Primeiro Encontro LatinoAmericano de Estudos Loucos

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Os Estudos dos Loucos [‘Estudios Locos’] são um projeto de investigação, produção de conhecimento e ação política que reconhece a loucura como uma experiência humana válida e significativa para gerar conhecimento crítico face ao discurso psiquiátrico. Esta perspectiva visa reconstruir e sistematizar as lutas das comunidades loucas com base numa relação estreita entre a academia crítica e a militância, articulando o fazer e o pensar enquanto aspectos complementares da transformação social no cenário contemporâneo.

Sob estas orientações, os Estudos Loucos constituem uma proposta contra-hegemônica contra a influência das disciplinas psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise) na sociedade atual, promovendo o protagonismo de pessoas que receberam tratamento de saúde mental, com aliados e colaboradores em torno de pesquisas que resgatam abordagens anti-psiquiátricas, narrativas de sobreviventes da psiquiatria e experiências de militância louca e radical. No nosso continente, esta perspectiva tem um desenvolvimento crescente nos últimos anos, de acordo com uma coletivização de processos de investigação da militância, o impulso criativo de organizações comunitárias em saúde mental e ações coletivas do movimento Orgulho Louco [‘Mad Pride’].

De modo a continuar a reunir e reforçar estes espaços de integração e unidade latino-americana, convidamos todos os interessados nesta iniciativa a participar como participantes, oradores ou facilitadores de ‘workshops’ no 1º Encontro LatinoAmericano de Estudos Loucos, a realizar nos dias 30 e 31 de Julho de 2021, em modo virtual.

Data de encerramento para a recepção de trabalhos e ‘workshops’: 30 de Junho de 2021.

Evento gratuito aberto à comunidade.

Evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/281721886728114

Formulário de inscrição: https://forms.gle/FRARALWyucYyscDw7

[originalmente publicado em Mad in America para hispanohablantes]

 

 

Reforma Psiquiátrica Brasileira e o Diagnóstico Psiquiátrico

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Este é o terceiro de uma série de ‘blogs’ que escrevo propondo uma reflexão crítica sobre a reforma psiquiátrica brasileira. Primeiramente, eu levantei a questão de o porquê em décadas de processo de reforma da assistência não haver movimentos organizados de ex-usuários e sobreviventes da psiquiatria. Na semana passada, analisei os dados disponíveis sobre a internação involuntária. No Brasil, ainda há um contingente de usuários que se encontram involuntariamente hospitalizados. Na verdade, qualquer brasileiro ou brasileira pode ser involuntariamente internado, porque a decisão é do médico/psiquiatra, visto que a lei dá esse direito.

Neste ‘blog’ me proponho a fazer uma reflexão a respeito do papel do diagnóstico psiquiátrico na assistência psiquiátrica brasileira. É para chamar a nossa atenção que décadas de processo de reforma não foram suficientes para se haver construído alternativas práticas ao DSM e ao CID.

Irei inicialmente fazer uma análise crítica do diagnóstico psiquiátrico (I). Não irei me aprofundar nessa crítica, porque não quero fugir dos limites de um ‘blog’. O que direi espero que seja o suficiente para se ter uma visão global do papel do diagnóstico psiquiátrico para o entendimento do sofrimento psíquico no país e como hegemonicamente a sociedade enfrenta os seus problemas (II).

O senso-comum é que problemas emocionais ou de saúde mental são doenças. Essa ideia é um êxito espetacular de ‘marketing’ construído pela aliança entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica, conforme inúmeros estudos (Angel, 2007; Moynihan & Cassels, 2005; Whitaker & Cosgrove, 2015). Desde a primeira versão do DSM, em 1952, vê-se um constante crescimento de várias categorias de diagnóstico, subdividindo as classes da psiquiatria psicodinâmica, tais como psicoses e neuroses, em unidades sintomáticas cada vez menores. Em 1952, com o DSM-I, o manual apresentava 130 categorias de diagnóstico. Com o DSM-II, lançado em 1968, nós passaremos a contar com 180 categorias. No DSM-III, cuja primeira versão é publicada em 1980, com 494 páginas, há 265 categorias de diagnóstico listadas. 7 anos depois, em 1987, 292 diagnósticos estarão distribuídos em 567 páginas. Em 1994, o DSM-IV foi publicado, listando 297 transtornos em 886 páginas. E, finalmente, em 2021, estamos no DSM-5, lançado em maio de 2013, com mais de 300 transtornos mentais classificados. Com novos diagnósticos e com alguns outros renomeados: “transtorno de acumulação”, “transtorno de oscilação disruptiva do humor”, “transtorno de compulsão alimentar periódico”, “transtorno de hipersexualidade”, “transtorno de arrancar pele”, “adicção à internet”, “transtorno de identidade de gênero”, “transtorno alimentar restritivo evitativo”.

Assim, torna-se cada vez mais comum ver todo o tipo de pessoas a reconhecerem-se num grupo de sinais clínicos com algum valor diagnóstico. Essa forma de abordar as diversas formas como o sofrimento psíquico se manifesta é contemporânea do neoliberalismo, que enfatiza a liberdade individual, a autonomia a escolha, a autossuficiência e responsabilidade e promove a ideia de que tudo pode ser convertido em mercadoria em um mercado livre de regras e regulações o máximo quanto for possível.

Este modelo de sistema econômico lucra criando sofrimento e oferecendo meios para entendê-lo e resolvê-lo. As políticas neoliberais criam insegurança em muitas áreas de nossas vidas como trabalho, salário, moradia, laços comunitários, relações, status e bem-estar físico. Encorajadas a se verem competitivas e autossuficientes ao invés de interdependentes e interligadas, as pessoas sentem-se presas a um constante estado de insatisfação a respeito de suas vidas, bens, realizações, corpos e relações, e assim persuadidas a comprar soluções. Estamos sempre nos comparando uns aos outros. E assim, ao não se sentir conforme os ‘standards’ promovidos, a tendência é que passemos a nos culpar, a sentirmo-nos fracassados. A narrativa já se encontra à disposição, ao estilo Macdonald, que é o que a psiquiatria e a psicologia sistematicamente propagam em nossa sociedade: as causas do sofrimento residem nas características da personalidade, em disfunções psicológicas e em “doenças” ou “transtornos mentais”. As soluções estão aí no mercado: drogas psiquiátricas e a maioria das psicoterapias (Barber, 2007; Boyle & Johnstone, 2021; Freitas & Amarante, 2017; Moncrieff, 2008; Verhaeghe, 2014; Wilkinson & Pickett, 2018).).

II.

Para se ter uma visão ampla do impacto das categorias de diagnóstico na sociedade brasileira, irei me limitar aqui neste ‘blog’ a apresentar apenas um trabalho publicado, com um amplo reconhecimento na literatura científica internacional e fortíssima repercussão na nossa grande mídia

Trata-se de uma pesquisa realizada com a população da área metropolitana de São Paulo. Foi um estudo que estimou a prevalência, a gravidade e o tratamento dos transtornos psiquiátricos listados no DSM-IV.

Seus resultados mereceram destaque na grande imprensa, publicado em na revista PLoS One no dia 14 de fevereiro, com o título São Paulo Megacity Mental Health Survey (Andrade et al., 2012). Quase 30% dos habitantes da Região Metropolitana de São Paulo apresentam transtornos mentais, de acordo com um estudo que reuniu dados epidemiológicos de 24 países. O estudo é internacional. A prevalência de transtornos mentais na metrópole paulista foi a mais alta registrada em todas as áreas pesquisadas. O que o estudo está dizendo é que de cada 10 paulistas da grande São Paulo, cerca de 3 apresentaram algum “transtorno psiquiátrico” nos últimos 12 meses anteriores à entrevista para o estudo.

O estudo epidemiológico avaliou uma amostra representativa de residentes da região metropolitana de São Paulo, com 5.037 pessoas avaliadas em seus domicílios, a partir de entrevistas feitas com base no mesmo instrumento diagnóstico. Os questionários incluíram dados sociais.

Os transtornos de ansiedade foram os mais comuns, afetando 19,9% dos entrevistados. Em seguida, aparecem transtornos de comportamento (11%), transtornos de controle de impulso (4,3%) e abuso de substâncias (3,6%).

Segundo os resultados, dois grupos se mostraram especialmente vulneráveis: as mulheres que vivem em regiões consideradas de alta privação, que apresentaram grande vulnerabilidade para transtornos de humor, enquanto os homens migrantes que moram nessas regiões precárias mostraram alta vulnerabilidade ao transtorno de ansiedade.

A prevalência dos transtornos mentais em São Paulo, de quase 30%, é a mais alta entre os países pesquisados. Os Estados Unidos aparecem em segundo lugar, com pouco menos de 25%. A razão da alta prevalência, de acordo com uma das pesquisadoras em entrevista ao portal da FAPESP, pode ser explicada pelo cruzamento de duas variáveis incluídas no estudo: a alta urbanização e a privação social. “Levamos em conta também a variável da privação social, estrutura etária da população, setor censitário, escolaridade do chefe de família, migração e exposição a eventos traumáticos violentos”, disse a pesquisadora que esteve à frente do estudo, a Dra. Laura Helena Andrade, professora do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP).

O problema é do indivíduo não é da sociedade, segundo a visão dominante. As soluções propostas é mais e mais psiquiatria. Senão, vejamos o que diz a  própria Dra. Laura Andrade:

“Não é possível ter um serviço especializado em todas as unidades, por isso é preciso equipar a rede com pacotes de diagnóstico e de conduta a serem utilizados pelos profissionais de cuidados primários. É preciso capacitar não só os médicos, mas também os agentes comunitários, que devem ser orientados para identificar casos não tão comuns como os quadros psicóticos, levando em conta os fatores de risco associados aos transtornos mentais.”

CONCLUSÃO:

O que se pode observar é que o diagnóstico psiquiátrico não é simplesmente um modo de rotular ou descrever emoções e comportamentos perturbadores. A reforma psiquiátrica não conseguiu apresentar à sociedade brasileira uma forma distinta de pensar emoções e comportamentos perturbadores. A reforma tem persistido no “modelo biomédico” da psiquiatria, isso a despeito da falta de suporte das evidências científicas.

No próximo ‘blog’ irei mostrar ser possível haver uma abordagem distinta ao DSM/CID, como é exemplar a proposta elaborada pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia.

REFERÊNCIAS:

Andrade, L. H., Wang, Y.-P., Andreoni, S., & Silveira, C. M. (2012). Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo Megacity Mental Health Survey, Brazil. Plos One, feb. 14.

Angel, M. (2007). A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Record.

Barber, B. R. (2007). How Markets Corrupt Children, Infantalise Adults and Swallow Citizens Whole. Norton.

Boyle, M., & Johnstone, L. (2021). The Power Threat Meaning Framework. PCCS BOOKS.

Freitas, F. & Amarante, P. (2017). Medicalização em Psiquiatria. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.

Moncrieff, J. (2008). Neoliberalism and biopsychiatry: a marriage of convenience. In C. I. Cohen & S. Timimi (Eds.), Liberatory psychiatry, philosophy, politics and mental health (pp. 235–256). Cambridge University Press.

Moynihan, R., & Cassels, A. (2005). Selling Sickness. Nation Books.

Verhaeghe, P. (2014). ’What about Me?’The struggle for identity in a market-based society. Scribe Publications.

Whitaker, R., & Cosgrove, L. (2015). Psychiatry under the Inluence. Institutional corruption, social injury, and prescriptions for reform. Palgrave Macmillan.

Wilkinson, R., & Pickett, K. (2018). The spirit leve: why equality is better for everyone. Allen Lane.

Estudo Confirma o Sobrediagnóstico do TDAH em Crianças e Adolescentes

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Um novo estudo descobriu que o TDAH é sobrediagnosticado em crianças e adolescentes. Diagnósticos crescentes nas pessoas com sintomas ligeiros podem levar a que as crianças sejam expostas aos danos dos medicamentos estimulantes sem qualquer benefício.

 

“Foram encontradas provas convincentes de que o TDAH é sobrediagnosticada em crianças e adolescentes,” concluem os investigadores. “Para indivíduos com sintomas mais leves, em particular, os danos associados a um diagnóstico de TDAH podem muitas vezes superar os benefícios.”

Os investigadores foram liderados por Luise Kazda na Universidade de Sidney, Austrália, e publicados em JAMA Network Open.

Os investigadores reconhecem que há muitas formas em que o diagnóstico de TDAH é problemático. A expansão da categoria de diagnóstico no DSM 5 aumentou o potencial de sobrediagnóstico (para crianças que satisfazem menos critérios, por exemplo). Observam também que os comportamentos que em tempos foram considerados normais para crianças têm sido cada vez mais medicalizados e considerados provas de “doença”.

No entanto, o estudo atual deles centra-se apenas na ideia de sobrediagnóstico, expandindo o diagnóstico a crianças que não retirarão nenhum benefício do tratamento, mas que podem ser prejudicadas.

Os investigadores notam que o sobrediagnóstico do câncer é bem conhecido na literatura da investigação. Disso resultou um quadro para avaliar o sobrediagnóstico noutras condições (tais como condições cardíacas), e os investigadores aplicaram esse quadro ao estudo atual.

Para satisfazer os critérios de sobrediagnóstico com base neste quadro, cinco condições devem ser satisfeitas:

  1. Potencial para aumentar o diagnóstico;
  2. O diagnóstico aumentou;
  3. O recém-diagnosticado tem sintomas ligeiros ou “subclínicos”;
  4. Os recém-diagnosticados recebem tratamento; e
  5. Os danos do diagnóstico e do tratamento podem ser superiores aos benefícios.

Os investigadores examinaram 334 estudos, tendo cada um deles fornecido dados sobre pelo menos uma das cinco condições. Verificaram que as cinco condições eram todas apoiadas por esta pesquisa.

Como não existe teste biológico para o TDAH, e o diagnóstico é aplicado subjetivamente através da idade, sexo, raça e estatuto socioeconômico, há espaço para o diagnóstico se expandir. Além disso, à medida que os critérios de diagnóstico são afrouxados, as taxas de TDAH têm aumentado. Os investigadores confirmaram que uma grande proporção dos novos casos se encontra no extremo do espectro enquanto “suave”. As taxas de tratamento estimulante para TDAH também aumentaram, incluindo os casos de TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

Segundo os investigadores, houve também provas significativas de danos após o diagnóstico. Eles escrevem: “Em 22 estudos, foi demonstrado que uma visão biomédica das dificuldades estava associada ao ‘desempoderamento’.” Além disso, o diagnóstico “pode também desviar-se de outros problemas individuais, sociais ou sistêmicos subjacentes.”

Os investigadores descobriram que receber um diagnóstico de TDAH também aumenta a estigmatização: “O diagnóstico pode criar uma identidade que reforça o preconceito e o julgamento, que estão associados a sentimentos ainda maiores de isolamento, exclusão e vergonha.”

Os investigadores também verificaram que o tratamento, particularmente os medicamentos estimulantes, era ineficaz e potencialmente prejudicial, especialmente para as crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”.

“Apenas 3 estudos relataram um seguimento a longo prazo para além do tratamento inativo, não encontrando nenhuma diferença nos sintomas entre os jovens que foram tratados e os que não foram tratados na vida posterior. Outro estudo não encontrou nenhuma diferença nos sintomas após um período de 48 horas de washout. Como danos, o tratamento ativo foi geralmente associado a eventos adversos leves e moderados, assim como a altas taxas de descontinuação.”

Os investigadores escrevem que os médicos, pais e professores devem estar atentos ao potencial de sobrediagnóstico. Especialmente para crianças com TDAH “ligeira” ou “subclínica”, os danos do diagnóstico e da medicação provavelmente ultrapassam quaisquer benefícios potenciais. Recomendam uma abordagem de vigilância e espera para casos mais suaves – semelhante à recomendada para alguns casos de câncer de baixo risco, que também são atormentados pelo sobrediagnóstico.

Os pesquisadores escrevem:

“As nossas descobertas têm implicações para estes indivíduos, que podem ser prejudicados pelo sobrediagnóstico e pelos efeitos adversos da medicação durante a infância, na adolescência e mesmo na idade adulta. Estas descobertas são também relevantes para o número crescente de adultos que são recentemente diagnosticados com TDAH e podem ser aplicáveis a outras condições, tais como o autismo.”

….

Kazda, L., Bell, K., Thomas, R., McGeechan, K., Sims, R., & Barratt, A. (2021). Overdiagnosis of attention-deficit/hyperactivity disorder in children and adolescents: A systematic scoping review. JAMA Network Open, 4(4), e215335. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.5335 (Link)

A “Uberização” do Trabalho no Brasil

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O artigo “Do Sujeito à Sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia do trabalho em contexto de pandemia pela Covid-19”, publicado na revista Laborativa, levantou algumas reflexões críticas acerca do impacto da pandemia para o trabalhador brasileiro. O embasamento do artigo se deu por uma revisão da literatura científica sobre o assunto e pelas publicações de entidades oficiais, tanto nacionais como internacionais.

A precarização do trabalho no Brasil foi acentuado pela atual crise sanitária do Coronavírus, tornando o contexto trabalhista um local relevante para as observações de certos fenômenos sociais. Enquanto o vírus pode contaminar qualquer pessoa, não atinge as pessoas da mesma forma. Certas categorias profissionais estão mais expostas e vulneráveis ao risco de contaminação que outras.

Desde a década de 80/90 há uma ofensiva neoliberal que ultrapassa as práticas político-econômicas e atingem a subjetividade dos sujeitos, ou seja, suas formas de sentir, pensar e agir. Há uma dominância de um certo “sujeito-empresa” que compete com os outros e consigo mesmo, e ao qual é atribuída a responsabilidade integral dos êxitos e fracassos no trabalho. Uma forma de individualizar questões sócio-históricas.

Outros fenômenos atuais é a “uberização” do trabalho. O trabalho informal no Brasil vem crescendo há alguns anos, e como consequência os trabalhadores estão mais vulneráveis. Aqueles que trabalham para aplicativos, por exemplo, são considerados prestadores de serviço e não mais funcionários da empresa. As empresas já não se responsabilizam pelos trabalhadores como antes, mas são os próprios trabalhadores os responsáveis por si mesmos e por seu material de trabalho.

O uso do “empreendedorismo” para se referir ao trabalho informal disfarça a verdadeira natureza desse tipo de trabalho, criando a sensação de liberdade por parte do trabalhador. Esta liberdade é explorada pelo capital e se caracteriza por uma autoexploração do sujeito que busca sempre produtividade e desempenho, mesmo sem a pressão externa de um patrão.

“Isso ocorre porque as diversas instâncias de poder, que outrora
dominavam através da violência, coerção, disciplina e imperativos de
obediência, no modelo neoliberal, se deslocam para espaços invisíveis,
desaparecem, como é o caso de empresas-aplicativos; os sujeitos
deixados a mercê de suas próprias iniciativas, acreditam estar libertos das
ações coercitivas exercidas por essas instâncias de poder; ao se verem
livres, os membros desse modelo de sociedade partem em suas jornadas
individuais, a fim de encontrar maneiras de, eles mesmos, acumularem
seu próprio capital (HAN, 2018; 2015).”

Quando o neoliberalismo desloca as instâncias de poder para espaços invisíveis (já não é mais o chefe, a empresa, instituição…), o sujeito acredita ser o seu próprio chefe, individualizando as questões do âmbito do trabalho, o que acaba dificultando as possibilidades de resistência.

Como consequência da acentuação do processo de precarização do trabalho durante a pandemia, os efeitos negativos na saúde mental dos trabalhadores também serão acentuadas nesse período. Os autores concluem ser necessário resgatar a função social do Estado, reconhecer a importância das Políticas Públicas e recuperar o valor do Sistema Único de Saúde (SUS). Sem o auxílio do Estado as consequências da Pandemia seriam muito maiores.

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GUIMARÃES JUNIOR, S.D.; GONÇALVES,L.R; CARDOSO,A.J.S. Do sujeito à sujeição: Apontamentos reflexivos à psicologia organizacional e do trabalho em contexto de pandemia pela COVID -19. R. Laborativa, v. 10, n.1, p. 40- 67, abr./2021 (Link)

Interrupção de Antipsicóticos Melhora o Funcionamento Cognitivo

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Os investigadores encontraram mais provas de que o efeito anticolinérgico dos medicamentos psiquiátricos pode levar a deficiências cognitivas. Um estudo de pessoas com esquizofrenia avaliou a carga anticolinérgica dos seus medicamentos e comparou-a com o funcionamento cognitivo delas

“A carga dos medicamentos anticolinérgicos associados a drogas psicotrópicas na esquizofrenia é substancial, comum, e presente em múltiplas classes de drogas psiquiátricas, incluindo os antipsicóticos”, escrevem os investigadores.

Esse estudo foi publicado no American Journal of Psychiatry, sob coordenação de Yash B. Joshi na Universidade da Califórnia, San Diego.

Os investigadores incluíram 1.120 pacientes, todos eles com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizo-afetivo. Eles utilizaram o instrumento carga cognitiva do anticolinérgico [Anticholinergic Cognitive Burden] (ACB) para medir a que quantidade de carga anticolinérgica que os participantes foram submetidos. Os medicamentos com um efeito anticolinérgico baixo ou mínimo foram classificados como 1, os com um efeito médio foram classificados como 2, os com efeito forte foram considerados como sendo 3. Todos os medicamentos que uma pessoa estava tomando foram somados para produzir um único número.

A carga média anticolinérgica para os participantes no estudo foi de 3,8. Vinte e cinco por cento dos participantes tiveram uma pontuação de pelo menos 6. Em média, cada participante esteva consumindo dois medicamentos antipsicóticos diferentes.

Os investigadores descobriram que a carga anticolinérgica esteva significativamente associada a um menor desempenho cognitivo em todos os domínios da Bateria Neurocognitiva Computorizada Penn (PCNB), bem como em outras medidas cognitivas. Os investigadores controlaram uma série de outros fatores e descobriram que os seus resultados ainda eram robustos.

Os autores citam dados de um estudo que incluiu adultos saudáveis que descobriram que uma pontuação ACB de 3 estando ligada a uma deficiência cognitiva e a um risco 50% maior para o desenvolvimento de demência.

“Tais pontuações não são difíceis de serem alcançadas nos cuidados psiquiátricos de rotina. Por exemplo, um paciente para quem é prescrita diariamente olanzapina para sintomas de psicose teria uma pontuação ACB de 3; se a hidroxizina também for prescrita para ansiedade ou insônia, a pontuação ACB do paciente subirá para 6,” escrevem eles.

Outros estudos também descobriram que a deficiência cognitiva pode ser causada por medicamentos psiquiátricos, particularmente aqueles com um elevado efeito anticolinérgico. De fato, os estudos descobriram que a cognição melhora efetivamente quando uma pessoa interrompe o tratamento com fármacos.

Os autores sugerem que “os esforços para limitar ou evitar a carga excessiva de medicamentos anticolinérgicos – independentemente da fonte – podem ter um impacto benéfico nos resultados cognitivos na esquizofrenia.”

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Joshi, Y. B., Thomas, M. L., Braff, D. L., Green, M. F., Gur, R. C., Gur,  R. E., . . . & Light, G. A. (2021). Anticholinergic medication burden–associated cognitive impairment in schizophrenia. American Journal of Psychiatry. Published Online 14 May 2021. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2020.20081212 (Link)

Allen Frances assume haver um excesso de prescrição de antidepressivos

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Doctor Handing Pills Through Laptop.

O eminente psiquiatra Allen Frances escreveu recentemente um artigo explorando as razões para a prescrição excessiva de antidepressivos.

Ao escrever no HealthWatch Newsletter, Frances explica que a corrupção na indústria já não é o único fator por detrás do uso de antidepressivos, dado que muitos dos medicamentos estão agora sem patente e, portanto, menos lucrativos para as empresas farmacêuticas. Se os defensores da saúde pública quiserem reduzir os danos causados por receitas médicas inadequadas, outras razões devem ser identificadas.

Doctor Handing Pills Through Laptop.

Apesar da crescente popularidade e utilização de antidepressivos, a investigação científica tem levantado sérias dúvidas quanto à sua eficácia para a depressão. A corrupção na indústria tem sido uma das principais razões por detrás da sua popularidade contínua. A prática da utilização da escrita fantasma [‘ghostwriter’], conclusões enganosas, campanhas de relações-públicas, etc., têm sido utilizadas para empurrar os antidepressivos para o mercado, apesar das preocupações sobre a eficácia e a segurança da sua utilização a longo prazo.

Outros estudos já levantaram preocupações sobre a retirada e os efeitos secundários causados pelos antidepressivos. O reconhecimento dos efeitos da abstinência tem sido visto como uma vitória para os usuários de serviços que, apesar de anos sendo dito que os sintomas de abstinência são suaves e de curta duração, há muito tempo insistem que as suas vozes fossem ouvidas. Tudo isto levou a um foco crescente em ajudar os doentes a retirarem-se destes medicamentos em segurança, com os especialistas a sugerirem meses de lenta interrupção.

Frances escreve este novo artigo em um momento em que a discussão sobre a eficácia e segurança dos antidepressivos recebem a atenção da sociedade, pelo menos em países como o Reino Unido. Após ter sido presidente da força tarefa do DSM IV, Frances tornou-se um crítico feroz do excesso de diagnóstico e da prescrição descontrolada na psiquiatria. Ele escreveu numerosos livros e artigos criticando os critério de diagnóstico e uma inclusão, sem escrúpulos, no DSM-5, de diversas categorias de diagnóstico.

Frances escreve que apesar destas drogas não estarem protegidas por patentes, o seu uso tem crescido exponencialmente nos EUA e no Reino Unido. Ao mesmo tempo, há poucos indícios que sugiram que os transtornos psiquiátricos tenham aumentado para se justificar tal aumento na prescrição. Ele apresenta várias razões para este aumento.

Primeiro, observa que a maioria dos prescritores são médicos da clínica geral, que não conhecem muito bem os seus pacientes e que muitas vezes só os veem em um dia em que o paciente está no meio de um profundo sofrimento. Dada a falta de historial com o paciente, eles podem sentir-se pressionados a prescrever antidepressivos para tratar os sintomas imediatos.

Frances escreve que metade dos pacientes que começam a tomar os medicamentos ficam fazendo uso deles por pelo menos dois anos, e que muitos ficarão com eles durante décadas. Para as pessoas com sintomas ligeiros ou moderados, esta é “a pior prática”, dado que a maioria destes sintomas teriam se dissipado com o passar do tempo, com alguma ajuda para a redução do estresse ou quando o próprio agente de estresse desapareceu.

Ele observa que existem duas razões principais para as pessoas permanecerem em antidepressivos durante anos. A primeira é o efeito de uma má atribuição ao que ocorre. As pessoas que começam a sentir-se melhor, após tomarem os antidepressivos, podem assumir ser devido aos medicamentos é que se sentem melhor. Geralmente, as pessoas com sintomas ligeiros teriam apenas começado a sentir-se melhor com o tempo ou à medida que o evento estressante seja resolvido por si próprio. Assim, visto que acreditam que estes comprimidos funcionam, é difícil para eles parar de consumir os antidepressivos.

A segunda razão importante para o uso continuado são os próprios sintomas de abstinência. Frances observa que os pacientes podem experimentar sintomas debilitantes de abstinência quando param os seus antidepressivos. Ele escreve:

” A abstinência pode ser muito desagradável e assustadora, causando letargia, tristeza, ansiedade, irritabilidade, problemas de concentração, problemas de sono, pesadelos, ‘sintomas de gripe’ náuseas, tonturas, e sensações estranhas.”

Dado que não existe informação suficiente sobre a gravidade da retirada de antidepressivos na comunidade médica e no público leigo, a abstinência é frequentemente confundida com recaída, resultando num círculo vicioso de prescrição da medicação a longo prazo.

Ele problematiza ainda a sua crescente utilização em crianças e adolescentes, apesar das provas de que os antidepressivos podem estar ligados a taxas mais elevadas de suicídio. Frances sustenta que os antidepressivos são benéficos para a depressão grave, onde placebo e psicoterapia podem falhar. Segundo Frances, se pudermos assegurar corretamente que apenas aqueles com sintomas graves recebam antidepressivos, e que os outros sejam tratados com o tempo ou com uma psicoterapia, estaríamos no caminho certo.

Frances escreve que a resposta placebo é poderosa para pessoas com sintomas mais suaves e moderados. Por outras palavras, estas pessoas se beneficiam apenas de pensar que estão tomando antidepressivos; mas que a depressão grave pode exigir o uso real de antidepressivos.

Como solução para este problema crescente de prescrição excessiva, sugere que os médicos dediquem tempo a conhecer e a compreender os seus pacientes, e a assegurar que os sintomas mais suaves sejam tratados com uma espera vigilante, técnicas de redução do estresse e conselhos. A depressão moderada deve ser primeiro tratada com psicoterapia em vez de medicação.

Mas o diagnóstico da depressão também pode ser complicado. Como Frances observou a inflação de diagnósticos e os limiares reduzidos para diagnosticar a depressão fazem com que cada vez mais pessoas se encaixem nas categorias psiquiátricas. A utilização de inventários de auto-relatos, sendo comuns entre os médicos da clínica geral, contribui fortemente para o excesso de diagnósticos, levando à medicalização. A utilização de instrumentos de rastreio deve ser restringida para grupos de alto risco, tais como pessoas com antecedentes de comportamento suicida.

Frances termina o seu artigo observando que, embora a formação de médicos generalistas e o fato de estes levarem tempo para conhecer os seus pacientes seja algo dispendioso e demorado, a longo prazo isso protege os pacientes dos danos de medicamentos desnecessários. Por último, para aqueles que conseguem superar a sua depressão por outros meios, também proporciona uma sensação de força e resistência.

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Frances, A. J. (2021 April 22). Why are antidepressants so overprescribed? And what to do about it? NewsWatch115, 4-5 (Link)

Reforma Psiquiátrica e a Internação Involuntária no Brasil

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No ‘blog’ anterior, propus um conjunto de reflexões que giraram em torno da seguinte pergunta: “Por que não há no Brasil movimentos organizados de ‘ex-usuários’ ou ‘sobreviventes’ da Psiquiatria?”. A pergunta ganha um sentido mais amplo se for lida tendo como plano de fundo as experiências internacionais de movimentos de ‘ex-usuários’ e ‘sobreviventes’ da Psiquiatria. Graças a esses movimentos, demandas organizadas desafiam o ‘mainstream’ da Psiquiatria, e nas brechas abertas pela desconstrução das suas bases sementes de esperança vêm sendo plantadas e os resultados começam a desabrochar.

Nos últimos anos, em eventos organizados pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS), tivemos oportunidade de receber vários “intelectuais orgânicos” de ponta entre os “sobreviventes da Psiquiatria” ao nível internacional. Nomes como Laura Delano, Olga Runciman, Will Hall e Peter Groot, para ficarmos com apenas quatro exemplos. Embora a cada um de esses nomes possamos associar referências bio e bibliográficas diversas, para fins didáticos irei inserir alguns poucos links a cada um.

Laura Delano, estadunidense, que aos 13 anos da sua vida iniciou uma carreira de paciente psiquiátrica que durou 14 anos. Laura Delano se libertou da psiquiatria, por isso se considera uma “sobrevivente” psiquiátrica, e com o seu ‘know-how’ de experiência de vida, ajuda a que milhares de pessoas se libertem da psiquiatria como ela conseguiu. Laura esteve conosco em diversas ocasiões, por exemplo no II Seminário Internacional a Epidemia das Drogas Psiquiátricas, em outubro de 2018, na ENSP (conferir a partir de 3:21:00).

Olga Runciman (dinamarquesa), foi vítima do sistema psiquiátrico durante mais de uma década, com diagnóstico de esquizofrenia, com longos períodos de internação e algumas tentativas de suicídio. Ao se libertar da psiquiatria, Olga é hoje psicoterapeuta, com o seu ‘know-how’ ajuda pessoas com transtornos psicológicos graves a atravessarem sua condição de paciente. Olga criou o movimento de ouvidores de vozes na Dinamarca. Olga participa de várias organizações internacionais, como o International Institute for Psychiatric Drugs Withdrawal (IIPDW) do qual ela é diretora. Olga esteve aqui no Brasil conosco em diversas ocasiões convidada por nós, como em um evento na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em 09/06/15.

Will Hall, estadunidense, diagnosticado com esquizofrenia, que conseguiu se libertar da Psiquiatria. Hoje é um dos maiores especialistas mundiais com a retirada das drogas psiquiátricas.

Finalmente, mais um nome, desta vez Peter Groot (holandês), após haver sido diagnosticado com depressão ele passou a ser dependente químico dos antidepressivos. Peter Groot desenvolveu junto com o psiquiatra Jim van Os, as chamadas “tiras de afunilamento” (‘tapering strips’), uma tecnologia revolucionária que permite que as doses das drogas psiquiátricas possam ser reduzidas de forma lenta, gradual, segura, com o mínimo de efeitos de ‘abstenção’. Peter Groot esteve no nosso 3 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas.

O que há em comum? Primeiramente, que ao contrário do senso-comum, quem tem um diagnóstico psiquiátrico, mesmo que seja de esquizofrenia, ter passado anos internado em um hospital psiquiátrtico, isso não implica que ele/ela terá que passar a sua vida em tratamento psiquiátrico, como “usuário” da psiquiatria. Portanto, não se trata de uma condição irreversível, crônica, uma condenação a ser paciente psiquiátrico. Em segundo lugar, a sociedade tem muito a ganhar quando os “usuários” da Psiquiatria deixam de ser “usuários”, seja do diagnóstico, seja do tratamento psicofarmacológico, ou mesmo da sua condição de beneficiário de algum programa social por incapacidade ou deficiência.

Pensando em termos do Brasil, apesar dos inegáveis avanços alcançados com o processo de reforma psiquiátrica, seus limites são estruturais. Isso apenas ganha visibilidade quando voltamos o nosso olhar para as demandas dos movimentos internacionais de “ex-usuários” e “sobreviventes” da Psiquiatria. Eis algumas das limitações da reforma psiquiátrica brasileira, que chamo de estruturais porque encontram as barreiras do “modelo biomédico” da Psiquiatria.

  • Não há o “Consentimento Informado” enquanto um direito do usuário em ser informado sobre o tratamento que lhe está sendo proposto, os prognósticos, alternativas de tratamento existentes.
  • Não há no Brasil serviços no território que ofereçam à sociedade opções de tratamento sem o uso de drogas psiquiátricas.
  • Não há no Brasil serviços especializados que deem suporte para o processo de retirada das drogas psiquiátricas para os usuários que queiram deixar a dependência química aos medicamentos prescritos.

Começo com este ‘blog’ apresentando o quadro da situação da assistência psiquiátrica no Brasil. Inicialmente (I), irei explicitar o que estou considerando por “modelo biomédico” da Psiquiatria. Em seguida (II), irei analisar a problemática da internação involuntária no país. Por que ainda hoje é um direito do médico/psiquiatra decidir se alguém deve ou não ser internado contra a sua vontade?

  1. O modelo biomédico da Psiquiatria

Para que possamos falar a mesma linguagem, que nos coloquemos de acordo com o que é “modelo biomédico” usado pela Psiquiatria. Entende-se por “modelo biomédico” da Psiquiatria aquela abordagem que considera as perturbações psíquicas como sendo doenças do cérebro e que enfatiza o tratamento psicofarmacológico para atacar as supostas anomalias biológicas (Deacon, 2013).

Este modelo de abordagem dos problemas psíquicos não é apenas o principal quadro de referência para os profissionais de saúde, mas também para os pesquisadores, a Justiça, os gestores dos serviços, os formuladores de políticas de saúde, e muito particularmente para os usuários e a sociedade em geral.

A sua versão mais popular é o modelo “biopsicossocial” ou “vulnerabilidade-estresse” (Read & Sanders, 2010). A sua concepção básica é que as pessoas nascem com algum tipo de vulnerabilidade ou predisposição biológica, e os fatores de estresse psicossocial – como a pobreza, a violência sexual, física ou psicológica, o luto, o desemprego, a discriminação racial, por exemplo – podem desencadear uma doença (transtorno) mental. Justifica-se o tratamento biopsicossocial porque supostamente se estaria trabalhando na articulação entre o biológico e o psicossocial (Chiaverini, 2011; Fortes et al., 2014). O pressuposto para seduzir os corações e as mentes é que a estratégia mais eficaz para tratar pacientes com perturbações psiquiátricas deve ser o tratamento psicofarmacológico + psicoterapia + reabilitação social – (Hyman S, Chisholm D, Kessler R, Patel V, 2006).

Contudo, existe um problema gigantesco que afeta tanto o “modelo biomédico” puro como a sua versão “vulnerabilidade-estresse” ou “biopsicossocial”: não há provas de que as perturbações psiquiátricas sejam uma “doença”, que os fatores biológicos seriam a causa, se não uma causa que contribua para o “transtorno”. O Dr. Steven Hyman, antigo diretor do maior organismo mundial de financiamento da investigação em saúde mental, o National Institute of Mental Health (NIMH), sediado nos Estados Unidos, disse: “Epidemiologia, genética, psicologia e neurociência não foram amáveis para as categorias do DSM-IV, nem estas categorias foram amáveis para a ciência. O DSM-III-R foi um avanço brilhante que deu prioridade à fiabilidade entre os médicos, agora é tempo de seguir em frente” (Hyman, 2010).

É digno de nota o que Allen Frances, que liderou a força-tarefa do DSM-IV, tem criticado duramente o DSM-5. Ele sempre demonstrou a sua preocupação com um estreitamento do conceito de normalidade, falsas epidemias impulsionadas pela indústria psicofarmacêutica, a dependência da Associação Psiquiátrica Americana às receitas do DSM-5 e as consequências generalizadas da revisão para pacientes individuais – na medida em que os holofotes serão desviados para longe dos doentes graves, tanto no que diz respeito ao tratamento como à economia” (Frances, 2012). Foi explícito ao afirmar que “o processo DSM-5 tem sido secreto, fechado e descuidado… não há razão para acreditar que o DSM-5 seja seguro ou cientificamente sólido” (Frances, 2013).

Ainda sobre o DSM-5, Thomas Insel, na época diretor do NIMH declarou “Os pacientes com perturbações mentais merecem melhor … Tornou-se imediatamente claro [para o NIMH] que não podemos conceber um sistema baseado em biomarcadores ou desempenho cognitivo porque nos faltam os dados” (Insel, 2013).

O modelo biomédico para distúrbios psicológicos coloniza o nosso “mundo da vida” no sentido habermasiano (Habermas, 2012).

Ou como o Relator Especial da ONU para a Saúde e Direitos Humanos, Dainius Puras, declarou em sucessivas ocasiões. “Os sistemas de saúde mental em todo o mundo são dominados por um modelo biomédico reducionista que utiliza a medicalização para justificar a coerção como prática sistemática e qualifica as várias respostas humanas aos determinantes sociais e estruturais nocivos (tais como desigualdades, discriminação e violência) como ‘perturbações’ que necessitam de tratamento” (Püras, 2017). A hegemonia do modelo biomédico nos cuidados de saúde mental causa numerosos danos, o que justifica o relatório do Puras em 2017 declarando “A necessidade urgente de uma mudança de abordagem deve dar prioridade à inovação política a nível da população, visando os determinantes sociais e abandonando o modelo médico predominante que procura curar os indivíduos, visando as ‘perturbações’ – a nossa ênfase – (Püras, 2017).

Modelo biomédico e a internação psiquiátrica

É o modelo biomédico que orienta e dá base legal ao poder do psiquiatra para decidir por um internamento. O movimento da Luta Antimanicomial não enfrentou corajosamente esse dispositivo corporativo-legal da Psiquiatria. O que significa que qualquer um de nós, você ou eu, podemos ser involuntariamente internados por decisão do psiquiatra.

A internação involuntária está prevista por lei (Lei n. 10.216/2001. Diário Oficial Da União, 9 Abril 2001, 2001). Ela orienta os psiquiatras sobre os procedimentos legais para a admissão involuntária. Inicialmente, no parágrafo único do seu artigo 6, esta lei trata dos três tipos de internamento psiquiátrico: “voluntário”, “involuntário” e a “obrigatória”. A internação obrigatória é determinada pela autoridade judicial, com base no Código Penal e requer um relatório médico pormenorizado. A hospitalização voluntária, como o seu nome sugere, é caracterizada pelo consentimento do paciente para a sua hospitalização. Por sua vez, a hospitalização psiquiátrica involuntária é aquela “realizada sem o consentimento do paciente e a pedido de um terceiro”. Ainda segundo a lei, término da internação involuntária “dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento”. Nos termos da lei, “a internação involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta”.

A ser sublinhado algo da maior relevância para o que estou propondo discutir aqui. É que o poder de decisão é do médico/psiquiatra. Tanto na internação voluntária quanto na involuntária. Segundo o previsto em lei, “a internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento”.

Quais seriam as razões da hospitalização involuntária? É quando o médico/ psiquiatra considera que o “doente mental” está em alto risco de automutilação ou de causar danos a alguém, se não quando pensa que existe uma perturbação grave que compromete a capacidade dele de reconhecer a necessidade de tratamento e de aceitá-lo. É o médico, devidamente registado no Conselho Regional de Medicina, o único profissional autorizado a solicitar a hospitalização psiquiátrica voluntária ou involuntária, para além de endossar a obrigatoriedade.

É um exemplo de jabuticaba brasileira. A privação de liberdade que ocorre com a hospitalização involuntária viola de forma flagrante o que está previsto na Constituição Federal Brasileira, no capítulo V, caput e II. Também nega o artigo 12 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que textualmente afirma que “o consentimento prévio, livre e informado da pessoa com deficiência é indispensável para o tratamento, procedimento, hospitalização e investigação científica“. A exceção prevista no art. 13 da mesma lei estabelece que o critério do risco de morte de si próprio ou de terceiros deve ser obedecido.

Como eu afirmei em alguns parágrafos acima, a reforma psiquiátrica no Brasil, nessas décadas de processo reformista, não enfrentou essa problemática tão crucial para a dignidade de alguém em sofrimento psíquico e relevante em termos de direitos humanos dos usuários de tratamento psiquiátrico.

Vamos ao primeiro quadro conforme o prometido. A referência é o Relatório de Inspeção Nacional em Hospitais Psiquiátricos no Brasil (Conselho Federal de Psicologia et al., 2020). O documento evidencia graves situações de violação de direitos, tratamento cruel, desumano e degradante, assim como indícios de tortura a pacientes com transtornos mentais nessas instituições.

Foi uma iniciativa conjunta do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Regionalmente, as inspeções foram coordenadas pelos Conselhos Regionais de Psicologia, Ministérios Públicos Estaduais e Ministérios Públicos do Trabalho (MPT) estaduais.

Ação articulada inédita foi feita entre os dias 3 e 7 de dezembro de 2018. Foram vistoriadas 40 instituições psiquiátricas, em 17 estados das cinco regiões do Brasil. Como é dito no boletim do CFP, ao dar notícia do evento da apresentação dos resultados da pesquisa, “a publicação consolida um importante trabalho de campo, de imersão à realidade vivida do sistema público de saúde a pacientes psiquiátricos”.

O relatório aponta que pelo menos 1.185 pessoas estão internadas em condição de longa permanência nos hospitais psiquiátricos brasileiros. 82,5% dos hospitais inspecionados mantém pessoas moradoras, havendo uma criança de 10 anos e uma idosa de 106 anos nessa condição, ambas mulheres, num mesmo hospital de São Paulo.

O Relatório mostra-nos que, à exceção de dois hospitais, a hospitalização involuntária é a regra principal. Por insônias, inapetência, desajustamento social, desordens de conduta. O mais comum é que não há comunicação ao Ministério Público no prazo de 72 horas, conforme previsto por lei. As hospitalizações de longa duração são as predominantes. É muito comum que as internações voluntárias se transformem em internações involuntárias, o que viola o direito da pessoa a interrompê-las. Descobriram que as hospitalizações voluntárias não são geralmente assinadas pelos próprios usuários, mas por membros da família. A maioria declarou não se encontrar na instituição voluntariamente. Como o relatório afirma, “o consentimento voluntário é constantemente violado na hospitalização, uma vez que dentro dos hospitais psiquiátricos o contraditório não é bem-vindo e pode ser perigoso. O questionamento da ordem atual e das formas de ‘cuidados’, o desacordo com o tratamento, o nervosismo que ocorre em certos contextos, e até uma simples reclamação pode ser colocada ser por causa da ‘loucura’, cuja correção se distancia da gestão clínica (no sentido terapêutico) e torna-se objeto de repressão, sendo o medicamento uma forma mais sutil de anular qualquer manifestação de vontade“.

De acordo com o Relatório, em 33 dos 40 estabelecimentos visitados as pessoas encontram-se em situações de hospitalização prolongada. Os dados mais atualizados são de 2011, mostrando que 9.947 pessoas se encontram nestas condições há mais de 6 meses. Há pessoas com mais de 10 anos de internação.

Este Relatório que acabámos de analisar diz respeito a internações em Hospitais Psiquiátricos.

Concluindo. Esse quadro “chocante”, reforça sem dúvida alguma a necessidade da “luta antimanicomial”, no sentido que ainda hoje todos podemos nos transformar em “usuários” de algum hospital psiquiátrico, não por opção individual, mas porque um médico/psiquiatra assim decide. A consequência disso é que é inadmissível que o poder médico sobre a “internação” continue praticamente inalterado com relação aos tempos em que a assistência hospitalar-asilar era hegemônica em nosso país.

O que há que se aprender com a experiência de vida e o ‘know-how’ de “sobreviventes” da psiquiatria? Certamente que muito. As vozes de companheiros e companheiras como Laura Delano, Olga Runciman, Will Hall, Peter Groot, assim como centenas e centenas de outras e outros. No próprio site do Mad in America, em particular no nosso site, há um farto material de relatos de experiências de “ex-usuários” e dos “sobreviventes” da Psiquiatria.

Tenho três perguntas que irei nos próximos blogs:

  • Por que reforma psiquiátrica resulta em ser reforma da psiquiatria?
  • Ao invés de reforma psiquiátrica, não seria mais adequado se lutar por reformar a assistência em saúde mental?
  • Ou será que temos de acabar com o conceito de saúde mental (que cria uma inevitável polarização doença/saúde precária)?

REFERÊNCIAS

Chiaverini, D. (2011). Guia Prático de Matriciamento em saúde mental. Ministério da Saúde.

Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Conselho Nacional do Ministério Público, & Ministério Público do Trabalho. (2020). Hospitais Psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relatorio_Inspecao_HospPsiq.pdf

Deacon, B. J. (2013). The biomedical model of mental disorder: a critical review of its validity, utility, and effects on psychotherapy research. Clinical Psychology Review, 33, 846–886.

Fortes, S., Menezes, A., Athié, K., & Chazan, L. F. (2014). Psychiatry in the 21th century: changes from the integration with primary health care through matrix support. Physis, 24(4), 1079–1102.

Frances, A. (2012). DSM-5 is a guide, not a bible: simply ignore its 10 worst changes. Huffington. . www.huffingtonpost.com/allen-frances/dsm-5_b_2227626.html

Frances, A. (2013). One manual shouldn´t dictate mental health research. New Scientist. https://www.newscientist.com/article/mg21829163-000-one-manual-shouldnt-dictate-us-mental-health-research/

Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo. São Paulo: Martins Fontes.

Hyman S, Chisholm D, Kessler R, Patel V, W. H. (2006). Mental Disorders. In Jamison D; Breman J; Measham A; Alleyne G; Claeson M; Evans D; Jha P; Mills A; Musgrove P; (Ed.), Disease control priorities in developing countries (2ndl ed., pp. 605–6025).

Hyman, S. (2010). The diagnosis of mental disorders: the problem of reification. Annu Rev Clin Psychol, 6, 155–178.

Insel, T. (2013). Director´s Blog:Transforming diagnosis. https://www.nimh.nih.gov/about/directors/thomas-insel/blog/2013/transforming-diagnosis.shtml

Lei n. 10.216/2001. Diário Oficial da União, 9 abril 2001, (2001).

Püras, D. (2017). Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health. https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G17/076/04/PDF/G1707604.pdf?OpenElement

Read, J., & Sanders, P. (2010). A straight talking introduction to the causes of mental health problems. Ross-on-Wye: PCCS Books.

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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para um debate amplo sobre a psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

Lembrando Jay Mahler

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“Passei 58 anos no sistema público de saúde mental – 10 anos sobrevivendo e 48 a tentando mudá-lo.”

Foi assim que Jay Mahler-psíquico sobrevivente, ativista, líder – descreveu as suas experiências.

Jay Mahler in 2012.

Infelizmente, Jay faleceu esta semana, aos 74 anos.

Jay foi a pessoa mais atenciosa e tenaz que já conheci. Era gentil e amoroso, mas forte de uma forma que poucos podem ser. Era uma força inabalável da natureza, que trabalhava sempre para aliviar o sofrimento e para proteger os direitos humanos de todos, tanto dentro como fora do sistema de saúde.

Fomos amigos e camaradas durante mais de 40 anos, e passamos 28 anos juntos nessa luta lá dentro da barriga da besta, no sistema de saúde mental em Bay Area.

Em 1965, Jay era um estudante universitário com 18 anos que se tornou ativista dos direitos civis e da liberdade de expressão na UC Berkeley. Após ficar sem dormir durante seis dias, ele ficou sobrecarregado emocionalmente, o que o levou a ser hospitalizado.

“Nos anos 60, o sistema de saúde mental não acreditava que aqueles de nós com problemas de saúde mental importantes pudessem se recuperar,” disse Jay numa entrevista de 2012. ” Era uma abordagem muito autoritária, uma espécie de modelo médico. Assim, quando fui hospitalizado, eu não tinha nenhum direito a ter amigos, dar telefonemas, ter visitas… Fui submetido a tratamentos de choque contra a minha vontade, recebi medicamentos contra a minha vontade.”

Jay foi torturado no hospital psiquiátrico, como inúmeros foram e continuam a ser até hoje. Ele disse que o horror de ser amarrado e de receber injeções massivas de Haldol foi secundado pelo terror que experimentou quando tentava em vão durante dias recordar o seu próprio nome após ter sido incessantemente ‘eletrochocado’ com a ECT.

“Houve um período no tratamento por choque em que fiquei completamente sem memória,” disse Jay na entrevista. “Não sabia quem eu era, qual era o meu nome, não sabia onde estava, as percepções eram muito ruins… Era muito aterrador não saber, não ter memória.”

Após experimentar esse sistema autoritário que lhe retirava os seus direitos, Jay dedicou-se a assegurar que os direitos humanos básicos dos outros seriam protegidos. Devido às suas próprias experiências, Jay sentiu que a sua missão de vida era uma busca urgente para impedir que qualquer forma de dano psiquiátrico acontecesse aos outros. Em vez disso, tentou o seu melhor para encontrar uma forma humana de ajuda, que acreditava poder ser melhor proporcionada por pares em quem se pudesse ter confiança para contar com a compaixão.

Ele obteve financiamento para um tal projeto na década de 1970: ‘Preocupações com a Saúde Mental dos Consumidores’, que era gerido por pares e com o apoio dos pares.

Conheci o Jay em 1980 quando fui trabalhar para o santuário de I-Ward sem medicamentos para estados extremos. Jay era o defensor dos direitos dos doentes do hospital do condado de lá. Ele acreditava no santuário radical e curativo I-Ward que nós oferecíamos, mas ele tinha de trabalhar constantemente para proteger aqueles presos no tradicional J-Ward, onde todos eram fortemente medicados e ameaçados de ficarem presos a “n” restrições – tal como o próprio Jay esteve preso.

O nosso amigo e companheiro Pat Risser fazia igualmente parte da coligação que constantemente com Jay se opôs ao poder da NAMI e do pessoal psiquiátrico do condado que queria incrementar o tratamento forçado.

Jay poderia sempre prever o próximo passo da organização – o que fazer para avançar a luta pelos direitos humanos no sistema de saúde mental, que se encontra sempre atolado em várias camadas da política administrativa e local. Reuníamos-nos e formamos uma coligação municipal de saúde mental de todas as partes interessadas, incluindo mesmo a NAMI. O nosso credo era procurar sempre um terreno comum onde todos nos pudéssemos manter unidos. Trabalhou durante décadas para influenciar grandemente os supervisores do condado, que eram os decisores e financiadores em última instância.

Jay Mahler in 2017.

Utilizando o peso da coligação unida, Jay liderou o caminho na obtenção de financiamento para vários centros de apoio e de pessoal, e na conquista de toda uma nova classificação de postos de trabalho na função pública dos Trabalhadores de Apoio Comunitário. Esta era uma nova classe de emprego que passou a ser protegida no grupo local de pessoal de saúde mental do Sindicato dos Trabalhadores que eu representava na coligação. Esses trabalhadores sindicalizados obtiveram todos os benefícios e aposentadoria, o que tornou-se o fermento de pessoas com experiência de vida para humanizar todas as clínicas, enfermarias hospitalares e programas do condado.

Jay fez tantas coisas como essa acontecer às pessoas.

Há muitos detalhes da vida e do trabalho de Jay que desconheço, mas lembro-me a certa altura que ele esteve na Casa Branca durante a administração Carter para apoiar iniciativas que ele acreditava serem boas.

Jay era assim – um pragmatista total. Ele nunca deixou que a busca do perfeito se metesse no caminho de obter algo de bom. O seu caminho era daqueles que trabalham em sistemas como os cavalos de Troia, como na “longa marcha através das instituições”.

A certa altura, Jay conseguiu mesmo um emprego na própria administração da saúde mental do condado como mediador, devido à sua sólida base de poder entre a comunidade de pares.

Nunca esquecerei o sorriso irônico no seu rosto quando vim vê-lo no seu novo escritório no último andar da administração da saúde mental. Ele disse algo como “Agora vão ter de lidar comigo a cada hora do dia”! Jay era como o pugilista que nunca pára de vir e desgasta o seu opositor porque ele sabe que ele nunca vai embora.

Após décadas, ele deixou o condado de Contra Costa e foi trabalhar no condado de Alameda para transformar novamente o sistema em Oakland e Berkeley. Aí ele organizou e liderou o que se tornou um enorme movimento de pares de milhares de membros do The Pool of Consumer Champions.

Trabalhei com ele no Projeto Mandala, que mais uma vez, devido à influência de Jay, foi capaz de influenciar o diretor de saúde mental e todos os programas de lá para adotar programas mais humanos e com um ‘staff’ formado por pares.

Jay tinha para ele uma dimensão espiritual tranquila que eu sempre pensei que em parte nascera do incrível sofrimento que ele suportou. Não consigo deixar de pensar em Nelson Mandela quando penso em Jay, porque Jay nunca odiou aqueles que o torturaram durante anos.

Tornou-se um catalisador líder em todo o estado para um enfoque totalmente novo na dimensão espiritual do sofrimento e da cura. Fizemos até um ‘workshop’ conjunto no Instituto Esalen sobre esse tema em 2011, com David Lukoff e Laura Mancuso. Fizemos o seguimento com grandes reuniões no condado de Alameda que atraíram muitos que também reconheceram a vontade de Jay de aprofundar a compreensão.

Em honra da liderança e contribuição de Jay, o condado de Alameda deu o nome de Jay ao seu primeiro centro de descanso de pares.

Sim, que longo caminho ele percorreu desde quando jovem preso, torturado em nome da medicina psiquiátrica, até a se tornar líder de linguagem suave, quem humildemente nos perguntou o que eu acredito ser a sua mensagem básica para todos nós:

” Não podemos fazer mais para acabar com os abusos psiquiátricos e, por conseguinte, ser amorosos e bondosos para com aqueles que sofrem?”

A devota esposa de Jay, Susan, foi uma presença constante de bondade amorosa e apoio durante todos os anos, e especialmente durante os últimos anos, visto que Jay passou a fazer diálise.

Jay disse-me tristemente que acreditava que os horrendos danos infligidos ao seu corpo durante aqueles muitos anos no ‘gulag’ psiquiátrico arruinaram a sua saúde.

No entanto, Jay sempre sentiu que o seu ativismo, o seu trabalho de promoção dos direitos humanos no sistema psiquiátrico, era a contribuição mais significativa que podia dar no mundo. “Estar envolvido no movimento consumidor/sobrevivente deu-me um objetivo na vida”, disse ele na entrevista de 2012.

Lembremo-nos da família de Jay ao lamentarmos a sua morte, e deixemos o seu exemplo de vida fazer o que fez sempre por inúmeras pessoas: Ajude-nos a travar a luta e acreditar no exemplo do seu coração amoroso.

Descanse em paz, servo fiel.

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Trauma e a pandemia de covid-19

No Brasil, fomos atropelados pela conjunção bombástica do advento da Covid-19 juntamente com a barbárie na condução da pandemia. Neste cenário global de uma crise mundial sem precedentes, que se mostrou uma catástrofe multidimensional e cuja mitigação dos seus efeitos demandariam ações coordenadas de diferentes áreas, no Brasil, crimes contra a saúde pública são cometidos descaradamente e noticiados como se fossem algo corriqueiro, banal.

Presenciamos ataques à pesquisa, aos pesquisadores, aos institutos de pesquisa e às universidades públicas. Além da disseminação de mentiras, chegamos ao cúmulo de um corte brutal nas verbas de pesquisa no momento em que mais precisamos dela. Universidades públicas renomadas e com alto desempenho tem declarado a inviabilidade de funcionamento a partir dos próximos meses. Todavia, cada vez mais tem vindo à tona escândalos de desvio de verba pública, superfaturamento, gastos de 3 bilhões supostamente em tratores (escândalo já conhecido como “tratoraço”), descoberta de orçamentos secretos etc.

Chegamos a um lamentável patamar de mais de 420 mil mortos. Entre os meses de janeiro a abril de 2021 foi ultrapassado o número de mortos do ano de 2020 inteiro. Nos últimos dias, foi noticiada a rejeição por parte do governo federal de 70 milhões de doses de vacina da Pfizer que teriam evitado muitas mil mortes em território nacional. Em um país cujos índices de mortes chocam o mundo, se tornando uma preocupação global e ameaça sanitária, estamos discutindo a implementação do voto impresso (mais uma tentativa de ataque a nossa frágil democracia) enquanto fakenews são amplamente disseminadas e, ainda, campanhas anti-vacina. Acreditem, contra a vacina, nossa arma mais preciosa no combate à pandemia, foi recusada, ignorada, atacada e colocada em xeque com afirmativas presidenciais como “se você virar um jacaré, é problema seu”.

A todo momento as ações não farmacológicas para a contenção da disseminação do vírus são rechaçadas, tratadas sob forma de piada ou chacota pelo próprio presidente da república. As recomendações das autoridades internacionais e nacionais de saúde são postas em dúvida. Os gravíssimos impactos da pandemia são minimizados, negados. A doença é negada. Até mesmo morte é negada. Ora, negar a morte está para além de um desafio possível. Apenas dela não podemos escapar.

E estas mortes, as mortes por Covid-19 que poderiam ter sido evitadas com planos de governo e medidas para contenção da pandemia, são aquelas que deixarão sob os escombros a gestão Bolsonaro. A contagem de mortos escancara a política de destruição que se implementou, sobretudo durante a pandemia: a necropolítica brasileira.

Instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar crimes durante a pandemia, em especial, ações criminosas advindas do próprio governo federal e do ministério da saúde.  Estes deveriam ter tido o compromisso de proteger a população do nosso país e propiciar condições de enfrentamento da pandemia. A catástrofe que vivemos enlaça o individual e o coletivo com seríssimas repercussões traumáticas.

Vivemos o tempo do traumático.

Como não estar apavorado diante do horror? Como não estar traumatizado? Como não sucumbir diante de tanto descalabro? A incerteza sobre o futuro próximo e longínquo nos atravessa.

Assim como nos casos de sobreviventes de guerra, da covid-19 e seus percalços somos sobreviventes. Conforme Braunstein (2006), na experiência traumática como a que vivemos atualmente, o sujeito atravessa uma situação na qual poderia ter morrido, mas não o fez. Do trauma, ele é um sobrevivente. Portanto, o traumatizado é um ser que, de modo metafórico, tomou o lugar de outro que vivia anteriormente. Há uma espécie de troca de identidade apesar da conservação do nome. Ainda segundo o autor, os outros (família, amigos) demandam do traumatizado que ele continue sendo aquele que era antes, porém, sua resposta é: Já não sou mais quem eu era. A Covid-19 marca um antes e depois na vida de todos nós.

Deparamo-nos na clínica com indivíduos vivendo os efeitos do trauma, que passaram perdas, por situações traumáticas, de medo, de excesso e tentam dar sentido à angústia.

Por estar mais vivo do que nunca, não podemos abrir mão de uma leitura freudiana para pensarmos os impasses atuais.  Por ocasião da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) o debate sobre a origem traumática da neurose ganhou destaque com a troca de correspondência entre Freud e Einstein, publicada em 1933, na qual o primeiro indaga diante das atrocidades e da falta de sentido promovida pela guerra: “Por que a guerra?”. Na ocasião, os psiquiatras de toda parte tiveram seus serviços solicitados pelas hierarquias militares que procuravam desmascarar “simuladores”, alvos da suspeita, como outrora acontecera com os histéricos, acusados de serem falsos doentes e, portanto, sendo aqueles mentirosos, desertores e maus patriotas. Foi nesse contexto que se deu em Viena, em 1920, o primeiro debate sobre o estatuto da neurose de guerra. Nessa ocasião, Freud criticou o uso do método elétrico para o tratamento das neuroses de guerra, lembrando que o dever do médico é se colocar a serviço do doente, e não do poder estatal ou bélico; ademais, questionou a ideia de simulação, inadequada a qualquer definição de neurose.

A ideia de um acontecimento traumático na origem da neurose voltou a ganhar destaque na teoria freudiana, permanecendo nas suas elaborações diante dos sintomas apresentados por sobreviventes de guerra severamente traumatizados, com a ressalva de que, para Freud (1918), tais neuroses são, em última instância, neuroses traumáticas e, portanto, também ocorrem nos dias de paz. Freud observou que os pesadelos descritos pelos traumatizados repetiam as vivências dolorosas. No caso das denominadas neuroses de guerra, os sonhos pareciam ser mais uma tentativa de elaboração do conteúdo traumático do que meras tentativas de realização de desejos.

As investigações sobre neurose traumática certamente não se resumem as situações de guerra, contudo elas ilustram de modo contundente os efeitos da neurose traumática. De fato, podemos afirmar que o momento traumático marca uma cisão, um antes e depois estabelecido na vida do sujeito. Então, como pensar a respeito dessas subjetividades que estão sendo construídas a partir da experiência traumática? Novo normal ou um novo mundo que requer novas lentes de leitura?

Na neurose traumática, o sujeito é assombrado por um encontro que não pode esquecer, que o assalta de noite mesmo tendo dele escapado durante o dia. Isso absorve a totalidade da sua libido e dos interesses do sujeito, em proveito de um pavor e de uma angústia que não cessam de se inscrever. Quando nos referimos ao passado, ou seja, ao acontecimento que deu origem ao trauma, consideramos uma força atuante cuja testemunha é a lembrança. O traumatizado não se lembra apenas, na realidade, ele é invadido por imagens, barulhos e sensações. Também, não podemos esquecer, que o trauma deixa herdeiros.

Joel Birman (2020) em sua análise sobre os impactos da pandemia de Covid-19, explica que a noção de catástrofe remete às linhas de força e de fuga que delineiam a constituição real do mundo. Por outro lado, o trauma reenvia para as coordenadas constitutivas do sujeito que se inscreve neste espaço real do mundo que foi colocado literalmente pelo avesso, pela dor e sofrimento, que como dobras ruidosas, modulam efetivamente os interstícios da experiência traumática.

Vivemos os dois. Simultaneamente.

Se para a medicina o trauma designa lesões no organismo causadas por fatores externos, no plano da psicopatologia os traumas são compreendidos como acontecimentos que rompem radicalmente com um estado de coisas no psiquismo, provocando um desarranjo em nossas formas habituais de funcionar e compreender as coisas e impondo o árduo trabalho psíquico da construção de uma nova ordenação do mundo. Dito de outro modo, o trauma é uma vivência que, no espaço de pouco tempo, aumenta demasiadamente a excitação da vida psíquica de tal modo que a sua liquidação ou a sua elaboração pelos meios habituais fracassa, acarretando em perturbações duradouras no funcionamento psíquico.

Entre os acontecimentos e esses efeitos, insere-se a tela da memória e da fantasia que transforma os fatalismos. Se, no âmbito da clínica, nesse momento pandêmico, pandemônico, cabe pensar que o trabalho de análise também incluiria a tentativa de tessitura da fantasia que foi desvelada posto que o real tem se reproduzido sem véu. No campo coletivo, nos resta acreditar que a justiça realize este trabalho reparador para que vidas possam ser salvas.

Impeachment urgente.

Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para um debate amplo sobre a psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

Reforma Psiquiátrica e o Movimento Organizado de Usuários. Por que não há Movimentos de Ex-Usuários ou de Sobreviventes da Psiquiatria no Brasil?

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Em uma série de ‘blogs’, pretendo apresentar um conjunto de reflexões acerca da reforma psiquiátrica brasileira.

 

Primeiramente, é muito importante lembrar que no próximo dia 18 de maio iremos celebrar o DIA NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL. Somos milhares e milhares de brasileiros que não aceitam nenhuma categoria de assistência de características asilares. Portanto, somos “antimanicomiais”.

Estamos agora em um período para se parabenizar a todas e todos que durante essas últimas décadas têm demonstrado, na prática, os inúmeros e indiscutíveis ganhos para a saúde mental conquistados graças ao deslocamento da assistência hospital-asilar para o território. E sabemos todos quantos são os retrocessos que estão sendo politicamente planejados e executados nos últimos anos.

Ao escrever essa sequência de ‘blogs’, a minha intenção é reforçar a luta antimanicomial e de pensar junto aos leitores como é necessário haver uma “radicalização” do próprio processo de reforma psiquiátrica em nosso país (no sentido etimológico de “radicalizar”). Confesso que não estou seguro se o horizonte seria uma “assistência do bem-estar social” ou “assistência em saúde mental”, senão “psicossocial”. Essa dúvida ficará melhor entendida ao longo dos ‘blogs’. Garantidamente, o que tenho claro é que não é uma “psiquiatria pós-asilar” o que vislumbro.

Neste primeiro ‘blog’ irei fazer apenas uma consideração preliminar. A partir da seguinte pergunta:

Por que no Brasil não existe algum movimento organizado de ex-usuários da Psiquiatria? Senão de “sobreviventes” da Psiquiatria?

Estou falando de “ex-usuários” da Psiquiatria, e não de “ex-usuários” do Sistema Único de Saúde (S.U.S.). Uma distinção que considero ser muito relevante. Segundo o que é definido pelo S.U.S., é um direito constitucional de todos os cidadãos brasileiros o acesso universal aos serviços de saúde. Portanto, com relação ao S.U.S., não faria sentido algum se defender algo como ser “ex-usuário” do S.U.S.; salvo para aqueles que passaram desta vida para outra!

O que é muito distinto quando se diz: “eu sou um ex-usuário da Psiquiatria.”

O que se espera de alguém que sendo usuário da pediatria ao chegar à adolescência? Que passe a ser um ex-usuário da pediatria, não é mesmo? Senão, seria algo como tratar um adulto como se ele ainda fosse uma criança. Assim como quem já foi usuário das clínicas de “gastro”, “cardiologia”, por exemplo, o que se espera é que seja um “ex”. Nestes casos, o esperado é que o “usuário” do S.U.S., graças ao êxito do seu tratamento, ele (a) não mais necessite de ser usuário do tratamento. E com relação à Psiquiatria? Por que temos que continuar a ser um “usuário” da Psiquiatria? O que justifica isso?

É verdade que há diversas condições que levam alguém a continuar sendo um usuário do S.U.S. durante muitos anos, senão a vida inteira. São as chamadas doenças crônicas. Não são poucas as doenças crônicas, infelizmente. E com a Psiquiatria, é isso o que ocorre? Seriam os “transtornos psiquiátricos” doenças crônicas, infelizmente?

Há aqueles que tiveram uma experiência da assistência asilar-hospitalar. E que passaram a ser tratados no “território”. Por conseguinte, não seria mais adequado que eles/elas estivessem fazendo parte de movimentos organizados de “ex-usuários” – do sistema manicomial-hospitalar?

Eu imagino que você leitor esteja agora a pensar: “Fernando, mas não é isso o que o movimento dos usuários no Brasil tem feito, denunciando à sociedade o quanto sofreram, e que por isso mesmo defendem hoje uma assistência pós-asilar?

Sim, eu sei; mas a minha pergunta é outra: “Por que não “ex-usuários?“? Senão, por que não “sobreviventes da psiquiatria”? Neste último caso, o que estaria explicitamente sendo afirmado para a sociedade é que apesar de haverem sido vítimas da psiquiatria, apesar dos danos pessoais e intersubjetivos, conseguiram “sobreviver” à Psiquiatria. Quantas coisas importantes esses movimentos estariam ensinando a sociedade brasileira, não é mesmo? Senão, o quanto os profissionais de saúde estariam aprendendo com essas experiências de vida? Onde há movimentos organizados de “ex-usuários” e “sobreviventes” da psiquiatria, o ‘discurso do mainstream’ da psiquiatria ganha fissuras onde sementes do “novo” podem ser germinadas.

Voltemos para a realidade brasileira. Alguém que foi diagnosticado com esquizofrenia e entrou em tratamento, estará ele/ela condenado a ser usuário para o restante da sua vida? Ou alguém que foi diagnosticado com um transtorno depressivo, terá ele/ela que ser usuário para o restante da sua vida? Senão, alguém com um diagnóstico de transtorno de ansiedade. E assim por diante.

Sabemos que hoje em dia, no Brasil, o número de usuários da psiquiatria é muito maior do que aquele dos tempos onde os asilos psiquiátricos dominavam o cenário. Fora dos asilos psiquiátricos, os “usuários” psiquiátricos convivem conosco, se confundem com cada um de nós, estão ao nosso lado. Os “usuários” estão integrados, em uma forma ou outra. Porque, afinal de contas, o senso-comum criado com a reforma psiquiátrica no Brasil é que “de perto ninguém é normal”. Em nome de um combate ao estigma, não faltaram campanhas para nos sentirmos, todos, de bem em ser um paciente psiquiátrico. Afinal de contas, um “transtorno mental” seria não mais que uma doença como qualquer outra! E como doença, ela deve ser tratada pelo sistema de saúde.

Por que LUTA ANTIMANICOMIAL? Será por que tememos que nossos filhos tratados por TDAH passem a ser tratados em um asilo psiquiátrico? Ou que eu, você, por que somos pacientes por depressão, estamos sob ameaça de ir parar em um manicômio? E assim por diante.

Se a maioria de nós pode ser usuário da psiquiatria, conforme o ‘mainstream’ da psiquiatria, por que não LUTA ANTIPSIQUIATRiA?

Será que em psiquiatria, quem passou a ser usuário da psiquiatria, terá que ser para o restante da sua vida um “usuário”? Não digo do S.U.S., mas da psiquiatria? É isso uma fatalidade?

O que as evidências científicas dizem a respeito? Desmentem esse ”senso-comum”. O que a Ciência mostra é que, em geral, alguém é “usuário”, pelo restante da sua vida, graças à própria psiquiatria. É intrínseco ao modelo biomédico da psiquiatria adoecer as pessoas e mantê-las doentes. Em próximos ‘blogs’ terei oportunidade de mostrar isso com evidências científicas.

Retorno à questão inicial. E a refaço da seguinte forma: “Por que no Dia Nacional de Luta Antimanicomial, não há movimentos de ex-usuários ou sobreviventes da psiquiatria manifestando as suas pautas de demandas?” Certamente, o debate hoje estaria tendo uma qualidade bem distinta. Os retrocessos que estamos ultimamente sendo vítimas seriam melhor entendidos. E as reações seriam outras. Porque foram décadas de reforma psiquiátrica no Brasil, sem haver dado à sociedade alternativas viáveis e confiáveis ao modelo biomédico da Psiquiatria (diagnóstico e tratamento com drogas).

Quem viveu em algum asilo psiquiátrico e dele saiu, é um ex-usuário do sistema asilar. De Barbacena, de Juqueri, da Colonia Juliano Moreira, etc. Por que ex-usuários dos manicômios continuam sendo usuários da Psiquiatria, hoje, e provavelmente amanhã?

Seria por que passaram a ser “dependentes” da Psiquiatria? Dependentes do diagnóstico psiquiátrico. Dependentes das drogas psiquiátricas. De algum benefício social? Não enquanto indenização pelos danos que sofreram do tratamento, mas para poder sobreviver socioeconomicamente? Seria por que se deixarem de ser usuários da psiquiatria não poderão mais gozar de migalhas de uma vida decente? É isso?

Por que?

Um olhar aos movimentos organizados no exterior, em particular nos Estados Unidos, no Canadá, Europa, Austrália ou na Nova Zelândia, para dar alguns exemplos, há movimentos organizados, historicamente, de ex-usuários. Mas também de “sobreviventes da psiquiatria”. Não irei, agora, entrar em detalhes sobre o que caracteriza esse ou aquele outro movimento.

Mesmo correndo o risco de estar sendo repetitivo, o que é importante é nos perguntarmos o que faz com que nós brasileiros nos mantenhamos na narrativa da assistência manicomial? Por que no Brasil, não há um movimento de ex-usuários para defender publicamente, não apenas que deixaram de ser pacientes em asilos psiquiátricos. Mas para afirmar que graças a um ou ao outro tratamento, ficaram recuperados? Por que na literatura científica não há provas, evidências científicas, de que no Brasil, devido à essas ou àquelas outras práticas “psicossociais”, nós conseguimos obter melhores resultados quando comparados aos tratados pelo modelo biomédico da psiquiatria?

Porque o tratamento que está sendo dado não lhes garante uma vida independente da condição de paciente psiquiátrico?

A minha hipótese é que a reforma psiquiátrica brasileira tem dado ênfase ao deslocamento da assistência prestada em asilo psiquiátrico para aquela do território. E que no território o que mudou foi uma ampliação do mercado para o exercício do próprio poder psiquiátrico. Mesmo sabendo que não faltam boas intenções dos profissionais.

Para concluir, duas perguntas:

  • Será que, para que as “diversas formas” como o sofrimento psíquico se manifesta, para elas serem reconhecidas pela sociedade, necessitam de se adequar, necessariamente, à hegemonia do “modelo biomédico” da Psiquiatria?
  • No Brasil – para uma parcela significativa da nossa sociedade – ser “usuário” da Psiquiatria não é a condição para receber alguma categoria de reconhecimento social? Como ter um lugar na sociedade com um mínimo de dignidade? Seja em termos pecuniários, sabemos. Mas, não menos importante, para poder contar com uma escuta, afeto, esperança; até mesmo um prato de comida?
  • É isso? É a reforma da assistência em saúde mental aquela que queremos?

No próximo ‘blog’ irei analisar um conjunto dados da assistência psiquiátrica no Brasil, dos anos 90 aos tempos contemporâneos. Um quadro chocante!

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