Quando estava a treinar para ser psiquiatra infantil em meados da década de 1990, a depressão infantil era considerada rara, relacionada com a adversidade, e geralmente não respondia ao tratamento farmacêutico. Desde então, muita coisa mudou num período de tempo muito curto. Mesmo a linguagem do dia-a-dia parece colonizada pela terminologia médica, com os jovens a descreverem os seus sentimentos usando linguagem clínica (“sinto-me deprimido”) em oposição a linguagem mais vulgar (“sinto-me infeliz/triste/miserável”). Tal como os problemas de comportamento infantil medicalizados, a medicalização do humor cria grandes oportunidades comerciais. Dos livros às terapias não faltam produtos que possam ser vendidos aos pais ou ao adolescente estressado. Tal como promover a ideia de que os comportamentos que estressam os pais podem ser resolvidos pelo simples ato de tomar uma pílula, a indústria farmacêutica compreendeu o dinheiro potencial a ser ganho pela promoção do conceito de depressão como algo que afeta as crianças da mesma forma que os adultos e que pode ser resolvido com uma pílula. Tal como as nossas ideias sobre o que se espera dos comportamentos das crianças e sobre como interpretar os problemas percebidos são alteradas através da rotulagem com um “diagnóstico”, também as nossas ideias e percepção do sofrimento e da resiliência podem ser afetadas por essa medicalização do humor; afastando potencialmente os jovens de hoje da possível aprendizagem e percepção que pode resultar de experiências de angústia e adversidade mental, ao mesmo tempo que nos distanciamos de ver as fontes sociais e políticas de sofrimento.
McDonaldização do crescimento
Pergunto-me frequentemente como é que a nossa compreensão das crianças, infância, desenvolvimento infantil, vida familiar e educação mudou à medida que sucumbimos à noção ‘McDonaldizada’ de que os desafios e incertezas ligados ao crescimento podem ser colocados em categorias de coisas ‘erradas’ com crianças individuais, que podem depois ser corrigidos com intervenções simples e a mesma para todos.
As crianças dependem em última análise dos adultos para tomarem a maioria das decisões em seu nome. Mas, parece-me que profissionalizámos o processo de crescimento a tal ponto que muitos pais e outros adultos em posições de cuidados (tais como professores) têm medo de intervir ativamente para orientar as crianças nos seus cuidados. Temem que possam fazer ou dizer a coisa errada, dado o quão omnipresente é o discurso da fragilidade e vulnerabilidade das crianças. Podem sentir que precisam de um “especialista” para melhor compreenderem o que é o mais correto a fazer. Outros sentem-se julgados e envergonhados pelo comportamento dos seus filhos, uma vez que os pais (particularmente as mães) são frequentemente culpados por uma má educação parental, mas raramente elogiados por uma boa educação parental. Outros têm sido forçados a trabalhar longas horas deixando pouco tempo para estar com a sua família, e muitas vezes com pouco apoio como resultado da diminuição da comunidade local e das conexões próprias às familiares extensas.
Hoje em dia é difícil ser um pai “normal”. Se você for julgado como demasiado próximo dos seus filhos, está ‘enredado’, se demasiado distante você é muito ‘frio’ e não sabe como ‘amar’ os seus filhos da forma correta. Claro que o abuso e os danos acontecem, quer deliberadamente quer acidentalmente, mas ser pai ou mãe tornou-se hoje em dia uma experiência que provoca ansiedade com muita confusão e muitas vezes pouco apoio emocional e prático, particularmente para as mães que continuam a carregar a maior parte do fardo da educação dos filhos. Há muito dinheiro a ganhar com esta ansiedade e o desejo inevitável que os pais têm de tornar as coisas “melhores” para os seus filhos, e acalmar as ansiedades que sentem.
As crianças, entretanto, são medidas, testadas, classificadas e comentadas nas escolas, no desporto, na aparência, nas redes sociais, etc., de tal forma que, desde tenra idade, aprendem que obtêm valor com o que fazem, e não apenas por serem. Tal como viver num concurso contínuo de fatores X, podem sentir-se escrutinados pelo seu “desempenho” como indivíduos, mais do que pela forma como contribuem para o bem comum e como fazem parte da família e da comunidade que os rodeia. Podem ter horários completos e depois muitas distrações tais como televisão, telefones inteligentes, comida de plástico, e uma série de brinquedos coloridos. Também é difícil ser uma criança “normal” hoje em dia. Se for julgado demasiado animado, é ‘hiperativo’, demasiado calmo, pode estar ‘deprimido’, um pouco tímido, pode ser autista. Claro que as crianças sofrem abusos e traumas e comunicam isto através do seu comportamento, mas, em muitas sociedades ocidentais, ser uma criança hoje em dia é ser acompanhado de perto e escrutinado pelo seu nível de desempenho. Quando as coisas são julgadas “não corretas” por alguém, pode então ser exposto a uma variedade de avaliações e procedimentos para determinar o que está errado, quebrado e “disfuncional” em si. Há muito dinheiro a ganhar com a identificação da sua ‘disfunção’ e a promessa de marketing de que isto levará a algo (um rótulo, um tratamento) que tornará as coisas “melhores”.
A depressão infantil é uma destas “marcas” modernas bem sucedidas que ajudaram a monetizar e, indiscutivelmente, a consolidar estados de alienação de si e de outros que surgem tanto do reenquadramento das lutas e sofrimentos “comuns” que acompanham o crescimento, como do aumento do fosso e da tensão que surge numa cultura que teme uma intervenção “comum” na vida das crianças (para não perturbar a sua autonomia) e assim profissionalizar isto. Assume o seu lugar ao lado das duas outras categorias bem sucedidas de TDAH e Autismo como marcas com grande sucesso comercial.
O nascimento do cientificismo da depressão infantil
O crescimento da popularidade do conceito de depressão infantil, evoluindo de um ‘diagnóstico’ raro para um comum que é semelhante à depressão adulta e passível de tratamentos farmacêuticos e psicológicos individualizados, começou a acontecer no início dos anos 90 e acelerou rapidamente durante a década seguinte. Uma mudança na teoria e consequentemente na prática ocorreu quando académicos influentes começaram a afirmar em livros e artigos que a depressão infantil era mais comum do que se pensava anteriormente (citando números como 8-20% de crianças e adolescentes), assemelhava-se à depressão adulta, e era passível de tratamento com antidepressivos. Livros populares afirmando que isto começou a aparecer nos anos 90, antes da publicação de quaisquer estudos que demonstrassem o benefício dos “antidepressivos” nos menores de 18 anos. Assim, as prescrições de medicamentos comercializados como “antidepressivos” começaram a ser feitas aos jovens, sob o pressuposto de que os adolescentes experimentam esta doença chamada “depressão” de forma semelhante aos adultos e respondem aos mesmos tratamentos.
A utilização generalizada nas sociedades ocidentais de drogas comercializadas como “antidepressivos” tinha começado a desenvolver-se no final da década de 1980, particularmente após o lançamento do primeiro ISRS – Prozac – em 1987. Pondo de lado o fraco apoio probatório aos medicamentos classificados como “antidepressivos” em geral, o uso nos jovens não tinha qualquer base probatória antes da sua adoção como receita para os jovens nos anos 90. Anteriormente tinha sido aceite que crianças e jovens não respondiam aos “antidepressivos” da geração mais velha (como os tricíclicos) e por isso esta classe de medicamentos nunca foi simplesmente utilizada para aquele (anteriormente) raro diagnóstico de depressão infantil.
No final dos anos 90 e início dos anos 2000 foram publicados os primeiros estudos, principalmente patrocinados pela indústria farmacêutica, sobre antidepressivos em menores de 18 anos. Eles pareceram apoiar a nova prática de utilização de ISRSs para este grupo etário, concluindo que estes medicamentos eram seguros e eficazes neste grupo etário.
Um exemplo clássico de como os resultados foram “torcidos” para esconder os resultados reais que estes estudos estavam a descobrir foi o estudo do ISRS paroxetina (frequentemente referido como Estudo 329) que foi financiado pela SmithKline Beecham (SKB; subsequentemente GlaxoSmithKline, GSK) e publicado em 2001. O estudo original concluiu que “a paroxetina é geralmente bem tolerada e eficaz para grandes depressões em adolescentes“. Numa reanálise subsequente única deste estudo (única porque é tão raro conseguir obter dados originais do estudo na posse de empresas farmacêuticas), este novo estudoutilizando os dados do estudo original 329 descobriu que a paroxetina de fato não mostrou eficácia para a depressão grave em adolescentes (quando comparada com placebo), e que houve um aumento dos danos – o contrário do que o estudo original 329 tinha relatado.
Esta nova falsa reivindicação da literatura emergente estabeleceu então o padrão de aumento das taxas de prescrição de antidepressivos para menores de 18 anos que tem continuado até hoje, com uma importante exceção nestas tendências. Em 2002 no Reino Unido, a BBC transmitiu um programa documentário em horário nobre (conhecido como ‘Panorama’) sobre o antidepressivo ISRS ‘Seroxat’, examinando o falso marketing, o potencial viciante e as provas que sugerem que causou um aumento do suicídio, particularmente nos jovens. Após o programa ter sido transmitido, a BBC recebeu milhares de chamadas de telespectadores relatando reações semelhantes às descritas no programa (de agitação, agressão, e pensamentos suicidas). A cobertura mediática que se seguiu forçou o Comité de Segurança em Medicina do Reino Unido (CSM) a investigar estes alegados perigos. Em Dezembro de 2003, o CSM do Reino Unido emitiu novas orientações aos médicos britânicos declarando que os antidepressivos ISRS (barra um, fluoxetina) não deveriam ser prescritos ao grupo etário inferior a 18 anos, uma vez que as provas disponíveis sugeriam que não eram eficazes e que corriam o risco de efeitos secundários graves, tais como um aumento do suicídio. Várias trabalhos de revisão efetuadas nessa altura encontraram deficiências perturbadoras nos métodos e relatórios de ensaios destes antidepressivos mais recentes em jovens, e concluíram que os investigadores apoiados pela empresa farmacêutica tinham escondido dados desfavoráveis e exagerado os benefícios destes antidepressivos e tinham escondido ou minimizado os efeitos adversos, particularmente o aumento do risco de suicídio.
Após a publicação da orientação do CSM no Reino Unido, houve um impacto inicial nas taxas de prescrição de “antidepressivos” aos jovens, que na altura se estimava serem prescritos a cerca de 50.000 jovens no Reino Unido. Durante alguns anos houve uma diminuição dramática na prescrição destes ISRSs a menores de 18 anos, com exceção da fluoxetina, o único ISRS que não estava claramente contraindicado, cuja taxa de prescrição permaneceu estável. Contudo, em 2006 no Reino Unido, a taxa de prescrição de todos os antidepressivos ISRS para menores de 18 anos, exceto a paroxetina, começou a recuperar e continuou a aumentar gradualmente de novo.
Nos EUA houve uma rápida aceleração das prescrições de ISRS para menores de 18 anos desde o final dos anos 80 até 2004. Na sequência dos acontecimentos no Reino Unido que culminaram em conselhos apoiados pelo governo para deixar de prescrever ISRS aos jovens e das publicações de várias revisões mostrando falta de eficácia e aumento da probabilidade de sofrer eventos adversos, tais como o suicídio destes medicamentos, muitos outros países viram-se forçados a reexaminar as suas práticas e diretrizes.
Nos EUA, os avisos sobre a segurança dos ISRSs em menores de 18 anos surgiram em Outubro de 2004 quando a US Food and Drug Administration (FDA) emitiu o que é conhecido como um “aviso de caixa negra” para todos os antidepressivos ISRS prescritos a menores de 18 anos (um “aviso de caixa negra” denota uma “caixa” ou borda em torno do texto que aparece na bula e significa que os estudos médicos indicam que o fármaco comporta um risco significativo de efeitos adversos graves ou mesmo fatais). A FDA realizou o seu próprio estudo de 23 ensaios de 9 empresas farmacêuticas e encontrou um risco médio de suicídio de 4% no ISRS tratado com menores de 18 anos, que era o dobro do risco de 2% encontrado no grupo placebo. Ao contrário do Reino Unido, estudos que avaliaram o impacto dos avisos da FDA nas taxas de prescrição nos EUA encontraram diferenças entre as taxas previstas e reais após o aviso da caixa negra, mas o que estas investigações não encontraram foi uma diminuição significativa nas taxas de prescrição após o aviso da caixa negra, mas sim uma redução ou nivelamento da taxa de crescimento da prescrição nos anos imediatamente após o aviso, com as taxas de prescrição a aumentar novamente após 2008.
Apesar das provas que mostram potenciais danos superarem os benefícios potenciais em menores de 18 anos, o que não tem sido contrariado desde então, mas sim apoiado em estudos subsequentes, o breve período de declínio ou nivelamento das prescrições de ISRS para os jovens não persistiu. De fato, o uso de antidepressivos em crianças e adolescentes aumentou substancialmente entre 2005 e 2012 em qualquer país ocidental estudado. Dados recentes do Reino Unido confirmaram que a prescrição de antidepressivos aos jovens continuou a aumentar nos últimos três anos, incluindo a crianças com 12 anos ou menos e incluindo toda a gama de medicamentos ISRS.
O cientificismo contra-ataca
Assim, a história até agora é que a depressão infantil era, até há cerca de três décadas atrás, considerada uma condição rara susceptível de estar relacionada com fatores de estresse ambiental e não susceptível de ser tratada com farmacologia. Ao longo dos anos noventa, e antes de existirem provas sobre a segurança e eficácia, os novos “antidepressivos” ISRS começaram a ser utilizados, juntamente com uma nova narrativa de que a depressão infantil era comum, um precursor da depressão adulta, extremamente sub-diagnosticada, e que a intervenção precoce com tratamento farmacêutico era frequentemente necessária, eficaz e segura. Agora que havia um potencial de grande riqueza a ser gerada pela abertura de novos mercados para “antidepressivos”, as empresas farmacêuticas começaram a publicar estudos que pretendiam mostrar que os medicamentos que fabricavam eram seguros e eficazes neste grupo etário. O documentário da BBC Panorama em 2002, as diretrizes do CSM do Reino Unido em 2003, e o aviso da FDA dos EUA em 2004, ameaçaram todos de diminuir fatalmente os lucros que poderiam advir da comercialização destes medicamentos a menores. E durante um curto período de tempo foi isso o que aconteceu. Mas a ajuda cientificista estava a caminho.
Cientificismo 1: Os ISRSs funcionam quando combinados com psicoterapia
Um ano após as diretrizes do CSM terem sido tornadas públicas, foi publicado o Treatment of Adolescent Depression Study (TADS) (2004). Lembro-me de ouvir as notícias da hora do almoço no rádio do meu carro, informando a publicação deste estudo, enquanto no volante do meu carro entre compromissos clínicos. Ouvi um ‘especialista’ dizer que depois das diretrizes do ano anterior, que nos diziam para sermos cautelosos na prescrição destes antidepressivos aos jovens, este estudo inovador tinha mostrado que os melhores resultados vêm da combinação de um antidepressivo com psicoterapia e é isto que devemos agora oferecer aos jovens deprimidos. Assim, a primeira medida de reabilitação veio deste estudo que concluiu, “A combinação de fluoxetina com Terapia Cognitiva Comportamental (CBT) ofereceu o compromisso mais favorável entre benefício e risco para adolescentes com transtorno depressivo grave“. Os autores concluem ainda que, apesar dos apelos para restringir o acesso a medicamentos antidepressivos, a gestão médica do transtorno depressivo grave em jovens com fluoxetina deve ser amplamente disponibilizada, não desencorajada. De fato, é este estudo que tem sido particularmente influente na manutenção da ideia de que a fluoxetina é o único ISRS que tem sido considerado como “eficaz”.
TADS foi um grande Ensaio Clínico de Controle Randomizado multicêntrico que randomizou os participantes adolescentes diagnosticados com “Grande Transtorno Depressivo” para quatro tipos de tratamento: 1. apenas antidepressivo ISRS (fluoxetina), 2. apenas placebo, 3. apenas TCC, 4. fluoxetina mais TCC. O primeiro e mais óbvio problema vem da metodologia de estudo. A comparação de resultados entre os quatro grupos é enganadora, pois alguns pacientes sabiam que estavam a ter um tratamento ativo e outros não. Essencialmente, o TADS é realmente dois estudos aleatorizados separados: uma comparação duplamente cega da fluoxetina (109 sujeitos) com placebo (112) – uma vez que estes sujeitos não sabiam se estavam ou não a receber o tratamento ativo – e uma comparação não cega entre a TCC sozinha (111) e a fluoxetina mais a TCC (107), uma vez que estes sujeitos sabiam que estavam a receber um tratamento ativo no grupo só TCC e dois tratamentos ativos no grupo TCC mais a fluoxetina. Este último grupo recebeu, portanto, mais contato face-a-face e sabia (tal como os seus médicos) que não estava a receber placebo. A razão que os autores deram para não incluírem um grupo placebo mais TCC é que utilizaram um grupo placebo para obter uma “linha de base” para comparar os outros grupos de tratamento com os restantes. Isto não é convincente. Muito provavelmente os autores sabiam que ter “mais” tratamento num estudo de tratamento é susceptível de aumentar quaisquer efeitos de placebo e, por conseguinte, distorcer as conclusões no sentido de resultados mais positivos para o grupo com dois tratamentos ativos, conhecidos pelos participantes.
Não mencionado no resumo é que a TADS não encontrou nenhuma vantagem estatística da fluoxetina sobre o placebo no ponto final primário, a Escala de Classificação da Depressão Infantil. Esta e a pequena ou ausente vantagem da fluoxetina sobre outros pontos finais sugere que a única conclusão legítima que pode ser tirada deste estudo, no que diz respeito à eficácia da fluoxetina na depressão infantil, é que ela não é mais eficaz do que o placebo.
Lá se vai a eficácia dos antidepressivos no TADS. E os efeitos adversos? Ocorreram significativamente mais eventos adversos psiquiátricos no grupo da fluoxetina do que no grupo do placebo. Apesar dos pequenos números e da exclusão de comportamentos suicidas conhecidos, a TADS ainda encontrou uma tendência para mais comportamentos suicidas naqueles que tomam fluoxetina (15 v 9, tomando fluoxetina versus não tomando fluoxetina), o que é consistente com outros ensaios de IRSS. Assim como com outras análises mais objetivas dos efeitos dos ISRSs na depressão infantil (como a reanálise do Estudo 329 discutido acima), os dados relevantes do TADS mostram que a fluoxetina é tão eficaz como o placebo, mas produz mais eventos adversos, incluindo uma maior tendência a comportamentos suicidas.
Tenho a certeza que os leitores não ficarão surpreendidos ao saber que embora a TADS fosse financiada pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, muitos dos autores revelaram laços com a indústria farmacêutica, incluindo o Professor Graham Emslie, que tinha amplos laços com a indústria farmacêutica e foi investigador principal nos dois primeiros estudos sobre a fluoxetina na depressão infantil.
Cientificismo 2: O aviso da caixa negra levou ao aumento das taxas de suicídio dos jovens
Em 2007, foi publicado outro artigo altamente publicitado. Os autores examinaram dados americanos e holandeses sobre taxas de prescrição de ISRSs até 2005 em crianças e adolescentes, e taxas de suicídio para crianças e adolescentes (até 2004 nos Estados Unidos e até 2005 na Holanda); a fim de determinar se existia uma associação entre taxas de prescrição de antidepressivos e taxas de suicídio durante os períodos anteriores e imediatamente posteriores aos avisos da caixa negra da FDA de 2004. Como noticiado nos principais meios de comunicação social, os autores concluíram que as prescrições de ISRS para jovens tinham diminuído tanto nos Estados Unidos como na Holanda após a emissão dos avisos da FDA e que, subsequentemente, as taxas de suicídio de jovens tinham aumentado. Concluíram que devido ao alerta da FDA para a caixa preta, tinha havido uma diminuição na prescrição de antidepressivos ISRS aos jovens, o que provavelmente tinha causado um aumento das taxas de suicídio devido ao maior número de jovens não serem efetivamente tratados.
Este artigo é uma tentativa bastante direta de engano. Implica a crença de que passou pelo processo de revisão pelos pares e foi publicado, com a sua mensagem de que o aviso levou a mais suicídios em jovens, numa importante revista psiquiátrica (American Journal of Psychiatry). O engano mais gritante está na apresentação dos dados mostrados nos gráficos que descrevem as taxas de prescrição e suicídio, respectivamente. De fato, se olhar atentamente para os gráficos, se verá que no ano em que as taxas de suicídio aumentaram não se verificou uma queda significativa na prescrição de ISRS. Os seus gráficos relativos às taxas de prescrição nos EUA não mostram uma diminuição significativa na prescrição de antidepressivos para 2004, mas um aumento de 17% nos suicídios entre os jovens nesse ano (em comparação com 2003). Os gráficos mostram o alegado decréscimo na prescrição de prescrições ocorreu em 2005 (não em 2004). O argumento de que havia taxas decrescentes de prescrição de antidepressivos na sequência dos avisos da FDA baseia-se nos níveis de prescrição de 2005 (em comparação com 2003); no entanto, os números relativos aos suicídios de 2005 não estavam disponíveis na altura em que o documento foi escrito e, por conseguinte, não aparecem. Isto significa que a principal conclusão do artigo se baseia na utilização da diminuição das taxas de prescrição em 2005 e na ligação desta com o aumento da taxa de suicídios verificada em 2004. De fato, quando os números de suicídios estavam disponíveis, mostraram uma diminuição da taxa de suicídios em 2005 (em comparação com 2004) e as taxas de suicídios atingiram um mínimo histórico para os EUA em 2007, um ponto no tempo que se segue claramente à alegada diminuição na prescrição (contudo, como argumento abaixo, isto não implica qualquer causa, simplesmente que a associação que tentaram reivindicar no seu artigo não resiste a um escrutínio adequado).
Os gráficos sobre a Holanda são mistos, não mostram nenhum padrão reconhecível, e baseiam-se em números muito pequenos. Por exemplo, 2002 mostra um aumento de 25% de suicídios em relação a 2001, mas foi também o ano com as suas taxas mais elevadas de prescrição de antidepressivos para crianças e adolescentes. Pelo menos para os dados da Holanda, os autores comparam o ano correto da taxa de prescrição com o número de suicídios, mas parece uma conclusão arbitrária apenas escolher a diminuição das taxas de prescrição (entre 2003 e 2005) e um menor aumento das taxas de suicídio (do que, por exemplo, em 2002) em 2004 e 2005 em comparação com 2003. Este artigo suscitou uma queixa por parte de psiquiatras da Holanda sobre a deturpação dos dados holandeses. A utilização de dados holandeses também levanta questões sobre a razão pela qual, de todos os outros países que poderiam ter tido acesso a dados sobre prescrição e taxas de suicídio, eles escolheram a Holanda. Presumivelmente, precisavam de procurar um país onde pudessem tentar extrair dados que, de alguma forma, correspondessem à sua narrativa.
Previsivelmente, quando se analisa a declaração de conflitos de interesse, vários dos autores, incluindo o autor principal, revelam conflitos de interesse relacionados com laços financeiros com a indústria farmacêutica.
Cientificismo 3: Se deixarmos de prescrever antidepressivos é mais provável que os jovens se autoflagelem
Em 2014, um artigo no British Medical Journal afirmou que houve um aumento significativo de danos próprios através de intoxicações por drogas (overdoses) em adolescentes nos anos que se seguiram ao aviso da caixa preta da FDA e concluiu que os avisos de segurança sobre antidepressivos e a ampla cobertura mediática levaram a uma diminuição do uso de antidepressivos, resultando em aumentos nas tentativas de suicídio (auto-mutilação) entre os jovens. Este artigo foi acompanhado por um editorial, que, utilizando este estudo, argumentou que este era um exemplo de como as advertências sobre os efeitos adversos dos medicamentos podem levar a subtratamentos e, consequentemente, a efeitos adversos ainda piores. Dez anos após o aviso da caixa preta, estes argumentos continuavam a ser apresentados nas principais revistas médicas e a merecer uma atenção significativa por parte da imprensa.
O desenho do estudo foi descrito pelos autores como “quase-experimental”, examinando tendências nas taxas de administração de antidepressivos, envenenamento por drogas psicotrópicas, e suicídios completados.
A metodologia é tão bizarra que me encontrei várias vezes a reler este artigo em incredulidade. Os autores estão a tentar mostrar que a overdose com drogas psicotrópicas está a aumentar porque os médicos estão a receitar menos drogas psicotrópicas. Eles usam “envenenamento por drogas psicotrópicas” como medida de substituição para “comportamento suicida” (que é o termo que aparece no título). Esta é a declaração metodológica relevante:
“Embora as experiências de tentativas de suicídio possam ser identificadas em bases de dados administrativas utilizando códigos de causas externas de lesões (códigos E), sabe-se que são capturadas de forma incompleta em bases de dados de planos de saúde. A nossa análise preliminar descobriu que a completude dos códigos E variava entre locais de estudo, cenários de tratamento, e anos. Por conseguinte, em vez de códigos E deliberadamente autoinfligidos, utilizámos envenenamento por agentes psicotrópicos (classificação internacional de doenças, nona revisão, modificação clínica (CID-9) código 969)”.
Estes são os fármacos codificados no CID9-969, intoxicação por agentes psicotrópicos: antidepressivos, tranquilizantes à base de fenotiazina, tranquilizantes à base de butrofenona, outros antipsicóticos, neurolépticos e tranquilizantes principais, tranquilizantes à base de benzodiazepina, outros tranquilizantes, psicodislépticos (alucinogéneos), psicoestimulantes, agente psicotrópico não especificado.
Tão realisticamente fora dessa lista, os únicos dois que são relevantes, na medida em que a um número apreciável de adolescentes pode ser prescrito, são os antidepressivos e os psicoestimulantes. Os psicoestimulantes devem ser controlados, pois também podem causar impulsos suicidas e por isso, se o envenenamento por psicoestimulantes for utilizado neste contexto, precisamos de ver números de prescrições de psicoestimulantes. Além disso, os psicoestimulantes não são um tratamento reconhecido para a depressão e, por conseguinte, as overdoses de psicoestimulantes não poderiam ser usadas como um substituto para a depressão não tratada. Isto deixa de fora os antidepressivos; assim, essencialmente, este estudo argumenta que uma consequência dos avisos sobre a prescrição de antidepressivos a adolescentes é que menos adolescentes estão a ser tratados com antidepressivos, o que está, portanto, a levar a que mais adolescentes tomem uma overdose com antidepressivos. Que tipo de ciência vudu é esta, pergunto eu?
Deixando de lado o erro científico óbvio de supor que a correlação equivale à causalidade (ou seja, o erro de pensar que, porque a redução da prescrição está associada ao aumento das overdoses que uma causa a outra), este estudo é também outro exemplo de engano explicito.
Abaixo estão os gráficos para adolescentes associados à alegação (reproduzidos a partir daqui):
Observar em particular as linhas de melhor ajuste que os autores escolheram para o segundo gráfico (taxas de envenenamentos psicotrópicos). Veja novamente. O que pensa da sua linha de melhor ajuste? São desenhados para se ajustarem à sua hipótese ou aos dados? A sua linha de melhor ajuste começa a aumentar após 2005, no entanto, olhando para o seu diagrama de dispersão isto não encaixa com os dados que apresentam. No seu diagrama, as taxas de autodeterminação continuam a variar por local em torno de um meio que permanece em grande parte estático até 2007, após o que as taxas começam a aumentar visivelmente a partir de 2008, quando por coincidência, de acordo com o seu primeiro gráfico, as taxas de prescrição de antidepressivos também começam a aumentar novamente, mas é claro que esta associação (taxas crescentes de prescrição de antidepressivos ao mesmo tempo que aumentam os envenenamentos psicotrópicos) não deve ser lida como causal. Olhando para o terceiro gráfico pode-se ver que as taxas de suicídio de adolescentes variam em torno de uma média entre 2001 e 2007 (quando atingem um mínimo histórico) e também começam a aumentar em 2008.
Uma associação mais óbvia que pode ter alguma relação causal é que as taxas de auto-suicídio em adolescentes, que na realidade começam a aumentar significativamente depois de 2008, estão numa altura em que o colapso financeiro acontece e as famílias e a sociedade à sua volta estão sob maior stress. Mas os céus nos proíbem de ter uma visão rica em contexto de que talvez a depressão e a automutilação possam ser um reflexo dos acontecimentos da vida real e das suas consequências. Assim, outra suposição incontestada por detrás desta e de outros artigos científicos que discuti (que talvez sejam melhor pensados simplesmente como “pseudociência da sucata”) é que o que se chama “depressão” e a automutilação que lhe está associada é uma doença médica que aflige os espaços interiores de um indivíduo, que está assim “partido” e “disfuncional” (por exemplo, devido a um desequilíbrio químico), e ao não “tratar” estes indivíduos partidos com produtos farmacêuticos deixamos que fiquem mais doentes.
Resistir à psiquiatrização do crescimento
Este é o tipo de ilusão irracional que criámos através da crença de que temos diagnósticos em psiquiatria que têm capacidades explicativas. Acredito que a propagação deste tipo de psiquiatria e a McDonaldização da dor e das lutas envolvidas no crescimento e das inseguranças criadas pela mercantilização neoliberal tem causado consideravelmente mais danos aos jovens do que benefícios. Creio que a ciência está do meu lado nesta conclusão. Como mostrei acima, há muito lixo científico pseudocientífico a apoiar o outro lado do argumento.
Um novo artigo, publicado no American Journal of Community Psychology, discute como elementos do neoliberalismo e do hiperIndividualismo corroem os princípios fundamentais de uma sociedade saudável, prejudicando o nosso bem-estar pessoal e social.
Isaac Prilleltensky, psicólogo comunitário da Universidade de Miami, emprega uma exploração filosófica do que significa “ter importância” e afirma que temos de mudar as estruturas e ambientes que atualmente dão prioridade ao “eu” em detrimento do “nós”. Se não o fizermos, os Estados Unidos continuarão a assistir a um declínio na saúde mental e no bem-estar. Prilleltensky escreve:
“Se queremos que todos sejam importantes, devemos fomentar uma Cultura do Nós e rejeitar políticas que usem e abusem da importância em si próprio… devemos abraçar movimentos que procurem equilibrar o sentimento valorizado com a adição de valor a si próprio e à comunidade”.
Previamente os investigadores relacionaram medidas de individualismo, pressões para o sucesso, e desigualdade relativa à diminuição da saúde mental e do bem-estar, especialmente para os jovens. Prilleltensky, no seu último artigo, intitulado “Mattering at the Intersection of Psychology, Philosophy, and Politics”, explica, filosoficamente, como isso que chamamos de “Cultura do Eu“, enraizado no neoliberalismo, corrói a saúde mental.
Em contraste, Prilleltensky explora como a Cultura do Nós é mais benéfica para a nossa saúde mental. Em suma, uma “Cultura do Nós” procura assegurar que todos têm “importância”. Ou seja, que todos possam acrescentar valor e sentir-se valorizados. Diferentemente, a nossa atual “Cultura do Eu”, permite apenas que alguns acrescentem valor, apenas alguns se sintam valorizados, e apenas uma população selecionada se sinta valorizada e se sinta valorizada.
Sentir-se reconhecido é uma necessidade humana fundamental; a experiência do reconhecimento promove tanto a saúde como a felicidade. Para que alguém se sinta importante para a sua comunidade e para si próprio, deve saber que pode acrescentar valor à vida dos outros e sentir-se valorizado pelas pessoas à sua volta.
Prilleltensky emprega argumentação filosófica para afirmar que o individualismo e a Cultura do Eu prejudicam a nossa saúde mental.
Primeiro, ele afirma que o reconhecimento é uma necessidade que consiste em sentir-se valorizado e em acrescentar valor.
Em seguida, argumenta que a necessidade de se sentir valorizado deriva de três motivos: sobrevivência, social, e, mais importante ainda, existencial.
Em seguida, argumenta que a necessidade existencial de se sentir valorizado está ligada à dignidade humana. O que é outra forma de dizer que “a dignidade é a espinha dorsal do reconhecimento”. Sem dignidade, não nos podemos sentir humanos.
Em seguida, afirma que não podemos experimentar a dignidade sem justiça.
Tanto a “Cultura do Eu” como o neoliberalismo dependem da desigualdade e da injustiça para existirem. Por outras palavras, a desigualdade e a injustiça são condições necessárias para o neoliberalismo e para a “Cultura do Eu”. É esta injustiça que infringe a nossa humanidade e a nossa dignidade, perturbando a nossa capacidade de nos sentirmos valorizados. Quando não podemos e não nos sentimos valorizados, não podemos dar importância ao que prejudica a nossa saúde mental e o nosso bem-estar. Prilleltensky elabora:
“A exposição constante à desigualdade social, numa cultura que exalta o sucesso material, é uma séria ameaça à dignidade. É um lembrete de que outras pessoas valem mais do que eu”. Estas comparações sociais ascendentes, como a investigação demonstra, são especialmente perniciosas para as pessoas pobres. Estão sempre prontos a pensar que não estão à altura porque não têm a educação, língua, casas, carros, relógios, roupas, ou engenhocas que outras pessoas têm. As pistas sociais estão em todo o lado, desde anúncios televisivos às redes das mídias sociais…”
Em contraste, uma “Cultura do Nós” dá prioridade e salvaguarda a nossa dignidade e valor. A “Cultura do Nós” dá ênfase ao empoderamento, à equidade e à igualdade. A “Cultura do Nós” investe mais nas comunidades através da redistribuição de riqueza e oportunidades, demonstrando uma priorização da dignidade humana e justiça – criando um ambiente onde todos podem e importam.
Prilleltensky faz uma argumentação convincente de que a desigualdade social, injustiça e individualismo prejudicam a nossa saúde mental e o nosso bem-estar como sociedade e comunidade. Ele sugere que, para atingir o objetivo de um país mais saudável, devemos enfrentar as questões sociais e a desigualdade, bem como as questões emocionais e comportamentais pessoais.
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Prilleltensky, I. (2020). Mattering at the intersection of psychology, philosophy, and politics. American Journal of Community Psychology, 65(1-2), 16-34. (Link)
Desde 2007, a Academia Americana de Pediatria tem recomendado a triagem do autismo em crianças pequenas, apesar da falta de provas de melhores resultados em crianças triadas. Agora, um novo estudo revelou que a triagem do autismo em crianças pequenas tem um valor preditivo incrivelmente baixo e provavelmente resulta em um grande número de falsos positivos.
O estudo, liderado por Paul S. Carbone e publicado em Pediatrics, descobriu que a medida de triagem Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT) tem um valor preditivo positivo de 17,8%.
Isso significa que, para cada 100 crianças pequenas que fazem uma triagem positiva para um transtorno do espectro do autismo (ASD), apenas cerca de 18 delas continuarão a receber um diagnóstico. Os outros 82 bebês serão encaminhados para uma avaliação mais detalhada, informados de que “podem” ter ASD, e potencialmente expostos a drogas como antipsicóticos (frequentemente usados para controle comportamental em crianças com autismo), tudo isso sem mesmo atender aos critérios para um diagnóstico de ASD.
Além disso, o estudo concluiu que a sensibilidade da M-CHAT era de 33,1%. Isso significa que no subgrupo de bebês que irão receber um diagnóstico de ASD, o teste foi capaz de identificar corretamente 33 de cada 100. Os outros 67% são falsos negativos – crianças que fazem uma triagem negativa, mas que cumprem os critérios para um diagnóstico de ASD.
Portanto, se seu filho apresenta ser positivo para ASD no M-CHAT, a grande probabilidade é que ele não atenda realmente os critérios para ASD (82%). Além disso, se seu filho realmente tiver um diagnóstico de ASD, a grande probabilidade é que ele faça uma triagem negativa para ASD no M-CHAT (67%).
Apesar disso, os autores insistem que a triagem do autismo é útil. “As crianças que apresentaram resultados positivos tinham mais chances de serem diagnosticadas com autismo e foram diagnosticadas mais cedo”, escreve Carbone e seus coautores.
Naturalmente, isto é tautológico: crianças que foram identificadas por um teste como tendo autismo tinham mais probabilidade de serem diagnosticadas com ASD. Mas isso poderia ser prejudicial se esses diagnósticos fossem também falsos positivos – crianças que não deveriam ter recebido o diagnóstico, mas que o receberam de qualquer forma porque o teste o sugeriu erroneamente.
No estudo atual, Carbone e seus coautores examinaram os dados de triagem de 20 clínicas. Um total de 36.233 crianças fizeram parte do estudo. Os médicos examinaram 73% das crianças, e 1,4% mais tarde receberam um diagnóstico de ASD.
A triagem de crianças para distúrbios psiquiátricos pode ter efeitos nocivos. Por exemplo, muitos dos critérios para distúrbios psiquiátricos são bastante subjetivos, e se uma criança faz uma triagem positiva (mesmo que o teste esteja errado), um clínico pode tomar uma decisão errada ao fornecer um diagnóstico para a criança ao se deparar com resultados ambíguos.
Os perigos do sobrediagnóstico devido à triagem da depressão em crianças foram relatados por pesquisadores em vários outros casos. Por exemplo, isso pode levar as crianças a serem desnecessariamente expostas aos danos de medicamentos psiquiátricos.
De acordo com pesquisadores que escreveram em JAMA no início deste ano, ser informado falsamente que se tem um transtorno psiquiátrico pode levar a angústia e ansiedade emocional, os efeitos adversos de tratamentos desnecessários, e a custos excessivos com novos testes e visitas ao médico.
De fato, esses pesquisadores argumentaram que “o desvio de recursos e atenção à saúde para tratar aqueles com doenças leves está ameaçando a viabilidade dos sistemas de saúde em todo o mundo”.
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Carbone PS, Campbell K, Wilkes J, et al. (2020). Primary care autism screening and later autism diagnosis.Pediatrics,146 (2), e20192314(Link)
O discurso medicalizante apresenta-se na escola de forma marcante. Como exemplo atual, defrontamo-nos com os questionamentos provenientes da tensão entre a pandemia de COVID-19 e a escola. O debate sobre a reabertura das escolas impõe-se e não pode mais ser adiado. Entretanto, observa-se por parte das escolas a utilização de um discurso embebido pela medicalização e psiquiatrização do sofrimento com vistas a legitimar e garantir a sua reabertura.
A produção de sintomas e transtornos na infância devido aos efeitos psicológicos da Covid-19 são lançados corriqueiramente de forma leviana. Por isso, em função do prolongamento da pandemia de Covid-19, este debate não pode ser mais abafado nem restrito a discursos falaciosos. Este debate acontece quando ultrapassamos quatro milhões de casos confirmados (estima-se mais que o dobro em função das subnotifições) e mais de 131 mil vidas perdidas.
Partimos da contextualização dos fatos a partir do precioso levantamento dos dados realizado por Rosane Braga de Melo referentes à pandemia e sua relação com a escola. Segundo a ANVISA (07/2020), a pandemia de COVID-19 se configura como uma emergência de saúde pública global, cujo início data de dezembro de 2019, com a notificação de um surto na China, em Wuhan, que já causou infeção em mais 28 milhões de pessoas no mundo e mais de 920 mil óbitos. De acordo com Rosane Melo: “o Brasil se encontra em um triste ranking, como o segundo país em número de óbitos e o terceiro em casos confirmados (abaixo da Índia e dos Estados Unidos). Sem transparência nas estatísticas e com evidências de subnotificações dos casos, o Brasil é citado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um país em que o vírus está no controle. Estamos há mais de 120 dias sem Ministro da Saúde, sem um plano de prevenção ou contenção da transmissão da COVID-19, sem testagem sistemática da população e em grande escala, sem o monitoramento dos casos por um longo tempo, sem transparência em relação aos dados sobre a doença, sem coordenação de ações entre as esferas municipal, estadual e federal. Sequer temos um discurso comum de manutenção e de respeito aos protocolos sanitários e de higiene, como o distanciamento social, a utilização de máscaras e a higienização das mãos, medidas de prevenção não farmacêuticas cruciais para a manutenção de vidas. Após o período da quarentena, planos de reabertura e flexibilização em cada estado brasileiro priorizou atividades comerciais, e colocou como serviços essenciais salão de cabeleireiro, academias, a construção civil, e recentemente bares, shoppings e praia”.
E, Melo continua: “Além disso, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada, e apenas 46% dos esgotos gerados nos país são tratados. Fatores que, dentre outros, contribuem para uma incidência 50% maior de casos de COVID-19 em bairros em que há muitas favelas. A abertura das escolas colocará em circulação um grande contingente de crianças e jovens que circularão pela cidade em transportes públicos (raramente as escolas estão a 200 metros de sua casa), educadores e toda a comunidade escolar – que muitas vezes trabalham em duas e até três escolas – que também necessitam de transporte público. A Escola Nacional de Saúde Pública lançou em julho um manual de biossegurança para reabertura das escolas, advertindo que a tomada de decisão do poder público de reabrir escolas deve estar pautada em um “cenário epidemiológico de redução sustentada da transmissão da Covid-19”. O manual preconiza que quando for identificado no território a redução da transmissão e houver uma decisão pela abertura das escolas, o plano de biossegurança já deve estar em andamento e desde muito antes então da abertura e ter envolvido toda a comunidade escolar para apropriação das orientações e planejamento das ações. Contudo, que secretarias têm envolvido toda a comunidade escolar para se apropriar do conceito de biossegurança e realizar com o coletivo da escola o planejamento de ações?”.
À luz desses elementos parece fundamental que seja reaberta a discussão sobre a função social da escola e o lugar da infância na nossa cultura, além do abandono de argumentos simplistas nas análises de risco veiculadas até o momento.
Para além da perspectiva conteudista, quais estratégias de enfrentamento têm sido propostas pelas escolas em termos de oferecimento de um espaço de escuta e acolhimento para seus alunos e familiares? Se, efetivamente vivemos sob o risco de prejuízo social, cognitivo e emocional para as crianças (que não necessariamente vão se configurar em termos patológicos), como isto vem sendo contemplado pelas instituições de ensino, principalmente particulares? Existe uma preocupação efetiva com o sofrimento infantil? Há várias outras incógnitas que nos inquietam e acionam nosso pensar.
Nesta conjuntura que se apresenta uma crise multifacetada, incluindo aspectos sanitários, sociais, econômicos, políticos e ambientais, o que temos diante dos nossos olhos é um exemplo do que é a destrutividade mortífera do uso perverso do poder. Isso não se apresenta apenas nos atos dos estadistas. Habita os pequenos gestos que revelam a banalidade do mal e a dimensão da pulsão de morte como causa e efeito da lógica mercadológica orientada pelo capital.
Sabemos que, ao invocar a compulsão à repetição e a pulsão de morte em 1920, Freud reconheceu a inexorabilidade da repetição nos caminhos que levam para o sofrimento, repetição que chegou a qualificar de demoníaca, mortífera. Todavia, a questão de como se constitui e atua esta força que empurra o homem para a dor e para o mal continuou sendo um tema central de todas as suas formulações posteriores tendo em vista a complexidade do tema (Rudge, 2006).
Por outro lado, a pulsão de morte não pode estar ausente de nenhum processo de vida, ela se confronta permanentemente com Eros. Da ação conjunta e oposta desses dois grupos provem as manifestações da vida.
Diante da premência da pulsão de morte que permeia o cenário atual, a desmedicalização do discurso é urgente para que se possa fazer operar um esforço para sustentar os fiapos de um tecido social esgarçado, que, apesar de todos os ataques, insiste em um projeto civilizatório, onde a palavra seja articulada em narrativa, diálogo, criação, ligação, invenção e, até mesmo, re-invenção. Nesse sentido, pensamos que a escola precisa se re-inventar, criar novos dispositivos e estratégias de suporte emocional e cognitivo para pais e alunos, pois, sobre os escombros das arquiteturas da destruição seguimos cuidando das nossas crianças, contando e recontando as histórias que permitiram à humanidade atravessar momentos difíceis de privações, exclusões e condenações.
Os riscos reais e os danos simbólicos precisam ser levados em conta e seriamente considerados quando se trata da reabertura das escolas. O laço pais-filhos está permeado pelo sintoma social de cada época. Assim, se a inserção social contemporânea está calcada na corrida do triunfo individual e, esta corrida está temporariamente em suspenso, inibida, ainda nos resta a aposta na pulsão de vida que se faz presente na brincadeira, no contato, na ligação, em um desenho, uma canção compartilhada, uma palavra que se articula, na afetividade que liga e sustenta uma imprescindível rede relacional (Jerusalinsky, 2002).
Referências
Freud, S. (1975) The standard edition of the complete psychologycal works of Sigmund Freud. London: Hogarth Press.
(1926[1925]) “Inhibitions, symptoms and anxiety”, v. XX, p.75-172.
(1937) “Analysis Terminable and Interminable”, v. XXIII, p.209-254.
Jerusalinsky, J. (2002). Enquanto o futuro não vem: a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. São Paulo: Ágalma.
A saúde mental das pessoas envolvidas em situação de desastre natural é o tema do artigo publicado pela revista Saúde Debate. Os autores entrevistaram trabalhadores da saúde do município de Blumenau, no Estado de Santa Catarina. Foram entrevistados dois enfermeiros, dois psicólogos, um assistente social, um trabalhador da defesa civil e outro do Corpo de Bombeiros. O estudo teve por objetivo descrever a visão dos trabalhadores sobre a saúde mental das pessoas envolvidas em situação de desastre.
Os episódios de desastre são desorganizadores, com grande potencial de adoecimento físico e psíquico. As pessoas atingidas, direta ou indiretamente, os trabalhadores envolvidos, e até mesmo as pessoas que acompanham a situação pelos meios de comunicação, ficam suscetíveis ao adoecimento. Essa situação, demanda o desenvolvimento de ações por parte dos trabalhadores da atenção psicossocial. No entanto, são poucos os profissionais qualificados para lidar com esse tipo de situação.
“buscar a compreensão sobre as experiências subjetivas das pessoas nos contextos de desastres e na recuperação pós-desastre denota como os afetados compreendem o seu mundo social, após a experiência do trauma, e permite serem ouvidos, legitimando o sofrimento que emerge dessas situações de vida, oportunizando o entendimento sobre o sofrimento que é muitas vezes marginalizado e invisível com o passar do tempo.”
As vítimas podem continuar sentido forte medo e ansiedade após a situação de desastre. E com o tempo, podem dar lugar aos sentimentos de tristeza e irritabilidade. Também é comum surgirem sintomas psicossomáticos, e a dor pode ser intensificada quando ocorrem perdas materiais e pessoais. Os autores defendem que a readaptação pode ser facilitada com o apoio psicossocial, mas não deve se limitar aos serviços especializados, senão estar presente nas ações de todos os trabalhadores envolvidos.
No estudo, emergiram três categorias de análise: Evento inesperado com a população desprevenida; Aumento do número de pessoas em sofrimento psíquico e agravo dos casos já em tratamento; Estratégias atuais do município. Constatou-se que após os desastres causados pela chuva em 2008 nesse município, houve o aumento expressivo na procura da
população, especialmente por serviços de saúde mental, o agravamento de quadros preexistentes e sob tratamento antes do desastre, e a ocorrência de novos casos de
sofrimento mental enfocam a pertinência do tema para a formação profissional em
saúde.
A ação dos profissionais de saúde nessas circunstâncias são um verdadeiro desafio, já que não existem planos de contingência ou preparo da equipe para as ações em saúde mental. Por outro lado, o Apoio Matricial e a Educação Permanente se efetivaram e se mostram importantes ferramentas para a população e trabalhadores envolvidos em situações de desastre.
Os autores destacam a importância da qualificação dos trabalhadores para lidarem com a crise, promovendo a saúde da população em contexto pós-desastre. Assim como também, olhar para o sofrimento da própria equipe, enquanto parte da população direta ou indiretamente afetada.
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Rafaloski, A.R et al. Saúde mental das pessoas em situação de desastre natural sob a ótica dos trabalhadores envolvidos. Rev. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 2, p. 230 – 241, jul. 2020. (Link)
O artigo publicado pela revista Psicologia e Saúde, aborda o que as famílias pensam sobre as internações psiquiátricas dos seus familiares em sofrimento psíquico. As autoras, Raíssa de Brito Braga e Renata Fabiano Pegoraro, se propuseram a investigar os itinerários terapêuticos desses usuários que passaram por internações, através de seus familiares. Foram entrevistadas 10 famílias de um CAPS no triângulo mineiro, utilizando um questionário semiestruturado.
Após uma breve contextualização histórica sobre os espaços de cuidado da loucura até a Reforma Psiquiátrica. As autoras localizam o lugar da família a partir da Reforma, quando passaram a ser compreendidas como parte efetiva no tratamento da pessoa em sofrimento psíquico. A família acaba sendo a principal responsável por identificar as mudanças de comportamento que sinalizem o início de uma crise, e a responsável por procurar ajuda. Apesar do alto grau de responsabilidade e sobrecarga sobre as famílias, elas recebem pouco ou quase nenhum suporte.
“Os autores destacam que é possível perceber que boa parte dos familiares possui certa resistência em internar, mas veem essa como a única possibilidade de melhora diante da crise, mesmo não compreendendo a internação como única forma de cuidado na vida do familiar em sofrimento mental.”
Pesquisas apontam que as famílias costumam procuram resolver o problema sem intervenção médica, mas quando não conseguem êxito, recorrem ao serviço psiquiátrico, com um sentimento de culpa, exaustão, impotência, desespero.
A maioria dos familiares entrevistados relatou a percepção de internação conectado ao uso de medicamentos. Alguns destacaram que a internação possibilita que os usuários tomem seus medicamentos com regularidade, enquanto outros destacaram o uso excessivo dos medicamentos. Os autores chamam a atenção que os familiares destacaram a medicação como principal ou única forma de tratamento nas internações, ou seja, como contenção química.
“ele estava muito dopado, sabe? Aí ‘mãe, olha como eu estou, eu estou muito dopado, eu não quero ficar assim.”
O fornecimento de alimentos e dormitório para os usuários, foi outro tema levantado pelas famílias sobre o período de internação. Para as famílias, a internação acaba sendo um tempo para si, em que transferem o cuidado do usuário para o serviço de saúde.
“Essas questões não são novas e foram relatadas por Tsu (1993), que afirmou que apenas pequena parte dos familiares que solicitava a internação a relacionavam, de fato, com a ideia de tratamento. Para ela, muitos deles a solicitavam para ajudar na função custodial do paciente. Devido à sobrecarga que sofriam para exercer o cuidado, as famílias buscavam a internação para ter um tempo para si.”
A pesquisa também apontou para a falta de orientação dada as famílias. As poucas explicações recebidas se relacionavam com orientações sobre o uso de medicamentos ou sobre encaminhamentos. Nenhuma família citou receber informação sobre o quadro do paciente ou sobre formas de cuidado, bem como não houveram espaços para tirar duvidas ou relatar suas dificuldades.
Houve dificuldade dos entrevistados em lembrar de todo o percurso terapêutico do paciente, já que muitos tiveram diversas internações ao longo da vida. Alguns familiares entrevistados não haviam acompanhado o percurso terapêutico do usuário desde seu início, o que acabou limitando a pesquisa. Os autores consideram importantes mais investigações para avaliar a qualidade das internações, já que estas ainda fazem parte dos serviços de saúde mental brasileiro.
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BRAGA, Raissa de Brito; PEGORARO, Renata Fabiana. Internação psiquiátrica: o que as famílias pensam sobre isso?. Rev. Psicol. Saúde, Campo Grande , v. 12, n. 1, p. 61-73, abr. 2020. (Link)
Em um novo artigo, o psicólogo indígena Joseph Gone da Universidade de Harvard argumenta que a descolonização dos métodos de pesquisa não só é necessária para o avanço da justiça social, mas que também melhorará o estado da ciência psicológica. Os apelos para a psicologia descolonizante decorrem do reconhecimento de que o campo tem mantido formas rígidas de pensar e pesquisar a saúde mental que estão enraizadas em concepções historicamente ocidentais – levando à exclusão e até mesmo à exterminação de formas multiculturais de abordar estas questões.
Neste último artigo, publicado no Journal of Counseling Psychology, Gone usa exemplos de tradições de cura indígenas para ilustrar como a descolonização enquanto metodologia pode proporcionar novos caminhos para a pesquisa em psicologia.
“Quer a marginalidade experimentada por outros grupos seja colonial ou não, muitas das sugestões concretas na seção ‘Rumo à Descolonização’ do artigo ainda podem ser úteis em termos de legitimar o conhecimento local, recuperar sistemas de significado comunitário e motivar a ação coletiva”, disse Gone.
Joseph Gone. Image: Stephanie Mitchell/Harvard Staff Photographer
A colonização é reconhecida como um fenômeno multifacetado que se manifesta de várias maneiras, dependendo do contexto político e econômico. Seja qual for sua forma, a colonização envolve a desumanização dos colonizados, que se institucionaliza dentro dos sistemas e instituições sociais, incluindo o sistema de saúde mental.
O famoso argumento do psiquiatra martinicano Frantz Fanon nos anos 60 é que muitas das “patologias pós-coloniais” encontradas nos povos originais poderiam muito bem ser o resultado de traumas históricos da colonização europeia-americana.
Com a institucionalização dos sistemas de saúde de estilo ocidental, muitos índios americanos (IA) tendem a buscar esses serviços de saúde mental mais convencionais. Dada a ruptura das práticas de cura cultural causada pela colonização, o processo de recuperação das tradições terapêuticas indígenas se tornou um importante caminho para a descolonização. Entretanto, para que isso ocorra, a psicoterapia e a psicologia em geral nos serviços de saúde devem lidar com a tensão entre as abordagens atuais da psiquiatria e os entendimentos indígenas de saúde e cura.
Gone propõe uma estrutura para compreender a descolonização como uma abordagem a ser pesquisada, em vez de um tipo específico de projeto de pesquisa. Trata-se menos do uso de métodos particulares e mais da utilização de uma abordagem que forneça um conjunto de objetivos para a pesquisa. Considerando que não há muita pesquisa sobre descolonização dentro das áreas de aconselhamento e psicoterapia, este artigo oferece estratégias para os psicólogos participarem da descolonização na pesquisa, prática e treinamento em psicologia nos serviços de saúde.
Ao analisar a narrativa de vida de um curandeiro índio americano Gone demonstra esta abordagem da descolonização enquanto uma metodologia. Este exemplo demonstra como métodos qualitativos podem ser usados para recuperar uma tradição terapêutica colonizada.
A tradição, em particular, é a do curandeiro dos Aaniiih-Gros Ventre, Bull Lodge. Ao traçar as características essenciais da tradição terapêutica dos Aaniiih, Gone considera como o método, o poder e o processo estão relacionados com a recuperação das tradições terapêuticas indígenas. A história de vida de Bull Lodge, um conhecido curandeiro do século XIX dos Gros Ventres, ilumina o mundo dos Aaniiih dentro do contexto de uma tradição de cura indígena pré-reserva.
O próprio Gone é membro dos índios Aaniiih-Gros Ventre de Montana e das Grandes Planícies do norte. Gone conta dos primeiros casos documentados de Bull Lodge que estão associados à sua ascensão como um curandeiro proeminente, destacando os locais específicos na paisagem Aaniiih onde ele ganhou seu “conhecimento ritual e poder de cura” juntamente com a construção de relacionamentos com seus Pais espirituais.
“De especial relevância para a descolonização, tais tradições frequentemente assumem que grande parte do mundo ‘natural’ é animado e sensível e que muito do poder para manter o bem-estar humano depende das relações com os seres que habitam lugares específicos do mundo”.
Destacados na narrativa de Bull Lodge estão os “sete buttes”, onde Bull Lodge trabalhou para ganhar notoriedade e favorecimento dos que estão acima (Seres do Alto). Através de uma série de provas testando seu caráter através de jejuns e oferendas, ele acabou sendo presenteado pelos Seres do meio-ambiente que sentiram respeito e piedade para com Bull Lodge.
Para prepará-lo para sua vida como um nobre curandeiro, tais presentes incluíam conhecimento de onde adquirir medicamentos fitoterápicos, proteção em batalha com um escudo e manto feitos de pele de búfalo e um apito com o qual convocar o Ser Butte para restaurar a saúde. Esses eventos foram o início de uma vida de conexão entre Bull Lodge e os Seres do Alto.
Aplicando isso à psicologia descolonizante, Gone delineia as convergências e divergências entre a psicoterapia ocidental e a tradição de cura Aaniiih. Isso inclui a distinção da doença em seus aspectos físicos, mentais, espirituais e sociais, bem como a cura sendo entendida como sagrada versus secular por natureza. O papel do curador Aaniiih é o de mediador entre os Seres do Alto e os humanos por meio do ritual, e o curador deve promover esses relacionamentos para toda a vida.
“Essas dinâmicas relacionais revelam uma hierarquia de pessoas que são classificadas por facilidade e acesso ao poder para trazer o mundo em alinhamento com seus desejos ou vontades, incluindo a cura.”
A análise de Gone da narrativa de vida de Bull Lodge inclui os domínios do método, poder e processo na recuperação descolonial das tradições terapêuticas indígenas com aconselhamento e psicoterapia.
Em termos de método, os métodos de cura de Bull Lodge eram interpessoais no sentido de que seus relacionamentos com os seres de Butte eram centrais. Gone contrasta essa abordagem com as intervenções comportamentais mais mecanicistas comuns na psicologia ocidental.
Do ponto de vista da pesquisa, existem muitos tipos diferentes de métodos que podem ser usados para estudar narrativas de vida e práticas de cura para obter uma compreensão mais rica dessas tradições dentro do contexto de sua cultura específica. Métodos de pesquisa, como pesquisa de arquivo e outras formas de investigação qualitativa, oferecem oportunidades para comparar essas tradições entre comunidades de IA e ao longo do tempo.
Gone invoca a obra do filósofo Michel Foucault para explorar como o poder está vinculado ao conhecimento e expresso por meio de instituições sociais que controlam o que é considerado normal e desviante. A psicoterapia muitas vezes visa assimilar os usuários do serviço em um senso psicocêntrico de self, com o domínio cultural geralmente sendo minimizado nas tentativas de “competência cultural“.
Descolonização em aconselhamento e psicoterapia significa prestar mais atenção a como o poder pode se manifestar dentro da psicoterapia entre indivíduos de culturas diferentes. O poder da Bull Lodge é exercido pela intenção de focalizar a vontade de trazer a própria vontade à realidade em comunhão com outros.
Para psicólogos dos serviços de saúde, reconhecer que as comunidades indígenas americanas podem ter entendimentos divergentes sobre cura e bem-estar requer sua integração com os serviços psicológicos que servem a essas comunidades. Como uma disciplina acadêmica e profissional, uma agenda descolonial em psicologia de serviços de saúde implicaria tanto conhecimento, prática, quanto treinamento.
Gone enfatiza que a descolonização como um processo que acontece dentro de um contexto colonizador-colonial para os povos indígenas americanos requer a repatriação das terras indígenas, considerando a importância do meio-ambiente para o bem-estar dos índios. A serviço da resistência indígena à colonização, os psicólogos do serviço de saúde devem ajudar as comunidades colonizadas a recuperar seus conhecimentos e a legitimá-los.
O ‘acompanhamento‘ das comunidades colonizadas exige que os psicólogos façam pesquisas a partir de uma orientação de ação mais participativa em vez de que os psicólogos assumam o papel de ‘especialista’. Os psicólogos também devem desnaturalizar a violência epistêmica decretada para colonizar ainda mais o outro. Uma posição descolonial na prática da psicologia dos serviços de saúde identificaria e trabalharia com curandeiros locais, legitimaria suas práticas e daria espaço para eles dentro dos serviços de saúde da comunidade. Isto também poderia incluir a colaboração com outros membros da comunidade para a prestação de serviços de psicologia da assistência em saúde.
A descolonização dentro do treinamento em psicologia de serviços de saúde incluiria o apoio a mais estudantes de comunidades colonizadas para o aprendizado da profissão de psicólogo. Programas e locais de treinamento trabalhariam na construção de relacionamentos com curandeiros locais para que eles pudessem compartilhar sua experiência com os estudantes. O currículo do treinamento poderia incluir exposição a tradições de cura não dominantes, aprendizagem de análise cultural e trabalho colaborativo com as comunidades.
Através da história de vida da carreira de cura de Bull Lodge, este trabalho fornece à psicologia dos serviços de saúde um exemplo de descolonização como uma estrutura para se envolver em atividades que promovam a libertação dos povos colonizados. Ao utilizar tal estrutura, a psicologia dos serviços de saúde pode alavancar seu conhecimento, prática e treinamento de disciplinas para avançar significativamente a justiça social de diversas maneiras com diferentes povos colonizados.
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Gone, J. P. (in press). Decolonization as methodological innovation in counseling psychology: Method, power, and process in reclaiming American Indian therapeutic traditions. Journal of Counseling Psychology.
A COVID-19 e as precauções de contenção de doenças provocaram mudanças radicais no modo como são prestados os serviços de saúde mental em escala global. Entre as mudanças mais aparentes está a mudança de pessoa para telepsicologia.
Em maio, uma equipe de pesquisadores liderada por Bradford Pierce da Virginia Commonwealth University pesquisou uma amostra nacional de 2.619 psicólogos formados nos EUA sobre suas abordagens à prática clínica no contexto do distanciamento social e das precauções de contenção da doença. Seus resultados, recentemente publicados no American Psychologist, identificaram a descoberta espantosa de que aqueles que faziam atendimento ambulatorial relataram um aumento de 26 vezes na telepsicologia em resposta à pandemia.
De todos os entrevistados da pesquisa, 67,32% indicaram que estavam realizando ativamente todo o seu trabalho clínico através da telepsicologia. Os resultados da pesquisa também forneceram uma variedade de insights convincentes sobre telepsicologia em relação a variáveis contextuais relevantes (ou seja, características demográficas dos clínicos). Eles sugeriram que muitos profissionais pretendem continuar a integrar bem os elementos da telepsicologia no futuro.
“Telepsicologia, de acordo com a APA, é o uso de qualquer uma das várias tecnologias de telecomunicações para prestar serviços psicológicos”, explicam os pesquisadores. “Portanto, os serviços de telepsicologia podem executar desde a gama de aplicativos de smartphone destinados a melhorar a adesão ao tratamento de pessoas com depressão e outras extensões de serviços presenciais até a provisão sincrônia de telepsicoterapia audiovisual”.
Durante o fechamento total [shutdown] em todo o país da China, foram feitas rápidas adaptações na área de saúde mental para atender às demandas preexistentes, além das necessidades emergentes decorrentes do aumento da ansiedade, estresse e depressão em torno da COVID-19 na população em geral. Plataformas como a WeChat e a TikTok foram aproveitadas por profissionais médicos para disseminar recursos de psicoeducação. Os médicos também utilizaram aplicativos e várias plataformas de telessaúde para aconselhamento e avaliação. Tendências similares têm sido observadas desde então em todo o mundo.
Como é destacado por Pierce e colegas, há uma série de aspectos positivos potencialmente associados à adoção rápida e generalizada de tecnologias para facilitar a telepsicologia. Por exemplo, a telepsicologia pode expandir as oportunidades de atendimento a populações historicamente mal atendidas. As iniciativas de telessaúde podem reduzir as barreiras de tempo e recursos para o atendimento. Para alguns pacientes, a terapia virtual e a avaliação podem ser experimentadas como menos incômodas do que as etapas necessárias para se envolver em apoio psicológico presencial.
Vantagens à parte, as iniciativas para agilizar a implementação de programas de telessaúde não têm sido perfeitas. As preocupações com a ética, privacidade, práticas de gerenciamento de dados e eficácia da prestação virtual de serviços de saúde mental justificam uma pesquisa contínua.
Dada a natureza nova e precária do cenário atual para a prática, muitos pesquisadores começaram a avaliar o que está funcionando com a mudança para serviços virtuais versus o que não está. O trabalho de Pierce e seus colegas lança luz sobre algumas das implicações imediatas para a prática entre psicólogos licenciados em meio à COVID-19, precauções de distanciamento e suas intenções futuras em relação à telepsicologia.
“A pandemia […] coincidiu com o que alguns chamaram de ‘revolução da telemedicina’, embora nenhuma pesquisa até hoje tenha examinado precisamente como o uso da telepsicologia pelos psicólogos mudou durante a pandemia, nem que variáveis podem explicar a mudança no uso”, escrevem os pesquisadores. “O objetivo deste estudo foi examinar (a) a quantidade de uso da telepsicologia pelos psicólogos antes da pandemia COVID-19, durante a pandemia, e o uso antecipado após a pandemia; bem como (b) os preditores demográficos, de treinamento, de política e de prática clínica dessas mudanças”.
Pierce e colegas recrutaram psicólogos por e-mail através de organizações profissionais, centros de aconselhamento, clínicas de saúde mental e grupos de notícias de psicologia para participar de sua pesquisa com itens demográficos e itens sobre telepsicologia. Suas perguntas se referiam a características pessoais, ambiente profissional e seu “uso da telepsicologia, treinamento e políticas organizacionais relativas a 20 de janeiro de 2020, quando o primeiro caso COVID-19 foi confirmado nos Estados Unidos”.
Os dados foram analisados em conjunto, assim como estratificados de acordo com as características demográficas/contextuais. Os respondentes (N = 2.619) eram predominantemente mulheres, com idade média de 57,29 anos.
“O gênero identificado como mulher, o ambiente de prática não-rural, o aumento das políticas organizacionais de apoio à telepsicologia e o aumento do treinamento em telepsicologia foram todos associados a aumentos na porcentagem de uso da telepsicologia. Idade e raça/etnicidade não esteram associadas a mudanças na prestação de serviços de telepsicologia”.
Consistentes com pesquisas anteriores, os resultados indicaram que muito poucos entrevistados se engajavam em muita telepsicologia em seu trabalho clínico antes de janeiro de 2020. A disseminação da COVID-19 contribuiu para um grande aumento no engajamento em telepsicologia, e muitos entrevistados indicaram que planejam sustentar este aumento (embora, em menor grau) mesmo quando a COVID-19 diminuir ser uma ameaça à saúde pública. Os psicólogos das comunidades rurais e aqueles fortemente engajados em testes e avaliações gostariam de mudar para uma abordagem virtual.
“No estudo atual, os psicólogos estimaram realizar 7,07% de seu trabalho clínico com telepsicologia antes da pandemia. Isto está em comparação com as estimativas dos psicólogos de que a telepsicologia compreendia 85,53% de seu trabalho clínico durante a pandemia, um aumento de mais de 12 vezes. Além disso, os participantes projetaram que 34,96% de seu trabalho clínico seria realizado via telepsicologia mesmo após o fim da pandemia, refletindo uma mudança importante nas atitudes em relação ao uso da telepsicologia”.
É necessária uma pesquisa mais abrangente para se estabelecer um quadro mais claro do que foi feito e, talvez o mais importante, do que tem funcionado neste clima de serviço distante. De acordo com os autores, a mudança radical para serviços virtuais pode ter facilitado uma rápida redução das barreiras ao fornecimento de telepsicologia (por exemplo, regulamentos de privacidade e segurança, reembolso, etc.). Entretanto, só porque a modalidade de serviço mudou rapidamente para atender a demandas sem precedentes, não significa que o refinamento seja desnecessário.
“As mudanças substanciais na porcentagem de uso da telepsicologia observadas no estudo atual sugerem que muitas das barreiras à telepsicologia anteriormente documentadas têm sido abordadas, pelo menos temporariamente, seja por mudanças de procedimento ou pelas necessidades imediatas dos pacientes e provedores durante a pandemia da COVID-19. Embora algumas mudanças facilitadoras possam ser de curta duração, estes resultados também mostram que os psicólogos planejam continuar usando a telepsicologia em taxas maiores no futuro em relação a antes da pandemia, sugerindo importantes mudanças de atitudes em relação ao uso da telepsicologia”.
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Pierce, B. S., Perrin, P. B., Tyler, C. M., Mckee, G. B., & Watson, J. D. (2020). A revolução da telepsicologia COVID-19: Um estudo nacional das mudanças baseadas na pandemia na prestação de cuidados de saúde mental nos EUA. Psicólogo americano. DOI:10.1037/amp0000722 (Link)
O mês de setembro é conhecido pela campanha “Setembro Amarelo” onde são realizadas diversas ações de conscientização em massa sobre a prevenção ao suicídio, juntamente com mídias sociais, entrega de folhetos, passeatas e outras ações públicas. Iniciada em 2014, com integrantes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em parceria com o Conselho Federal de Medicina – (CFM), o “Setembro Amarelo” tem como dia oficial, 10 de setembro, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Diante disso, faço o seguinte questionamento: que vida queremos valorizar?
De acordo com Brasil (2009, p.40) pode-se definir o suicídio como “ato humano de causar a cessação da própria vida” e a tentativa de suicídio consiste no “ato de tentar cessar a própria vida, porém, sem consumação”. Sabe-se que o suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. Por ser multifatorial engloba fatores sociais, econômicos, psicológicos, biológicos e, sobretudo, políticos. Precisamos falar sobre o suicídio, mas também precisamos falar sobre o “Setembro Amarelo”.
A narrativa do “Setembro Amarelo”, diversas vezes, vem acompanhada de uma positividade tóxica, com discursos de “você é especial”, “valorize a vida” ou “todos pela vida”, que podem ser geradores de gatilhos e culpabilização por quem sofre, além de reforçar, em sua maioria, valores mercadológicos que, muitas vezes, despotencializam e desvalorizam o verdadeiro significado de prevenção ao suicídio. Dessa forma, o interlocutor, no caso os profissionais de saúde ou especialistas na área e afins, não estão preparados para dispor de um diálogo aberto e, consequentemente, leva a não legitimação da dor de quem está sofrendo. Entre avanços e recuos do “Setembro Amarelo” é possível estabelecer críticas contundentes que visem construir um novo lugar social.
Em outras palavras, estamos falando de uma sociedade, que no atual contexto político e de contrarreforma psiquiátrica, exclui e segrega o ano todo. Mas, especificamente no mês de setembro se mostra compreensível e empática. É imperativo que falemos sobre o suicídio de forma ampla, isso quer dizer, compreender que o suicídio está associado a fatores como sofrimento psíquico, baixo nível educacional, desemprego, preconceito quanto as questões étnico-raciais, de gênero e orientação sexual, machismo, desigualdade social e violência. É fácil falar que devemos valorizar a vida, por meio de programas e postagens sensacionalistas, enquanto o atual contexto político se afunda cada vez mais em discursos opressores e individualistas e onde tentam sucatear o Sistema Único de Saúde (SUS), visando romancear a privatização da assistência. Todos os dias a sociedade morre um pouco, pois é difícil viver em um mundo sem esperança, com diluição de laços e desamparo social.
O sociólogo Émile Durkheim, em sua obra “O Suicídio” (1897), analisa muito bem o fenômeno do suicídio como um fato social, onde o elemento central é a coesão social. Para Durkheim (1973, p.16), “cada sociedade tem, a cada momento de sua história, uma aptidão definida perante o suicídio”. Nesse caso, o suicídio pode ser egoísta, mais comum em sociedades modernas onde o indivíduo não se sente pertencente a grupos sociais; suicídio altruísta quando é feito para defender uma sociedade coesa; e suicídio anômico quando o indivíduo perde as esperanças na sociedade devido a mudanças sociais e ausência de regras (ex: desemprego, crise econômica, etc.). Dessa forma, a teoria de que todo suicídio ocorre por alguém que, necessariamente, possui uma doença mental cai por terra. São múltiplas as influências extra-sociais e propriamente sociais que precisam ser compreendidas. Logo, a estatística dos 95% que diz que todas as pessoas que cometem suicídio possuem um transtorno mental é enviesada, já que o suicídio é multicausal.
Há que se reconhecer a importância do “Setembro Amarelo”. A campanha mobiliza inúmeras pessoas em um objetivo comum: o da prevenção. A ampliação do debate do fenômeno do suicídio constrói, de forma exponencial, a quebra de tabu sobre o assunto. Sem a campanha do “Setembro Amarelo” provavelmente seria mais difícil falar de suicídio. Entretanto, para uma pessoa o “Setembro Amarelo” pode funcionar. Mas para outras não. Isso vai de acordo com a realidade biopsicossocial de cada, sendo uma percepção individual. São escolhas. E só quem realmente sente e precisa é que sabe. No entanto, deve-se buscar desconstruir o modelo tradicional e (re)pensar outras formas de abordagens promovendo um processo de transformação social que ocorra o ano todo. No que tange aos profissionais de saúde e/ou outros divulgadores da campanha do “Setembro Amarelo”, é imperativo que divulguem e ofereçam ajuda dentro dos seus limites de atuação e de forma responsável e crítica, pois a dor de quem sofre é urgente. Cabe lembrar que qualquer ajuda não ajuda.
Pensar no fenômeno do suicídio no Brasil demanda mudanças estruturais. Uma das estratégias para se pensar em conscientizar a população sobre o suicídio são as estratégias de advocacy, pois visam fortalecer a democratização da sociedade em um processo de tomada de decisão. Nesse sentido, as propostas, as informações e os argumentos sobre prevenção ao suicídio deverão ser confiáveis e transparentes, com vistas a obter maior conscientização sobre uma causa e envolver outros atores formadores de opinião, inclusive o setor público para repensar políticas públicas relacionadas ao fenômeno do suicídio. Outro ponto importante é fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) incluindo uma lógica desinstitucionalizadora e antimanicomial. Essas medidas, se adotadas, terão forte potencial para fazer frente ao grave problema de saúde pública decorrente do suicídio no Brasil.
A crítica ao “Setembro Amarelo” é urgente para que possamos construir pontes sobre, mas também quebrar qualquer ideia obsoleta sobre o tema, compreendendo que o suicídio não é meramente relacionado a alguma doença mental, mas um problema coletivo com consequências sociais e extremamente danosas para o país. Cabe a nós a informação e a responsabilidade em divulgar essa informação.
Sem delongas, perante o contexto social e político em que estamos vivenciando, pensar em “Setembro Amarelo” requer estratégias globais e de fortalecimento de políticas públicas TODOS OS MESES DO ANO.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual instrutivo de preenchimento da ficha de notificação/investigação de violência doméstica, sexual e outras violências. Brasília: MS; 2009.
Há doze anos, Ronald Kavanagh – que na época era revisor de drogas psiquiátricas para a FDA – tornou-se um denunciante, dizendo ao Gabinete do Inspetor Geral que seus superiores na FDA estavam fechando os olhos para os riscos de um novo antipsicótico atípico, a asenapina, e fazendo isso em conluio com a Schering-Plough, a empresa que estava procurando comercializar o medicamento. Asenapina, argumentou ele, era ineficaz como tratamento para esquizofrenia e para pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados, e ainda assim a aprovação exporia esses dois grupos de pacientes a seus perigos, o que incluía um risco maior de morte.
Kavanagh foi logo despedido por seus esforços, e a asenapina foi aprovada como tratamento tanto para a esquizofrenia quanto para o bipolar I. O CEO da Schering-Plough, Fred Hassan, usou a aprovação iminente do medicamento para negociar uma fusão com a Merck, um acordo que trouxe a ele e a outros executivos da Schering-Plough mais de 100 milhões de dólares.
Kavanagh nunca desistiu de fazer as denúncias. Em 2012, ele entrou com uma ação judicial e, nos anos seguintes, escreveu cartas ao Presidente Obama, ao Presidente Trump e ao Senador Charles Grassley, nenhuma das quais lhe deu qualquer alívio. Em maio deste ano, ele renovou sua queixa mais uma vez, escrevendo aos membros do Congresso e ao Gabinete do Inspetor Geral.
Pode parecer que há poucos motivos para se revisitar a reclamação feita por ele, já que ela nunca ganhou nenhuma aceitação no Congresso, no gabinete do Inspetor Geral, ou nos tribunais. É improvável que, desta vez, a situação seja melhor. No entanto, uma revisão de documentos neste caso, incluindo as revisões da FDA do New Drug Application (NDA) para asenapinas, revela muito sobre a mentalidade da FDA na época e as normas que ela aplicou para aprovar um medicamento psiquiátrico. Os documentos apoiam as queixas de Kavanagh, incluindo provas de que a FDA minimizou – ou mesmo obscureceu – os riscos com o fármaco.
A queixa de Kavanagh também alegava que os efeitos colaterais potencialmente letais da asenapina eram comuns a outros antipsicóticos atípicos que, como a asenapina, tinham se mostrado ineficazes para pacientes bipolares com sintomas leves a moderados. Ele advertiu que o uso de atípicos levaria a 5.000 ou mais mortes a cada ano em tais pacientes, e há evidências de que esta preocupação provou ser verdadeira. Ele também advertiu que a asenapina e outros atípicos poderiam causar mortes em recém-nascidos cujas mães foram expostas a esses medicamentos durante a gravidez, e os registros do FDA Medwatch revelam que houve um número de bebês com menos de dois anos de idade que morreram devido à exposição a um antipsicótico atípico.
Asenapina
Asenapina foi sintetizada pela empresa farmacêutica Organon nos anos 80. Depois que Organon conduziu testes de fase inicial do medicamento, em 2003 celebrou um acordo de co-marketing com a Pfizer, que então assumiu a liderança na condução de testes de fase III da asenapina como tratamento tanto para a esquizofrenia quanto para o transtorno bipolar I. A Pfizer havia pago à Organon 100 milhões de dólares quando negociou o acordo, mas depois de analisar os resultados da fase III, que não forneceram provas “conclusivas” de eficácia, retirou-se do acordo em novembro de 2006.
Entretanto, a Organon continuou a desenvolver o medicamento e, na primavera de 2007, o CEO da Schering-Plough, Fred Hassan, negociou um acordo para comprar a Organon de sua empresa-mãe, AkzoNobel, por US$ 14,4 bilhões. A Organon tinha vários compostos em fase final de desenvolvimento, e Hassan percebeu que a asenapina tinha um valor particular desde que a Organon estava se preparando para apresentar um Novo Pedido de Droga (NDA) para ela. A Organon protocolou seu NDA em 31 de agosto de 2007 e, em novembro, Schering-Plough completou o acordo.
Naquele momento, Hassan precisava que a FDA aprovasse a asenapina, e ainda que ele estivesse fechando a compra do Organon, ele começou a pressionar a FDA para fazer exatamente isso, dizendo à revista Fortune que “quando os burocratas ficam sob pressão, eles tendem a escolher o caminho de pedir mais dados, ao invés de aprovar o medicamento”. Sua mensagem política era clara: uma FDA que não aprovasse rapidamente novas aplicações de medicamentos estaria lançando obstáculos no caminho dos negócios americanos.
O registro de Hassan como CEO
Antes de sua aquisição da Organon, Fred Hassan havia sido festejado por haver mudado a sorte de duas empresas farmacêuticas que ele havia liderado: A Pharmacia e a Schering-Plough. Em ambos os casos, ele e suas empresas o fizeram escondendo os efeitos adversos de seus medicamentos mais vendidos, o que posteriormente levou a uma investigação no Congresso, processos judiciais e acordos multimilionários e multas.
Fred Hassan
Hassan foi contratado como CEO da Pharmacia and Upjohn em 1997. Dois anos depois, ele negociou uma fusão com a Monsanto, que tinha um novo medicamento que acabara de chegar ao mercado, o Celebrex. Essa era a droga que poderia resgatar Pharmacia.
A Monsanto que tinha feito um marketing conjunto Celebrex com a Pfizer, e agora Pharmacia juntamente com a Pfizer, disse ao público que este inibidor da Cox-2, um anti-inflamatório não esteroide para tratamento da dor, não causava um aumento do risco de eventos cardiovasculares, incluindo ataques cardíacos e derrames. As duas empresas fizeram esta afirmação, embora os resultados de um ensaio clínico, de que tinham conhecimento desde 1999, tivessem mostrado o contrário. A ocultação deste risco potencialmente mortal mostrou-se rentável para ambas, com as vendas da Celebrex totalizando 10,2 bilhões de dólares de 1999-2003.
As duas empresas lançaram um segundo inibidor da Cox-2 (Bextra) no mercado em 2002 e, mais uma vez, falaram ao público sobre um medicamento que não aumentava o risco de eventos cardiovasculares. Hassan vendeu com sucesso a Pharmacia para a Pfizer por US $ 62 bilhões no final de 2002.
Pouco mais de um ano depois, ficou conhecido que as duas empresas haviam escondido os riscos cardiovasculares do público. A Bextra foi retirada do mercado, e a FDA, em 2005, colocou um aviso de tarja negra no Celebrex. A Pfizer passou então anos respondendo a processos, afinal pagando 894 milhões de dólares a pacientes prejudicados pelos dois medicamentos; outros 486 milhões de dólares a investidores que compraram ações da Pharmacia e da Pfizer de 2000 a 2003; e uma multa de 2,3 bilhões de dólares ao governo federal para dirimir acusações criminais por sua comercialização fraudulenta do Bextra e de outros medicamentos.
Em 1999, depois de negociar a venda da Pharmacia, Hassan – contratado pela Schering-Plough em abril de 2003 para ser seu CEO – foi escolhido pelo Financial Times como o CEO do Ano por seu sucesso nessa empresa. Este foi visto como sendo um período difícil para a Schering-Plough, pois a patente de seu medicamento mais vendido, o Claritin, havia se esgotado em dezembro de 2002. O futuro da empresa era agora visto como estando ligado à Zetia (ezetimibe), um medicamento para baixar o colesterol que havia sido aprovado recentemente pela FDA. “O sucesso do Sr. Hassan pode depender de sua capacidade para levantar a Zetia”, relatou o Wall Street Journal.
Estatinas como Lipitor e Crestor, que eram drogas de bilhões de dólares, inibiam a produção de colesterol LDL no corpo, que por sua vez havia demonstrado retardar a arteriosclerose, o acúmulo de placa nas paredes arteriais e que leva a ataques cardíacos e derrames. Ezetime trabalha de uma maneira ligeiramente diferente. Inibe a absorção do colesterol intestinal. Embora reduza os níveis de colesterol LDL, não foi demonstrado ser tão eficaz quanto as estatinas a esse respeito, e tampouco foi demonstrado que esse método de redução do colesterol LDL retarde a arteriosclerose.
Pouco antes da chegada de Hassan, Schering-Plough havia se unido à Merck para lançar um ensaio clínico chamado ENHANCE, que foi projetado para testar se um medicamento que combinava Zetia com o Zocor (simvastin) da Merck seria mais eficaz do que uma estatina sozinha para reduzir o acúmulo de placa bacteriana. Simvastin era uma estatina que havia perdido a patente, e sua esperança era que o ensaio ajudasse a fazer seu medicamento combinado, o Vytorin, o medicamento número 1 para baixar o colesterol. Em 2004, antes da conclusão do ensaio ENHANCE, as empresas obtiveram a aprovação da FDA para comercializar Vytorin com base em seus efeitos de redução do colesterol.
No final de 2005, as duas empresas analisaram os resultados dos primeiros inscritos em seu estudo e descobriram que não havia diferença entre os dois braços do estudo. O cego não tinha sido quebrado, mas com este resultado não importava qual braço era a droga combinada e qual era a estatina sozinha – o fato de não haver diferença entre os dois braços significava que a adição de ezetibime ao simvastin não tinha proporcionado nenhum benefício. O ensaio clínico foi concluído em abril de 2006, e não muito tempo depois disso, Schering-Plough e Merck sabiam definitivamente que Vytorin havia falhado no teste.
ENHANCE foi um estudo de alto nível, e a comunidade cardiológica, assim como a comunidade de investimentos, esperava que os resultados fossem anunciados na reunião do outono de 2006 da Associação Americana dos Cardiologistas. Essa reunião passou sem anúncio, e assim também as reuniões de primavera e outono da associação em 2007. Durante esses 18 meses, Hassan e Schering-Plough, juntamente com a Merck, promoveram de forma ativa a eficácia da Vytorin.
“A história de baixar (colesterol) é melhor continuar”, disse Hassan aos investidores no outono de 2007. “A ciência médica em evolução continua a descobrir que atingir metas cada vez menores para o LDL é melhor para os pacientes e Vytorin e Zetia fornecem opções muito boas”.
As duas empresas encheram as rotas aéreas com anúncios em 2006 e 2007 contando como Vytorin tinha sido aprovado em estudos clínicos para baixar mais o colesterol do que o alcançado pelo Lipitor da Pfizer e o Crestor da AstraZeneca. Os pronunciamentos públicos funcionaram: Vytorin e Zetia geraram US$ 3,87 bilhões em vendas globais em 2006 e US$ 5,2 bilhões em 2007, que produziram quase 70% dos lucros da Schering-Plough naquele ano.
Hassan foi muito bem recompensado por este sucesso comercial. Além de seu salário regular, seu contrato de CEO previa vários prêmios em dinheiro e ações com base no desempenho financeiro da empresa em 2007. Os escritórios de advocacia que posteriormente processaram Schering-Plough e Merck por fraude calcularam que Hassan recebeu bônus de desempenho em 2007 no valor de $38,9 milhões. Outros executivos também receberam bônus de um milhão de dólares, com um executivo vendendo $28 milhões de ações da Schering-Plough enquanto seu preço estava voando bem alto.
Entretanto, Hassan e os outros executivos da Schering-Plough e da Merck não conseguiram manter esta história fraudulenta para sempre. Quando as duas empresas não anunciaram os resultados do julgamento ENHANCE na reunião de outono de 2007 da Associação Americana dos Cardiologistas, o Congresso iniciou uma investigação, pedindo-lhes que produzissem registros até dezembro. Como primeira resposta, as duas empresas – como o Wall Street Journal mais tarde relatou – “criaram a ata de uma reunião crucial sobre um grande estudo a respeito do seu medicamento para o colesterol” para encobrir seus rastros. Finalmente, em 14 de janeiro de 2008, a empresa anunciou os “resultados preliminares” do julgamento ENHANCE, reconhecendo que a Vytorin não havia demonstrado nenhum “benefício estatisticamente significativo” em relação ao placebo.
Os procuradores gerais de Nova York e Connecticut anunciaram que estavam lançando uma investigação e, em 31 de março de 2008, as duas empresas apresentaram os resultados em uma conferência do American College of Cardiology, com a publicação no mesmo dia no New England Journal of Medicine. Vytorin tinha produzido “nenhum resultado-zilch”, disse o investigador principal John Kastelein. “Em nenhum subgrupo, em nenhum segmento, houve qualquer benefício adicional”.
Cinco anos mais tarde, a Merck pagou US$ 688 milhões para resolver ações de investidores que compraram ações em uma das duas empresas enquanto elas escondiam os resultados do estudo ENHANCE. Mas nessa época, Hassan – com muitos milhões no bolso pelos seus prêmios de desempenho – já estava noutra, e agora ele tinha o objetivo de obter a aprovação da asenapina. Este medicamento, ele disse aos investidores, seria um “sucesso de bilheteria“.
Erguendo bandeiras vermelhas na FDA
Ron Kavanagh, que tinha vindo trabalhar na FDA em 1998, era um especialista em farmacologia clínica, no estudo de como os agentes químicos são absorvidos e metabolizados e suas possíveis toxicidades. Ele havia obtido seu PhD na Universidade do Texas e um PhD na Universidade de Washington, estudando cinética de drogas e farmacodinâmica. Após terminar esse treinamento, ele foi trabalhar para a Merck em sua divisão de assuntos regulatórios internos. “Meu trabalho era conseguir a aprovação de medicamentos e a aprovação com agências reguladoras em todo o mundo”, disse ele.
Ron Kavanagh
Depois de entrar para a FDA, ele frequentemente dava palestras e apresentações para revisores da FDA e pessoal médico sobre como as empresas farmacêuticas desenvolviam medicamentos e os testes farmacológicos que uma empresa precisava realizar.
Seus primeiros anos na FDA o ensinaram a ter cuidado com as novas drogas investigadas. Ele começou na divisão endócrina da agência, onde trabalhou com um colega que tinha detectado toxicidade causada por um duo de drogas para obesidade, fenfluramina e dexfenfluramina, o que levou à sua proibição em 1997.
Em seguida, ele se mudou para a divisão gastrointestinal, onde analisou o Lotronex (alosetron hydrochloride), que deveria ser comercializado para a síndrome do intestino irritável nas mulheres. Kavanagh pensou que havia evidências de que a droga poderia causar colite isquêmica, um efeito colateral potencialmente fatal. Embora a droga tenha sido aprovada em 2000, ela foi retirada do mercado um ano depois de seu uso ter levado a cinco mortes.
O recall da FDA do medicamento, escreveu o editor da Lancet Richard Horton, “revela não apenas falhas perigosas no processo de aprovação e revisão de um único medicamento, mas também o quanto a FDA – seu Centro de Avaliação e Pesquisa de Medicamentos em particular – se tornou um servidor da indústria”.
Kavanagh foi então transferido para a divisão de drogas neuro e psiquiátricas, onde revisou o NDA da Eli Lilly para Cymbalta (duloxetina). Ele alertou sobre possíveis problemas hepáticos que poderiam ser esperados com esta droga, uma preocupação que Eli Lilly “não levou em conta”, disse ele.
Em seguida, ele analisou o bifeprunox, um antipsicótico atípico semelhante ao aripiprazol em seu mecanismo de ação, pois tinha um efeito misto agonista/antagonista tanto nos receptores dopaminérgicos quanto nos receptores serotonérgicos. Entretanto, o bifeprunox causava um inchaço no cérebro e outras toxidades que levavam à morte nos ensaios clínicos, e em 2007, graças em parte à revisão de Kavanagh, o medicamento não foi aprovado.
Mesmo assim, naquela época, Kavanagh estava se tornando persona non grata na FDA. Grandes empresas reclamavam com frequência de sua revisão crítica de suas drogas, e ele também se tornou cada vez mais crítico em relação à FDA. Em 2005, ele começou a levar suas alegações ao Congresso, falando ao Comitê Financeiro do Senado sobre “corrupção na divisão psiquiátrica e no Escritório de Farmacologia Clínica e outros escritórios da FDA”. Ele também ficou incomodado com a comercialização de medicamentos psiquiátricos não rotulados, particularmente para seu uso em crianças, e em 2007, ele foi temporariamente suspenso e lhe foi dito para parar seus esforços de denúncia se ele quisesse continuar trabalhando lá.
Depois que a Organon protocolou seu NDA em agosto de 2007 (a Schering-Plough ainda não havia fechado a sua aquisição da empresa), a FDA foi obrigada a avaliar se a empresa havia realizado os estudos farmacológicos necessários – a biodisponibilidade do medicamento, como ele era metabolizado, as possíveis toxicidade dos metabólitos e assim por diante – o que permitiria uma revisão substantiva. Em outubro, Kavanagh recomendou que devido a uma “falta de validação dos ensaios em estudos farmacocinéticos”, o NDA não era passível de revisão.
Este acabou sendo o primeiro tiro no que viria a ser uma guerra com seus superiores na FDA por causa da asenapina. O diretor da divisão de psiquiatria do Centro de Avaliação e Pesquisa de Drogas da FDA, Thomas Laughren, o rejeitou, o que significava que o processo de revisão – avaliando a eficácia e a segurança dos resultados dos ensaios – iria agora ocorrer.
A eficácia dos Dados
Esquizofrenia
Organon conduziu quatro testes de seis semanas de asenapina como tratamento para a esquizofrenia. Os pacientes recrutados para os ensaios foram retirados de qualquer antipsicótico que estivessem tomando e randomizados para asenapina, placebo ou um medicamento comparador. O principal desfecho foi a redução dos sintomas, medida pela Escala de Síndrome Positiva e Negativa. A PANSS avalia 30 sintomas em uma escala de 1 a 7, o que significa que a pontuação total pode variar de 30 a 210. Os pacientes também poderiam receber medicamentos concomitantes durante o estudo: zolpidem, zalepam, hidrato de cloral, benzodiazepina e medicamentos anticolinérgicos para tratar os efeitos colaterais extrapiramidais.
Nos quatro testes, houve um total de seis ensaios clínicos de asenapina versus placebo: três ensaios de uma dose de 5 mg (administrada sublingualmente duas vezes ao dia); dois ensaios de uma dose de 10 mg duas vezes ao dia, e um ensaio de um programa de dosagem flexível (de 5 mg a 10 mg). Em quatro dos seis ensaios, a cenapina falhou em ser melhor que o placebo. No quinto, uma dose de 5 mg forneceu uma superioridade “estatisticamente significativa” sobre o placebo, mas o medicamento comparador -risperidona- não, e quando o medicamento comparador em um ensaio falhou em relação ao melhor placebo, o estudo é considerado como tendo fracassado. Como um artigo de 2008 publicado na revista Psychiatry explicou, “Nenhuma conclusão pode ser tirada sobre o medicamento investigado em um estudo fracassado”.
Assim, houve apenas um exemplo de seis tentativas – onde apareceu um achado positivo “significativo” para a asenapina. E nesse caso, a diminuição do PANSS foi de 16,2 pontos para a dose de 5 mg, 14,9 para a dose de 10 mg, 15,4 para o haloperidol e 10,7 para o placebo. Embora não houvesse praticamente nenhuma diferença na redução dos sintomas entre as doses de 5 mg e 10 mg de asenapina (1,3 pontos em uma escala de 210 pontos), a dose de 5 mg apenas ultrapassou a linha de “significância estatística” em relação ao placebo, enquanto que a dose de 10 mg não o fez. Um total de 70 pacientes no grupo de 114 aleatorizados para a dose de 5 mg completaram o ensaio de seis semanas.
Tais eram os dados de eficácia. O fato de que eram permitidos medicamentos concomitantes – três sedativos diferentes, um medicamento antiansiedade e um tratamento para os sintomas de Parkinson – também significava que não tinha havido nenhum teste de asenapina como monoterapia para sintomas psicóticos.
Finalmente, os pesquisadores determinaram que deve haver pelo menos uma diferença de 15 pontos na escala PANSS entre o medicamento e o placebo no final do ensaio para que um medicamento proporcione um benefício “clinicamente significativo”. No entanto, nos quatro ensaios clínicos, não houve um único caso em que qualquer dose de asenapina tenha se aproximado deste padrão.
Bipolar I
Organon realizou dois estudos de três semanas de asenapina, ambos em dose flexível de 5 mg a 10 mg (duas vezes ao dia), como tratamento para episódios maníacos e mistos em pacientes bipolares 1. O principal desfecho foi a redução dos sintomas na Jovem Escala de Classificação de Mania (YMRS). Esta é uma escala de 60 pontos, e neste estudo, os inscritos tiveram que ter pontuação de base maior ou igual a 20.
Em ambos os estudos, a asenapina foi vista como proporcionando um benefício estatisticamente significativo em relação ao placebo. A diferença entre os dois grupos em um estudo foi de 3,7 pontos na escala YMRS e, no outro, de 5,3 pontos. Entretanto, em ambos os estudos, o medicamento comparador, olanzapina, proporcionou uma redução maior dos sintomas do que a asenapina.
Quanto ao benefício real deste medicamento para bipolar, os pesquisadores concluíram que é necessária uma diferença de 6,6 pontos na escala YMRS para que um medicamento proporcione um benefício “clinicamente significativo” em relação ao placebo. Asenapina não atingiu este padrão em nenhum dos dois ensaios.
Resumo dos dados de segurança
Nos seis estudos controlados por placebo (quatro para esquizofrenia e dois para bipolar), havia 2.251 pacientes que haviam sido expostos à asenapina. Onze morreram e 14% sofreram um evento adverso grave (risco de vida ou necessidade de hospitalização). Setenta e oito por cento sofreram um evento adverso de algum tipo; os efeitos colaterais mais comuns foram sedação, tonturas, ganho de peso, sintomas extrapiramidais e dormência oral.
A Organon também havia realizado uma série de estudos não controlados, e assim o banco de dados de segurança completo consistia de 3.457 pacientes expostos à asenapina. Vinte e dois haviam morrido, incluindo oito por suicídio. Oito haviam morrido por eventos cardíacos e respiratórios, e um por morte neonatal. O bebê morreu horas depois de nascer prematuro, às 32 semanas, para uma mulher no ensaio que tinha sido tratada com asenapina.
Revisão de Kavanagh
Embora Kavanagh tivesse declarado anteriormente que a Schering-Plough não havia fornecido informações suficientes para conduzir uma revisão farmacológica adequada, na primavera de 2008 foi-lhe atribuída a responsabilidade de fazer exatamente isso como parte da avaliação geral da eficácia e segurança da asenapina feita pela FDA.
Desde cedo, Kavanagh observou que os dados de eficácia da esquizofrenia não eram convincentes, particularmente quando os quatro estudos – e seis testes de asenapina – eram vistos como um corpo coletivo de provas.
À primeira vista, parecia que os resultados dos estudos com bipolares eram convincentes e passavam facilmente no padrão “dois testes positivos” para aprovação na FDA. Entretanto, Kanavagh analisou os dois estudos para bipolares, dividindo os pacientes em “quintis” com base na gravidade de seus sintomas na linha de base, e descobriu que em pacientes com sintomas bipolares leves a moderados (nota YMRS inferior a 27), o medicamento não havia proporcionado nenhum benefício. A taxa de melhora no grupo placebo e neste subgrupo de pacientes bipolares foi praticamente idêntica durante as três semanas.
Como tal, a equação de risco-benefício para pacientes esquizofrênicos e para cerca de 50% de todos os pacientes bipolares I era evidente. Eles estariam expostos aos perigos desta droga sem nenhum benefício e, portanto, o tratamento certamente faria mais mal do que bem.
Havia muitas preocupações evidentes no banco de dados de segurança: riscos cardíacos, toxicidade hepática, deficiências renais e assim por diante. E havia uma outra preocupação nova para Kavanagh. Ele havia conversado com um antigo revisor da FDA que havia ido trabalhar para a indústria e tinha experiência com asenapina, e este “informante” o havia avisado que era problemático porque agia como um “agonista inverso” do receptor 5HT2B (um receptor para serotonina). A estimulação deste receptor pelo fen-fen tinha sido identificada como uma possível causa de hipertensão arterial pulmonar (HAP) e estenose da válvula cardíaca. Isto levou Kavanagh a se preocupar que a HAP pudesse levar a abortos espontâneos e a um aumento de mortes neonatais para bebês em amamentação.
Kavanagh então concentrou sua atenção nos registros de morte dos estudos com asenapinas, revendo o formulário de relato de caso para cada um deles. Estes são os formulários que os investigadores de cada local preenchem para cada paciente, que são então resumidos pela empresa farmacêutica em um resumo de segurança em seu NDA. Kavanagh também revisou os estudos com animais e estudos com voluntários saudáveis que se espera que identifiquem possíveis toxicidades de medicamentos.
Esta investigação o levou a identificar uma série de preocupações de segurança. Ele também descobriu casos específicos em que parecia que Schering-Plough havia obscurecido os possíveis riscos com asenapinas, ou os encoberto.
Mortes Neonatais
Embora o caso de morte neonatal tenha aparecido no resumo de segurança, ele não havia sido assinalado nas revisões médicas preliminares da FDA como motivo de preocupação real. Foi dito que a mãe tinha tido abortos espontâneos anteriores, e a ideia era que isso explicava a morte da criança, mesmo que o investigador que havia tratado a mulher tivesse declarado que a morte do bebê estava “possivelmente relacionada” à asenapina.
Os estudos com animais deram motivos para pensar que este poderia ser o caso. Tanto em ratos quanto em coelhos, a exposição à asenapina durante a gravidez havia levado a um aumento “da perda pós-implantação em todas as doses”, o que significa que houve um aumento das mortes dos filhotes fetais antes do nascimento. Nos estudos com ratos, houve também um aumento acentuado de “mortes prematuras de filhotes” até o “dia 21 pós-parto”.
Além disso, os estudos com animais alertaram sobre outros riscos congênitos – anormalidades na formação óssea e tecidos conjuntivos, e – em uma única cria – um defeito cardíaco.
Estas descobertas não haviam sido mencionadas nas revisões de segurança que Kavanagh havia lido até aquele momento. Este era, pensou Kavanagh, um caso onde um possível risco tóxico havia sido deliberadamente obscurecido quando a Schering-Plough arquivou seu NDA.
Mortes Cardíacas
Havia oito pacientes expostos à asenapina que haviam morrido devido a eventos cardíacos e respiratórios. Embora a FDA, em suas revisões preliminares, não tenha identificado essas mortes como possivelmente relacionadas à asenapina, descobriu-se que o medicamento causou prolongamento do QT em alguns pacientes, o que significava que seus corações estavam demorando mais do que o normal para recarregar entre batimentos. Isto era um sinal de alerta de possíveis danos cardíacos.
Enquanto Kavanagh vasculhava os estudos com voluntários saudáveis, ele descobriu que, em um caso, um homem de 27 anos, descrito como apto e não fumante, teve uma parada cardíaca após receber asenapina. “Não há dúvida de que ele se tornou assistólico e, como se observou, era necessário realizar massagem cardíaca para sustentar o débito”, escreveu o cardiologista da empresa, Graham Jackson, em um relatório de dezembro de 1991. “Isso quase certamente deve ser classificado como um efeito induzido por drogas com sendo um sério efeito adverso no sistema de condução do coração”.
No entanto, a Schering-Plough havia descrito esse incidente de forma diferente em seu resumo dos testes voluntários saudáveis. A descrição ali relatada de um homem de 27 anos que havia sofrido um episódio de “bradicardia reflexa neuralmente mediada”, que, escreveu um revisor do FDA, “é um evento benigno, autolimitado e a causa mais comum da síncope vasovagal”.
Estas descrições falam de dois eventos muito diferentes. A assistolia é descrita nos dicionários médicos como um “ritmo de parada cardíaca sem atividade elétrica discernível no monitor de eletrocardiograma”. O coração não está funcionando. É uma condição de risco de vida que requer ação imediata”. A síncope vasovagal é descrita nos dicionários médicos como o que “ocorre quando você desmaia porque seu corpo reage exageradamente a certos estímulos, tais como a visão de sangue ou extrema angústia emocional”.
Para Kavanagh, este foi um segundo caso de corrupção: uma parada cardíaca em um voluntário saudável havia se transformado no NDA em um episódio de desmaio.
Anafilaxia
Quando Kavanagh analisou os formulários de relato de caso para as 22 mortes, ele encontrou um que contava de uma mulher de 57 anos com esquizofrenia que, após ser tratada com asenapina por 470 dias, sofreu um “edema de Quincke”. Esta é uma reação alérgica que causa um inchaço na parte de trás da garganta ou úvula que pode fechar as vias aéreas superiores, e o relato do caso contou que a mulher esteve em um ventilador por quatro dias depois de ter sofrido esta “falha respiratória”.
No entanto, o sumário de segurança para esta mulher não revelou haver ocorrido uma possível reação alérgica. Ele simplesmente afirmou que ela desenvolveu “insuficiência respiratória súbita… a causa da morte foi embolia pulmonar”.
Suicídios
Houve oito suicídios nos 3.451 pacientes que foram expostos à asenapina nos estudos de curto e longo prazo do medicamento (em comparação com nenhum suicídio nos 706 pacientes placebo nos ensaios de curto prazo). Cinco dos oito haviam ocorrido nos 33 dias seguintes à exposição inicial ao medicamento: dois por enforcamento, dois por saltos para a morte e o quinto por um método desconhecido.
Esta erupção de suicídios dentro de um mês após a exposição à asenapina pode ser vista como um sinal de suicídio devido à acatisia induzida por drogas. A acatisia é um fator de risco conhecido para o suicídio, e o resumo de segurança de fato declarou que 1 em 16 pacientes expostos à asenapina haviam experimentado este efeito adverso.
Além disso, Kavanagh raciocinou, este medicamento agia sobre o sistema serotonérgico, assim como os antidepressivos SSRI que haviam sido encontrados pela FDA para aumentar o risco de comportamento suicida em crianças e adolescentes. Esta era outra preocupação a ser assinalada e a mais investigada.
Entretanto, os revisores da FDA, seguindo a orientação do resumo de segurança da Schering-Plough, estavam tratando esses suicídios como um risco inerente à “doença” (esquizofrenia e bipolar). Havia quatro suicídios naqueles tratados com olanzapina, e uma vez calculada a taxa de suicídio de acordo com os “anos-paciente” de cada droga, era a mesma para ambos: 1,3 suicídios por 100 anos-paciente. A olanzapina já estava no mercado há mais de uma década e, portanto, o suicídio não parecia ser uma preocupação particular para esta droga.
Isto é um efeito de classe?
Após Kavanagh ter avaliado a eficácia da asenapina para bipolar, descobrindo que ela não proporcionava nenhum benefício para conter a mania em pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados, ele examinou os dados de eficácia de vários outros atípicos que haviam sido testados para bipolar I: Zyprexa, Risperdal, Geodon, e Invega. Ele descobriu que o padrão se aplicava também a esses medicamentos: Eles eram ineficazes para aqueles com sintomas leves a moderados.
Como tal, Kavanagh viu agora um processo de revisão que levou vários atípicos a serem aprovados para um diagnóstico, mesmo que 50% dos pacientes bipolares I não recebessem nenhum benefício e estivessem expostos aos muitos perigos desses medicamentos. Estes medicamentos tinham uma caixa negra avisando que aumentavam o risco de morrer em idosos, e também era bem conhecido que os atípicos podiam induzir disfunções metabólicas que aumentavam o risco de morte precoce. No mínimo, argumentou Kavanagh, a FDA deveria colocar esta informação – que a asenapina era ineficaz para aqueles com sintomas bipolares leves a moderados I – no rótulo, e adicioná-la aos rótulos também para os outros atípicos.
Kavanagh delata
A revisão da farmacologia clínica feita por Kavanagh sobre asenapinas estava prevista para 15 de maio de 2008, e pelo menos uma semana antes disso ele havia soado um alarme, afirmando em uma grande reunião de escritório que ele achava que este medicamento era perigoso e largamente ineficaz, e que Schering-Plough havia procurado esconder os riscos. Enquanto seu relatório de 520 páginas estava repleto de detalhes técnicos sobre a biodisponibilidade da droga, como ela era metabolizada, e assim por diante, Kavanagh tinha um histórico pessoal que estava ajudando a alimentar sua oposição a esta droga.
Ele mesmo admitiu que sofria de “doença mental”. Ele havia sofrido mais de uma dúzia de episódios de depressão, incluindo uma hospitalização, e não havia encontrado antidepressivos que fossem particularmente úteis. Quando tinha cerca de 40 anos de idade, ele contou a um psiquiatra de uma época de sua vida em que havia se apaixonado, descrevendo-a como um período de grande felicidade. O psiquiatra viu isso como evidência de mania e diagnosticou Kavanagh simplesmente como bipolar. Embora Kavanagh não concordasse com o diagnóstico e não tomasse nenhum medicamento para bipolar, ele falou sobre esta vulnerabilidade pessoal quando levantou suas queixas sobre a asenapina na FDA.
Como ele escreveu mais tarde: “Eu também disse que o medicamento, assim como outros, poderia ser usado não apenas para o que estava sendo desenvolvido atualmente, mas no futuro também poderia ser aprovado para doenças de que eu ou meu filho sofremos, ou com as quais fui mal diagnosticado (o que é comum para pessoas com doenças psiquiátricas), ou que poderia ser promovida para uso ou usada fora do rótulo para nossas doenças e por isso fomos pessoalmente afetados por isso”.
Em 16 de maio, ele escreveu aos seus superiores na FDA que estava mudando sua recomendação para “não aprovação”. Ele estava preocupado com as mortes nos ensaios clínicos e declarou que acreditava que essa toxicidade era “mediada pelo agonismo do receptor 5HT2B”. Além disso, ele escreveu que havia provas de que o “patrocinador sabia desta toxicidade e especificamente tentou evitar que a detectássemos”. E, finalmente, havia o dano que viria do uso fora do rótulo da asenapina.
“Simplesmente não acredito que haja nada que possamos fazer que eduque adequadamente médicos e pacientes para os riscos e que, com o uso não rotulado, estaremos diante de uma epidemia de toxicidade cardíaca e pulmonar potencialmente letal em crianças daqui a vários anos”, escreveu ele.
Uma semana mais tarde, com suas emoções se intensificando, ele enviou um e-mail a Janet Woodcock, diretora do Centro de Avaliação e Pesquisa de Drogas, para informá-la de uma “iminente preocupação de saúde pública” relacionada à asenapina e à prescrição de atípicos já aprovados para pacientes bipolares com sintomas mais leves.
Ele a advertiu que estava pronto para sair da agência com suas reclamações. “Notifiquei a divisão clínica da aparente atividade criminosa do patrocinador (isto é, não relatar eventos adversos graves e mortes, conforme necessário), e solicitei uma investigação criminal”, disse ele a Woodcock. “No entanto, a divisão clínica aparentemente tentou encobrir isto”.
Essa última frase certamente o colocaria em situação muito complicada frente aos seus colegas, e em 30 de maio, Kavanagh escreveu a Woodcock que seus superiores estavam “intimidando-o” e que ele não confiava mais no “processo” interno da agência para responder às suas reclamações. A partir deste ponto, ele lhe disse: “Prefiro lidar com o Congresso”.
A agência, ele disse, não estava fazendo seu trabalho.
“Não gosto do que tem acontecido nos últimos anos. Com base em minha experiência, acredito que o processo de revisão passou (pelo menos no nível de revisor) de compartilhamento, colaborativo, eficiente e tentando tomar decisões equilibradas para não ficar atolado na burocracia, revisores apenas cortando e colando o que os patrocinadores dizem sem avaliação crítica, sendo grosseiramente ineficiente, cortando isso ou aquilo apenas para dar conta de prazos e para evitar ser retaliado, e todos sendo defensivos”.
Kavanagh entrou em contato com o Escritório do Inspetor Geral e Senador de Iowa Charles Grassley. Em junho, ele apresentou duas emendas à sua revisão de 15 de maio, detalhando e documentando suas preocupações. Seus colegas da FDA, ele escreveu em 30 de junho, foram “cúmplices” da Schering-Plough na atividade criminosa.
Então ele sabia que seu futuro com a FDA havia terminado. “Quando comecei a levantar estas questões de segurança no início de maio, eu sabia que este era o fim de minha carreira”, disse ele.
A FDA de Thomas Laughren
Ao ir ao Congresso para apresentar as denúncias, Kavanagh estava apresentando a aprovação iminente da agência de asenapina como um desvio da norma. No entanto, havia um registro de 20 anos de aprovação de medicamentos psiquiátricos que mostrava que este não era o caso. Sob a liderança de Thomas Laughren, a FDA tinha um histórico de aprovação de medicamentos psiquiátricos que eram, na melhor das hipóteses, de eficácia marginal, e um histórico de fazê-lo sabendo que a empresa patrocinadora tinha procurado esconder, ou pelo menos obscurecer, os efeitos colaterais do medicamento.
Dada esta história, que foi bem documentada, as acusações de Kavanagh neste caso foram realmente uma acusação contra os procedimentos operacionais padrão da FDA, pelo menos na divisão psiquiátrica. E a Asenapine NDA não foi um caso particularmente grave.
Laughren tinha vindo para a FDA em 1985, servindo pela primeira vez como líder de equipe na Divisão de Produtos Farmacêuticos Neurofarmacológicos. Como Laughren escreveu mais tarde, nesta posição ele “supervisionou diretamente os profissionais médicos envolvidos na revisão de todas as atividades de desenvolvimento de drogas conduzidas sob INDs e na revisão de todos os NDAs e suplementos para novas reivindicações de drogas psiquiátricas”. Em 2005, ele se tornou o diretor da Divisão de Produtos Psiquiátricos, onde ele continuou a supervisionar a “revisão de todos os NDAs”.
Thomas Laughren
O primeiro NDA que Laughren teria revisto em sua posição de líder de equipe teria sido para Prozac (fluoxetina). Enquanto este medicamento foi promovido ao público como um medicamento revolucionário para depressão após sua aprovação no final de 1987, os ensaios clínicos contaram uma história completamente diferente.
No início, durante os ensaios clínicos de fluoxetina, descobriu-se que ela poderia induzir uma intensa agitação em alguns pacientes. Em resposta, Eli Lilly alterou os protocolos dos ensaios para que os pacientes pudessem receber uma benzodiazina como medicação concomitante. Como Dorothy Dobb da Eli Lilly admitiu mais tarde em um caso legal, isto foi “cientificamente ruim”, uma vez que “confundiria os resultados” e “interferiria na análise tanto da segurança quanto da eficácia”.
Eli Lilly conduziu cinco estudos clínicos de seu medicamento, e quando os resultados de todos os cinco estudos foram reunidos, a melhora na pontuação HAM-D – a escala usada para avaliar os sintomas depressivos – foi apenas um ponto maior para os pacientes com fluoxetina do que para o grupo placebo, uma diferença que não tem sentido. Além disso, Eli Lilly havia se engajado em vários manobras desonestas de codificação, orientando seus investigadores a registrar eventos adversos relacionados a drogas como “sintomas de depressão”, e mudando os relatos de “ideação suicida” nos formulários de relato de casos para “depressão”.
Os revisores médicos da FDA detectaram muito desse engano. Eli Lilly, escreveu o revisor da FDA David Graham, havia se engajado em “subnotificar em larga escala” os danos que a fluoxetina poderia causar.
Mesmo assim, a FDA deu sua aprovação à fluoxetina, e a explosão do ISRS estava em andamento. Outras empresas desenvolveram antidepressivos ISRS similares, e a FDA manteve o padrão que havia estabelecido com a fluoxetina. A Pfizer realizou seis estudos clínicos de sertralina (Zoloft), e em quatro dos seis, não conseguiu vencer o placebo. Houve um quinto estudo que era “questionável”, e um sexto que era positivo para a sertralina. Como um funcionário da Pfizer confessou em um memorando de 11 de abril de 1991, a sertralina havia “recebido uma revisão desfavorável em vários países”. A questão chave comum é que os reguladores não estão convencidos da eficácia da sertralina versus placebo”.
Mas a FDA deu luz verde à Pfizer, e logo Zoloft estava a caminho de se tornar o medicamento mais vendido. Os dados de eficácia para os ISRSIs que se seguiram foram muito parecidos.
A seguir, foram os antipsicóticos atípicos, com risperidona (Risperdal) e olanzapina (Zyprexa) liderando. A Johnson & Johnson, em seus ensaios com risperidona, comparou doses múltiplas de risperidona a uma dose elevada de haloperidol (a droga comparadora), um projeto que permitiu a Janssen escolher os melhores resultados de uma das três doses de risperidona e compará-la com uma dose de haloperidol que certamente causaria muitos eventos adversos. Este foi um projeto tendencioso que poderia fazer com que a risperidona parecesse boa, e os revisores da FDA não foram enganados. Como eles observaram, estes estudos foram “incapazes de fornecer qualquer comparação significativa dos dois medicamentos”.
Da mesma forma, os revisores da FDA concluíram que os ensaios de olanzapina da Eli Lilly foram “tendenciosos por projeto” contra o haloperidol e, portanto, seu grande ensaio de fase III, que não foi controlado por placebo, forneceu “poucos dados úteis sobre a eficácia”. Vinte pacientes tratados com olanzapina morreram nos ensaios, e Paul Leber da FDA advertiu que “ninguém deve se surpreender se, na comercialização, eventos de todo tipo e gravidade não identificados previamente [nos ensaios] forem relatados em associação com o uso da olanzapina”.
Foi assim que os testes de medicamentos psiquiátricos e sua aprovação tomaram forma durante a primeira década que Laughren serviu como líder de equipe na Divisão de Produtos Neurofarmacológicos da FDA. Foram aprovados medicamentos que mostraram pouca eficácia e foram testados em ensaios tendenciosos, mesmo quando os riscos eram minimizados ou obscurecidos, e depois foram promovidos como medicamentos inovadores, o que representou bilhões em vendas.
Muitas das empresas farmacêuticas então comercializaram agressivamente seus medicamentos para uso fora da marca em crianças e uma porcentagem cada vez maior de adultos. A FDA se manteve, na maior parte das vezes, como isto aconteceu, e o que se pode entender hoje é que a venda de medicamentos psiquiátricos durante este período evoluiu para uma empresa fraudulenta. Eli Lilly, Johnson & Johnson, GlaxoSmithKline, Astra Zeneca, Abbot, Bristol Myers Squibb, Park Davis, Forest Laboratories, Novartis, Warner-Lambert e Otsuka acabaram pagando multas ao governo federal por comercialização imprópria de suas drogas psiquiátricas, com vários declarando-se culpados de acusações criminais.
No entanto, mesmo enquanto usava seu chapéu da FDA, Laughren ajudou a promover as drogas psiquiátricas e seu uso não rotulado. Em uma reclamação de 2007 ao Comissário da FDA Andrew von Eschenbach, a Aliança para a Proteção da Pesquisa em Humanos (AHRP), uma organização de vigilância, preparou uma lista detalhada dos “laços de colaboração de Laughren com funcionários da indústria farmacêutica e psiquiatras financiados pela indústria no meio acadêmico e em associações profissionais”.
A AHRP forneceu links para documentos de origem em sua reclamação. Inclusive as atividades da Laughren:
Participando de um painel de consenso patrocinado pela indústria, convocado pela Academia Americana de Psiquiatria Infantil e Adolescente, que recomendou usos não rotulados de drogas psiquiátricas em crianças.
Coautor de mais de uma dúzia de artigos com “líderes de pensamento” financiados pela indústria, que estavam sendo pagos para atuar como consultores, conselheiros e palestrantes. Em um caso, ele foi coautor de um capítulo de livro com o diretor médico de Eli Lilly, Leigh Thompson.
Participou de um “painel de desenvolvimento” para uma conferência sobre “distúrbios do humor”, subscrita pelas principais empresas farmacêuticas. O relatório de 2002 endossou avaliações de depressão para uma ampla gama de pacientes com doenças físicas – doenças cardiovasculares, câncer, Parkinson, AIDS e outras – que certamente expandiriam o mercado de medicamentos psiquiátricos.
Laughren também ganhou a ira de muitos pais quando se soube que ele havia descartado as preocupações com os SSRIs agitando os impulsos suicidas nas crianças. Em 1996, a reclamação da AHRP observou que um oficial de revisão médica da FDA havia relatado uma incidência sete vezes maior de suicídio em crianças que receitaram sertralina. Em resposta, Laughren escreveu que “Eu não considero estes dados como um sinal de suicídio tanto em adultos quanto em crianças”.
Então, em 2004, Laughren impediu que um revisor da FDA, Andrew Mosholder, falasse em uma audiência pública sobre se os antidepressivos aumentavam o risco de suicídio em crianças e adolescentes. Mosholder havia concluído que os dados do julgamento mostravam que assim seria, mas Laughren e outros funcionários da FDA, relatou o Wall Street Journal, temiam que ele “condenasse as drogas com demasiada força perante o comitê consultivo”. Laughren apresentou a análise de Moshholder, mas “enfatizou a falta de confiabilidade dos dados ao invés do possível risco das drogas”.
A queixa da AHRP detalhou outros casos em que Laughren tinha trabalhado para conseguir a aprovação de um medicamento sobre o qual outros revisores da FDA tinham levantado bandeiras vermelhas. Em 2007, os médicos da FDA recomendaram que o pedido da Eli Lilly para o uso pediátrico de Zyprexa fosse rejeitado, tanto por questões de segurança como porque quase metade dos dados tinham vindo da Rússia, o que os oficiais da FDA suspeitavam que poderia ser fraudulento. No entanto, em 29 de abril de 2007, Laughren os indeferiu e considerou o pedido da Eli Lilly para uso pediátrico “aprovável”.
Tais eram os padrões predominantes para aprovação de NDAs de medicamentos psiquiátricos sob a liderança de Laughren. Havia um histórico da agência se inclinando para trás para encontrar evidências de “eficácia”, tolerando ensaios que eram “tendenciosos por projeto”, e deixando os patrocinadores se safarem com relatórios de segurança que, de uma forma ou de outra, procuravam obscurecer os possíveis danos que suas drogas poderiam causar.
Mandato do Congresso
Embora Laughren tenha recebido uma quantidade razoável de críticas públicas, ele estava, em seus esforços para conseguir a aprovação de novas drogas, seguindo um mandato do Congresso que surgiu nos anos 90. Durante a era Reagan, grupos conservadores reclamavam regularmente que a FDA, com suas longas revisões das NDAs, estava frustrando os interesses comerciais das empresas farmacêuticas e, ao fazer isso comprometia a saúde pública. Newt Gingrich, que subiu à presidência da Câmara em 1995, reclamou que a FDA era o “principal assassino de empregos na América“. A mensagem era clara: a FDA precisava se tornar uma agência que ajudasse a trazer novos medicamentos para o mercado.
As empresas farmacêuticas também ganharam uma nova influência financeira sobre este processo de revisão. Em 1992, o Congresso aprovou o PDUFA (Prescription Drug User Fee Act), que exigia que as empresas farmacêuticas financiassem as revisões da FDA sobre suas Novas Aplicações de Medicamentos. Isto proporcionou à indústria uma alavancagem financeira sobre a FDA – se a agência não aprovasse mais prontamente os medicamentos, a indústria faria lobby duro contra esta lei quando chegasse a hora, a cada cinco anos, de o Congresso renová-la.
Tudo isso serviu para corromper a FDA. Em 2006, em uma pesquisa realizada com cientistas da FDA, um quinto respondeu que haviam “sido solicitados, por razões não científicas, a excluir ou alterar inadequadamente informações técnicas ou suas conclusões em um documento científico da FDA”. Quarenta por cento disseram que temiam retaliações por expressar preocupações de segurança em público.
Enquanto isso, David Graham, que havia advertido sobre a subnotificação de Eli Lilly dos danos de Prozac, disse ao Congresso em 2004 que ele havia sido avisado “por seus superiores para não advertir o público sobre os perigos de drogas como Vioxx”, o que acabou sendo lembrado. Depois de advertir o público, ele testemunhou que foi “marginalizado pela administração da FDA e não foi convidado a participar da avaliação de nenhuma questão de segurança de drogas”. É um tipo de ostracismo”.
No ano seguinte, Graham – que era então diretor associado do Escritório de Segurança de Medicamentos da FDA – afirmou que “a FDA é inerentemente tendenciosa em favor da indústria farmacêutica. Ela vê a indústria como seu cliente, cujo interesse ela deve representar e avançar. Ela vê sua missão principal como aprovando o maior número possível de medicamentos, independentemente de os medicamentos serem seguros ou necessários”.
Dada esta história e a política da agência, os protestos de Kavanagh, tanto dentro da agência quanto para o Congresso e o Escritório do Inspetor Geral, quase certamente caíram em ouvidos surdos. Não havia nada de anormal com a aprovação iminente da asenapina pela agência. E ele poderia esperar ser colocado no ostracismo – e talvez pior – por haver feito um alarido legal a respeito disso.
Isto foi mais do mesmo, e mesmo quando a FDA estava passando pelo processo de revisão, Hassan expressou publicamente consternação em um artigo de primeira página do Wall Street Journal que o asenapine ainda não havia sido aprovado: “O que será necessário para que novos medicamentos sejam aprovados? A questão é que não sabemos”.
O artigo, intitulado “Drug Makers Say FDA Safety Focus Is Slowing New-Medicine Pipeline”, foi publicado em 30 de junho de 2008. Isso foi menos de três meses desde que a fraude da Zetia havia feito manchetes, e ainda assim, neste artigo, Hassan recebeu um púlpito – e uma alta consideração moral – para reclamar da lentidão da FDA em aprovar a asenapina.
As Reclamações de Kavanagh são Desconsideradas
A queixa do denunciante de Kavanagh foi rapidamente arquivada. Alguns agentes do FBI o entrevistaram, mas concluíram que este era um caso de opiniões diferentes dentro da FDA sobre a eficácia e segurança da asenapina. Ao mesmo tempo, tanto o revisor de dados de segurança da FDA, Robert Levin, quanto Laughren escreveram relatórios resumidos que, dentro da agência, colocaram o assunto em banho-maria.
Em uma revisão de 26 de junho, Levin forneceu breves histórias de casos das 22 mortes de pacientes tratados com asenapina. Ele descartou todos, exceto dois, como “provavelmente sem relação” com a droga, e mesmo nos outros dois, ele minimizou seu possível significado.
Houve um suicídio de um homem de 67 anos que um investigador, no formulário de relatório de caso, concluiu que “possivelmente” estava relacionado à droga, mas, disse Levin, o investigador não tinha “dado nenhuma razão clara para isso”. A morte neonatal, embora possivelmente relacionada à droga, também poderia ser explicada pela história da mãe “de 3 partos prematuros anteriores”, escreveu ele.
Era isso: um atestado de saúde aprovado para a droga. Também não houve menção de uma morte devido a uma reação alérgica; como o resumo de segurança da empresa havia dito, a mulher de 57 anos havia morrido devido a uma embolia pulmonar.
Em 1º de agosto, Laughren determinou que a asenapina fosse aprovável tanto para a esquizofrenia quanto para a bipolar I. Ele escreveu algumas linhas sobre cada uma das principais queixas de Kavanagh.
A falta de eficácia de Re asenapine para a esquizofrenia: “Pelo que vi, ele [Kavanagh] não fez nenhum argumento credível para apoiar estas amplas declarações”.
A falta de eficácia da Re asenapina para pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados: “Considero [sua análise] uma abordagem falha na análise desses dados. . . estes escores de gravidade não têm significado diagnóstico e não seria apropriado sugerir que a gravidade básica poderia ser usada para selecionar pacientes para tratamento. Na minha opinião, a interpretação correta desses dados é que a asenapina tem se mostrado eficaz no tratamento agudo de manias e episódios mistos, e acho que deveria ser deixado aos clínicos a decisão de como selecionar os pacientes para tratamento”.
A empresa está escondendo os riscos de segurança: Não havia razão para pensar que o agonismo do receptor 5HT2B seria um risco particular; a mulher grávida cujo recém-nascido morreu tinha um histórico de gravidez complicada; a voluntária saudável tinha sofrido um episódio de desmaio, não uma parada cardíaca; não havia evidência de que a mulher de 57 anos tivesse morrido de uma reação alérgica; e o suicídio era um risco das duas doenças.
“Não compartilho a opinião [de Kavanagh] de que o patrocinador não relatou informações críticas de segurança que estava em sua posse, ou que eles deturparam o que foi apresentado na tentativa de enganar, pelo menos com base no que eu revisei”, escreveu Laughren.
Havia um aspecto do relatório do Escritório de Farmacologia Clínica de Kavanagh que Laughren achou que tinha valor, que era a necessidade da empresa de fornecer mais informações sobre os metabólitos do medicamento. “Se o Escritório de Farmacologia Clínica estiver correto em suas afirmações, que é que temos poucas garantias de que os dados de carcinogenicidade animal ou de toxicidade reprodutiva sejam relevantes para os humanos, assim sendo saberíamos tão pouco sobre o que está circulando nos humanos. Até que esta questão seja resolvida, estou inclinado a concordar com o Escritório que esta é uma deficiência grave”.
Quinze dias depois que Laughren escreveu seu relatório “aprovável”, Kavanagh foi escoltado desde a saída da sua sala na FDA. A carta de rescisão que ele recebeu posteriormente declarou que, além do comportamento que poderia estar ligado a seus esforços de denúncia, ele estava sendo demitido por ter sido indelicado e agressivo em reuniões com empresas farmacêuticas.
A deficiência no NDA da Schering-Plough em relação aos metabólitos da asenapina atrasou a emissão de uma carta de aprovação formal, mas isso veio no início de 2009. Uma reunião do comitê consultivo foi realizada em julho daquele ano, com a votação de 10-2 para aprovar a asenapina para esquizofrenia e 12-0 para aprová-la para bipolar. Kavanagh não foi autorizado a falar na reunião; suas preocupações não foram manifestadas. O medicamento, comercializado como Saphris, foi lançado no mercado naquele inverno.
O pagamento para Hassan
Quando Hassan levou Schering-Plough a adquirir a Organon, ele sabia que se asenapinas fossem aprovadas tanto para a esquizofrenia quanto para a bipolaridade, isso aumentaria o valor da Schering-Plough. Em março de 2009, logo após a FDA notificar a Schering-Plough que a asenapina era “aprovável”, ele negociou a venda de sua empresa, na forma de uma fusão, à Merck por US$ 41,1 bilhões.
As contas publicadas da fusão declararam que Hassan e outros nove executivos da Schering-Plough receberiam 132 milhões de dólares no negócio. A participação de Hassan foi estimada em $51 milhões em dinheiro e benefícios de pensão, embora houvesse relatos que colocavam os de Hassan em um patamar muito mais alto.
A fusão com a Merck foi encerrada naquele inverno, e Hassan foi mais uma vez aclamado por sua administração bem sucedida de uma empresa farmacêutica. Em agosto de 2010, a CBS News publicou uma entrevista com Hassan intitulada: “Como eu venci as chances de um negócio farmacêutico de 14 bilhões de dólares“.
A chave, disse Hassan à CBS News, foi que os compostos que a Schering-Plough adquiriu quando comprou o Organon, “provaram ser valiosos, especificamente a droga esquizofrênica asenapina, nome comercial Saphris”.
“Muitas pessoas geralmente não estavam entusiasmadas com a Organon. Havia muito ceticismo em relação ao Saphris, do qual a Pfizer havia se afastado. A opinião predominante era que a Pfizer desistiu da asenapina porque eles viam grandes problemas com ela, tanto científica como comercialmente. Empresas, analistas de Wall Street e até mesmo a imprensa se perguntavam em voz alta como poderíamos ter sucesso onde a Pfizer não poderia, e se eventualmente chegaríamos à mesma conclusão que a Pfizer chegou. Mas a Saphris foi aprovada pela FDA em agosto [2009] e posteriormente lançada … Portanto, isto foi algo que realizamos e que antes não estava claro para os outros. Pouquíssimos negócios se realizam tão bem quanto este”.
A fusão, no entanto, não resultou particularmente bem para a Merck. A Saphris não ofereceu nenhuma vantagem sobre os atípicos já existentes no mercado, e em 2013, com a Saphris gerando vendas líquidas de apenas US$ 150 milhões naquele ano, a Merck vendeu seus direitos de comercialização de asenapina a Forest Laboratories por US$ 240 milhões.
Laughren Psychopharm Consultoria
Em 2012, Laughren deixou a FDA para formar a Laughren Psychopharm Consulting com o objetivo de ajudar as empresas farmacêuticas a levar seus medicamentos ao mercado. Um de seus primeiros clientes foi a AstraZeneca, uma empresa que ele havia ajudado três anos antes quando procurava obter a aprovação da Seroquel para uma gama mais ampla de condições, inclusive para uso em adolescentes.
Na reunião do painel consultivo, Wayne Ray da Universidade de Vanderbilt contou sobre suas pesquisas que haviam ligado a morte cardíaca súbita ao Seroquel quando este era usado com alguns outros medicamentos. Entretanto, como a revista Science relatou mais tarde, Laughren dispensou a pesquisa de Ray e disse ao painel que as próprias descobertas clínicas de AstraZeneca, que não tinham encontrado nenhum risco aumentado de morte, deveriam ser consideradas a pesquisa definitiva.
O painel votou esmagadoramente para aprovar quetiapina para novas indicações e não exigiu nenhuma rotulagem sobre o risco de morte cardíaca súbita. Dentro de dois anos, a FDA havia recebido relatos de 220 mortes devido a eventos cardíacos relacionados ao uso do Seroquel, e então exigiu que a AstraZeneca alertasse sobre este risco em seu rótulo.
O artigo da revista Science foi intitulado: “A porta giratória da FDA”: As empresas frequentemente contratam funcionários de agências que administram suas bem sucedidas análises de medicamentos”. Rirren, ao que parece, ilustrou melhor este caminho de carreira.
Uma advertência profética
Kavanagh, por sua vez, nunca colocou seus esforços de “denunciante” para descansar. Mais uma vez, ele tentou chamar a atenção do público para a aprovação da FDA para este medicamento e outros atípicos para o bipolar 1 e para os danos que vieram de outras aprovações da FDA. Além disso, em suas ações legais subsequentes e cartas aos presidentes Obama e Trump e aos membros do Congresso, ele procurou defender o argumento de que havia sido demitido por seus esforços de denúncia em 2008.
Ao longo do caminho, ele reuniu algumas munições adicionais para seus esforços de denúncia.
Durante os primeiros 10 meses em que a asenapina esteve no mercado, a FDA recebeu 52 relatos de pacientes sofrendo uma “reação alérgica grave” ao medicamento (reações do tipo 1, que incluem anafilaxia). Como se estima que apenas 1% a 10% das reações adversas a um medicamento são relatadas ao programa Medwatch da FDA, isto sugere que houve entre 520 e 5.200 pacientes tratados com asenapina durante seus primeiros 10 meses no mercado que tiveram uma resposta alérgica severa ao medicamento. Em 1º de setembro de 2011, a FDA emitiu um aviso relacionado a este risco, exigindo que ele fosse adicionado ao rótulo.
Uma segunda preocupação de Kavanagh era que a asenapina e outros medicamentos atípicos, quando prescritos a mulheres grávidas, levariam a mortes neonatais. Em 2011, quando Kavanagh estava se preparando para entrar com uma ação judicial qui tam, ele procurou os relatórios do Medwatch por mortes causadas por drogas atípicas, e encontrou o seguinte:
O dossiê Seroquel contou 1.844 mortes, com mais de 5% dessas mortes em bebês com menos de dois anos de idade.
De 1% a 3% dos óbitos de Risperdal, Geodon, Abilify e Zyprexa estavam nesta faixa etária.
Em sua ação judicial qui tam, Kavanagh calculou que, de 2000 a 2012, havia cerca de 3.500 bebês com menos de dois anos de idade que haviam morrido devido à exposição a atípicos, com esta exposição – pareceria estar chegando durante a gravidez e através do aleitamento materno. No entanto, mesmo este número é, sem dúvida, um número inferior: Uma revisão de 2015 dos resultados neonatais com “exposição a antipsicóticos” durante a gravidez constatou que havia um risco maior de “grandes malformações, defeitos cardíacos, parto prematuro, partos gestacionais de pequeno porte e diminuição do peso ao nascer”.
Em sua ação judicial, Kavanagh também buscou contabilizar os danos causados aos pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados a quem, no entanto, são prescritos um antipsicótico atípico. Ele estimou que 500.000 pacientes se enquadram neste subgrupo e, dada uma taxa de mortalidade de 1% a 1,2% para voluntários em ensaios de medicamentos antipsicóticos, ele calculou que isto levaria a 5.000 ou mais mortes a cada ano. “Para não mencionar”, acrescentou, “os numerosos outros efeitos adversos graves que ocorrem com os antipsicóticos, incluindo convulsões, coágulos sanguíneos, ataques cardíacos, diabetes, toxicidade neurológica, etc.”.
Como uma ação judicial qui tam alega que os governos estaduais e federal estão sendo defraudados, neste caso porque a Medicaid e a Medicare estavam pagando por tratamentos medicamentosos que Kavanagh alegava serem ineficazes e prejudiciais, a possibilidade de sucesso geralmente depende se o governo federal “se junta” à ação judicial. E enquanto o processo de Kavanagh alegava que os fabricantes desses medicamentos haviam procurado esconder seus danos, também alegava que a FDA havia sido cúmplice dessa fraude. O governo federal teria tido que atropelar a sua própria agência para se juntar à ação e optou por não fazê-lo, o que levou ao arquivamento de seu processo em 2014.
Depois disso, Kavanagh renovou periodicamente suas petições a funcionários eleitos e agências governamentais. Ele o fez em 2016 e 2017, e em maio passado deu um último empurrão, enviando cartas e resumos de suas queixas ao Presidente Trump, ao Congressista Jamie Raskin, ao Senador Charles Grassley, ao Comitê de Supervisão e Reforma da Câmara e à Divisão de Investigação do Departamento de Justiça. Este último esforço dele ainda está pendente.
Contando as mortes
Em sua estimativa de mortes, Kavanagh concentrou-se em pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados. No entanto, a aprovação pela FDA de atípicos para o distúrbio bipolar 1 levou naturalmente à prescrição desses medicamentos a pacientes bipolares II e àqueles diagnosticados com distúrbio do espectro bipolar, o que significa que eles também estão expostos aos perigos dos medicamentos, embora possa haver poucas evidências de ensaios clínicos aleatórios de que eles proporcionem um benefício significativo para a mania e episódios mistos.
A bula de Asenapine falava de uma longa lista de riscos à saúde associados ao seu uso, que foram apresentados como típicos dos antipsicóticos “atípicos”. Eles incluem: acatisia, sonolência, síndrome neuroléptica maligna, sintomas extrapiramidais, distonias, discinesia tardia, hiperglicemia, diabetes mellitus, ganho de peso, síncope, leucopenia, neutropenia, agranulocitose, prolongamento do QT, hiperprolactinemia, convulsões, potencial de comprometimento cognitivo e motor, desregulação da temperatura corporal e disfagia.
Traduzir esse aumento nas taxas de mortalidade em um número de mortes para pacientes bipolares é uma tarefa incerta. No entanto, mesmo cálculos conservadores produzem uma contagem estimada de 15.000 mortes adicionais por ano, ou um total de 180.000 mortes adicionais desde 2008, quando Kavanagh procurou pela primeira vez alertar sobre este risco.
A FDA sob revisão
Revisando a queixa de Kavanagh sobre o denunciante fornece uma nova maneira de ver o processo de revisão da FDA e as normas “aprováveis” para drogas psiquiátricas em ação. O que pode ser visto é que a FDA aprovará um medicamento que tenha demonstrado eficácia “estatística” marginal em ensaios clínicos, mesmo que esse “benefício” fique muito aquém de ser clinicamente significativo e seu uso exponha os pacientes a uma longa lista de perigos. Este é um padrão de revisão de medicamentos que certamente introduzirá no mercado medicamentos que, em termos de saúde pública, farão mais mal do que bem.