2ª Temporada – Episódio #5 – Entrevista Maria Aparecida Moysés

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O último episódio de 2024 do Enloucast traz como convidada a médica pediatra Maria Aparecida Moysés, professora titular da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, com atuação no ensino e na pesquisa na área de atenção à saúde. Em entrevista às apresentadoras Camila Motta e Jéssica Marques, do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz), Cida é considerada uma importante militante do movimento Despatologiza, que articula discussões em prol da despatologização da vida, com foco tanto em questões do cotidiano quanto do ambiente educacional.

Assista e entrevista completa:

 

Reforma psiquiátrica Brasileira: alternativas ao diagnóstico psiquiátrico (1)

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Este é o quarto de uma série de blogs’ onde estou propondo uma análise do processo de reforma psiquiátrica no Brasil. Há que se ter coragem para repensar e desaprender.

Iniciei a série formulando uma pergunta que considero desafiadora: “Por que no Brasil não há movimentos organizados de ex-usuários e/ou sobreviventes da psiquiatria?” No segundo ‘blog’ a questão principal foi “como é possível a reforma conviver com a ‘internação involuntária’ “?. Na semana passada comecei a colocar em questão o papel do diagnóstico psiquiátrico entre nós. Neste quarto eu darei continuidade à essa problemática do diagnóstico psiquiátrico. Desta vez irei trabalhar com a questão “que é possível substituir o diagnóstico psiquiátrico com estórias e narrativas de todos os tipos”. 

  1. A reforma psiquiátrica e sua dependência ao modelo biomédico da psiquiatria

Há como abandonar o DSM/CID?” Responder a essa pergunta é essencial. Porque não basta sermos críticos aos manuais de diagnóstico oficiais. Tampouco basta fazermos críticas à ‘medicalização’ ou à chamada ‘medicalização da vida’, sem oferecer alternativas seguras e eficazes ao papel da psiquiatria em nossa sociedade.

O que me chama a atenção é que décadas de reforma psiquiátrica no Brasil já se passaram e não construímos ainda um sistema alternativo ao diagnóstico psiquiátrico. Será que não seria porque a reforma nunca enfrentou com coragem o ‘modelo biomédico’ da psiquiatria? Esta é a minha hipótese.

Há uma grande quantidade de evidências de que as circunstâncias de vida das pessoas têm um enorme papel no desenvolvimento e na manutenção de problemas psicológicos, emocionais e comportamentais. Entre os fatores mais importantes estão: classe social e pobreza; desigualdade de renda, desemprego; habitação precária; negligência na infância e abuso sexual, físico e emocional; violência sexual e doméstica; pertencer a grupos sociais subordinados; viver em uma área de alta criminalidade ou áreas de guerra e conflito; sofrer assédio moral, perseguição e discriminação; ser um refugiado; sofrer perdas significativas tais como perda de um pai na infância; etc.

No entanto, ao mantermos o ‘modelo biomédico’ da psiquiatria como referência, a importância do contexto social e como ele pode ‘agir’ psicologicamente nas pessoas é reduzido à lógica da doença.

  • As pessoas são alocadas nesta ou naquela categoria psiquiátrica. É usado o modelo biomédico de diagnóstico, ignorando os problemas de confiabilidade e validade do diagnóstico psiquiátrico amplamente criticamente analisados na literatura científica. O que cientificamente é um grande absurdo, para não empregarmos palavras mais fortes.
  • Pelo ‘modelo biomédico’, o ‘contexto’ social é visto enquanto eventos negativos de vida ou fatores estressantes, traumas ou adversidades, segundo uma teoria de vulnerabilidade-estresse (mais adiante explicarei melhor em que isso implica). Para já ir adiantando o que estou querendo dizer, vou dar dois exemplos. O primeiro, é uma versão ‘biologicista’: uma adversidade na infância influencia o desenvolvimento do cérebro que por sua vez cria uma supersensibilidade aos estressores ambientais. O segundo, uma versão ‘psicologicista’: vulnerabilidade enquanto características psicológicas individuais—percepções, crenças, disposições ou déficits—adquiridas de uma adversidade anterior influenciam respostas posteriores.
  • Ironicamente, o ‘contexto’ social é individualizado. O que ajuda a marginalizar as pessoas. O problema é do ‘indivíduo’. Os fatores do ambiente, como esses há pouco mostrados, ficam ‘fora’ do sujeito, como se fossem um vírus, um protozoário, um acidente.
  • Ao se tomar como referência as categorias de diagnóstico psiquiátrico, com a sua enorme heterogeneidade e a sobreposição entre si, o problema é que ‘todo mundo sofre de qualquer coisa’ ou que ‘de perto ninguém é normal’.
  • Logo, o contexto social pode ser caracterizado como ‘tudo causa tudo’, quer dizer, cada tipo de adversidade parece despertar o risco de toda uma gama de problemas e, de forma similar, cada tipo de fator mediador está associado a toda uma gama de problemas. Parece estar a se dizer muito, quando na prática se diz nada e não mais do que restos de nada.

Mas é possível se abordar os problemas psíquicos sem necessidade de recorrer às categorias de diagnóstico psiquiátrico.

É o que foi recentemente demonstrado pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia. Trata-se do documento publicado em janeiro de 2018, com cerca de 412 páginas, com o título The Power Threat Meaning Framework, (PTMF), que em português seria a Abordagem Poder, Ameaça, Sentido (APAS).

Nós brasileiros tivemos a oportunidade de ter entre nós uma das autoras do documento do PTMF, a doutora psicóloga Lucy Johnstone, como palestrante do 3 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, promovido pelo LAPS, nas dependências da ENSP/FIOCRUZ. Quem tiver interesse em ter acesso ao seu conteúdo de uma forma mais sintética, há o livro recentemente publicado (Boyle & Johnstone, 2021). O que eu farei aqui será destacar alguns trechos que considero que melhor expressam o valiosíssimo conteúdo do PTMF.

  1. “Problemas de saúde mental podem afetar qualquer um?”

Dizer que os problemas de saúde mental podem afetar qualquer um em algum momento das nossas vidas tem uma dimensão universal. Mas depende do significado que se está dando à afirmação. Pode significar que os ‘transtornos mentais’ existem separados de nós, que ‘acontecem’ para nós. Assim como pode significar que os ‘transtornos mentais’ são reações compreensíveis às experiências difíceis de nossas vidas. A perspectiva com a qual estou trabalhando é essa última.

Quer dizer, é inerente à condição humana (senão a de todos os seres sencientes) experimentar sofrimento emocional, experiências não usuais e comportamento perturbado ou perturbador, em momentos de nossas vidas. O que não quer dizer que isso seja alguma ‘doença’ — ‘doença mental’.

Não é universal que ‘qualquer um’ ingresse em serviços de saúde mental ou que seja diagnosticado psiquiatricamente. As chances para que os ‘transtornos mentais’ sejam abordados enquanto ‘objeto’ de saúde variam enormemente com as circunstâncias de nossas vidas—com o que aconteceu conosco.

Há uma enorme quantidade de evidências acerca das circunstâncias e eventos que estão mais fortemente ligados com as muitas formas de sofrimento e comportamento perturbador.

Os números são muito impressionantes. Selecionei alguns estudos. O próprio Mad in Brasil (MIB) vem sistematicamente apresentado evidências sistematicamente publicadas.

O primeiro estudo é o que relatou que pessoas que experimentaram qualquer uma da série de adversidades na infância, tais como abuso sexual, físico ou emocional, perda de um dos pais, haver sofrido assédio moral, têm quase que três vezes mais chances de receber um diagnóstico de ‘transtorno psicótico’ (Varese et al., 2012).

Sugiro esse outro estudo que mostra que a probabilidade que alguém receba um diagnóstico de ‘transtorno psicótico’ aumenta com a extensão e a gravidade do abuso e da adversidade (Janssen et al., 2004). Pessoas que sofreram três tipos de abusos tinham 18 vezes maior probabilidade para serem diagnosticadas como ‘psicóticas’, enquanto com aquelas que sofreram os mais graves tipos de abuso o risco cresceu 48 vezes.

Esse outro estudo relatou que pessoas que tiveram cinco ou mais ‘experiências adversas na infância’ tinham 10 vezes mais de chances de serem prescritas drogas ‘antipsicóticas’ e 17 vezes mais chances para a prescrição de drogas ‘estabilizadoras do humor’ (Anda, R et al., 2007).

Estudos das pessoas que são admitidas em unidades de assistência psiquiátrica sugerem que a maioria já experimentou algum tipo de abuso ou negligência na infância (McFetridge et al., 2015; John Read & Argyle, 2005).

E não se pode deixar de considerar que, em geral, a violência contra as meninas e as mulheres é reconhecida no mundo inteiro como sendo uma das causas líderes de danos psicológicos (UNFPA, n.d.).

  1. As principais questões do PTMF

A proposta da Abordagem Poder, Ameaça e Significado é que ela seja feita a partir de algumas perguntas básicas, que são as seguintes:

  • “O que aconteceu com você?” (Como o poder está operando em sua vida?)
  • “Como ele afetou você?” (Que tipo de ameaças isso representa?)
  • “Que sentido você fez disso?” (Qual é o significado dessas situações e experiências para você?)
  • “O que você tem que fazer para sobreviver?” (Que tipos de respostas às ameaças você está usando?)
  • “Quais são os seus pontos fortes?” (Que acesso às fontes de poder você tem?)
  • … e para integrar todas as questões acima: “Qual é a sua história?

 Observem que essas questões nos abrem portas para se ter acesso a outros contextos de abordagem dos ‘problemas psicológicos’ apresentados pelos pacientes (‘usuários’ da psiquiatria).

  1. Os principais fundamentais da Abordagem Poder, Ameaça e Significado

Como eu já anunciei, nos próximos ‘blogs’ irei apresentar mais detalhadamente os principais componentes teórico-práticos dessa abordagem desenvolvida pelos colegas psicólogos britânicos. Para concluir este ‘blog’, apresento os seus princípios. Nós podemos ver que eles são fundamentalmente diferentes daqueles sustentados pelo modelo de diagnóstico. E os transcrevo na íntegra.

  • O sofrimento emocional, como todas as experiências humanas, é experimentado e expressado em parte através dos nossos corpos. Mas, sendo verdadeiro que todas as nossas experiências têm aspectos físicos, nem todo o sofrimento é melhor entendido como uma doença médica com causas e tratamentos principalmente biológicos.
  • Nós nunca seremos capazes de fazer simples ligações entre ‘isso aconteceu comigo’ e ‘isso é o resultado’. Isso porque, quando as coisas vão mal em nossas vidas, o resultado é moldado por uma multiplicidade de fatores, incluindo o suporte que recebemos e o significado que damos à situação. Ninguém está condenado a um sofrimento emocional ou ‘doença mental’ por toda a sua vida devido às experiências difíceis de vida.
  • As origens das experiências que nós chamamos de ‘problemas de saúde mental’ são, quando rastreados de volta às suas raízes, sociais e políticos. É por isso que a abordagem proposta pelos colegas britânicos vai muito mais longe do que terapia e apoio indivíduo para indivíduo. Os julgamentos de como nós devemos pensar, sentir e comportar estão baseados em valores, não em critérios médicos objetivos, e esses valores baseiam-se em suposições profundamente arraigadas acerca dos tipos de pessoas nós deveríamos ser e o tipo de vidas que deveríamos ter. Sentir-se como incapaz para conformar a vida segundo as expectativas pode ser uma forte causa de sofrimento, mesmo que não se tenha experimentado óbvios traumas ou adversidade.
  • Expressões e experiências de sofrimento serão sempre moldadas pela cultura na qual elas aparecem. Ao invés de exportar o modelo de diagnóstico pelo mundo afora, as sociedades ocidentalizadas têm muito o que aprender com os entendimentos não-ocidentais de sofrimento e cura.
  • Os seres humanos são fundamentalmente seres sociais, não indivíduos separados fazendo as suas próprias jornadas puramente pessoais. O sofrimento surge e pode ser curado apenas através das nossas relações pessoais e sociais e em nossas comunidades mais amplas.
  • Os seres humanos têm ’agência’ – em outras palavras, não são apenas passivamente agidos por forças externas, como no caso de uma infecção que (digamos) ataca seus pulmões e o faz tossir. Evidentemente, nós podemos enfrentar severas restrições, tais como não ter condições para uma boa moradia ou comida suficiente. Ao mesmo tempo, nós ainda conservamos a habilidade para fazer algumas escolhas em nossas vidas, ainda que as opções sejam muito limitadas.
  • As respostas descritas na psiquiatria como ‘sintomas’ são na verdade a nossa melhor tentativa para sobreviver em situações difíceis, tanto no passado como no presente. Elas representam o que as pessoas fazem frente às dificuldades, conscientemente ou não, não são uma doença que elas têm.
  • Os seres humanos são criadores de significados, e esses significados surgem de nossas experiências, nossas relações e nossos contextos sociais e culturais. Nós todos tentamos dar sentido às nossas circunstâncias, boas e ruins, e isso molda como nós somos afetados por elas e como respondemos a elas.
  • Um dos efeitos mais nocivos do diagnóstico psiquiátrico é o de obscurecer os significados pessoais. Se ouvir vozes, ter mudanças de humor ou estar morrendo de fome são vistos como ‘sintomas’ de uma ‘doença’, então não há mais razão para se explorar as experiências de vida e o sentido que se dá a elas. A ‘Abordagem Poder, Ameaça e Sentido’, em contraste, argumenta que nós necessitamos nos mover para fora da abordagem médica e colocar como foco central o sentido, narrativa e experiência pessoal.
  • Uma das implicações desses princípios fundamentais é que estórias e narrativas de todos os tipos podem substituir o diagnóstico psiquiátrico.

Na próxima semana darei continuidade. Estou fragmentando a apresentação do PTMF para facilitar a leitura. Reitero a importância de se ir às fontes de onde eu estou retirando todos esses ensinamentos. Algumas dessas fontes eu citei no começo deste ‘blog’. E sugiro mais esta outra: página oficial do PTMF.

Até a semana que vem!

REFERÊNCIAS:

Anda, R, F., Briwbm D, W., Felitti, V. J., Bremner, J. D., Dube, S. R., & Giles, W. H. (2007). Adverse childhood experiences and prescribed psychotropic medications in adults. American Journal of Preventive Medicine, 32, 389–394.

Boyle, L., & Johnstone, L. (2021). The Power Threat Meaning Framework. PCCS BOOKS.

Janssen, I., Krabbendam, L., Bak, M., Hanssen, M., Vollebergh, W., de Graaf, R., & van Os, J. (2004). Chidhood abuse as a risk factor for psychotic experiences. Acta Psychiatrica Sandinavica, 109, 38–45.

McFetridge, M. A., Milner, R., Gavin, V., & Levita, L. (2015). Borderline personality disorder: Patterns of self-harm, reported childhood trauma and clinical outcomes. British Journal of Psychiatry Open, 1(1), 18–20.

Read, J. (2005). The bio-bio-bio model of madness. The Psychologist, 18, 596–597.

Read, John, & Argyle, N. (2005). Childhood Trauma, Psychosis and Schizophrenia: A literature Review with Theoretical and Clinical Implication. Acta Psychiatric Scandinavica, 112(5), 330–350.

UNFPA. (n.d.). Gender-based violence.

Varese, F., Smeets, F., Drukker, M., Lieverse, R., Read, J., & van Os, J. (2012). Childhood adversities increase the risk of psychosis: a meta-analysis of patient-control, prospective- and cross-sectional cohort studies. Schizophrenia Bulletin, 38 (4), 661–671.

Psicose nos EUA Inseparável do Racismo e da Desigualdade Estrutural, Argumentam os Pesquisadores

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Uma recente revisão publicada no American Journal of Psychiatry examinou características do ambiente social com resultados ao longo do ‘continuum’ da psicose, desde experiências psicóticas até à esquizofrenia.

Informada pelo quadro de referência dos Determinantes Sociais da Saúde (SDoH), esta revisão narrativa se concentra nos fatores de risco existentes nos bairros, em traumas em nível coletivo e individual, e nas complicações experimentadas durante os períodos perinatais. Esses três fatores refletem as condições sociais e ambientais que se correlacionam com o risco de psicose e são em grande parte moldados pelo racismo estrutural.

Ao descrever como o legado do racismo estrutural tem levado às consequentes desigualdades raciais nas condições ambientais, os autores oferecem um modelo que liga o racismo estrutural ao risco de psicose e recomendam que o campo da psiquiatria dedique mais esforços para abordar essa ligação nas prioridades de financiamento, treinamento e desenvolvimento da intervenção. Os autores, liderados pela professora de psicologia da SUNY, Deidre Anglin, escrevem:

“Nossa revisão da literatura baseada nos Estados Unidos sobre determinantes sociais revela um padrão de disparidades raciais para os fatores de risco estabelecidos para psicose. Que o racismo tenha estruturado historicamente os sistemas sociais dos EUA significa que a vizinhança e o contexto social podem conter uma parcela significativa da contribuição relativa do risco para a psicose.”

O quadro de referência dos Determinantes Sociais da Saúde (SDoH) refere-se às condições nos locais onde as pessoas vivem, aprendem, trabalham e se divertem que afetam uma ampla gama de riscos e resultados de saúde e qualidade de vida. Os modelos teóricos que examinam os determinantes sociais da saúde mental relacionam políticas e normas sociais que criam iniquidades generalizadas com o risco biológico que irão afetar o início, a gravidade e a remissão das psicopatologias.

Os autores salientam que o fato de ser de uma raça particular, em si mesmo, não é o que aumenta o risco de patologia. Ao contrário, são sim as barreiras estruturais e a discriminação enfrentadas por certos grupos que criam o aumento do risco.

O racismo estrutural é definido como uma construção social de estratificação taxonômica do poder baseada em ser branco e influencia muito as políticas sociais. As iniquidades que provoca têm resultados duradouros para grupos minoritários, limitando o acesso aos recursos por meio da segregação da comunidade, por exemplo, e limitando a liberdade individual de controlar as circunstâncias da vida.

Dentro da psiquiatria, tem havido investimento limitado na compreensão de como o SDoH e o racismo estrutural contribuem para a complexa etiologia da doença mental. O foco predominante do campo tem sido colocado na compreensão dos fatores biológicos e individuais, apesar da crescente importância da confluência de fatores biológicos e sociais.

Os Estados Unidos ficaram atrás da Europa no exame da ligação entre o status de minoria e a incidência de psicose. A pesquisa realizada tem sido complicada por fatores-chave, incluindo a falta de um registro de saúde centralizado, questões metodológicas com seleção de amostras e diagnósticos errôneos baseados em grupos raciais percebidos.

Vários estudos americanos mostram que pessoas negras e latinas estão excessivamente representadas na população de pacientes com transtornos psicóticos. Isto levou os clínicos a interpretarem/atribuírem mal a sintomologia e a diagnosticarem esquizofrenia em excesso, particularmente para negros e afro-americanos.

“Embora a incidência e prevalência de psicose entre grupos raciais nos Estados Unidos continue inconclusiva, o papel central que o racismo estrutural desempenha na formação da distribuição dos fatores de risco para a psicose na população americana não desperta controvérsias”, escrevem os autores. “Esta taxonomia social nos Estados Unidos tem raízes em uma história de trauma racial que deu origem a um sistema difundido de racismo estrutural que persiste até hoje.”

Os autores ampliam esta história de trauma racial discutindo o genocídio dos povos originários e a escravidão dos afroamericanos que criou as bases para construir a riqueza e o capital dos brancos americanos. As repercussões destes traumas históricos são evidentes nas acentuadas desigualdades entre as linhas raciais.

Um exemplo notável desta desigualdade é mostrado em Nova Jersey, onde o ingresso líquido médio para as famílias brancas é de US$ 309.396 em comparação com apenas US$ 7.020 e US$ 5.900 para as famílias latinas e negras. Estes exemplos falam das experiências vividas muito diferentes de famílias de grupos minoritários com a educação, assistência médica e experiências de bairro.

Esta revisão narrativa proporciona uma integração do trabalho com base nos EUA sobre os determinantes sociais da psicose. Ela explora como uma herança de racismo estrutural molda o risco da psicose através de determinantes sociais em múltiplos níveis. Os autores incluíram estudos através do ‘continuum’ da psicose e estudos selecionados que conectam os determinantes sociais a possíveis mecanismos biológicos subjacentes, aos hormônios do estresse, à atividade neural e conectividade, e aos mecanismos epigenéticos.

Os resultados se concentraram em fatores de bairro, traumas no contexto dos EUA e disparidades raciais durante os períodos pré e perinatais.

O Bairro

É provável que fatores de nível de bairro interajam com fatores psicológicos que aumentam o estresse crônico através de gerações. Essas condições adversas de bairro, como a exposição a toxinas ambientais e concentrações de crime, estão associadas com o aumento da prevalência e severidade do fenótipo da psicose prolongada. Os autores explicam:

“Os bairros dos EUA evoluíram para perpetuar de forma sistemática e geracional a desvantagem para as comunidades racialmente minoritárias, através da segregação e das discriminações formais e informais transmitidas pelas gerações. Essas forças mantêm a desigualdade sistêmica no acesso de toda a comunidade a recursos, serviços, riqueza e oportunidades, incluindo acesso a alimentos saudáveis, água potável, ar limpo, parques, cuidados infantis acessíveis, assistência médica, educação, oportunidades de emprego e moradia segura.”

Estudos têm mostrado que o medo de ser “empurrado para fora” do seu bairro, a dinâmica racial estressante em uma comunidade urbana, e viver em várias casas no espaço de um ano, tudo isso leva a um aumento do risco de experiências com o espectro da psicose. Além disso, estudos europeus mostraram que a falta de espaço verde e a exposição a toxinas ambientais se correlacionam com a psicose.

Trauma em um contexto americano

Eventos traumáticos agudos ou crônicos e grandes estresses de vida, tais como experiências adversas na infância, também têm sido ligados a sintomas psicóticos. Em um estudo, 86% dos indivíduos diagnosticados com esquizofrenia relataram pelo menos uma experiência adversa na infância.

Esses traumas podem se cruzar com traumas raciais históricos coletivos, levando ao aumento do estresse crônico e a eventos traumáticos. Por exemplo, a vitimização policial e a violência armada são crises de saúde social que afetam de forma desproporcional as comunidades racialmente minoritárias. A morte por violência policial e o homicídio por arma de fogo são as principais causas de morte entre os negros.

“A violência policial, em particular, pode ter um impacto maior na saúde mental porque é exercida por pessoas que são autorizadas pelo Estado a praticar a violência, e há pouco recurso legal contra essa violência. Os negros, especificamente, têm uma chance de 1 em 1.000 de serem vítimas de força letal pela polícia durante sua vida, em contraste com 39 em 100.000 para seus homólogos brancos.”

Isto cria um tipo peculiar de trauma coletivo nos Estados Unidos que difere muito da comunidade global mais ampla. Países similares como Inglaterra e Japão relatam zero a sete assassinatos por policiais em um ano, em comparação com a média de 1.100 incidentes por ano nos EUA. Os autores argumentam que a violência policial e a violência armada deveriam receber mais atenção como um determinante social do risco de psicose nos Estados Unidos relacionado ao estresse e ao trauma.

Disparidades raciais durante os períodos pré e perinatal

A revisão dos autores sobre complicações obstétricas sugere que a discriminação entre as mães negras e latinas provavelmente contribui para essas complicações devido ao aumento das respostas ao estresse. As complicações obstétricas têm sido associadas ao aumento do risco de transtornos psicóticos nos EUA.

O estudo destaca que a maioria das pesquisas focadas nestes fatores de risco foram inicialmente baseadas em coortes de nascimento nos anos 50 e 60 e sofreram efeitos de coorte devido ao clima político e características demográficas, tornando-as, portanto, não generalizáveis às amostras contemporâneas.

Além disso, nenhum desses estudos incorporou adequadamente as conhecidas disparidades raciais e étnicas nas complicações congênitas. Isto é de suma importância porque as mulheres negras nos EUA correm um risco significativo de complicações obstétricas, mesmo quando se controla o status socioeconômico.

Fatores de vizinhança e no indivíduos parecem afetar as disparidades de resultados para as mulheres negras, tais como a exposição a contaminantes ambientais ligados ao nascimento prematuro e ao baixo peso ao nascer, a percepção de discriminação que prediz um menor peso ao nascer, e a probabilidade das mulheres negras terem níveis mais baixos de cortisol durante o segundo trimestre. Esta última descoberta foi observada entre as mulheres diagnosticadas com transtorno de estresse pós-traumático relacionado a uma vida inteira de exposição ao aumento do estresse devido a repetidas experiências discriminatórias.

Cumulativamente, estas descobertas e outras mais revelam um quadro complexo potencialmente levando a maus resultados ao nascimento e ao risco subseqüente de transtornos psicóticos na vida adulta.

“Em geral, estas descobertas sugerem que as desigualdades raciais e étnicas nas taxas de complicações obstétricas nos Estados Unidos poderiam contribuir para uma trajetória de desenvolvimento em direção à psicose e descobertas de maiores taxas de esquizofrenia entre indivíduos negros, populações imigrantes e, potencialmente, outros grupos menos estudados que experimentam altas taxas de discriminação (por exemplo, por causa da religião, sexualidade e outras identidades raciais e étnicas)”.

Dada esta revisão dos impactos do racismo sobre os determinantes sociais da psicose, os autores insistem que a adoção de uma abordagem antiracista dentro da psiquiatria é indispensável para se interromper o ‘status quo’. Não existem atualmente programas conhecidos de intervenção e tratamento que visem diretamente os aspectos perniciosos do racismo que afetam os negros e outros grupos culturalmente minoritários.

Anglin e seus coautores sugerem que é necessário aumentar o financiamento para pesquisas com abordagens multiníveis e intergeracionais, juntamente com estudos qualitativos que aumentem nossa compreensão das experiências vividas de pessoas com psicose. Eles escrevem:

“Dada a história de opressão, discriminação e racismo sistêmico nos Estados Unidos, compreender as conseqüências biológicas do trauma único e dos fatores de estresse das comunidades minoritárias expandirá nossa compreensão do risco de psicose de forma mais geral.”

Os pesquisadores recomendam que a psiquiatria dedique consideravelmente mais esforços para enfrentar o racismo estrutural e os determinantes sociais da psicose nas prioridades de financiamento, treinamento e desenvolvimento da intervenção.

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Anglin, D. M., Ereshefsky, S., Klaunig, M. J., Bridgwater, M. A., Niendam, T. A., Ellman, L. M., DeVylder, J., Thayer, G., Bolden, K., Musket, C. W., Grattan, R. E., Lincoln, S. H., Schiffman, J., Lipner, E., Bachman, P., Corcoran, C. M., Mota, N. B., & van der Ven, E. (2021). From Womb to Neighborhood: A racial analysis of social determinants of psychosis in the United States. American Journal of Psychiatry. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2020.20071091 (Link)

Saúde Mental em Trieste está sob Ameaças

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Em uma carta redigida por Roberto Mezzina (ex-diretor do Departamento de Saúde Mental de Triestre), é feita uma denúncia das ameaças que pairam sobre os serviços de saúde mental de Trieste e um pedido de apoio de todos os que defendem o legado de Franco Basaglia e não querem retrocessos. O próprio conteúdo da carta esclarece o que está ocorrendo.

A SAÚDE MENTAL DESAPARECENDO PERMANENTEMENTE DO RADAR

Roberto Mezzina

Devido à pandemia de Covid 19, a já dramática situação de falta de recursos em serviços de saúde mental piorou ainda mais em toda a Itália. Centros de Saúde Mental inacessíveis, contração e até suspensão das visitas domiciliares, redução do trabalho voluntário e cooperativas sociais.

No entanto, foi graças ao acesso fácil e rápido aos Centros de Saúde Mental, sem listas de espera, que não só os serviços de Trieste, mas também os de toda a Região de Friuli Venezia Giulia, consolidaram um reconhecimento nacional e internacional.

A OMS indicou novamente, nestes dias, o modelo Trieste (que agora se tornou regional) como um exemplo global de rede integrada de serviços comunitários. Este reconhecimento aparecerá em um importante documento da OMS, a ser publicado em breve. As respostas às pessoas “em tempo real”, com uma abordagem que é não apenas psiquiátrica no sentido estrito, mas alargada para responder às necessidades da vida em todos os seus aspectos, respeitando e promovendo os direitos humanos, têm sido os pilares do modelo de Trieste.

Em muitas outras regiões italianas, por outro lado, as estruturas residenciais estão se espalhando, muitas vezes parecendo instituições fechadas tradicionais, muitas vezes privadas, e absorvendo a maior parte dos recursos; as pessoas estão amarradas em enfermarias de hospitais miseráveis; não há visitas domiciliares; drogas psicotrópicas são usadas quase como a intervenção exclusiva (e muitas vezes mal); as necessidades diárias das pessoas pesam sobre as famílias. É esta a situação demonstrada há alguns anos pela Comissão Parlamentar, que em vez disso recompensou os nossos serviços. No entanto, apesar das múltiplas premiações, o atual governo regional desde o início não escondeu o desejo de colocar a mão nos Serviços de Saúde Mental, e o alcance dos objetivos de melhoria estabelecidos pelo Plano Regional de Saúde Mental em 2018 tornou-se imediatamente difícil. A escuta dos pedidos dos cidadãos e associações também foi substancialmente interrompida. Houve redução do quadro de pessoal de todas as categorias profissionais. O desejo de reduzir e fundir os Centros Comunitários de Saúde Mental tornou-se claro, tomando uma direção contrária ao que deveria ser o objetivo final de um Serviço Comunitário de Saúde Mental, bloqueando assim o processo empreendido há anos, incluindo o funcionamento dos serviços por 24 horas, com possibilidade de acolhimento de pessoas em crise num ambiente não alienante. Tudo isso tem sido questionado para voltar ao modelo das antigas enfermarias de hospitais. Isso será alcançado com as medidas administrativas que romperão a continuidade da linha de gestão.

Depois das numerosas aposentadorias, a gestão das instalações, mesmo dos Departamentos, passou a ser confiada a quadros “em exercício”; ou por curtos períodos, com funções de chefia muitas vezes confiadas “para substituir” vários serviços. Ao mesmo tempo, os concursos para as direções dos Centros de Saúde Mental foram suspensas e serão reduzidos. Nestes dias, os concursos para lugares de chefia em Trieste e Pordenone foram reiniciados e saíram classificações bastante bizarras: todos aqueles que foram formados pela escola de Basaglia foram penalizados ou excluídos, apesar de anos de compromisso com serviços muito melhores e excelentes currículos, em benefício de candidatos, muitas vezes desconhecidos, que vêm de fora da região. Nunca pensamos que mesmo nesta região o sistema de despojos chegaria a cargos executivos, nos quais competências e orientação de valores de saúde pública deveriam ser elementos fundamentais.

Estamos confiando nossos serviços a psiquiatras completamente alheios a experiências consolidadas de vanguarda, e que, em vez disso, vêm de situações retrógradas, de enfermarias psiquiátricas que são frequentemente fechadas e que ainda usam contenção física. Por outras palavras, os nossos serviços serão geridos por que oferecem modelos antiquados de ambulatório ou de internação, em vez de programas de tratamento e reintegração que atendem às necessidades das pessoas com transtornos mentais. Essas escolhas autodestrutivas são prejudiciais não só ao sistema atual, mas aos cidadãos em geral, e abrem caminho ao desmantelamento dos melhores serviços criados pela reforma psiquiátrica, resultando no empobrecimento e ineficiência do serviço público que corre o risco de se tornar progressivamente privatizado em toda a Itália.

Os cidadãos devem se envolver e recomeçar a partir de uma forte aliança de usuários, famílias, profissionais, serviços, reunindo as experiências de ontem e hoje antes que as rupturas sejam irreparáveis ​​e o imenso patrimônio acumulado em 50 anos de experiência esteja disperso. A liberdade é terapêutica, tem sido dito e argumentado: é um direito, o maior, para os seres humanos, aquele que Franco Basaglia devolveu a todos os italianos, fechando os manicômios e mudando a lei. Por isso, não deixemos os serviços sozinhos, e evitemos que os serviços de saúde mental da região desapareçam definitivamente do radar, com graves prejuízos para todos.

Mauro Asquini, Renzo Bonn, Angelo Cassin, Peppe Dell’Acqua, Roberto Mezzina, Franco Perazza, Franco Rotelli

(Ex Diretores dos Departamentos de Saúde Mental de Trieste, Gorizia, Udine, Alto Friuli e Pordenone)

e

  • Grazia Cogliati, psiquiatra
  • Giovanna Del Giudice, presidente COPPERSAM “Conferenza Basaglia”
  • John Jenkins, International Mental Health Collaborating Network
  • Mario Novello, psiquiatra
  • Sashi Sashidharan, psiquiatra
  • Benedetto Saraceno, ex-diretor do departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias do OMS

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Assine a petição, clicando aqui ⇒

Primeiro Encontro LatinoAmericano de Estudos Loucos

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Os Estudos dos Loucos [‘Estudios Locos’] são um projeto de investigação, produção de conhecimento e ação política que reconhece a loucura como uma experiência humana válida e significativa para gerar conhecimento crítico face ao discurso psiquiátrico. Esta perspectiva visa reconstruir e sistematizar as lutas das comunidades loucas com base numa relação estreita entre a academia crítica e a militância, articulando o fazer e o pensar enquanto aspectos complementares da transformação social no cenário contemporâneo.

Sob estas orientações, os Estudos Loucos constituem uma proposta contra-hegemônica contra a influência das disciplinas psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise) na sociedade atual, promovendo o protagonismo de pessoas que receberam tratamento de saúde mental, com aliados e colaboradores em torno de pesquisas que resgatam abordagens anti-psiquiátricas, narrativas de sobreviventes da psiquiatria e experiências de militância louca e radical. No nosso continente, esta perspectiva tem um desenvolvimento crescente nos últimos anos, de acordo com uma coletivização de processos de investigação da militância, o impulso criativo de organizações comunitárias em saúde mental e ações coletivas do movimento Orgulho Louco [‘Mad Pride’].

De modo a continuar a reunir e reforçar estes espaços de integração e unidade latino-americana, convidamos todos os interessados nesta iniciativa a participar como participantes, oradores ou facilitadores de ‘workshops’ no 1º Encontro LatinoAmericano de Estudos Loucos, a realizar nos dias 30 e 31 de Julho de 2021, em modo virtual.

Data de encerramento para a recepção de trabalhos e ‘workshops’: 30 de Junho de 2021.

Evento gratuito aberto à comunidade.

Evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/281721886728114

Formulário de inscrição: https://forms.gle/FRARALWyucYyscDw7

[originalmente publicado em Mad in America para hispanohablantes]

 

 

Reforma Psiquiátrica Brasileira e o Diagnóstico Psiquiátrico

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Este é o terceiro de uma série de ‘blogs’ que escrevo propondo uma reflexão crítica sobre a reforma psiquiátrica brasileira. Primeiramente, eu levantei a questão de o porquê em décadas de processo de reforma da assistência não haver movimentos organizados de ex-usuários e sobreviventes da psiquiatria. Na semana passada, analisei os dados disponíveis sobre a internação involuntária. No Brasil, ainda há um contingente de usuários que se encontram involuntariamente hospitalizados. Na verdade, qualquer brasileiro ou brasileira pode ser involuntariamente internado, porque a decisão é do médico/psiquiatra, visto que a lei dá esse direito.

Neste ‘blog’ me proponho a fazer uma reflexão a respeito do papel do diagnóstico psiquiátrico na assistência psiquiátrica brasileira. É para chamar a nossa atenção que décadas de processo de reforma não foram suficientes para se haver construído alternativas práticas ao DSM e ao CID.

Irei inicialmente fazer uma análise crítica do diagnóstico psiquiátrico (I). Não irei me aprofundar nessa crítica, porque não quero fugir dos limites de um ‘blog’. O que direi espero que seja o suficiente para se ter uma visão global do papel do diagnóstico psiquiátrico para o entendimento do sofrimento psíquico no país e como hegemonicamente a sociedade enfrenta os seus problemas (II).

O senso-comum é que problemas emocionais ou de saúde mental são doenças. Essa ideia é um êxito espetacular de ‘marketing’ construído pela aliança entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica, conforme inúmeros estudos (Angel, 2007; Moynihan & Cassels, 2005; Whitaker & Cosgrove, 2015). Desde a primeira versão do DSM, em 1952, vê-se um constante crescimento de várias categorias de diagnóstico, subdividindo as classes da psiquiatria psicodinâmica, tais como psicoses e neuroses, em unidades sintomáticas cada vez menores. Em 1952, com o DSM-I, o manual apresentava 130 categorias de diagnóstico. Com o DSM-II, lançado em 1968, nós passaremos a contar com 180 categorias. No DSM-III, cuja primeira versão é publicada em 1980, com 494 páginas, há 265 categorias de diagnóstico listadas. 7 anos depois, em 1987, 292 diagnósticos estarão distribuídos em 567 páginas. Em 1994, o DSM-IV foi publicado, listando 297 transtornos em 886 páginas. E, finalmente, em 2021, estamos no DSM-5, lançado em maio de 2013, com mais de 300 transtornos mentais classificados. Com novos diagnósticos e com alguns outros renomeados: “transtorno de acumulação”, “transtorno de oscilação disruptiva do humor”, “transtorno de compulsão alimentar periódico”, “transtorno de hipersexualidade”, “transtorno de arrancar pele”, “adicção à internet”, “transtorno de identidade de gênero”, “transtorno alimentar restritivo evitativo”.

Assim, torna-se cada vez mais comum ver todo o tipo de pessoas a reconhecerem-se num grupo de sinais clínicos com algum valor diagnóstico. Essa forma de abordar as diversas formas como o sofrimento psíquico se manifesta é contemporânea do neoliberalismo, que enfatiza a liberdade individual, a autonomia a escolha, a autossuficiência e responsabilidade e promove a ideia de que tudo pode ser convertido em mercadoria em um mercado livre de regras e regulações o máximo quanto for possível.

Este modelo de sistema econômico lucra criando sofrimento e oferecendo meios para entendê-lo e resolvê-lo. As políticas neoliberais criam insegurança em muitas áreas de nossas vidas como trabalho, salário, moradia, laços comunitários, relações, status e bem-estar físico. Encorajadas a se verem competitivas e autossuficientes ao invés de interdependentes e interligadas, as pessoas sentem-se presas a um constante estado de insatisfação a respeito de suas vidas, bens, realizações, corpos e relações, e assim persuadidas a comprar soluções. Estamos sempre nos comparando uns aos outros. E assim, ao não se sentir conforme os ‘standards’ promovidos, a tendência é que passemos a nos culpar, a sentirmo-nos fracassados. A narrativa já se encontra à disposição, ao estilo Macdonald, que é o que a psiquiatria e a psicologia sistematicamente propagam em nossa sociedade: as causas do sofrimento residem nas características da personalidade, em disfunções psicológicas e em “doenças” ou “transtornos mentais”. As soluções estão aí no mercado: drogas psiquiátricas e a maioria das psicoterapias (Barber, 2007; Boyle & Johnstone, 2021; Freitas & Amarante, 2017; Moncrieff, 2008; Verhaeghe, 2014; Wilkinson & Pickett, 2018).).

II.

Para se ter uma visão ampla do impacto das categorias de diagnóstico na sociedade brasileira, irei me limitar aqui neste ‘blog’ a apresentar apenas um trabalho publicado, com um amplo reconhecimento na literatura científica internacional e fortíssima repercussão na nossa grande mídia

Trata-se de uma pesquisa realizada com a população da área metropolitana de São Paulo. Foi um estudo que estimou a prevalência, a gravidade e o tratamento dos transtornos psiquiátricos listados no DSM-IV.

Seus resultados mereceram destaque na grande imprensa, publicado em na revista PLoS One no dia 14 de fevereiro, com o título São Paulo Megacity Mental Health Survey (Andrade et al., 2012). Quase 30% dos habitantes da Região Metropolitana de São Paulo apresentam transtornos mentais, de acordo com um estudo que reuniu dados epidemiológicos de 24 países. O estudo é internacional. A prevalência de transtornos mentais na metrópole paulista foi a mais alta registrada em todas as áreas pesquisadas. O que o estudo está dizendo é que de cada 10 paulistas da grande São Paulo, cerca de 3 apresentaram algum “transtorno psiquiátrico” nos últimos 12 meses anteriores à entrevista para o estudo.

O estudo epidemiológico avaliou uma amostra representativa de residentes da região metropolitana de São Paulo, com 5.037 pessoas avaliadas em seus domicílios, a partir de entrevistas feitas com base no mesmo instrumento diagnóstico. Os questionários incluíram dados sociais.

Os transtornos de ansiedade foram os mais comuns, afetando 19,9% dos entrevistados. Em seguida, aparecem transtornos de comportamento (11%), transtornos de controle de impulso (4,3%) e abuso de substâncias (3,6%).

Segundo os resultados, dois grupos se mostraram especialmente vulneráveis: as mulheres que vivem em regiões consideradas de alta privação, que apresentaram grande vulnerabilidade para transtornos de humor, enquanto os homens migrantes que moram nessas regiões precárias mostraram alta vulnerabilidade ao transtorno de ansiedade.

A prevalência dos transtornos mentais em São Paulo, de quase 30%, é a mais alta entre os países pesquisados. Os Estados Unidos aparecem em segundo lugar, com pouco menos de 25%. A razão da alta prevalência, de acordo com uma das pesquisadoras em entrevista ao portal da FAPESP, pode ser explicada pelo cruzamento de duas variáveis incluídas no estudo: a alta urbanização e a privação social. “Levamos em conta também a variável da privação social, estrutura etária da população, setor censitário, escolaridade do chefe de família, migração e exposição a eventos traumáticos violentos”, disse a pesquisadora que esteve à frente do estudo, a Dra. Laura Helena Andrade, professora do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP).

O problema é do indivíduo não é da sociedade, segundo a visão dominante. As soluções propostas é mais e mais psiquiatria. Senão, vejamos o que diz a  própria Dra. Laura Andrade:

“Não é possível ter um serviço especializado em todas as unidades, por isso é preciso equipar a rede com pacotes de diagnóstico e de conduta a serem utilizados pelos profissionais de cuidados primários. É preciso capacitar não só os médicos, mas também os agentes comunitários, que devem ser orientados para identificar casos não tão comuns como os quadros psicóticos, levando em conta os fatores de risco associados aos transtornos mentais.”

CONCLUSÃO:

O que se pode observar é que o diagnóstico psiquiátrico não é simplesmente um modo de rotular ou descrever emoções e comportamentos perturbadores. A reforma psiquiátrica não conseguiu apresentar à sociedade brasileira uma forma distinta de pensar emoções e comportamentos perturbadores. A reforma tem persistido no “modelo biomédico” da psiquiatria, isso a despeito da falta de suporte das evidências científicas.

No próximo ‘blog’ irei mostrar ser possível haver uma abordagem distinta ao DSM/CID, como é exemplar a proposta elaborada pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia.

REFERÊNCIAS:

Andrade, L. H., Wang, Y.-P., Andreoni, S., & Silveira, C. M. (2012). Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo Megacity Mental Health Survey, Brazil. Plos One, feb. 14.

Angel, M. (2007). A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Record.

Barber, B. R. (2007). How Markets Corrupt Children, Infantalise Adults and Swallow Citizens Whole. Norton.

Boyle, M., & Johnstone, L. (2021). The Power Threat Meaning Framework. PCCS BOOKS.

Freitas, F. & Amarante, P. (2017). Medicalização em Psiquiatria. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.

Moncrieff, J. (2008). Neoliberalism and biopsychiatry: a marriage of convenience. In C. I. Cohen & S. Timimi (Eds.), Liberatory psychiatry, philosophy, politics and mental health (pp. 235–256). Cambridge University Press.

Moynihan, R., & Cassels, A. (2005). Selling Sickness. Nation Books.

Verhaeghe, P. (2014). ’What about Me?’The struggle for identity in a market-based society. Scribe Publications.

Whitaker, R., & Cosgrove, L. (2015). Psychiatry under the Inluence. Institutional corruption, social injury, and prescriptions for reform. Palgrave Macmillan.

Wilkinson, R., & Pickett, K. (2018). The spirit leve: why equality is better for everyone. Allen Lane.

Estudo Confirma o Sobrediagnóstico do TDAH em Crianças e Adolescentes

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Um novo estudo descobriu que o TDAH é sobrediagnosticado em crianças e adolescentes. Diagnósticos crescentes nas pessoas com sintomas ligeiros podem levar a que as crianças sejam expostas aos danos dos medicamentos estimulantes sem qualquer benefício.

 

“Foram encontradas provas convincentes de que o TDAH é sobrediagnosticada em crianças e adolescentes,” concluem os investigadores. “Para indivíduos com sintomas mais leves, em particular, os danos associados a um diagnóstico de TDAH podem muitas vezes superar os benefícios.”

Os investigadores foram liderados por Luise Kazda na Universidade de Sidney, Austrália, e publicados em JAMA Network Open.

Os investigadores reconhecem que há muitas formas em que o diagnóstico de TDAH é problemático. A expansão da categoria de diagnóstico no DSM 5 aumentou o potencial de sobrediagnóstico (para crianças que satisfazem menos critérios, por exemplo). Observam também que os comportamentos que em tempos foram considerados normais para crianças têm sido cada vez mais medicalizados e considerados provas de “doença”.

No entanto, o estudo atual deles centra-se apenas na ideia de sobrediagnóstico, expandindo o diagnóstico a crianças que não retirarão nenhum benefício do tratamento, mas que podem ser prejudicadas.

Os investigadores notam que o sobrediagnóstico do câncer é bem conhecido na literatura da investigação. Disso resultou um quadro para avaliar o sobrediagnóstico noutras condições (tais como condições cardíacas), e os investigadores aplicaram esse quadro ao estudo atual.

Para satisfazer os critérios de sobrediagnóstico com base neste quadro, cinco condições devem ser satisfeitas:

  1. Potencial para aumentar o diagnóstico;
  2. O diagnóstico aumentou;
  3. O recém-diagnosticado tem sintomas ligeiros ou “subclínicos”;
  4. Os recém-diagnosticados recebem tratamento; e
  5. Os danos do diagnóstico e do tratamento podem ser superiores aos benefícios.

Os investigadores examinaram 334 estudos, tendo cada um deles fornecido dados sobre pelo menos uma das cinco condições. Verificaram que as cinco condições eram todas apoiadas por esta pesquisa.

Como não existe teste biológico para o TDAH, e o diagnóstico é aplicado subjetivamente através da idade, sexo, raça e estatuto socioeconômico, há espaço para o diagnóstico se expandir. Além disso, à medida que os critérios de diagnóstico são afrouxados, as taxas de TDAH têm aumentado. Os investigadores confirmaram que uma grande proporção dos novos casos se encontra no extremo do espectro enquanto “suave”. As taxas de tratamento estimulante para TDAH também aumentaram, incluindo os casos de TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

Segundo os investigadores, houve também provas significativas de danos após o diagnóstico. Eles escrevem: “Em 22 estudos, foi demonstrado que uma visão biomédica das dificuldades estava associada ao ‘desempoderamento’.” Além disso, o diagnóstico “pode também desviar-se de outros problemas individuais, sociais ou sistêmicos subjacentes.”

Os investigadores descobriram que receber um diagnóstico de TDAH também aumenta a estigmatização: “O diagnóstico pode criar uma identidade que reforça o preconceito e o julgamento, que estão associados a sentimentos ainda maiores de isolamento, exclusão e vergonha.”

Os investigadores também verificaram que o tratamento, particularmente os medicamentos estimulantes, era ineficaz e potencialmente prejudicial, especialmente para as crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

“Apenas 3 estudos relataram um seguimento a longo prazo para além do tratamento inativo, não encontrando nenhuma diferença nos sintomas entre os jovens que foram tratados e os que não foram tratados na vida posterior. Outro estudo não encontrou nenhuma diferença nos sintomas após um período de 48 horas de washout. Como danos, o tratamento ativo foi geralmente associado a eventos adversos leves e moderados, assim como a altas taxas de descontinuação.”

Os investigadores escrevem que os médicos, pais e professores devem estar atentos ao potencial de sobrediagnóstico. Especialmente para crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”, os danos do diagnóstico e da medicação provavelmente ultrapassam quaisquer benefícios potenciais. Recomendam uma abordagem de vigilância e espera para casos mais suaves – semelhante à recomendada para alguns casos de câncer de baixo risco, que também são atormentados pelo sobrediagnóstico.

Os pesquisadores escrevem:

“As nossas descobertas têm implicações para estes indivíduos, que podem ser prejudicados pelo sobrediagnóstico e pelos efeitos adversos da medicação durante a infância, na adolescência e mesmo na idade adulta. Estas descobertas são também relevantes para o número crescente de adultos que são recentemente diagnosticados com TDAH e podem ser aplicáveis a outras condições, tais como o autismo.”

….

Kazda, L., Bell, K., Thomas, R., McGeechan, K., Sims, R., & Barratt, A. (2021). Overdiagnosis of attention-deficit/hyperactivity disorder in children and adolescents: A systematic scoping review. JAMA Network Open, 4(4), e215335. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.5335 (Link)

A “Uberização” do Trabalho no Brasil

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O artigo “Do Sujeito à Sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia do trabalho em contexto de pandemia pela Covid-19”, publicado na revista Laborativa, levantou algumas reflexões críticas acerca do impacto da pandemia para o trabalhador brasileiro. O embasamento do artigo se deu por uma revisão da literatura científica sobre o assunto e pelas publicações de entidades oficiais, tanto nacionais como internacionais.

A precarização do trabalho no Brasil foi acentuado pela atual crise sanitária do Coronavírus, tornando o contexto trabalhista um local relevante para as observações de certos fenômenos sociais. Enquanto o vírus pode contaminar qualquer pessoa, não atinge as pessoas da mesma forma. Certas categorias profissionais estão mais expostas e vulneráveis ao risco de contaminação que outras.

Desde a década de 80/90 há uma ofensiva neoliberal que ultrapassa as práticas político-econômicas e atingem a subjetividade dos sujeitos, ou seja, suas formas de sentir, pensar e agir. Há uma dominância de um certo “sujeito-empresa” que compete com os outros e consigo mesmo, e ao qual é atribuída a responsabilidade integral dos êxitos e fracassos no trabalho. Uma forma de individualizar questões sócio-históricas.

Outros fenômenos atuais é a “uberização” do trabalho. O trabalho informal no Brasil vem crescendo há alguns anos, e como consequência os trabalhadores estão mais vulneráveis. Aqueles que trabalham para aplicativos, por exemplo, são considerados prestadores de serviço e não mais funcionários da empresa. As empresas já não se responsabilizam pelos trabalhadores como antes, mas são os próprios trabalhadores os responsáveis por si mesmos e por seu material de trabalho.

O uso do “empreendedorismo” para se referir ao trabalho informal disfarça a verdadeira natureza desse tipo de trabalho, criando a sensação de liberdade por parte do trabalhador. Esta liberdade é explorada pelo capital e se caracteriza por uma autoexploração do sujeito que busca sempre produtividade e desempenho, mesmo sem a pressão externa de um patrão.

“Isso ocorre porque as diversas instâncias de poder, que outrora
dominavam através da violência, coerção, disciplina e imperativos de
obediência, no modelo neoliberal, se deslocam para espaços invisíveis,
desaparecem, como é o caso de empresas-aplicativos; os sujeitos
deixados a mercê de suas próprias iniciativas, acreditam estar libertos das
ações coercitivas exercidas por essas instâncias de poder; ao se verem
livres, os membros desse modelo de sociedade partem em suas jornadas
individuais, a fim de encontrar maneiras de, eles mesmos, acumularem
seu próprio capital (HAN, 2018; 2015).”

Quando o neoliberalismo desloca as instâncias de poder para espaços invisíveis (já não é mais o chefe, a empresa, instituição…), o sujeito acredita ser o seu próprio chefe, individualizando as questões do âmbito do trabalho, o que acaba dificultando as possibilidades de resistência.

Como consequência da acentuação do processo de precarização do trabalho durante a pandemia, os efeitos negativos na saúde mental dos trabalhadores também serão acentuadas nesse período. Os autores concluem ser necessário resgatar a função social do Estado, reconhecer a importância das Políticas Públicas e recuperar o valor do Sistema Único de Saúde (SUS). Sem o auxílio do Estado as consequências da Pandemia seriam muito maiores.

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GUIMARÃES JUNIOR, S.D.; GONÇALVES,L.R; CARDOSO,A.J.S. Do sujeito à sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia organizacional e do trabalho em contexto de pandemia pela COVID -19. R. Laborativa, v. 10, n.1, p. 40- 67, abr./2021 (Link)

Interrupção de Antipsicóticos Melhora o Funcionamento Cognitivo

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Os investigadores encontraram mais provas de que o efeito anticolinérgico dos medicamentos psiquiátricos pode levar a deficiências cognitivas. Um estudo de pessoas com esquizofrenia avaliou a carga anticolinérgica dos seus medicamentos e comparou-a com o funcionamento cognitivo delas

“A carga dos medicamentos anticolinérgicos associados a drogas psicotrópicas na esquizofrenia é substancial, comum, e presente em múltiplas classes de drogas psiquiátricas, incluindo os antipsicóticos”, escrevem os investigadores.

Esse estudo foi publicado no American Journal of Psychiatry, sob coordenação de Yash B. Joshi na Universidade da Califórnia, San Diego.

Os investigadores incluíram 1.120 pacientes, todos eles com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizo-afetivo. Eles utilizaram o instrumento carga cognitiva do anticolinérgico [Anticholinergic Cognitive Burden] (ACB) para medir a que quantidade de carga anticolinérgica que os participantes foram submetidos. Os medicamentos com um efeito anticolinérgico baixo ou mínimo foram classificados como 1, os com um efeito médio foram classificados como 2, os com efeito forte foram considerados como sendo 3. Todos os medicamentos que uma pessoa estava tomando foram somados para produzir um único número.

A carga média anticolinérgica para os participantes no estudo foi de 3,8. Vinte e cinco por cento dos participantes tiveram uma pontuação de pelo menos 6. Em média, cada participante esteva consumindo dois medicamentos antipsicóticos diferentes.

Os investigadores descobriram que a carga anticolinérgica esteva significativamente associada a um menor desempenho cognitivo em todos os domínios da Bateria Neurocognitiva Computorizada Penn (PCNB), bem como em outras medidas cognitivas. Os investigadores controlaram uma série de outros fatores e descobriram que os seus resultados ainda eram robustos.

Os autores citam dados de um estudo que incluiu adultos saudáveis que descobriram que uma pontuação ACB de 3 estando ligada a uma deficiência cognitiva e a um risco 50% maior para o desenvolvimento de demência.

“Tais pontuações não são difíceis de serem alcançadas nos cuidados psiquiátricos de rotina. Por exemplo, um paciente para quem é prescrita diariamente olanzapina para sintomas de psicose teria uma pontuação ACB de 3; se a hidroxizina também for prescrita para ansiedade ou insônia, a pontuação ACB do paciente subirá para 6,” escrevem eles.

Outros estudos também descobriram que a deficiência cognitiva pode ser causada por medicamentos psiquiátricos, particularmente aqueles com um elevado efeito anticolinérgico. De fato, os estudos descobriram que a cognição melhora efetivamente quando uma pessoa interrompe o tratamento com fármacos.

Os autores sugerem que “os esforços para limitar ou evitar a carga excessiva de medicamentos anticolinérgicos – independentemente da fonte – podem ter um impacto benéfico nos resultados cognitivos na esquizofrenia.”

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Joshi, Y. B., Thomas, M. L., Braff, D. L., Green, M. F., Gur, R. C., Gur,  R. E., . . . & Light, G. A. (2021). Anticholinergic medication burden–associated cognitive impairment in schizophrenia. American Journal of Psychiatry. Published Online 14 May 2021. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2020.20081212 (Link)

Allen Frances assume haver um excesso de prescrição de antidepressivos

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Doctor Handing Pills Through Laptop.

O eminente psiquiatra Allen Frances escreveu recentemente um artigo explorando as razões para a prescrição excessiva de antidepressivos.

Ao escrever no HealthWatch Newsletter, Frances explica que a corrupção na indústria já não é o único fator por detrás do uso de antidepressivos, dado que muitos dos medicamentos estão agora sem patente e, portanto, menos lucrativos para as empresas farmacêuticas. Se os defensores da saúde pública quiserem reduzir os danos causados por receitas médicas inadequadas, outras razões devem ser identificadas.

Doctor Handing Pills Through Laptop.

Apesar da crescente popularidade e utilização de antidepressivos, a investigação científica tem levantado sérias dúvidas quanto à sua eficácia para a depressão. A corrupção na indústria tem sido uma das principais razões por detrás da sua popularidade contínua. A prática da utilização da escrita fantasma [‘ghostwriter’], conclusões enganosas, campanhas de relações-públicas, etc., têm sido utilizadas para empurrar os antidepressivos para o mercado, apesar das preocupações sobre a eficácia e a segurança da sua utilização a longo prazo.

Outros estudos já levantaram preocupações sobre a retirada e os efeitos secundários causados pelos antidepressivos. O reconhecimento dos efeitos da abstinência tem sido visto como uma vitória para os usuários de serviços que, apesar de anos sendo dito que os sintomas de abstinência são suaves e de curta duração, há muito tempo insistem que as suas vozes fossem ouvidas. Tudo isto levou a um foco crescente em ajudar os doentes a retirarem-se destes medicamentos em segurança, com os especialistas a sugerirem meses de lenta interrupção.

Frances escreve este novo artigo em um momento em que a discussão sobre a eficácia e segurança dos antidepressivos recebem a atenção da sociedade, pelo menos em países como o Reino Unido. Após ter sido presidente da força tarefa do DSM IV, Frances tornou-se um crítico feroz do excesso de diagnóstico e da prescrição descontrolada na psiquiatria. Ele escreveu numerosos livros e artigos criticando os critério de diagnóstico e uma inclusão, sem escrúpulos, no DSM-5, de diversas categorias de diagnóstico.

Frances escreve que apesar destas drogas não estarem protegidas por patentes, o seu uso tem crescido exponencialmente nos EUA e no Reino Unido. Ao mesmo tempo, há poucos indícios que sugiram que os transtornos psiquiátricos tenham aumentado para se justificar tal aumento na prescrição. Ele apresenta várias razões para este aumento.

Primeiro, observa que a maioria dos prescritores são médicos da clínica geral, que não conhecem muito bem os seus pacientes e que muitas vezes só os veem em um dia em que o paciente está no meio de um profundo sofrimento. Dada a falta de historial com o paciente, eles podem sentir-se pressionados a prescrever antidepressivos para tratar os sintomas imediatos.

Frances escreve que metade dos pacientes que começam a tomar os medicamentos ficam fazendo uso deles por pelo menos dois anos, e que muitos ficarão com eles durante décadas. Para as pessoas com sintomas ligeiros ou moderados, esta é “a pior prática”, dado que a maioria destes sintomas teriam se dissipado com o passar do tempo, com alguma ajuda para a redução do estresse ou quando o próprio agente de estresse desapareceu.

Ele observa que existem duas razões principais para as pessoas permanecerem em antidepressivos durante anos. A primeira é o efeito de uma má atribuição ao que ocorre. As pessoas que começam a sentir-se melhor, após tomarem os antidepressivos, podem assumir ser devido aos medicamentos é que se sentem melhor. Geralmente, as pessoas com sintomas ligeiros teriam apenas começado a sentir-se melhor com o tempo ou à medida que o evento estressante seja resolvido por si próprio. Assim, visto que acreditam que estes comprimidos funcionam, é difícil para eles parar de consumir os antidepressivos.

A segunda razão importante para o uso continuado são os próprios sintomas de abstinência. Frances observa que os pacientes podem experimentar sintomas debilitantes de abstinência quando param os seus antidepressivos. Ele escreve:

” A abstinência pode ser muito desagradável e assustadora, causando letargia, tristeza, ansiedade, irritabilidade, problemas de concentração, problemas de sono, pesadelos, ‘sintomas de gripe’ náuseas, tonturas, e sensações estranhas.”

Dado que não existe informação suficiente sobre a gravidade da retirada de antidepressivos na comunidade médica e no público leigo, a abstinência é frequentemente confundida com recaída, resultando num círculo vicioso de prescrição da medicação a longo prazo.

Ele problematiza ainda a sua crescente utilização em crianças e adolescentes, apesar das provas de que os antidepressivos podem estar ligados a taxas mais elevadas de suicídio. Frances sustenta que os antidepressivos são benéficos para a depressão grave, onde placebo e psicoterapia podem falhar. Segundo Frances, se pudermos assegurar corretamente que apenas aqueles com sintomas graves recebam antidepressivos, e que os outros sejam tratados com o tempo ou com uma psicoterapia, estaríamos no caminho certo.

Frances escreve que a resposta placebo é poderosa para pessoas com sintomas mais suaves e moderados. Por outras palavras, estas pessoas se beneficiam apenas de pensar que estão tomando antidepressivos; mas que a depressão grave pode exigir o uso real de antidepressivos.

Como solução para este problema crescente de prescrição excessiva, sugere que os médicos dediquem tempo a conhecer e a compreender os seus pacientes, e a assegurar que os sintomas mais suaves sejam tratados com uma espera vigilante, técnicas de redução do estresse e conselhos. A depressão moderada deve ser primeiro tratada com psicoterapia em vez de medicação.

Mas o diagnóstico da depressão também pode ser complicado. Como Frances observou a inflação de diagnósticos e os limiares reduzidos para diagnosticar a depressão fazem com que cada vez mais pessoas se encaixem nas categorias psiquiátricas. A utilização de inventários de auto-relatos, sendo comuns entre os médicos da clínica geral, contribui fortemente para o excesso de diagnósticos, levando à medicalização. A utilização de instrumentos de rastreio deve ser restringida para grupos de alto risco, tais como pessoas com antecedentes de comportamento suicida.

Frances termina o seu artigo observando que, embora a formação de médicos generalistas e o fato de estes levarem tempo para conhecer os seus pacientes seja algo dispendioso e demorado, a longo prazo isso protege os pacientes dos danos de medicamentos desnecessários. Por último, para aqueles que conseguem superar a sua depressão por outros meios, também proporciona uma sensação de força e resistência.

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Frances, A. J. (2021 April 22). Why are antidepressants so overprescribed? And what to do about it? NewsWatch115, 4-5 (Link)

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