguagem dos direitos humanos e, vice-versa, o público de direitos humanos pode não entender a linguagem da recuperação. Incorporar ambas as estruturas e mostrar como elas se alinham pode reunir esses grupos ou circunscrições importantes em bases comuns e para um propósito comum.

Florence: Penso que isto será bem recebido por ambas as comunidades e espero que crie uma oportunidade de trabalhar em conjunto. O Relator Especial sobre o direito à saúde, Dainius Pūras, também foi entrevistado por mim (veja esta entrevista aqui). Você pode falar sobre uma mudança de paradigma que ele propôs? Qual foi a importância disso para o desenvolvimento da Orientação?

Funk: Bem, a mudança de paradigma de um modelo biomédico para um modelo de direitos humanos é na verdade a base da nova Orientação do Serviço Comunitário de Saúde Mental da OMS, incluindo os serviços mostrados e as recomendações feitas.

Todos os serviços estão unidos por várias características, e estas incluem o direito à capacidade legal, em outras palavras, o direito de tomar decisões sobre todos os aspectos da vida de uma pessoa.

Em segundo lugar, a ausência de práticas coercitivas, tais como tratamento forçado, isolamento e restrição.

Em terceiro lugar, participação, o que significa que pessoas com experiência vivida estão executando serviços ou têm um papel fundamental na decisão de como os serviços são projetados e executados.

E em quarto lugar, a inclusão comunitária, que se refere ao apoio que as pessoas recebem para acessar serviços e benefícios de bem-estar social, moradia, emprego e oportunidades educacionais, acabará permitindo que as pessoas vivam e sejam incluídas na comunidade.

Este é o novo paradigma. Este novo modelo e paradigma de direitos humanos permeia tudo o que estamos promovendo nesta nova Orientação sobre serviços de saúde mental comunitária.

Florence: Há outra questão que eu acho relevante para este documento. Tem havido críticas em torno do domínio ocidental da arena global da saúde mental. Como o Guia lidou com isso?

Funk: Bem, buscamos boas práticas, serviços baseados em direitos de todo o mundo em todas as regiões. Também procuramos contribuições de todas as partes interessadas em no mundo inteiro, incluindo o Sul Global.

Mas tendo dito isso, com certeza, existe um fator limitador. Esse fator limitador estava em torno do fato de que precisávamos selecionar boas práticas que tivessem resultados de avaliação. Isto tendia a uma seleção tendenciosa na direção de países de alta renda onde há mais fundos para completar as avaliações.

Entretanto, ao mesmo tempo, realmente fizemos o melhor para compensar este viés para obter uma representação geográfica dos serviços e representação dos países de baixa, média e alta renda.

Florence: A questão da pesquisa, avaliação e financiamento é tão grande no Sul Global, e vinda do Brasil, eu tenho vivido a experiência com isso, devo dizer. É muito apreciado que a Orientação tenha encontrado formas de contornar isso e conseguido incluir vários exemplos de boas práticas no Sul Global. De certa forma, eu acho que a Orientação realmente parece estar à frente de seu tempo, especialmente considerando onde se encontra atualmente a psiquiatria convencional e o predomínio do modelo biomédico. Com isso em mente, o que foi mais desafiador no desenvolvimento deste documento?

Funk: O que era mais desafiador era encontrar boas práticas que realmente se alinhassem com os critérios de direitos humanos da CRPD. A etapa adicional em cima de tudo isso era encontrar aqueles tipos de serviços que também tinham uma avaliação.

Como você mencionou, a maioria dos serviços do ‘mainstream’ não atende a estes critérios, particularmente os critérios da CRPD, e há tão poucos serviços por aí que realmente estão avaliando o que estão fazendo.

Portanto, isso foi particularmente desafiador e realmente aponta para a necessidade de se investir em serviços baseados em direitos como os que descrevemos na Orientação da OMS, avaliá-los e comparar custos e resultados com os serviços convencionais, que é realmente o que fazemos no documento da Orientação.

Florence: Esperamos que a Orientação tenha impacto na forma como os serviços são financiados e na forma como a pesquisa é conduzida. Já estou vendo muitas maneiras pelas quais isto pode nos ajudar a seguir em frente. Pergunto-me, voltando a uma idéia mais geral de todo o seu trabalho, o que você acha mais gratificante no que você faz?

Funk: O que é mais gratificante para mim é colaborar com pessoas com experiência vivida, aprendendo com elas e integrando esse aprendizado ao meu trabalho. Ver, ouvir e ler tantas pessoas que realmente apreciam o trabalho que está sendo feito, isso também tem sido incrivelmente gratificante.

Tivemos muitas pessoas nos procurando, por exemplo, para agradecer à Organização Mundial da Saúde por este trabalho. Ouvimos as pessoas dizerem que o trabalho mudou completamente sua perspectiva e mudou suas práticas. Antes de receber o treinamento através da Iniciativa QualityRights, elas não sabiam os danos que haviam causado às pessoas, nem que poderiam fazer as coisas de maneira diferente.

Portanto, ouvir tantos comentários como esse todos os dias fez com que o trabalho e as lutas para completá-lo realmente valesse a pena e fosse gratificante, para saber que o que nos propusemos fazer está sendo alcançado, e estamos recebendo esse feedback para dizer que sim, está ocorrendo.

Florence: O que foi mais surpreendente, ou o que continua a surpreendê-lo em seu dia-a-dia?

Funk: Foi surpreendente ver quantas pessoas, grupos e organizações existem lá fora que querem que esta mudança aconteça.

Nos últimos dois anos mais ou menos, sinto que houve uma mudança – uma onda de pessoas de todas as áreas e disciplinas e movimentos, exigindo cada vez mais uma mudança significativa na saúde mental e exigindo o alinhamento total das políticas, leis e serviços com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e o fim da coerção que vemos na saúde mental.

Penso que este movimento está crescendo em confiança e ganhando impulso e resultando em um número crescente de países explorando seriamente como eles podem criar serviços e sistemas orientados para os direitos humanos melhores e mais responsivos.

Quando você está trabalhando em uma espécie de ambiente próprio com seus próprios grupos de interesse ao seu redor, você às vezes esquece que existe todo um outro mundo lá fora nos países, no terreno, na comunidade, que estão desesperados para que esta mudança aconteça. É bom ver isso.

Florence: Se as pessoas não sabiam o que é a OMS, agora certamente sabem. Tem estado na mídia diariamente, e a pandemia da COVID realmente trouxe a importância deste trabalho daqui para a frente. Também se tem falado sobre como a COVID-19 afeta a saúde mental das pessoas, e muita da conversa tem sido em torno da epidemia potencial de doenças mentais após a pandemia da COVID-19. Como podemos assegurar um foco nos direitos humanos e determinantes sociais neste tempo, especialmente com este tipo de atenção à saúde mental que a COVID tem trazido?

Funk: Quero dizer, pode ser interessante observar os tipos de problemas e as questões de saúde mental relacionadas à COVID para entender melhor como podemos abordar melhor a saúde mental neste contexto.

Obviamente, a COVID-19 tem levantado algumas questões importantes em torno da saúde mental e como ela pode ser afetada negativamente. Quero passar em revista algumas das questões-chave. Há medo, preocupação e estresse de infecção e morte, perda de membros da família e perda de renda e meios de subsistência, o que tem sido extremamente significativo no aumento da angústia, ansiedade e outras questões de saúde mental.

Também temos alguns impactos importantes sobre as pessoas que já tinham condições de saúde mental preexistentes. Às vezes, o estresse amplificou sua angústia e seu estado de saúde mental. Vimos como o estigma e a discriminação criam isolamento para as pessoas que têm condições e deficiências relacionadas à saúde mental. Isto é ampliado durante o isolamento pela COVID quando elas estão sendo afastadas das rotinas e atividades normais e tendo o efeito de se tornarem ainda mais isoladas e angustiadas.

Vimos também como o isolamento privou muitas pessoas de serviços essenciais e do apoio que elas recebiam antes da pandemia. Temos visto alguns impactos horríveis em ambientes institucionais, tais como hospitais psiquiátricos e casas de assistência social, onde as pessoas têm sido realmente desproporcionalmente afetadas pela COVID. Muitas pessoas morrendo.

Além disso, muitas pessoas, particularmente pessoas mais velhas,residentes nos lares para idosos, foram realmente separadas de suas famílias, de seus entes queridos, o que resultou em um enorme custo emocional.

É importante destacar todos esses aspectos, os aspectos de saúde mental da COVID-19 porque a pandemia realmente reforça o papel crítico dos determinantes sociais da saúde e a necessidade de uma abordagem baseada nos direitos humanos que se concentre nesses aspectos sociais em vez de conceituar as questões de saúde mental como uma doença.

Portanto, os serviços de saúde mental, suportes e intervenções precisam se envolver com estas importantes questões da vida para realmente abordar as questões de saúde mental. Os determinantes sociais da saúde e seu papel realmente vieram à tona durante a pandemia da COVID-19, mas eles sempre estiveram presentes. É justamente agora, que está mais na consciência e atenção das pessoas, que precisamos aproveitar essa oportunidade para garantir que essas sejam as questões críticas abordadas nos serviços de saúde mental e nos sistemas de saúde mental no futuro.

Florence: Acho que as questões já estavam lá, mas agora elas são tão óbvias que está se tornando muito difícil de ignorar. Com isso em mente, o fato de que estas coisas são tão óbvias agora, você está otimista sobre alguma mudança que vem e vai na direção certa?

Funk: Com certeza. Talvez você já tenha percebido isso a partir de minhas respostas anteriores. Sem dúvida, estou otimista quanto à mudança que está por vir. Acho que na verdade já começou. Acho que vai continuar. Muitos grupos agora estão exigindo uma mudança radical, uma verdadeira transformação da agenda da saúde mental.

Florence: O que vem a seguir para você após o documento de orientação?

Funk: Sim, muita coisa está por vir. Ainda não terminamos nosso trabalho.

Já começamos a trabalhar em novas orientações em torno de leis e políticas relacionadas à saúde mental que obedecem aos padrões de direitos humanos – a CRPD ou a convenção que eu já mencionei. Tem havido muita demanda por isso por parte dos países, o que é realmente uma boa notícia.

Estamos realmente interessados em desenvolver esta orientação, finalizá-la e disponibilizá-la aos países para que possam desenvolver novas políticas e estruturas legais para complementar a orientação de serviços baseados em direitos que acabamos de lançar, bem como nosso trabalho anterior com os materiais de treinamento QualityRights para promover mudanças de atitude e práticas, em linha com a abordagem baseada nos direitos humanos.

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Pesquisa Internacional com os Usuários de Antidepressivos. Você quer participar?

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Tablet overdose. Depression and problem. Hand surrounded by many pills.

Por favor, reserve um tempo para preencher isto!
– Pesquisa Internacional sobre Retirada de Antidepressivos –
Autores: Mark Horowitz PhD, Joanna Moncrieff PhD, John Read PhD e Ed White PhD

Os autores acima estão realizando uma pesquisa (anônima) para captar as experiências dos usuários de antidepressivos que estão buscando deixar de fazer uso de seus antidepressivos. A pesquisa levará aproximadamente 30-45 minutos.

Como psiquiatra e defensor da desprescrição de antidepressivos, Dr. Mark Horowitz  tem sido a principal referência a motivar este trabalho, querendo entender o que tem funcionado ou não para as pessoas quando elas reduzem/retiram os antidepressivos. A ideia é que as experiências dos usuários dos antidepressivos possam ser usadas para ajudar a construir serviços de saúde dedicados a apoiar as pessoas que desejam a desprescrição de antidepressivos. Como muitos de vocês devem saber, Horowitz também é o co-autor do novo “Stopping AD Tapering Guidance” do Reino Unido.

Esta pesquisa internacional, cujo link está abaixo, faz perguntas que ajudarão os pesquisadores a entender (anonimamente) as experiências pessoais dos usuários dos antidepressivos. E também dará a oportunidade aos usuários de fornecer os seus próprios pensamentos e opiniões sobre o que eles querem dos serviços de saúde e o que está errado atualmente nesta área. Os resultados contribuirão para que protocolos oficiais usados pelos médicos/psiquiatras sejam alterados, aperfeiçoados.

Aqui no Brasil a problemática dos dependentes químicos dos antidepressivos é alarmante. Se você está passando por essa experiência, o que você diz tem uma enorme importância. Se você não é vítima desse problema, certamente conhece alguém que esteja nessa situação.

Você também pode se oferecer para ser entrevistado e fornecer seus dados de experiência de vida com a retirada, no caso em que você queira participar mais ativamente do processo da pesquisa.

A pesquisa está guiada passo a passo.

Compartilhe!

A pesquisa → https://j.mp/3grPFtT

Tablet overdose. Depression and problem. Hand surrounded by many pills.

 

A OMS faz apelo por mudanças radicais na saúde mental global

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Durante a última década, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem promovido regularmente o objetivo de melhorar a “saúde mental global”. Embora muitas vezes tenha falado da importância do apoio social e de outras alternativas não relacionadas à droga, seus esforços ajudaram a difundir um padrão biomédico de atendimento. As ideias ocidentais sobre diagnósticos, os fundamentos biológicos dos transtornos psiquiátricos e o uso regular de drogas psiquiátricas têm sido promovidos. Os críticos deste esforço falam dele como uma colonização médica. Hoje, 10 de junho, a Organização Mundial da Saúde lançou um documento de 300 páginas intitulado “Guidance on Community Mental Health Services” (Orientação sobre Serviços de Saúde Mental Comunitária): Promovendo Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos”. Em grande medida, os autores abraçam uma agenda de mudanças – e uma reconceptualização da saúde mental – que os leitores da comunidade Mad encontrarão como sendo familiar. Os melhores serviços práticos destacados no documento incluem Diálogo Aberto como praticado em Tornio, Finlândia; Soteria Berne na Suíça; Afiya House no oeste de Massachusetts; Basal Exposure Therapy na Noruega; e Hearing Voices Support Groups, entre outros.

A orientação da OMS surgiu de um grupo nas Nações Unidas liderado por Michelle Funk, que é chefe da unidade de Política, Direito e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS. Assim como Dainius Pūras, durante seu tempo como Relator Especial da ONU para a Saúde, pediu uma revolução na saúde mental, este documento da OMS apela para uma mudança em grande escala. Os autores escrevem:

Embora alguns países tenham tomado medidas críticas para o fechamento de instituições psiquiátricas e assistenciais, a simples mudança dos serviços de saúde mental para fora desses ambientes não levou automaticamente a melhorias dramáticas no atendimento. O foco predominante dos cuidados em muitos contextos continua a ser o diagnóstico, a medicação e a redução dos sintomas.

Determinantes sociais críticos que afetam a saúde mental das pessoas, tais como violência, discriminação, pobreza, exclusão, isolamento, insegurança no emprego ou desemprego, falta de acesso à moradia, redes de segurança social e serviços de saúde, são freqüentemente negligenciados ou excluídos dos conceitos e práticas de saúde mental. Isto leva a um diagnóstico exagerado do sofrimento psíquico humano e a uma dependência excessiva de drogas psicotrópicas em detrimento de intervenções psicossociais – um fenômeno que tem sido bem documentado, particularmente em países de alta renda. Também cria uma situação em que a saúde mental de uma pessoa é predominantemente abordada dentro dos sistemas de saúde, sem interface suficiente com os serviços e estruturas sociais necessários para abordar os determinantes acima mencionados.

Como tal, esta abordagem é, portanto, limitada em sua consideração de uma pessoa no contexto de toda sua vida e experiências. Além disso, as atitudes e mentalidades estigmatizantes que existem entre a população em geral, os formuladores de políticas e outros com relação a pessoas com deficiências psicossociais e condições de saúde mental – por exemplo, que elas correm o risco de prejudicar a si mesmas ou a outros, ou que precisam de tratamento médico para mantê-las seguras – também levam a uma ênfase excessiva nas opções de tratamento biomédico e a uma aceitação geral de práticas coercitivas, tais como admissão e tratamento involuntário ou reclusão e restrição.

O documento da OMS estabelece uma abordagem tripla para “repensar” os serviços de saúde mental. Os autores argumentam que os países precisam adotar uma abordagem de direitos humanos como princípio governante, adotar concepções de recuperação centradas na pessoa e abraçar serviços que forneçam apoio ambiental e psicossocial para pessoas que lutam com questões de saúde mental.

Direitos Humanos como Princípio Governante

Em 2008, entrou em vigor a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD). Agora foi ratificada por 181 países (mas não pelos Estados Unidos). A CRPD declara que as pessoas com deficiência devem gozar dos mesmos direitos e liberdades fundamentais que todos os demais e, em essência, proíbe a hospitalização forçada e o tratamento forçado.

Entretanto, os autores da OMS observam que nenhum dos ratificantes da CRPD adotaram políticas e leis “totalmente alinhadas com esta exigência da CRPD”. Uma abordagem dos direitos humanos à saúde mental, afirmam, requer a “criação de serviços livres de coerção”. Eles detalham os danos que advêm do tratamento forçado:

A percepção da necessidade de coerção está incorporada aos sistemas de saúde mental, inclusive na educação e treinamento profissional, e é reforçada através da legislação nacional de saúde mental e outras legislações. As práticas coercitivas são difundidas e cada vez mais utilizadas em serviços em países do mundo inteiro, apesar da falta de provas de que elas oferecem quaisquer benefícios, e da significativa evidência de que elas levam a danos físicos e psicológicos e até mesmo à morte. Pessoas sujeitas a práticas coercitivas relatam sentimentos de desumanização, desresponsabilização, desrespeito e desobediência às decisões sobre questões que as afetam. Muitos experimentam isso como uma forma de trauma ou re-traumatização que leva a um agravamento de sua condição e ao aumento das experiências de angústia. Práticas coercitivas também minam significativamente a confiança e a credibilidade das pessoas nos profissionais dos serviços de saúde mental, levando as pessoas a evitar a busca de cuidados e apoio como resultado. O uso de práticas coercitivas também tem conseqüências negativas para o bem-estar dos profissionais que as utilizam.

No modelo biomédico, diz-se que as pessoas com “doença mental” grave sofrem de anasognosia, falta de discernimento sobre sua doença, e isto se torna a justificativa declarada para a hospitalização e tratamento forçados. Isto é o que dá à sociedade e aos provedores poder de tutela sobre aqueles com problemas de saúde mental e deficiências.

Este documento da OMS, ao exortar as sociedades a criar serviços livres de coerção e a promulgar leis e políticas que proíbam tal coerção, está apoiando uma mudança radical nos serviços globais de saúde mental. Proibir a hospitalização forçada e o tratamento mudaria drasticamente a estrutura de poder existente que apóia o modelo biomédico e alteraria o teor de todos os cuidados de saúde mental.

Reconceptualizando a “Recuperação”(‘Recovery’)

O modelo biomédico de saúde mental é um modelo de “doença” e, portanto, a noção de recuperação [‘recovery’] está associada a uma redução dos sintomas. O indivíduo está em recuperação de uma doença, e os medicamentos psiquiátricos são entendidos como um tratamento de primeira linha para ajudar as pessoas a se recuperarem desta forma.

Os autores da OMS argumentam que os prestadores de serviços precisam adotar uma compreensão diferente da recuperação, que surge da escuta daqueles com experiência vivida. O que eles querem para si mesmos? Quais são seus objetivos? O que eles veem como suas necessidades? Eles consideram isto como uma “abordagem de recuperação”.

A abordagem de recuperação não depende apenas dos serviços de saúde mental. Muitos indivíduos podem e criam seu próprio caminho para a recuperação, podem encontrar apoio natural e informal entre amigos e familiares e entre redes e comunidades sociais, culturais, religiosas e outras, e podem se unir para apoio mútuo na recuperação. Entretanto, a introdução da abordagem de recuperação dentro dos serviços de saúde mental é um meio importante para assegurar que os cuidados e apoio prestados às pessoas que desejam ter acesso aos serviços considerem a pessoa no contexto de toda a sua vida e experiências.

Embora a abordagem de recuperação possa ter nomes diferentes em países diferentes, os serviços que adotam esta abordagem seguem certos princípios-chave. Tais serviços não se concentram principalmente em “curar” as pessoas ou tornar as pessoas “normais novamente”. Em vez disso, esses serviços se concentram em apoiar as pessoas para identificar o que a recuperação significa para elas. Eles apoiam as pessoas para ganhar ou recuperar o controle de sua identidade e vida, ter esperança no futuro e viver uma vida que tenha significado para elas – seja através do trabalho, relacionamentos, engajamento comunitário ou alguns ou todos eles. Eles reconhecem que a saúde mental e o bem-estar não dependem predominantemente de serem “livres de sintomas”, e que as pessoas podem experimentar problemas de saúde mental e ainda desfrutar de uma vida plena.

Modelos de Programas

A orientação da OMS fala da necessidade de que as sociedades desenvolvam serviços de saúde mental não coercitivos e que respeitem os princípios dos direitos humanos estabelecidos na CRPD, e que promovam a recuperação centrada na pessoa, como descrita acima. A publicação apresenta 22 programas desse tipo. Embora “nenhum seja perfeito”, escrevem os autores, “estes exemplos fornecem inspiração e esperança, pois aqueles que os estabeleceram deram passos concretos em uma direção positiva em direção ao alinhamento com a CRPD”.

Aqui está uma breve descrição de cada programa modelo:

Alternativas à hospitalização: centros de crise

Afiya House em Massachusetts. Este centro de repouso aberto em 2012 e que apoia pessoas em dificuldade, servindo assim como uma alternativa à hospitalização. Ele é operado pela Wildflower Alliance (antiga Western Mass Learning Community), que é formada por pessoas que se identificam como pares, tendo enfrentado seus próprios “desafios de interrupção de vida, tais como diagnósticos psiquiátricos, traumas, falta de moradia, problemas com substâncias e outras questões”. A Afiya House pode acomodar três pessoas de cada vez, e as pessoas em crise podem ficar por até sete noites. Link de vídeo.

Link House em Bristol, Reino Unido. Fundada em 2010, a Link House é um centro residencial para mulheres que estão passando por uma crise de saúde mental e estão desabrigadas ou incapazes de viver em casa devido a problemas de saúde mental. A casa, com cozinha e jardim compartilhados, tem espaço para 10 mulheres de cada vez, que podem ficar por até quatro semanas. Ela foi projetada como uma alternativa para a admissão em um hospital psiquiátrico. O foco está no apoio social, em vez de cuidados “médicos”. Link de vídeo.

Serviço de Diálogo Aberto para Crises na Lapônia, Finlândia. Este serviço ambulatorial oferece uma intervenção baseada em psicoterapia para indivíduos da Lapônia Ocidental que apresentam uma crise de saúde mental. A equipe de serviço é composta por 16 enfermeiras, uma assistente social, um psiquiatra, um psicólogo, um terapeuta ocupacional e uma secretária. A psicoterapia “tenta promover o potencial de auto-exploração e autodeterminação do cliente”. Link de vídeo.

Tupu Ake no sul de Auckland, Nova Zelândia. Criada em 2008, esta casa de “recuperação”, que conta com uma equipe de pares, oferece uma alternativa à hospitalização. Ela pode acomodar 10 pessoas que estão em crise para estadias de até uma semana. Ela também oferece um programa de apoio diário para até cinco pessoas. Link de vídeo.

Credit: Wise Management Services Ltd, courtesy of Tupu Ake

Serviços de saúde mental com base hospitalar

Unidade de Terapia de Exposição Basal no Hospital Blakstad em Asker, Noruega. Esta unidade está equipada com seis leitos e fornece cuidados psicossociais chamados de terapia de exposição basal (BET) para pessoas com condições complexas de saúde mental que não se beneficiaram dos cuidados convencionais. A BET se concentra na aceitação de pensamentos amedrontadores, sentimentos e experiências internas como uma forma de auto-regulação e lidar com os desafios existenciais; e procura ajudar os pacientes a reduzir ou afinar os medicamentos psiquiátricos. Link de video.

Kliniken Landkreis Heidenheim General Hospital na Alemanha. Em 2017, o hospital introduziu um serviço de saúde mental flexível, orientado ao usuário e baseado na comunidade, que tem sido citado por seu foco na prevenção da coerção. Todos, inclusive aqueles detidos no hospital, têm o direito de recusar medicamentos e, de 2011 a 2016, nenhum paciente foi forçado a tomar um medicamento psiquiátrico. Desde aquela época, devido a ordens judiciais, aproximadamente uma pessoa por ano tem sido tratada à força com medicamentos no hospital. Link de video.

Soteria em Berna, Suíça. Em funcionamento desde 1984 e modelada após a Soteria House que operou na Califórnia durante os anos 70, a Soteria Berne oferece um centro residencial de crise hospitalar para aqueles que vivem em estados extremos (ou que têm um diagnóstico de psicose ou esquizofrenia.) A Berne House está localizada em uma área residencial e tem 10 quartos para indivíduos e dois funcionários. Os residentes podem ficar por até três meses. A filosofia da Soteria é que “estar com” os outros durante uma crise pode ser terapêutico, com baixo ou nenhum uso de medicamentos antipsicóticos. Link de video.

Centros comunitários de saúde mental

Clínica Aung em Yangon, Mianmar. Esta clínica oferece uma extensa gama de serviços de apoio ambulatorial que são projetados para ajudar as pessoas a permanecerem fora dos hospitais e instituições de longa permanência. O pessoal, que inclui cinco funcionários de apoio de pares (ex-usuários), trabalha de perto com escolas, empregadores e organizações locais para ajudar os usuários dos serviços a participar de atividades comunitárias. As exposições de arte permitem que os usuários de serviços vendam sua arte. Há também um clube de culinária semanal e apoio para treinamento em alfabetização, matemática, administração de dinheiro e carpintaria. Link de video.

Credit: Aung Clinic, Myanmar

CAPs III em São Paulo, Brasil. Centros comunitários de saúde mental no Brasil foram estabelecidos para servir como alternativas aos hospitais psiquiátricos. Os CAPs III, em São Paulo, proporcionam um ambiente familiar onde as pessoas em crise podem ficar por até 14 dias. O centro utiliza uma abordagem baseada em direitos e centrada nas pessoas para o atendimento psicossocial que é projetada para promover a autonomia, resolver desequilíbrios de poder e aumentar a participação social. Link de video.

Phoenix Clubhouse em Hong Kong. Isto faz parte de uma rede internacional de clubhouses que fornecem apoio vocacional e educacional baseado na comunidade para pessoas que utilizaram serviços de saúde mental. A casa de Hong Kong funciona desde 1998 e ajuda as pessoas a permanecerem fora dos hospitais enquanto alcançam objetivos sociais, financeiros e vocacionais. Link de video.

Serviços de saúde mental de apoio entre pares

Grupos de apoio de Vozes Auditivas. O Movimento Hearing Voices começou na Holanda no final dos anos 80. Atualmente existem redes de Ouvidores de Vozes em 30 países. Um princípio fundamental do Movimento de Ouvidores de Vozes é que ouvir vozes é uma parte normal da experiência humana, e que ao invés de ter suas vozes reprimidas por medicamentos, as pessoas devem ser encorajadas a desenvolver sua própria compreensão de suas experiências de audição de voz. Link de video.

Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria no Quênia. A USP-K é uma organização nacional, baseada em membros que conta com grupos de apoio de pares para reunir pessoas com deficiências psicossociais e condições de saúde mental. Os grupos buscam apoiar, promover e defender os direitos dos indivíduos de viver e trabalhar como membros comuns de suas comunidades.

Credit: USP, Kenya

Apoio aos colegas do Sudeste de Ontário no Canadá. Esta organização fornece apoio de pares em cinco hospitais do sudeste de Ontário, e apoio de um-para-um para as pessoas após sua alta do hospital. Os pares fornecem assistência, amizade e apoio por até um ano após a alta de uma pessoa, procurando minimizar o risco de re-hospitalização. Link de video.

Serviços de saúde mental de alcance comunitário

Atmiyata em Gujarat, Índia. Estabelecido em 2017, este serviço voluntário comunitário apoia as pessoas que experimentam sofrimento emocional em comunidades rurais do estado de Gujarat, no oeste da Índia. A compaixão compartilhada é o princípio central de seu trabalho, pois eles procuram construir a aceitação comunitária das pessoas que lutam com condições de saúde mental e proporcionar-lhes acesso a benefícios de assistência social. Link de video.

Credit: Atmiyata, Gujarat

Banco da Amizade no Zimbábue. Criada em 2006, a Friendship Bench conta com conselheiros leigos para apoiar as pessoas que experimentam sofrimento emocional. O serviço de proximidade oferece empatia, conhecimento da comunidade local e cultural, e técnicas formais de solução de problemas. O serviço de aconselhamento gratuito está ligado ao centro de saúde primário local, e geralmente é entregue do lado de fora em um banco de madeira. Link de video.

Foco em casa em West Cork, Irlanda. Criado em 2006, este serviço fornece apoio prático e emocional às pessoas com condições de saúde mental que vivem em áreas rurais. Os membros da equipe incluem pessoas com experiência vivida. A equipe se concentra em ajudar as pessoas a permanecerem ativas em suas comunidades, desenvolver habilidades de vida independente e ter acesso a educação e oportunidades de emprego.

Naya Daur em Bengala Ocidental, Índia. Este é um projeto emblemático de uma ONG sediada em Kolkata-, e procura fornecer apoio comunitário, tratamento e cuidados a pessoas desabrigadas que têm uma condição de saúde mental ou deficiência psicossocial. Um foco principal é ajudar as pessoas a se conectarem com suas comunidades locais de uma forma de apoio e ajudá-las a desenvolver relacionamentos de longo prazo. Link de video.

Personal Ombudsman, Suécia. O sistema de ouvidoria pessoal na Suécia foi lançado em 2000. Os ombudsmen pessoais são assistentes sociais treinados, advogados, ou têm formação em medicina, enfermagem, psicologia ou psicoterapia. Cada ombudsman pessoal trabalha com 13 a 20 clientes de cada vez, fornecendo assistência em assuntos familiares, assistência médica, moradia, finanças, emprego e integração comunitária. O serviço tem sido descrito como uma “amizade profissional”. Link de video.

Serviços de apoio à vida

Viver de mãos dadas na Geórgia. Esta ONG oferece instalações de vida comunitária independente para pessoas com deficiências psicossociais de longo prazo, incluindo pessoas que foram previamente institucionalizadas. A Hand in Hand abriu seis casas em Gurjanni e Tbilisi que acomodam um total de 30 adultos. Os residentes preparam comida, cuidam da casa e do jardim, participam de passatempos, participam de vários eventos culturais e são encorajados a interagir com seus vizinhos. As casas foram estabelecidas depois que o país, em 2015, estabeleceu um plano de cinco anos para a desinstitucionalização de seu sistema de saúde mental. Link de video.

Novamente em casa em Chenai, Índia. Fundada em 2015, Home Again oferece moradia para mulheres com condições de saúde mental de longo prazo que estão sem teto ou vivendo na pobreza em três estados da Índia: Tamil Nadu, Kerala, e Maharashtra. O serviço é impulsionado pela convicção de que viver na comunidade em um ambiente familiar ou doméstico é um direito humano básico. As pessoas que utilizam o serviço são encorajadas a se envolverem com todos os aspectos da vida comunitária, incluindo trabalho, lazer, recreação e oportunidades sociais. Link de video.

KeyRing Living Support Networks, Reino Unido. Desde 1990, a KeyRing tem fornecido serviços de apoio à vida para pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais em mais de 100 comunidades em toda a Inglaterra e País de Gales. Cada rede administra cerca de 10 lares a uma distância de caminhada uns dos outros para que os residentes possam se conectar uns com os outros e se envolver mais na comunidade. Link de video.

Vidas Compartilhadas na Grã-Bretanha e na Irlanda do Norte. O Shared Lives é uma forma de assistência social apoiada pelo Estado que opera em todo o Reino Unido, que fornece apoio às pessoas em um ambiente comunitário. As Famílias de Vidas Compartilhadas fornecem apoio para as pessoas em crise, oferecendo uma alternativa à hospitalização. Link de video.

Uma Nova Narrativa

Embora os modelos de “bons cuidados” identificados no documento da OMS operem em ambientes diferentes, todos compartilham uma filosofia semelhante: o respeito pela autonomia do indivíduo com dificuldades de saúde mental e a crença de que proporcionar abrigos acolhedores e uma conexão com a comunidade, com oportunidades para o desenvolvimento de amizades, pode ajudar as pessoas a alcançar um tipo de recuperação que seja significativo para elas.

A orientação da OMS não gasta muita energia criticando o modelo biomédico de cuidado, mas há uma mensagem implícita em todas as suas páginas: esse modelo de cuidado falhou, e o que é necessário agora é repensar de forma fundamental aquilo que é possível. Os autores escrevem:

Uma mudança fundamental dentro do campo da saúde mental é necessária, a fim de acabar com esta situação atual. Isto significa repensar políticas, leis, sistemas, serviços e práticas nos diferentes setores que afetam negativamente as pessoas com condições de saúde mental e deficiências psicossociais, assegurando que os direitos humanos sustentem todas as ações no campo da saúde mental. No contexto específico dos serviços de saúde mental, isto significa um movimento em direção a práticas mais equilibradas, centradas na pessoa, holísticas e orientadas à recuperação que consideram as pessoas no contexto de suas vidas inteiras, respeitando sua vontade e preferências no tratamento, implementando alternativas à coerção, e promovendo o direito das pessoas à participação e inclusão comunitária.

Este é o próprio apelo à mudança que o Mad in America (MIA) vem promovendo desde o seu início. Olga Runciman, membro da diretoria da Mad in America, é nomeada na orientação da OMS como uma das especialistas que forneceram “direção estratégica” para esta declaração política. Outros que fizeram blog para Mad in America ou foram entrevistados em podcasts da MIA – como Sera Davidow e Pat Bracken – contribuíram para o relatório.

O relatório da OMS é um acontecimento marcante. Ele conta como a Organização Mundial da Saúde, seguindo os passos da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o trabalho do ex-Relator Especial da ONU para a Saúde Dainius Pūras, está agora apelando para uma mudança profunda. Uma reformulação global da saúde mental está claramente em andamento, e os modelos de programas destacados nesta publicação da OMS, a maioria dos quais são de origem bastante recente, falam de iniciativas do mundo real que estão surgindo em todos os lugares.

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