Um novo estudo, publicado na Lancet Psychiatry, examina o efeito da pandemia de COVID-19 nas taxas de suicídio. Depois de analisar dados de 21 países, os investigadores não encontraram um aumento significativo do risco de suicídio desde o início da pandemia, apesar das preocupações iniciais de que as taxas aumentariam. Eles exortam à vigilância e atenção aos efeitos a longo prazo da pandemia sobre a saúde mental.
Os investigadores, liderados pela Professora Jane Pirkis da Universidade de Melbourne, escrevem:
“O nosso estudo é o primeiro a examinar os suicídios ocorridos no contexto da COVID-19 em múltiplos países. Oferece um quadro amplamente consistente, embora proveniente de países de elevado rendimento e de rendimento médio-alto, de números de suicídios que permanecem inalterados ou declinam nos primeiros meses da pandemia. Este quadro não é completo nem final, mas serve como a melhor evidência disponível sobre os efeitos da pandemia no suicídio até agora.”
“TSUNAMI IN NEW YORK” BY GOA
A pandemia da COVID-19 teve um impacto significativo na saúde mental, embora os investigadores ainda estejam trabalhando para compreender a extensão do impacto. Em uma tentativa de compreender o efeito da COVID-19 nas taxas de suicídio, os investigadores examinaram estudos atualmente disponíveis sobre as taxas de suicídio ao nível mundial. Contudo, encontraram provas insuficientes para oferecer uma compreensão completa de como a pandemia influencia as taxas de suicídio.
Realçam como o efeito da pandemia nas taxas de suicídio depende de muitos fatores, incluindo: “a extensão da pandemia, as medidas de saúde pública instituídas para a controlar, a capacidade dos serviços de saúde mental existentes e os programas de prevenção do suicídio, e a força da economia e as medidas de alívio para apoiar aqueles cujos meios de subsistência são afetados pela pandemia.”
Além disso, irão provavelmente variar de país para país, outras influências externas sobre o suicídio, tais como instabilidade política ou dificuldades econômicas, que podem ser independentes e agravadas pela pandemia,
No estudo atual, os investigadores utilizaram dados de suicídio em tempo real de 21 países de alta e média-alta renda. 10 destes países forneceram dados relativos a todo o país, enquanto 11 forneceram dados sobre uma área ou áreas específicas no país. Os dados foram analisados para determinar se as taxas mensais de suicídio (que variaram entre 1 de abril e 31 de julho de 2020) se alteraram após o início da pandemia.
Globalmente, os investigadores não encontraram um aumento do risco de suicídio desde o início da pandemia, consistente com os resultados de outros estudos que investigaram as taxas de suicídio em países de rendimento elevado e médio-alto.
Atribuem ao não aumento de aumento das taxas de suicídio a vários fatores, incluindo a preocupação manifestada desde cedo sobre os potenciais impactos negativos na saúde mental das ordens de permanência em casa e dos fechamentos de escolas e empresas. Embora as experiências auto relatadas de depressão, ansiedade e pensamento suicida tenham aumentado durante o período examinado, não parece haver afetado as taxas globais de suicídio nos países incluídos no estudo.
Um fator adicional é a maior ênfase e acessibilidade dos tratamentos e serviços de saúde mental disponibilizados por alguns países durante a pandemia, que podem ter sido protegidos contra alguns dos efeitos nocivos da pandemia.
Os investigadores salientam também o papel da comunidade como potencial fator de proteção. Por exemplo, as comunidades que se esforçaram para apoiar indivíduos em risco para a saúde mental ou outras preocupações, ou onde os lares podem ter desenvolvido relações mais estreitas e fortes através do aumento do tempo em conjunto. Um sentimento geral de união, enquanto comunidades, foi uma proteção à pandemia, o que pode também haver protegido as pessoas contra um aumento do suicídio.
A prestação de apoio financeiro aos cidadãos e empresas por parte dos países pode ser outra salvaguarda potencial. Contudo, como grande parte deste apoio está agora a ser reduzido ou retirado, os potenciais aumentos nas taxas de suicídio, devido ao impacto pandêmico e econômico da pandemia, podem ainda estar por vir, dado que a recessão econômica tem demonstrado ser um fator que contribui para o aumento do suicídio.
Embora não tenha sido encontrado qualquer aumento nas taxas de suicídio durante uma análise primária, os investigadores encontraram aumentos significativos no risco de suicídio em Viena, Japão, e Porto Rico quando o período de observação foi prolongado de 31 de julho a 31 de outubro de 2020. Além disso, foi observado um aumento em Porto Rico quando a data de início foi alterada de 1 de abril para 1 de março de 2020. Potenciais fatores externos podem ter contribuído para estas aberrações, tais como um aumento de suicídios de celebridades no Japão durante a pandemia, bem como a recessão econômica em curso em Porto Rico, que a pandemia pode ter exacerbado ainda mais.
A falta de inclusão dos países de baixo ou médio rendimento, que representam ligeiramente menos de metade dos suicídios do mundo (e podem ter sido especialmente afetados pela pandemia), apresenta uma limitação importante deste estudo.
A falta de dados oficiais destes países constituiu uma barreira. Contudo, os investigadores conseguiram encontrar dados não oficiais da Tunísia, Mianmar (ambos de rendimento médio-baixo), e Malawi (de rendimento baixo). Para o Malawi e a Tunísia, encontraram aumentos perturbadores nas taxas de suicídio – aumentando em 57% no Malawi e 5% na Tunísia. Em Mianmar, foi encontrada uma diminuição de 2% nas taxas de suicídio.
Outras limitações incluem uma potencial diminuição da qualidade dos dados utilizados devido aos possíveis efeitos da COVID-19 na recolha de dados, o que poderia ter resultado em sub-contagens de suicídios, incapacidade de analisar os dados por categoria demográfica e uma confiança em dados centrados em áreas específicas para 11 dos países.
A exploração do impacto da pandemia em determinados grupos demográficos, especialmente indivíduos marginalizados, como a situação de população de rua, é fundamental, considerando que as desigualdades sociais agravaram os efeitos negativos da COVID-19, incluindo o sofrimento mental.
Pirkis e colegas concluem enfatizando a necessidade de se continuar a monitorizar dados em tempo real para que qualquer aumento nas taxas de suicídio possa ser descoberto imediatamente. Sugerem que precisamos de compreender que fatores protetores ajudaram a manter as taxas de suicídio baixas no início da pandemia.
Além disso, as taxas de suicídio capturam apenas um fator de saúde mental, pelo que outros aspectos da saúde mental devem ser explorados e compreendidos para fornecer o apoio adequado. É também crucial um maior esforço para compreender o efeito da pandemia nos países de menor rendimento e encontrar formas de comunicar os resultados da investigação aos governos e comunidades de tal forma que suscita compreensão e mudança de políticas, em vez de ser sensacionalística. A tomada destas medidas poderia permitir uma compreensão e prevenção dos potenciais efeitos a longo prazo da pandemia sobre o risco de suicídio e a saúde mental.
Os autores concluem:
“Os aspectos falhos na sociedade britânica foram fortemente revelados pela pandemia. Para se ‘reconstruir melhor’, no longo rescaldo da COVID-19, nós precisamos de criar os ambientes sociais e materiais que não só abordem as causas da doença mental, mas também aumentem as capacidades de todos os cidadãos para criar vidas de sentido e propósito para si próprios.”
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Rose, N., Manning, N., Bentall, R., Bhui, K., Burgess, R., Carr, S., … & Faulkner, A. (2020). The social underpinnings of mental distress in the time of COVID-19–time for urgent action. Wellcome Open Research, 5 (166). (Link)
A pesquisa publicada na revista Cereus teve como objetivo analisar as prescrições de psicofármacos em um serviço de atenção psicossocial e sua relação com a adesão ao tratamento psicossocial. Para tal, foi utilizada a observação do ambiente cotidiano do serviço e a análise de prontuários. Foram selecionados 246 prontuários de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais graves ou recorrentes, sendo a colete feita no ano de 2017.
A rede de atenção psicossocial oferece atendimento clínico e multiprofissional, regula a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental e dá suporte à atenção à saúde mental na rede básica, procurando articular ações no território e auxiliar o usuário a retomar seu lugar na sociedade. Além disso, deve ofertar acesso gratuito aos medicamentos psiquiátricos, podendo resultar em consultas médicas sucedidas por prescrições farmacológicas, fomentando a cultura da medicalização.
Para a pesquisa, foram coletadas informações dos prontuários de usuários de um CAPS II em Palmas, no Tocantins, entre os períodos de 2010 e 2016. Os seguintes indicadores foram avaliados: classe do transtorno mental conforme o CID -10, número médio de medicamentos prescritos e frequência. Para a observação sistemática do ambiente do serviço utilizou-se um diário de campo.
Os principais diagnósticos encontrados foram esquizofrenia e outros transtornos psicóticos (56,9%), e Transtorno bipolar e outros transtornos de humor relacionados (21,3%). Já medicamentos foram prescritos 794 medicamentos para 246 usuários do serviço. As classes mais utilizadas foram os antipsicóticos e neurolépticos (33,1%), seguidas de estabilizantes de humor (18,5%), os mais receitados foram Haloperidol, Clonazepan, Biperideno e Risperidona. Haviam escassas avaliações multiprofissionais quando comparadas as avaliações médicas, sucessivas prescrições farmacológicas e passagens pela farmácia.
Um dos problemas encontrados foi que o CAPS funcionava como um ambulatório de psiquiatria, o que não deveria ocorrer. Para os pesquisadores, isso se deve a dificuldade de entendimento da rede psicossocial ocasiona encaminhamentos equivocados, fragilidades na estrutura organizacional do acesso aos serviços de saúde mental e extensa fila de espera para atendimento.
“Após 50 anos da criação e disseminação do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM) produzido pela American Psychiatric Association dos Estados Unidos (APA), existe a dificuldade entre profissionais do serviço em lidarem com um sistema de classificação de doenças mentais que determina socialmente o que é normal ou patológico, e em que o trabalho psicossocial é realizado com base na doença ‘recém diagnosticada’, e não no sujeito, esquecendo-se do preceito ‘Reforma Psiquiátrica’, ‘reinserção psicossocial’ e ‘cuidado multiprofissional’. Atender em caráter ambulatorial é retornar ao conceito biomédico, onde tudo se é possível resolver através de ‘pílulas compradas em drogarias’ (FREITAS 2015).”
Os pesquisadores propõem que ocorra de maneira efetiva parcerias com dispositivos do território e da comunidade, tornando real a desinstitucionalização e evitando a medicalização da instituição. É necessário aumentar a participação da equipe multiprofissional e da família no CAPS, para assim realizar o que é preconizado pela atenção psicossocial .
“Neste sentido, avalia – se que esta dificuldade na atenção integral parece contribuir para que os usuários do CAPS II sejam acompanhados somente pelo transtorno mental o qual são acometidos, uma vez que ocorre pouca integração da atenção primária com as políticas de saúde mental, implicando ações voltadas para práticas de saúde institucionalizadas.”
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CAVALCANTE, J.A. et al. Medicalização da saúde mental: Análise das prescrições de psicofármacos em um serviço de atenção psicossocial. Revista Cereus 2021 Vol. 13. N.1 (Link)
Há algumas semanas atrás, em uma aula, uma aluna perguntou-me: “Quem foi Franca Basaglia?” Agradeci muito a pergunta e repito aqui o que disse naquele dia: qualquer oportunidade de recordar Franca Ongaro Basaglia é única. As atuais discussões em saúde mental fazem com que, mais do que nunca, seja urgente o resgate de sua obra e reflexões sobre a relação entre medicalização, feminismo e capitalismo, ainda tão pouco exploradas no Brasil.
Franca nasceu em 1928 e foi uma figura de grande referência para lutas e processos de resistência na Itália, desde a década de 1960. Apesar de suas grandes contribuições, infelizmente, não é incomum que sua referência se esgote a: “foi companheira de Franco Basaglia”. Ora, se é verdade que este relacionamento marcou suas vidas pessoais e os processos que construíram conjuntamente, é também fundamental ir além. Isto, porque Franca precisa ser lembrada também como socióloga e militante que foi, assim como por seus escritos, suas práticas em saúde mental e seu protagonismo em serviços e ações inovadoras que até hoje nos inspiram e fazem ser possível uma atenção psicossocial territorial e um feminismo que se pretende antimanicomial.
Membra do Partido Comunista Italiano, foi uma das fundadoras do movimento que ficou conhecido como Psiquiatria Democrática e que balançou um país e o mundo através do fechamento de leitos psiquiátricos. Participou ativamente do fervilhamento de experiências que transcendiam o espaço biomédico e tomou a luta contra a marginalização e manicomialização de pessoas em sofrimento psíquico enquanto nodal para a luta de classes.
Ainda na juventude, apesar de se destacar enquanto estudante, foi inicialmente proibida de cursar a universidade pela família, sob a justificativa de ser mulher. Seu projeto de ser escritora, porém, não ficou interrompido. Trabalhando como datilógrafa em uma empresa de eletricidade escreveu, nas décadas de 1950 e 60, histórias infantis publicadas pelo Corriere dei Piccoli. Mais tarde, em parceria com Franco Basaglia, assinou obras reconhecidas como La maggioranza deviante [1], Crimini di pace [2] e Morrire di Clase: La condizione manicomiale [3]. Organizou os livros Scritti Basaglia I [4] e II [5], além de outras obras compartilhados com demais companheiros da Reforma Psiquiátrica Italiana, como La nave che affonda [6].
Individualmente, publicou livros como Mario Tommasini. Vida e Feitos de Um Democrata Radical [7] e Salute/malattia. Le parole della medicina [8]. Sobre o tema mulheres e loucura, Franca escreveu Grillo parlante (1970) e Il soldato e la sword (1972), publicados na antologia Una voce Riflessioni sulla donna [9], além de editar e comentar a republicação de um texto Paul Julius Moebius, publicado em 1900, intitulado A inferioridade mental das mulheres [10]. De grande destaque é o seu livro Mujer, Locura y Sociedad” (ONGARO BASAGLIA, 1983), traduzido na década de 1980, pela Universidade de Puebla, no México, país no qual foi reconhecida por sua referência feminista, assim como o prefácio do consagrado livro Woman and Madness [11], de Phyllis Chesler.
Eleita duas vezes como senadora pela esquerda independente se dedicou às pautas vinculadas às drogas, às violências sexuais, às prisões e aos manicômios. Foi uma figura central para a implementação efetiva da lei 180, de 1978, que direcionou o fechamento dos hospitais psiquiátricos italianos. Sua atuação intelectual e política foi reconhecida em 2000 com o prêmio Ives Pelicier, da Academia Internacional de Direito e Saúde Mental, e, em 2001, com o título Doutora Honoris Causa, pela Universidade de Sassari, pela “Proteção dos direitos e conhecimentos disciplinares”.
Em suas últimas falas e ensaios, Franca afirmou a urgência da radicalidade na Reforma Psiquiátrica. Para ela, era preciso retornar à raiz, avaliar seus caminhos e limites e realizar uma mudança radical nas fundações das várias disciplinas que se voltavam para as diversidades e desigualdades. Nesta investida, problemáticas referentes à medicalização e ao feminismo foram alguns dos nortes neste caminho.
Suas contribuições sobre a medicalização ganharam fôlego especial no livro “Salute/malattia. Le parole della medicina”, destinado à Enciclopédia Einaudi. Negando a noção de doença enquanto fenômeno natural, a autora marcava sua relação com a produção social e histórica em constante mudança no interior da organização social capitalista. Voltada para este cenário, lançou luz sobre a padronização neoliberal dos corpos considerados desviantes e improdutivos, tanto a partir da instituição psiquiátrica asilar quanto dos novos serviços. Estes, ainda permeados pela lógica manicomial sob o formato de uma estrutura de políticas públicas e de saúde que mantêm a lógica de isolamento, são problematizados por Franca e apontados como símbolo da permanência de uma lógica. A qual figura social está vinculada o sujeito considerado saudável ou “doente”? é um questionamento que acompanha todo o escrito, apontando para trazendo elementos vinculados à raça, estatuto migratório, renda e gênero (CASTORINA, 2017) [12]
Em sua fala na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, na Fiocruz, em 1996 [13], a autora retornou à problemática da tutela em saúde mental, realizada pela via da medicalização enquanto manutenção da norma. Para tal, Franca a localizou a partir de 3 caminhos: (1) pela via da objetivação do sujeito como premissa à cientificidade de intervenção médica; (2) pela redução de fenômenos vinculados a condições sociais, psicológicos e relacionais a um dado apenas natural e biológico e (3) pela consideração de fenômenos naturais como patológicos (ONGARO BASAGLIA, 2008) [14].
Ao denunciar a construção da doença mental na racionalidade do capitalismo, Franca sustentou a importância de que a classe trabalhadora fosse entendida de maneiras distintas em suas suas opressões e medicalizações, também a partir das relações de gênero. Em “Mujer, Locura y Sociedad” (1983) [15] problematizou a concepção de sujeito universal, fundada e fundante da medicina psiquiátrica, e apontou para as condições históricas que reduziram as mulheres ao corpo, à natureza e ao irracional. Neste livro, a autora chamou atenção para os efeitos subjetivos da violência contra as mulheres, para os impactos do trabalho doméstico e sua sobrecarga e o para o aprisionamento da sexualidade feminina. Analisou o sofrimento subjetivo de mulheres e seus desdobramentos nas instituições psiquiátricas e seus processos de medicalização, sublinhando que: “as mulheres são consideradas mais loucas que os homens nas culturas ocidentais” (ONGARO BASAGLIA, 1983: p. 56, tradução nossa). Localizando que quanto mais restritos os papéis sociais das mulheres em sua sociedade, mais graves seriam os tipos de infrações sob os rótulos e sanções psiquiátricas sobre estas, propôs: “(…) investigar a “loucura” das mulheres a enfocando como um fenômeno explícita e historicamente determinado (ONGARO BASAGLIA; 1983, pag 56, tradução nossa).
Até o momento de escrita deste artigo, não localizei no Brasil materiais biográficos sobre a vida de Franca, mas em seu país algumas produções marcam a memória desta autora e militante. Entre elas, a ação teatral “A Voz de Franca Basaglia”, de Mattia Berto, exibida na décima edição do Festival dei Matti [16]. Outra produção que não poderíamos deixar de citar é a mais ampla e conhecida biografia de Franca Basaglia que se encontra na Enciclopédia Italiana de Ciências das Letras e das Artes [17], escrita por Maria Grazia Giannichedda, também fundadora da Fundação Franca e Franco Basaglia, em Veneza. Este espaço se constitui hoje como o maior inventário da obra e vida desses dois companheiros de vida, luta e intelectualidade, reunindo fotos, pôsteres, documentos, livros e outros materiais.
REFERÊNCIAS
[1] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. La maggioranza deviante. Baldini & Castoldi:2018.
[2] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. Crimini di pace. Ricerche sugli intellettuali e sui tecnici come addetti all’oppressione. Baldini & Castoldi:2018.
[3] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. Morire di classe. La condizione manicomial. Turim: Einaudi, 1969.
[4] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F(org). Scritti Basaglia I(1953-1968) -dalla psichiatria fenomenologica a all’esperienz di Gorizia. Turim: Einaudi, 1981
[5] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F(org). Scritti Basaglia I(1964-1980) -dall’apertura del manicomio alla nuova legge sul’assistenza psichiatrica. Turim: Einaudi, 1982.
[9] ONGARO BASAGLIA, F. Una voce Riflessioni sulla donna. Italia: Il Saggiatore, 1982.
[10] ONGARO BASAGLIA, F. Prólogo. MOEBIUS PJ. La inferioridad mental de la mujer. Barcelona: Bruguera, 1982.
[11] CHESLER P. Woman and Madness. New York: Avon Books, 1973.
[12] CASTORINA R. Medicalizzazione e normalizzazione nella governance neoliberale. L’atuualità del pensiero di Franca Ongaro Basaglia . Franco Angeli: Sociologia del Diritto, f.1, p. 9-34.
[13] A fala foi proferida no Seminário Comemorativo dos 15 anos do Curso de Especialização em Psiquaitria Social, na Fiocruz (RJ), em 1996 e publicada em formato de texto em Ongaro Basaglia (2008).
[14] ONGARO BASAGLIA, F. Saúde/doença. In: AMARANTE, P. e CRUZ, L. (org.). Saúde mental, formação e crítica. Rio de Janeiro: Laps, 2008. Cap. 1, p. 17-36.
[15] ONGARO, BASAGLIA, F. Mujer, Locura y Sociedad. Puebla, Universidad Autónoma de Puebla: 1983.
A terapia eletroconvulsiva (ECT) é um procedimento que é frequentemente dado a pessoas que são consideradas em risco de suicídio. No entanto, um novo estudo descobriu que a ECT não é mais eficaz na prevenção do suicídio do que qualquer outro tratamento.
Os investigadores desta pesquisa são Talya Peltzman e Brian Shiner do Veterans Affairs (VA) Medical Center em White River Junction, VT, e Bradley V. Watts do National Center for Patient Safety em Ann Arbor, MI. O estudo foi publicado no Journal of ECT.
O estudo incluiu 14.810 pessoas que receberam ECT e 58.369 que não a receberam. Os participantes foram todas as pessoas que utilizaram a Administração de Saúde dos Veteranos (Veterans Health Administration) entre 2006 e 2015. Os participantes foram comparados em características demográficas e clínicas utilizando escores de propensão ao risco, o que permitiu aos investigadores dar conta de diferentes graus de gravidade dos problemas de saúde mental e diagnósticos psiquiátricos e de fatores tais como idade e sexo. O estudo acompanhou os participantes durante um ano para comparar o número de pessoas que morreram por suicídio. Os investigadores concluíram:
“Após comparar e controlar as diferenças entre grupos em uma regressão logística ajustada, as probabilidades de suicídio no ano após a realização da ECT não foram estatisticamente diferentes das dos pacientes que não receberam o procedimento.”
De acordo com Peltzman, Shiner, e Watts, as pessoas que receberam ECT tinham tendência a ter problemas de saúde mental mais graves, tentativas de suicídio anteriores, e, em muitos casos, tratamentos anteriores não conseguiram melhorá-los.
O ECT é geralmente visto como tendo um efeito protetor rápido e poderoso. Mas este estudo contradiz essa crença, descobrindo que após um ano aqueles que receberam ECT tinham a mesma probabilidade de morrer por suicídio do que aqueles que receberam outras intervenções para níveis de risco semelhantes.
Embora a investigação que realizaram tenha demonstrado que a ECT não reduziu o risco de morte por suicídio, os investigadores escrevem que eles se sentem “tranquilizados” de que os doentes em risco de suicídio receberam ECT.
“É reconfortante que tais pacientes estejam a ser identificados e a receber tratamento recomendado para diagnósticos psiquiátricos complexos e severos”, escrevem eles.
Eles não concluem que a ECT não deve ser utilizada para a prevenção de suicídios. Apesar da conclusão de que não era melhor do que qualquer outra coisa, eles argumentam que o passo seguinte deve ser descobrir como a ECT pode ser utilizada para prevenir o suicídio.
“Compreender os padrões da prática da ECT e as características dos pacientes que proporcionam os maiores efeitos anti-suicidas são os próximos passos importantes para se compreender como a ECT pode ser utilizada com maior eficácia na prevenção do suicídio”, escrevem eles.
Mad in America entrevistou [ Mad in Brasil traduziu) recentemente John Read (University of East London) e Irving Kirsch (Harvard Medical School) sobre as suas análises, que descobriram que os estudos sobre a eficácia da ECT eram de qualidade extremamente baixa e que existe um elevado risco de perda permanente de memória após o procedimento.
Read, Kirsch, e a coautora Sherry Julo escreveram:
“Dado o elevado risco de perda permanente de memória e o pequeno risco de mortalidade, esta falha de longa data em determinar se a ECT funciona ou não significa que a sua utilização deve ser imediatamente suspensa.”
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Peltzman, T., Shiner, B., & Watts, B. V. (2020). Effects of electroconvulsive therapy on short-term suicide mortality in a risk-matched patient population. Journal of ECT, 36(3), 187-192. DOI: 10.1097/YCT.0000000000000665 (Link)
Da CBS This Morning: Tony Dokoupil: Oprah Winfrey está a desafiar-nos a que todos examinemos e reexaminemos como o trauma que todos nós vivemos de uma forma ou de outra como crianças pode moldar a nossa visão do mundo hoje em dia como adultos. Faz parte de um novo livro que ela coescreveu com o psiquiatra Dr. Bruce Perry; Oprah exorta as pessoas a virar a pergunta “O que se passa com você?” para, em vez disso, perguntar “O que lhe aconteceu?”
Desde que mergulhei no livro “What Happened To You?“, tenho olhado para toda a gente na rua como um “ex-recém-nascido”, na sua frase, Oprah. Isso chega realmente ao que o título representa: uma reformulação de como olhamos uns para os outros. É sutil, mas é muito profundo.
Oprah: É sutil, mas profundo e poderoso . . . Cada um de nós cria uma visão única do mundo moldada pelas nossas experiências de vida, e a maior parte disso aparece – essa visão do mundo é moldada quando se é criança.
Dokoupil: A mesma parte do cérebro que está a aprender a linguagem também está a aprender lições sobre trauma . . . Uma vez entendido o script que lhe levou até hoje, o que lhe aconteceu, pode reescrever esse script.
Oprah: Ter alguém que o vê, o vê e o reconhece plenamente e pode conectar-se a isso, muda a forma como se vê e se vê o mundo. E é por isso que “o que lhe aconteceu” é tão importante para todos nós.
Dr. Perry: A cura vem realmente destes momentos em que as pessoas estão presentes, atentas, sintonizadas, e como verdadeiramente são vistas, como diz a Oprah.
Veja o vídeo. É possível vê-lo com legendas. É muito interessante.
Quer você tenha ou não lido ou apreciado os sete livros Harry Potter, de J. K. Rowling , provavelmente já ouviu falar deles. Num estudo recente que aproveitou a inegável popularidade da série, Paula Klim-Conforti e uma equipe de investigadores do Canadá examinaram o impacto de uma intervenção terapêutica informada por Harry Potter, em escolas. Encontraram progressos no bem-estar e na sintomologia depressiva, ansiosa e suicida entre estudantes do ensino médio.
Klim-Conforti e os seus colegas realizaram um ensaio controlado randomizado (RCT) que compreendeu 46 salas de aula em 15 escolas para avaliar o programa – caracterizado por elementos de terapia cognitivo-comportamental (TCC) e incorporado ao currículo padrão de inglês – dentro de um grande distrito escolar urbano. Os professores de inglês foram formados para implementar o programa e serviram como agentes intervencionistas, e todas as salas de aula participantes foram divididas em grupos de intervenção e controle. Foram observados benefícios promissores num espectro de resultados avaliados neste estudo, especialmente entre as participantes do sexo feminino, embora a propagação da COVID-19 tenha interferido com a linha temporal e o âmbito do projeto.
“Este estudo controlado examinou prospectivamente o professor com intervenção das competências TCC baseada em Harry Potter. Embora existam vários programas escolares que derivam da TCC, esta é a primeira intervenção que incorpora tanto a psicoeducação básica da TCC, a resiliência, como as capacidades de lidar com a situação dentro de uma unidade de literatura que é ensinada dentro do currículo de línguas.”
As taxas de ansiedade e depressão parecem estar aumentando entre os jovens. Um estudo recente identificou um aumento de 52% na experiência de um episódio depressivo importante entre os adolescentes entre 2005 e 2017. Embora a abundante investigação tenha suscitado preocupações quanto à forma como estes dados são obtidos e interpretados, e as estruturas que sobrestimam os fatores individuais de angústia em relação aos determinantes sociais têm sido criticados, tem sido bem documentado que muitos jovens experimentam depressão, ansiedade, e vários graus de ideação suicida.
Para muitos jovens, particularmente aqueles que se encontram em lares e comunidades economicamente vulneráveis, a pandemia da COVID-19 tem um impacto na saúde e exacerbado os sintomas associados às perturbações do humor. O âmbito da angústia fala do potencial de prevenção e programação de intervenção universal oferecido em espaços acessíveis (por exemplo, nas escolas) para apoiar os jovens em geral, e não apenas adaptados a grupos e indivíduos com sintomas clínicos limítrofes. Os adolescentes, em geral, poderiam beneficiar-se de recursos que promovessem conexões e estratégias para facilitar o aumento do bem-estar social e emocional.
“É geralmente aceite que o estresse da vida e os déficits na capacidade de lidar com o sofrimento são antecedentes fundamentais do suicídio (Brent et al. 2011; Seguin et al. 2014). No entanto, os esforços de prevenção do suicídio na juventude muitas vezes não conseguem abordar estes fatores a um nível que seja adequado ao desenvolvimento. Por conseguinte, é urgentemente necessária uma intervenção de prevenção escalonável, viável e eficaz, precoce e universal, que aborde estes fatores.”
Os livros de Harry Potter, explorando temas tais como amizade, ética, comunidade, e como lidar com a adversidade, têm tido quase um quarto de século de apelo multigeracional. O fascínio da série tem sido sustentado através da introdução de filmes, parques temáticos, e outras renovações dentro do “Potterverse“. Informalmente, fora da programação terapêutica organizada, a presença e as lições de Harry Potter ajudam muitos jovens nos desafios da vida.
A intervenção de três meses, baseada em Harry Potter, orientada pela TCC, delineada em Klim-Conforti e o estudo da equipe, integra formalmente muitos dos temas que mais ressoam com os fãs ao longo dos anos. Especificamente, “os jovens de meia-idade aprendem [com o envolvimento com o texto, os seus professores e a discussão sobre] como tanto o protagonista quanto o autor (J.K. Rowling) aprendem a ser resilientes quando eles são confrontados com a depressão e ansiedade. Os retratos de domínio sobre a angústia são enfatizados na intervenção com exemplos diretos retirados do romance, utilizando várias personagens que exemplificam a resiliência e a capacidade de lidar com ela.”
Embora o programa vise a redução das diversas características associadas à internalização e preocupações de humor dos jovens, o objetivo principal é a prevenção do suicídio. A inclusão da população estudantil, em geral, e não apenas de um grupo alvo, foi uma característica única desta RCT.
“Intervenções feitas na escola por meio da TCC e que aumentam a resiliência e a capacidade de lidar com a ansiedade e a depressão, enquanto o fazem através de uma narrativa envolvente e apropriada ao desenvolvimento, podem aumentar os esforços de prevenção do suicídio.”
Antes do estudo de Klim-Conforti e colegas ter sido realizado em 15 escolas, ele foi previamente pilotado para avaliar a viabilidade e teve um bom resultado. Em preparação para o estudo em grande escala, os professores interessados na participação no estudo foram expostos à orientação para o currículo de três meses, incluindo os seguintes ingredientes:
“A formação consistiu numa visão geral da TCC com ênfase específica nos princípios fundamentais, técnicas e modelos de TCC, dado que se relaciona especificamente com a depressão e a ansiedade, uma visão geral da literatura de investigação relativa ao suicídio e à educação em saúde mental, o papel da resiliência, módulos de aprendizagem foram discutidos por capítulo de livro (ver “Intervenção” para mais detalhes), foi fornecida uma visão geral do desenho da investigação, e foi atribuído tempo para a consolidação e discussão das lições de implementação que aprendemos com o estudo-piloto.”
Um total de 200 estudantes do ensino médio com idades compreendidas entre os 11 e os 14 anos receberam autorização dos pais para participar no grupo de intervenção, e um total adicional de 230 constituiu a condição de controle da lista de espera. Os participantes em ambas as condições completaram as mensurações pré e pós-intervenção para avaliar o suicídio (tratado neste estudo como uma medida composta de ideação e tentativas suicidas auto-relatadas), desregulação emocional auto-relatada, caos interpessoal, confusão sobre si próprio, impulsividade, e sintomas de depressão e ansiedade auto-relatados. Foram realizados testes para comparar as mudanças entre salas de aula e entre condições.
“Para aqueles que a receberam, a intervenção diminuiu o suicídio na juventude do ensino médio. A análise mostrou especificamente que a intervenção reduziu significativamente a ideação suicida, sem qualquer efeito nas tentativas de suicídio. Isto apoia a ideia de que a intervenção pode ter efeitos mais acentuados sobre a cognição do que sobre o comportamento. Contudo, o suicídio de jovens é um fenômeno complexo e raro, e a identificação de reduções significativas nas tentativas de suicídio, bem como na automutilação, pode exigir uma observação mais detalhada durante um período mais longo.”
Outros efeitos significativos foram observados na redução do caos interpessoal, na melhoria da regulação emocional, e na redução da confusão sobre o self entre os membros do grupo de intervenção. Apesar do reconhecimento pelos autores de uma amostra menor do que o pretendido, resultando numa redução do poder, os resultados indicam promessa na integração de elementos básicos da TCC para promover o bem-estar social e emocional entre os estudantes num ambiente de sala de aula utilizando literatura com apelo contemporâneo. A natureza universal e integrada desta abordagem torna o trabalho de Klim-Conforti e dos colegas particularmente excitante e maduro para aplicação futura nas escolas.
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Klim-Conforti, P., Zaheer, R., Levitt, A. J., Cheung, A. H., Schachar, R., Schaffer, A., Goldstein, B., Fefergrad, M., Niederkrotenthaler, T., & Sinyor, M. (2021). The Impact of a Harry Potter-Based Cognitive-Behavioral Therapy Skills Curriculum on Suicidality and Well-being in Middle Schoolers: A Randomized Controlled Trial. Journal of Affective Disorders, 286, 134–141. https://doi.org/10.1016/j.jad.2021.02.028 (Link)
Uma das mensagens fundamentais do nosso livro THE BETTER BRAIN é que a nutrição é a base daresiliência. Muito frequentemente ouvimos as pessoas dizerem que vivemos em tempos tão estressantes, e deve ser por isso que 20% da nossa população é agora diagnosticada com um transtorno mental (em contraste com <3% em 1960). Esta explicação perde, na nossa opinião, o alvo. Os nossos antepassados recentes viveram com a Grande Depressão e duas Guerras Mundiais, sem antibióticos, sem anestésicos, e sim – até mesmo durante uma pandemia. A nossa vida é realmente mais estressante … ou … é a nossa resiliência mais baixa?
A nossa alimentação atual. Estudos recentes mostram que não estamos consumindo uma dieta tão saudável como os nossos antepassados consumiam. Por exemplo, nos últimos 50 anos, as pessoas nas sociedades ocidentais reduziram a sua ingestão de minerais e vitaminas (que chamaremos “micronutrientes”) em mais de 50%! Qual a razão de alguém optar por fazer isso?
Não pensamos que seja uma escolha consciente – é que as pessoas habituaram-se a consumir principalmente alimentos ultra-processados (AUP) – coisas que se parecem com alimentos mas que são principalmente uma mistura química de coisas como gorduras, carboidratos simples (açúcar) e sal. O problema é que estes artigos embalados têm muito poucos minerais ou vitaminas. Será isso importante para a saúde do nosso cérebro? SIM! Para que o nosso cérebro trabalhe no seu melhor, precisa de mais de 30 micronutrientes por minuto de cada dia da nossa vida. E os AUPs não os podem fornecer.
Como lidamos com o estresse. Uma das premissas subjacentes do livro é que as pessoas não mudam o seu comportamento apenas porque lhes é dito “vai ser bom para vocês”. Assim, uma grande prioridade dos primeiros capítulos é explicar por que devemos todos evitar AUPs e aumentar a nossa ingestão de alimentos completos, e como fazê-lo de forma pouco dispendiosa. Também fornecemos um resumo das provas que comprovam que a recente tendência para confiar nos AUPs é provavelmente responsável pela redução da resiliência e pelo aumento dos problemas de saúde mental. Apoiamos este argumento de muitas maneiras neste livro, e aqui vamos focar apenas numa: o tratamento nutricional do estresse pós-traumático.
Estresse pós-traumático. Catástrofes, tanto naturais (por exemplo, terremotos, inundações) como de origem humana (por exemplo, terrorismo, tiroteios em massa) afetam comunidades em todo o mundo, causando frequentemente imenso sofrimento e efeitos psicológicos a longo prazo. Julia vive e trabalha em Christchurch, Nova Zelândia, que teve a sua parcela de traumas, mas que também lhe proporcionou a oportunidade de estudar o efeito dos nutrientes na nossa resiliência.
Por exemplo, a 22 de fevereiro de 2011, Christchurch sofreu um devastador terremoto de 6,3 magnitude que matou 185 pessoas e destruiu o centro da cidade. Mas por muito terrível que tenha sido, este trauma deu ao seu Laboratório de Saúde Mental e Nutrição da Universidade de Canterbury a oportunidade de saber se os micronutrientes poderiam ajudar as pessoas a se recuperar, não das lesões físicas, mas das psicológicas.
Eis a lógica para explorar essa questão. Quando estamos sob grande estresse, mesmo aqueles de nós que evitam AUPs frequentemente procuram alimentos de “conforto” (como biscoitos, donuts) que são normalmente ricos em calorias, mas pobres em nutrientes. Mas o que é que o nosso cérebro está fazendo ao mesmo tempo durante esse elevado grau de estresse? Nessas ocasiões, o nosso sistema natural de resposta ao alarme responsável pela luta ou pela fuga é ativado. Produtos químicos como a adrenalina e o cortisol são liberados, permitindo-nos chegar à segurança, desligar funções não essenciais, e garantir que os músculos de que precisamos para voar ou voar são ativados. Infelizmente, durante longos períodos de tempo, o sistema de alarme pode entrar em excesso de velocidade, e este é um fator que pode levar à reexperiência de memórias, tendo flashbacks, sendo hipervigilante e em pânico o tempo todo, sentindo-se ansioso e em pânico quando lembrado do evento traumático. Inevitavelmente, distúrbios do sono e pesadelos tornam-se comuns.
Mas enquanto este elevado estresse está ocorrendo, e os seus sistemas de alarme estão sendo ativados, o seu cérebro e corpo usam um sistema de triagem para desviar nutrientes para as necessidades urgentes e agudas de luta ou fuga. Ou seja, muitas funções em curso podem ser relativamente negligenciadas – tais como regulação do humor, crescimento, reparação do ADN e clareza da cognição.
A produção de neurotransmissores (como a dopamina ou a serotonina) e hormônios (como o cortisol) requer micronutrientes, que são numerosos tipos de vitaminas e minerais, como o zinco, cálcio, magnésio, ferro, e todas as vitaminas B, vitamina C. Este é um fato científico bem estabelecido. Se o seu corpo estiver esgotado destes nutrientes, então ou não terá nutrientes suficientes para produzir estes produtos químicos essenciais, ou redirecionará todos os recursos para a resposta de combate-fuga (pois é tão vital para a sobrevivência) e não restará muito para assegurar uma função cerebral ótima para fazer coisas como concentrar, regular o humor e dormir.
Terremotos e uma inundação. Talvez faça sentido agora que à medida que os micronutrientes se esgotam a um ritmo elevado durante períodos de estresse, precisamos de os repor em maior quantidade a partir dos nossos alimentos (e talvez de outras fontes). Julie estudou isto após os terremotos de Christchurch e com Bonnie durante a cheia do sul de Alberta, e queremos que as pessoas tomem consciência disso durante a pandemia. E a propósito, durante dois dos nossos estudos, descobrimos também que as vitaminas B em particular podem ser úteis na redução do estresse.
Tiroteio em massa. E depois aconteceu outro evento. Em 2019, um pistoleiro entrou em duas mesquitas em Christchurch e matou 51 pessoas enquanto feria outras 40. Mais uma vez essa cidade e o seu povo estavam a lidar com um enorme trauma. Como aplicação da ciência translacional, o laboratório de investigação de Júlia ofereceu nutrientes doados a qualquer pessoa que tenha sobrevivido aos tiroteios e monitorou os seus sintomas como uma ação tanto ética como padrão para um bom tratamento clínico.
Em poucas semanas, estavam acompanhando clinicamente 26 pessoas que se tinham apresentado, e viram exatamente o mesmo efeito de tratamento que ambos tínhamos visto após os terramotos e as inundações. Nem todos, mas muitas pessoas melhoraram. Estas observações clínicas acabam de ser publicadas na revista da APA, International Perspectives in Psychology: Research, Practice, Consultation.
Aqui estão alguns dos detalhes do tratamento do massacre na mesquita. Antes de iniciar o tratamento, 77% dos 26 participantes originais encontraram-se ou excederam uma pontuação de corte que define o provável TEPT. Após uma média de cinco semanas, esta taxa caiu para 23 por cento. Por outras palavras, de todas as pessoas que provavelmente tinham TEPT, quase três quartos apresentaram uma melhoria substancial e clinicamente significativa após cerca de um mês de tratamento com micronutrientes. O estresse foi reduzido para a faixa não-clínica normal, semelhante à investigação controlada após os terremotos e uma inundação:
Gráfico de dados pós-catástrofe: Note-se que os três grupos de pessoas que receberam uma fórmula de largo espectro de minerais e vitaminas reduziram o seu estresse para a faixa normal em apenas 4-6 semanas. Em contraste, nos dois grupos que não receberam os micronutrientes de largo espectro, o referido estresse permaneceu no intervalo elevado.
Resumo dos estudos pós-traumáticos. A conclusão que retiramos desta linha de investigação pós-catástrofe é que o fornecimento de micronutrientes aos sobreviventesparece reduzir o sofrimento psicológico a um grau clinicamente significativo. Estes três exemplos diferentes de eventos traumáticos ilustram o poderoso efeito que os nutrientes podem ter na recuperação e na melhoria da resiliência. Poderiam estes resultados aplicar-se aos desafios associados às alterações climáticas e pandemias? Pensamos que sim. Qualquer coisa que possa melhorar a nossa resiliência para lidar com eventos estressantes em curso tem de ser uma coisa boa de se saber.
Obstáculos. O caminho para convencer os governos a ajudar as pessoas com micronutrientes tem sido um grande desafio. Por exemplo, Julia escreveu uma descrição publicada no New Zealand Medical Journal no ano passado, descrevendo como, após os ataques à mesquita, enfrentaram enormes dificuldades na divulgação dos resultados da investigação sobre o terramoto e as inundações, e as barreiras que em grande parte impediram a sua tradução na prática. Ela observou um sistema de saúde inflexível incapaz de implementar investigação baseada em evidências, e comités de ética incapazes de responder rapidamente a fim de facilitar a investigação na sequência imediata do desastre, quando a angústia e o stress estão no seu auge.
Em Alberta, a experiência de Bonnie foi semelhante. Na sequência da publicação dos resultados do terremoto e das inundações, houve um incêndio florestal maciço no Norte de Alberta em 2016. Mais de 90.000 pessoas tiveram de abandonar as suas casas em Fort McMurray e arredores. Muitas viviam em dormitórios universitários espalhados pela província e não foram autorizadas a regressar às suas casas durante vários meses. Bonnie abordou vários funcionários do governo e do sistema de saúde provincial, pedindo que fossem dados micronutrientes às pessoas para mitigar o impacto psicológico do trauma. Mesmo tendo conseguido basear a sua proposta em dados locais e provinciais, todas as suas sugestões foram rejeitadas – mesmo a ideia de apenas mencionar às pessoas que poderiam querer tomar um complexo B barato após o café da manhã todos os dias.
Implicações futuras mais vastas. É importante compreender que os estudos pós-traumáticos aqui descritos são apoiados por outros estudos do Reino Unido, Bélgica, África do Sul, etc., todos os quais mostraram que a suplementação nutricional pode aumentar a resiliência. Isto não deve surpreender os leitores aqui presentes, pois muitos já sabem a verdade do que dissemos na nossa primeira frase: a nutrição é a base da resiliência.
No BETTER BRAIN concluímos com um capítulo chamado “Uma visão para um amanhã mais feliz e mais saudável”. Enfatizamos primeiro a alimentação como a forma de melhorar a nossa resiliência. Apresentamos uma abordagem em três etapas para melhorar a resiliência da saúde mental que reconhece que não somos todos iguais, que as diferenças individuais influenciarão a eficácia dos diferentes tratamentos, e há um lugar na “caixa de ferramentas de tratamento de saúde mental” para todos os tratamentos baseados em provas: estes incluem dietas alimentares integrais, micronutrientes, aconselhamento, terapia familiar e medicação. E defendemos que a nutrição deve estar em primeiro lugar, porque fornece a base para todos os outros.
O título proposto para o nosso livro era Hidden Brain Hunger (Fome do Cérebro Escondido) antes de ser alterado para The Better Brain (O Cérebro Melhor). Pensamos que isto descreve adequadamente o cérebro moderno dos nossos dias.
Nutrição e Saúde Mental: Bonnie publicou sobre a base biológica da saúde mental – em particular, a contribuição da nutrição para o desenvolvimento e função cerebral, tratamentos com micronutrientes para distúrbios mentais, e o efeito da nutrição intra-uterina no desenvolvimento cerebral e na saúde mental materna.
Nutrição e Saúde Mental: O interesse de Julia em nutrição e doenças mentais cresceu a partir da sua própria investigação mostrando maus resultados para crianças com doenças psiquiátricas, apesar dos tratamentos convencionais. Ela tem investigado o papel dos micronutrientes nas doenças mentais.
Uma nova revisão da Cochrane examina o atual conjunto de pesquisas sobre a cessação do uso de antidepressivos, encontrando uma grande carência nesta área. Os investigadores pedem uma investigação mais aprofundada sobre estratégias seguras e eficazes para acabar com a utilização de antidepressivos.
“Sabemos que o aumento do uso de antidepressivos a longo prazo é uma grande preocupação em todo o mundo”, diz a principal autora da revisão e investigadora com sede na Bélgica, Ellen Van Leeuwen.
“Como médica de família, vejo em primeiro plano as lutas que muitos pacientes têm com os antidepressivos. É uma preocupação crítica o fato de não sabermos o suficiente sobre como reduzir a utilização inadequada a longo prazo ou quais são as abordagens mais seguras e eficazes para ajudar as pessoas a fazer isto. Por exemplo, existem mais de 1.000 estudos sobre o início de antidepressivos, no entanto, encontramos apenas 33 ensaios controlados randomizados (RCTs) em todo o mundo que examinaram a sua interrupção. É evidente que esta área precisa de atenção urgente.”
Os antidepressivos são normalmente utilizados no tratamento da depressão e da ansiedade. As diretrizes atuais sugerem que as pessoas devem continuar usando antidepressivos durante pelo menos seis meses após terem começado a sentir-se melhor e durante pelo menos dois anos, caso tenham sofrido múltiplos episódios depressivos. Metade das pessoas a quem foram prescritos antidepressivos estão tomando antidepressivos há mais de dois anos.
Inquéritos realizados junto de pessoas que tomam antidepressivos mostram uma falta de provas que sustentem 30-50% dos consumidores a longo prazo ainda consumindo a droga. O uso a longo prazo pode causar mais danos do que benefícios, visto que o uso de antidepressivos pode causar efeitos secundários negativos, tais como perturbações do sono, aumento de peso, disfunção sexual, hemorragia gastrointestinal, entorpecimento emocional, entre outros problemas. Além disso, outras investigações salientaram que os antidepressivos são, em média, ineficazes e potencialmente nocivos.
No estudo atual, os investigadores da Cochrane analisaram os resultados de 33 RCT, o padrão ouro para a investigação baseada em evidências, que incluía 4.995 indivíduos que tinham sido prescritos antidepressivos durante 24 semanas ou mais. O uso de antidepressivos foi interrompido repentinamente em 13 dos estudos examinados. Em 18 dos estudos, o uso de antidepressivos foi afilado ao longo de algumas semanas, com a maioria dos períodos de afilamento a durar cerca de quatro semanas ou menos.
Os investigadores descobriram que a investigação disponível não fornece nenhuma prova conclusiva da abordagem mais segura e eficaz para parar o uso de antidepressivos. Embora a maioria dos estudos tenha resultado numa aparente recidiva de sintomas depressivos, houve uma falta de diferenciação entre os sintomas de recidiva e de abstinência.
A maioria dos estudos também incluiu participantes que tinha um histórico de repetição de episódios depressivos, o que turva ainda mais as águas em torno da questão de saber se os sintomas depressivos que se manifestavam após a paragem dos antidepressivos resultavam de recaída ou de abstinência.
Nenhum dos estudos utilizou abordagens lentas e mensuráveis para parar o uso de antidepressivos – o que é o recomendado como uma forma segura de afinar os ISRS e os antipsicóticos. Em vez disso, os estudos que incluíram um regime de afinação cônica utilizaram uma abordagem rápida, explicando por que razão a interrupção abrupta e afinação resultou em recidiva/retirada.
Além disso, os estudos atuais não oferecem um consenso claro sobre quanto tempo o uso de antidepressivos deve continuar depois de os sintomas do indivíduo terem diminuído. Os investigadores sublinham como as atuais diretrizes de prescrição não são fundamentadas em provas de investigação, suscitando preocupação, particularmente à luz dos efeitos secundários problemáticos atribuídos à utilização de antidepressivos.
Os investigadores fazem várias sugestões para a investigação futura de diretrizes de descontinuação segura. Encorajam os clínicos a monitorar formalmente a forma como os seus clientes estão respondendo ao afunilamento e eventualmente à descontinuação, para melhor determinar se os sintomas são de retirada ou de recaída, bem como saber quando abrandar o processo de afunilamento se os sintomas surgirem.
Além disso, recomendam que os investigadores delimitem mais precisamente entre uma abstinência e os sintomas de recaída. Sugerem também que sejam investigadas abordagens lentas de afunilamento para minimizar o mais possível os potenciais sintomas de abstinência.
Apelam para haver investigação que examine os benefícios e danos da interrupção dos medicamentos antidepressivos, reconhecendo a falta de investimento da indústria farmacêutica e dos investigadores no movimento de ‘desprescrição’. É necessária uma investigação que investigue a ‘desprescrição’, incluindo o compartilhamento de decisões entre cliente e clínico, taxas efetivas de descontinuação, sintomas de abstinência, outras adversidades e qualidade de vida em geral, de modo a fornecer uma imagem clara de como navegar na paragem de medicamentos de uma forma que seja simultaneamente segura e bem sucedida.
Outros aspectos fundamentais a se abordar incluem uma população de doentes mais amplamente representada, incluindo os que experimentam formas mais suaves de depressão e outros diagnósticos psiquiátricos. Como a maioria dos antidepressivos são prescritos por médicos da clínica geral, deve ser realizada investigação em ambientes de cuidados primários, e que os médicos de clínica geral falem com os seus clientes sobre a continuação e uma interrupção da medicação.
Além disso, haver uma compreensão mais profunda de como os médicos da clínica geral e outros clínicos percebem a descontinuação permitiria uma maior consciência da complexidade dos fatores contribuintes que ajudam e que dificultam a interrupção da medicação.
A exploração de intervenções terapêuticas que poderiam ajudar na descontinuação, como a terapia cognitiva-comportamental (CBT) ou a terapia cognitiva baseada na atenção (MBCT), para além de intervenções como o apoio remoto, a psicoeducação, etc., poderia permitir um quadro mais claro de como os médicos podem apoiar melhor os clientes que estão passando pelo processo de interrupção da medicação.
O investigador e psiquiatra Mark Horowitz, da UCL, enfatiza a importância de uma investigação mais aprofundada sobre abordagens seguras para se parar os medicamentos psiquiátricos:
“Para mim, esta é uma questão tão crítica, tanto do ponto de vista pessoal como profissional. Sou uma das centenas de milhares de pessoas que tiveram ou estão tendo batalhas longas, difíceis e angustiantes, devido à gravidade dos efeitos de abstinência. No entanto, em vez de poder encontrar ou aceder a qualquer prova, ou orientação clínica de alta qualidade nesta situação, só consegui encontrar informações úteis em sites de apoio de pares onde pessoas que passaram pela retirada dos próprios antidepressivos foram forçadas a tornar-se especialistas leigos. Desde então, o Colégio Real de Psiquiatras (Royal College of Psychiatrists) deu um grande passo em frente ao dar orientações sobre a cessação de antidepressivos, em 2020. No entanto, ainda há falta de investigação, portanto, de provas nesta área sobre o que funciona para diferentes pessoas. Quero que outras pessoas tenham a base de provas para sair sem o mesmo problema que eu tive.”
Olhando para o futuro, Van Leeuwen escreve:
“Olhando para o futuro, aguardamos os resultados dos estudos em curso que estão analisando a interrupção dos antidepressivos, tais como o ensaio REDUCE no Reino Unido, que está testando ‘online’ e apoio psicológico telefônico aos pacientes que se retiram dos antidepressivos a longo prazo, onde isto é apropriado. Sabemos que estudos futuros serão críticos para responder à necessidade urgente de mais e melhores provas, dada a tendência preocupante de utilização de antidepressivos a longo prazo aqui em Inglaterra e em todo o mundo.”
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Van Leeuwen E., van Driel M.L., Horowitz M.A., Kendrick T., Donald M., De Sutter A.I.M., Robertson L., Christiaens T. (2021). Approaches for discontinuation versus continuation of long-term antidepressant use for depressive and anxiety disorders in adults. Cochrane Database of Systematic Reviews,4. Art. No.: CD013495. DOI: 10.1002/14651858.CD013495.pub2. (Link)
Hannah Zeavin é uma das principais cientistas a investigar o impacto da comunicação e da tecnologia midiáticas nas nossas relações íntimas. O seu trabalho mais recente aborda a teleterapia e as comunicações digitais em saúde mental, que têm visto um grande crescimento durante toda a pandemia.
Zeavin é professora nos departamentos de Inglês e História da Universidade da Califórnia, Berkeley, e filiada ao Berkeley Center for Science, Technology, Medicine, and Society. Zeavin é também bolsista visitante no Centro para o Estudo das Diferenças Sociais da Universidade de Columbia. Doutorou-se no Departamento de Meios de Comunicação, Cultura e Comunicação da NYU em 2018.
O seu primeiro livro, The Distance Cure: A History of Teletherapy [A Distância Cura: Uma História da Teleterapia], será publicado pela MIT Press neste Verão. Zeavin trabalha como assistente editorial e é autora de numerosas publicações, incluindo o Journal of the American Psychoanalytic Association. É também co-fundadora do The Science, Technology, and Society Futures Initiative.
Nesta entrevista ela discute os seus próximos livros e todas as coisas midiatizadas de comunicação, teleterapia, e tecnologia. Zeavin aborda as relações humanas, incluindo a terapia, a partir das perspectivas da literatura e dos estudos midiáticos. Ela explora a história da psicanálise e de outras formas de terapia, obtendo novos conhecimentos sobre a nossa relação com a tecnologia e entre nós – sem o habitual teor moral dos psicólogos a respeito.
Também recorre à sua investigação para discutir como o cuidado pode assumir formas inesperadas através das tecnologias, permitindo uma intimidade à distância e uma mudança social que transcende a psicologia do indivíduo. Encerramos a entrevista abordando a feminização do trabalho de cuidados, a preocupação com os riscos de captura e controle, e mudanças na forma como entendemos os cuidados agora e no futuro.
A transcrição abaixo foi editada para maior precisão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.
Emaline Friedman: Hannah, a sua caminhada abrange a psicologia, a tecnologia, a mídia e a sociedade. Porque você não nos fala um pouco dos seus antecedentes e dos interesses que têm moldado a sua carreira até agora?
Hannah Zeavin: há muito que venho investindo na reflexão sobre a mídia e e a tecnologia que são responsáveis por levar à distância as nossas relações íntimas. Penso no trabalho psicológico que os meios de comunicação e a tecnologia fazem, bem como no seu uso tangível no nosso panorama dos cuidados de saúde e, claro, no nosso panorama dos cuidados de saúde mental.
Eu tive a sorte de ganhar um Ph.D em um incrível departamento pluralista, o Departamento de Comunicação, Cultura e Meios de Comunicação da NYU, o que permitiu-me pensar realmente nesses problemas de forma sintética como sendo um só problema com todos estes múltiplos componentes. Em paralelo, tenho estado envolvida com a psicanálise e a publicação. Até pouco tempo atrás, eu trabalhei como editora-gerente do Psychoanalytic Quarterly, e agora sou a editora-adjunta do JAPA (Journal of American Psychoanalytic Association). Fui também formada para trabalhar em um serviço de linha direta telefônica para atendimento da crise e tenho sido voluntário dentro e fora desse serviço aqui em Bay Area há cerca de seis anos, o que tem influenciado profundamente a forma como encaro este trabalho como crítica e como acadêmica.
Em todo o meu trabalho, eu estou interessada na investigação de casos especiais de comunicação e tecnologia midiática. No meu primeiro livro, a relação considerada é entre paciente e terapeuta e meios de comunicação. Queria olhar para um caso que é muito particular como se fosse um teste de laboratório para pensar mais profundamente sobre a relacionalidade humana meiiatizada em outros contextos.
O meu próximo livro, intitulado Mother’s Little Helpers: Technology and the American Family [Os Pequenos Ajudantes da Mãe: A tecnologia e a Família Americana] pensa precisamente nisso – a tecnologia e a relação entre pais e filhos ao longo de mais de um século. Além disso, estou empenhada em questionar formas de relacionamento que possamos abordar como um bem moral, como são as noções de intimidade ou cuidado, ou mesmo empatia, para ver o que estas formas de relacionamento nos permitem ter, mas também o que elas podem esconder, carregar e instruir plenamente. A teleterapia é também um caso que eu utilizo para pensar através de questões de como estamos um com o outro e um para com o outro nestes modos de interação.
Friedman: A teleterapia parece ser um casamento perfeito entre a teoria dos meios de comunicação social e a tradição psicanalítica freudiana. Como você descreveria a sua contribuição para a história da psicoterapia?
Zeavin: O meu primeiro livro, The Distance Cure: A History of Teletherapy, é provavelmente o lugar formal desta contribuição. Tenho outros escritos que não estão reproduzidos no livro que se encontram em suas margens.
Neste caso, penso na relação entre terapeutas (definida em termos gerais) e pacientes e meios de comunicação social. Revejo a nossa ideia da tríade terapêutica para argumentar que estamos sempre trabalhando em alguma versão da tríade: pacientes, terapeutas e meios de comunicação e/ou tecnologia. Trata-se de uma revisão importante da noção de prática clínica e da sua premissa de que se trata apenas de pessoas que se encontram em uma sala e que, por esse motivo, isso poderia ser considerado um encontro puro ou não mediado.
Discordo e remodelo-a, ainda que ela esteja sempre presente – aquela tríade. Em segundo lugar, The Distance Cure faz algumas incursões adicionais ao examinar o terapeuta e o seu paciente trabalhando à distância um dos outro em termos globais. O livro relata a história da psicologia clínica através da sua forma oculta: a teleterapia.
Em vez de a teleterapia ser uma preocupação recente, há cerca de uma centena de anos que ela está prestes a fazer a sua grande estreia. Durante todo esse tempo, temos estado a antecipar-nos a isso, bem como a tanto prever um grande avanço quanto a condenar. Acontece que a teleterapia é tão antiga como a própria história da terapia.
No primeiro capítulo do livro, eu defendo que a psicanálise e a tele-análise são concomitantemente trazidas à ribalta por Sigmund Freud. Não porque ele estivesse a pensar metaforicamente nos meios de comunicação, no que ele era bastante famoso, mas na sua verdadeira utilização dos meios de comunicação disponíveisnpara tratar pacientes à distância, começando por ele próprio na sua chamada auto-análise, que eu argumento ser apenas uma tele-análise.
Por fim, o seu primeiro e único paciente infantil, o pequeno Hans, foi visto no consultório apenas uma vez, embora tenha sido tratado de outra forma por meio de cartas. O livro pega estas relações extraordinárias e vulneráveis entre terapeuta e paciente para explorar que formas de intimidade, conhecidas e ignoráveis, são possíveis nestas configurações.
Assim, com o propósito de me aprofundar um pouco, mais defendo que desde que Freud deixou de colocar as mãos nos seus pacientes como parte da hipnose, para dar vez à terapia da fala, alguma distância interveniente sempre esteve presente entre paciente e terapeuta, mesmo no consultório.
Em seguida, procedo à análise de como os pacientes e terapeutas conseguiram transpor essa distância para que a comunicação acontecesse efetivamente. É claro que a teleterapia e as relações aí contidas literalizam fisicamente essa separação, mesmo quando trabalham arduamente para a diminuir.
Ao longo da minha investigação para fazer uma história crítica da teleterapia, começando em 1890 e indo até ao nosso presente, descobri que a teleterapia quase sempre acompanha a crise, e que a crise quase sempre acompanha a teleterapia. As crises que analiso no livro incluem a Primeira Guerra Mundial, a Pandemia de Gripe Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a guerra de libertação na Argélia, uma epidemia suicida em São Francisco, e mesmo o nosso presente com o desenrolar dessa pandemia contemporânea. Embora estes casos sejam cada um bastante diferente um do outro, eu uni-os, afirmando que a distância não é o oposto da presença; enquanto que a ausência o é.
O livro inteiro concentra-se em se perguntar: Se a “tele-” não é uma ausência ou uma perda, o que ela é? O livro elabora várias formas do que eu chamo de “intimidade distanciada”. Esta é uma outra contribuição, assim espero, ao em vez de se assumir que o termo “tele-” é sempre uma forma de cuidados irremediavelmente menor, embora certamente que possa se. Investigo esta história real, com 130 anos de sua história.
Finalmente, penso que rompo coma forma homogeneizadora com a qual pensamos a teleterapia. Eu estou interessada em muitas formas e utilizações dos meios de comunicação ao longo deste período temporal, e não apenas por terapeutas da clínica privada que usam zoom ou aplicativos para o iPhone. Em vez disso, tento restaurar a longa história da teleterapia para pensar mais holisticamente sobre ela.
Friedman: De certa forma, você naturaliza a teleterapia no seu trabalho, apresentando a distância como sempre tendo sido uma parte integrante da terapia. Presumo que você utilize estes argumentos para abordar o recente aumento do pânico em torno da terapia à distância.
Zeavin: Isso foi uma coisa produtiva que pude fazer ao longo do último ano, pois os clínicos e os pacientes têm estado preocupados com o fato de estarmos avançando na direção que anula a disponibilidade do cenário presencial (especialmente devido à atenção dada a aplicativos de cuidados de saúde mental).
Isto coloca a teleterapia e aquela forma muito apreciada de trabalhar em conjunto em desacordo entre si. Uma coisa que o livro tenta fazer delicadamente é mostrar que estes casos costumam andar juntos. Especialmente quando a distância está em todos os cantos, como no nosso momento atual, a teleterapia não está em contradição com a terapia presencial, porque não está havendo terapia presencial ou há muito pouco.
Essa é também uma forma de ultrapassar esse momento de pânico e de pensar mais claramente sobre o que pode estar acontecendo. Claro, penso que todos sabemos apenas pelo anedotário que o pânico pode dificultar a reflexão. Ao afastarmo-nos um pouco desse limite, podemos discutir esta questão de forma mais completa.
Friedman: Existem contradições específicas das mídias em terapia que devemos estar cientes?
Zeavin: Bem, o livro afirma que as tecnologias mediatizadoras sempre desempenharam um papel central e, por vezes, alarmante nestas relações íntimas. Considero formas mediáticas específicas de relacionamento que possibilitam tipos inesperados e novos (bons ou maus) de conexão de humano para humano.
Os cuidados vão parecer muito diferentes quando são oferecidos de forma contingente e anônima através do telefone, em São Francisco nos anos 60, do que parecem nas mãos de um analista e do seu paciente que vem trabalhando juntos cinco vezes por semana durante uma década ou mais. O livro pede-nos para nos situarmos realmente com cada um destes cenários, especialmente aqueles que possam ser considerados como cuidados para-terapêuticos ou os utilizados por ativistas. O livro pede-nos que resistamos a simplesmente considerá-los como sendo cuidados de emergência quando nada realmente acontece, ou a considerá-los apenas como coisas ruins.
Escrevi noutro local sobre os serviços de telefonia para atendimento de emergência para a crise e como eles chegam às contemporâneas linhas diretas telefônicas para emergência de suicídio e de polícia, onde coisas letais acontecem.
Também tento pensar no excesso de intimidade que pode ser encontrado na teleterapia, porque uma coisa que aparece muito na literatura sobre as formas de relacionamento por telefone é a perda: perda de intimidade, perda de empatia, perda de compreensão. Penso que é importante voltar a enquadrar essas críticas que situam a teleterapia como sendo menor, salientando que essas críticas podem ser exageradas. Mais uma vez, isso depende do meio e das pessoas envolvidas.
Por exemplo, tenho um colega que me disse que a teleterapia, que ele apenas praticou durante a pandemia, parece ser telepatia devido à utilização de fones de ouvido para evitar ruídos. De fato, há um pequeno ovo de Páscoa ao longo de todo o livro, que é que, uma e outra vez, a telepatia surge em conjunto com a teleterapia, ao longo da sua longa história, seja Freud estando extremamente preocupado com isso ou o meu colega aqui em Bay Area.
Friedman: Faz-me lembrar a facilitação em Zoom, onde inevitavelmente o facilitador deve perguntar, como numa sessão: Hannah, você está aqui conosco? Pode ouvir-nos? Há certamente uma espécie de mediunidade envolvida nisso.
Zeavin: Esse é um exemplo realmente excelente. Isto é também algo em que estou empenhada; pensando no que o meio exterior, eu o chama de os verdadeiros meios infraestruturais em nosso quotidiano, de uso habitual, e como eles interagem com o que eu chamo de meio interior.
A noção de “linha vermelha digital” de Chris Gilliard é útil aqui, revelando como o acesso à tecnologia é profundamente desigual neste país e para além dele. As chamadas caem e os Zooms congelam. Uma das coisas em que comecei a trabalhar e que reparo é como isso faz com que os indivíduos se sintam de forma diferente. Isto é uma coisa específica do meio e do indivíduo – como reagimos à queda da chamada em terapia. Sabe, não apenas no sentido de “consegue ouvir-me agora?” do anúncio da operadora AT&T, mas em alguma parte profunda do nosso interior.
Friedman: Você mencionou anteriormente que realmente se preocupou em colocar entre parênteses o que é ” bom ou mau”, “a favor ou contra”, e o livro a gente o lê como uma abordagem equilibrada da evolução da terapia à distância. No entanto, muitos praticantes provavelmente estão a enfrentar a sua descrição do aplicativo Talkspace, onde você descreve como o imediatismo que os consumidores esperam dos aplicativos nas redes sociais substitui muitas das facetas da aliança terapêutica tradicional.
Zeavin: Eu também me refiro a isso. A minha descrição é o que está lá. Penso ter deixado bem claro no livro que estou muito preocupada. Preocupação é demasiado suave! Uma palavra sobre o deslize em que chamamos o paciente de “usuário” ou talvez pior, de um “consumidor”, ainda que, claro, a terapia sob o capital seja consumida. E isso é provavelmente o início e o fim do conjunto de problemas. Há muito sobre a ampliação dos cuidados de saúde mental e a Uberização da profissão de saúde mental que é profundamente perturbadora.
Estamos num momento de perda massiva de empregos, e muitas desses aplicativos são comercializados, não a indivíduos, embora o Talkspace o seja, mas aos patrões. Esses aplicativos stão “desorganizando” os cuidados de saúde mental, mas essas plataformas também estão constantemente colapsando o bem-estar e a produtividade econômica na forma como estão enfrentando a crise.
Estamos vendo isto a toda a hora na pandemia. Quando os CEOs ou CFOs falam sobre estes aplicativos, muitas vezes a lógica é: “nós nos EUA perdemos milhares de milhões de dólares anualmente com a depressão, e se tivéssemos um aplicativo para ela, isso seria bom, não é verdade?”
Esse enquadramento é endémico no Vale do Silício, mas não apenas aqui: “se tivéssemos uma aplicativo para a depressão ou se pudéssemos interrompê-la, então poderíamos consertá-la”. A “indústria” da saúde mental é o que aqueles que estão no Vale do Silício denominam como estando em condições para a disrupção deste “espaço”. Este é o tipo de palavras que ouço com muita frequência.
Outro problema é o que se espera dos trabalhadores que prestam cuidados, fornecendo trabalho terapêutico nessas plataformas. Os jornalistas Kashmir Hill do New York Times e Molly Fischer da New York Magazine fizeram mais recentemente investigações bastante profundas sobre a experiência clínica. E também temos de nos preocupar com isso. Neste livro e na minha vida preocupo-me em primeiro lugar com os pacientes, mas também preocupo-me com o trabalho do terapeuta.
Um elevado nível de cuidados a um preço mais baixo é o que é oferecido ao paciente, mesmo que seja embalado de forma diferente. Mas é isso que subentende estes aplicativos, e é isso o que a disrupção pode ser. Há infinitas evidências anedóticas de que, quer seja a preferencia de gênero do terapeuta ou a sua aptidão cultural, quer seja uma promessa de cuidados por solicitação ou uma promessa de disponibilidade, estas coisas geralmente não se concretizam, e acabam prejudicando a todos.
Se alguém está no momento em que precisa de cuidados (especialmente neste país) e os procura, e depois não é entregue ou é mal entregue, isso é um problema real. Há relativamente pouca supervisão. Como empregados ou como estudantes, pode ser-nos dito para usarmos um aplicativo para alcançar o bem-estar, seja ele qual for, e para nos preocuparmos com o nosso próprio bem-estar. Esta é uma defesa infeliz das noções políticas de autocuidado, transformado num hashtag, e essa linguagem em si sai da terapia propositadamente. Se a intervenção for bem-estar ou cuidado ou companheirismo ou treino [coaching], se pode fazer algo bom ou mau, mas não é terapia, e não está a ser regulada enquanto tal.
Friedman: Certamente que não é. A expectativa imediata corta os dois lados, porque quando se despojam as condições de trabalho razoáveis ou favoráveis dos trabalhadores da saúde mental, a qualidade dos cuidados também sofre. Se se pudesse retirar do seu livro uma mensagem aos profissionais de saúde mental, qual seria?
Zeavin: Para além desta ideia de pensar através da tríade como estando sempre presente, uma mensagem aos clínicos e trabalhadores da saúde mental é que existem crises de longa data que temos que enfrentar nos cuidados de saúde mental. Não é apenas porque estamos aqui em uma pandemia, ou porque estamos no último momento da fase do capitalismo avançada, ou por causa de aplicativos de cuidados de saúde mental.
A mudança de emergência para Zoom há um ano atrás e os aplicativos que estão sob a categoria de mindfulness no Google não são a soma total da história da teleterapia. Quero que sejamos capazes de pensar mais profundamente sobre como nos podemos relacionar à distância sem nos sentirmos resignados com um futuro de iniciativas de bem-estar empresarial. Há toda uma história radical e cuidadosa da teleterapia, começando pelo próprio Freud, que pode realmente apontar o caminho.
Friedman: Lembro-me do que surge no seu livro sobre a intimidade em massa e as formas difundidas de prestação de cuidados de saúde mental, bem como os desafios que as linhas telefónicas de emergência para suicídios e outras linhas de emergência para crises colocam à terapia tradicional. Existem facetas do seu trabalho que giram em direção a um futuro em que os cuidados com a psique são mais uma espécie de iniciativa aberta, talvez mesmo não-comercial?
Zeavin: Claro, isto seria utópico. Por outro lado, sempre existiu, por isso tenho de esperar que venha a existir. O livro termina com uma referência ao Shockwave Rider, um romance de ficção científica distópico de John Brunner. O livro tem um enredo complicado, mas o cenário é de total controle por parte do governo. Nos limites desse controle também existem pequenas formas de resistência. Em alguns aspectos, é um belo livro foucaultiano.
A forma fictícia de cuidados descrita no livro chama-se o aparelho auditivo, um coletivo de operadores de serviços telefônicos contactado em (999) 999-9999. Funciona muito como as linhas telefônicas de emergência em situações de crise com as quais eu trabalhei, e pode ser por isso que isso tenha entrado dentro de mim. No livro, os ouvintes gritarão na linha telefônica, ou terão um episódio mais longo em que falarão sem parar. Algumas pessoas que telefonam também utilizam a linha direta para uma função de testemunha, pois a distopia é tão extrema neste livro. Por isso, imagina-se que a teleassistência esteja funcionando, mesmo no mais amargo dos extremos.
Mesmo nas sociedades mais distópicas, compreendemos que haverá alguma forma de tele-ajuda. Uma grande diferença entre as linhas diretas do mundo real e este aparelho auditivo é que os operadores de aparelhos auditivos não respondem aos seus interlocutores e terminam cada chamada apenas com citações.
Esse fecho ficou mesmo comigo porque, nesse espaço no limite (queira chamar-lhe o culminar de 500 anos da crise da supremacia branca), vamos tomar estas várias formas únicas de comunicação no meio da crise e do sofrimento e continuar a precisar delas.
Não é a isto que eu chamaria uma aventura mais aberta, num sentido feliz. Estou tentando sugerir que mesmo quando imaginamos os piores resultados possíveis para o nosso mundo, e muitos argumentam que os estamos a viver, também podemos imaginar como os iremos navegar psiquicamente, juntos. O que me entusiasma no meu livro é que a teleterapia, até à COVID-19, era quase sempre um serviço gratuito ou a uma tarifa baixa.
Isso também significa que temos de pensar em como menos cuidados podem ser impingidos às comunidades que já são vulneráveis através de um suposto “processo de democratização” do acesso. O acesso é uma destas palavras que precisamos de complexificar e não apenas de tomar à letra.
No meu livro, estes casos históricos falam de comunidades que o fazem por si próprias, onde os cuidados são articulados especificamente em relação às pessoas reais e às suas necessidades reais. Quer sejam esses casos históricos ou o renovado interesse na longa tradição de ajuda mútua durante a pandemia, ou aplicativos que estão sendo feitos por pessoas como Rashaad Newsome, que está trabalhando em um aplicativo para responder diretamente à raiva e à depressão que as comunidades negras enfrentam na sequência de assassinatos policiais e agressão racial, penso que há exemplos singulares de como podemos estar juntos que não dependem desta noção de “pureza” de estar em pessoa, embora isso também seja ótimo.
Friedman: Ao contrário da noção de pureza na díade psicanalítica como o mais alto padrão de intimidade e cuidado, pode-se complicar isso ao olhar para os cuidados como um processo de ajuda mútua que vem de baixo para cima. Contudo, há também uma história da psicanálise que está profundamente ligada à ascensão do capitalismo de consumo. Estou pensando em como os psicanalistas têm sido frequentemente comentadores culturais astutos, mas que as suas teorias têm tido impactos profundos na propaganda, como no trabalho do sobrinho de Freud, Edward Bernays. O que é que a psicanálise tem hoje para oferecer ao grande panorama dos meios digitais?
Zeavin: Penso que ainda se tem de oferecer o que tem sempre sido oferecido, que é uma forma de navegar pelos efeitos cíclicos, tanto imaginários como reais, do que nos é posto em nós. Os meios digitais são agora parte profunda disso e já o são há bastante tempo. Há um trabalho incrível sobre os efeitos psíquicos dos novos meios de comunicação e meios digitais. Jacob Johansson, Alexandra Lemme, Aaron Balick, e Patricia Clough discutiram questões semelhantes sobre os meios digitais inconscientes e contemporâneos. Especialmente o livro recente, The User Unconscious, de Clough. Estes pensadores estão trabalhando de formas realmente diferentes.
Mas penso que estou interpretando mal a sua pergunta, que tem menos a ver com um diagnóstico da paisagem e do que ele nos está fazendo e mais com o fato de se tornar parte dele. Continuarei a insistir que é porque eles não precisam de ajuda.
Friedman: Tendo eu reparado que em todo o seu trabalho aparecem vários estudos de feministas, queria perguntar-lhe se existem diferenças de gênero que deseja que os nossos ouvintes conheçam em todo este panorama tecnológico que temos vindo a discutir aqui? Sei que no seu próximo livro você está analisando a tecnologia nas famílias americanas.
Zeavin: A teoria feminista, a história das mídias feministas, e as histórias feministas da tecnologia estão profundamente no centro da minha forma de pensar, e os estudos de ciência e tecnologia feministas estão profundamente no centro da forma como fui formada. Penso que pode parecer que isso está fora do âmbito dos cuidados de saúde mental, mas para mim não está.
O meu próximo livro chama-se Mother’s Little Helpers (Ajudantes da Mãe): Tecnologia na Família Americana. Esse livro está centrado nas ideias de ausência e presença materna e a medicalização à medida que se inter-relacionam com o uso real das tecnologias nas famílias…ou não. Também lido com a recusa dos meios de comunicação e a recusa de tecnologia no livro.
Em termos de cuidados de saúde mental, penso que podemos dizer que parte desta história é a feminização do trabalho terapêutico e a masculinização do trabalho tecnológico e de escritório. Tudo isto é duplamente crucial para a história da teleterapia.
O livro conta uma história, que não é apenas uma cronologia, do aumento da viragem para aquilo a que alguns chamam ” desexpertise” ou ” descompetência”, embora eu me oponha a isso, do encontro terapêutico ao longo de toda a história do século XX. O livro não se ocupa apenas da psicanálise. A feminização do trabalho terapêutico significa também que as mulheres se tornaram cada vez mais terapeutas e psicanalistas, o que também faz parte da história da Uberização da terapia.
Além da teleterapia, mas dentro dela, os cuidados podem funcionar como uma cobertura para a captura e controle. Esse material tem um impacto sobre todos nós, por muito desigual que seja. O gênero é uma questão muito importante, mas também o são coisas como raça, classe, capacidade e sanidade. Podemos perguntar como a mudança social através da nova tecnologia interage com a psique, o corpo e o indivíduo, mas tudo isto está fundamentado em questões do que está acontecendo sistemicamente, para além do indivíduo, na nossa sociedade.