A saúde mental das pessoas envolvidas em situação de desastre natural é o tema do artigo publicado pela revista Saúde Debate. Os autores entrevistaram trabalhadores da saúde do município de Blumenau, no Estado de Santa Catarina. Foram entrevistados dois enfermeiros, dois psicólogos, um assistente social, um trabalhador da defesa civil e outro do Corpo de Bombeiros. O estudo teve por objetivo descrever a visão dos trabalhadores sobre a saúde mental das pessoas envolvidas em situação de desastre.
Os episódios de desastre são desorganizadores, com grande potencial de adoecimento físico e psíquico. As pessoas atingidas, direta ou indiretamente, os trabalhadores envolvidos, e até mesmo as pessoas que acompanham a situação pelos meios de comunicação, ficam suscetíveis ao adoecimento. Essa situação, demanda o desenvolvimento de ações por parte dos trabalhadores da atenção psicossocial. No entanto, são poucos os profissionais qualificados para lidar com esse tipo de situação.
“buscar a compreensão sobre as experiências subjetivas das pessoas nos contextos de desastres e na recuperação pós-desastre denota como os afetados compreendem o seu mundo social, após a experiência do trauma, e permite serem ouvidos, legitimando o sofrimento que emerge dessas situações de vida, oportunizando o entendimento sobre o sofrimento que é muitas vezes marginalizado e invisível com o passar do tempo.”
As vítimas podem continuar sentido forte medo e ansiedade após a situação de desastre. E com o tempo, podem dar lugar aos sentimentos de tristeza e irritabilidade. Também é comum surgirem sintomas psicossomáticos, e a dor pode ser intensificada quando ocorrem perdas materiais e pessoais. Os autores defendem que a readaptação pode ser facilitada com o apoio psicossocial, mas não deve se limitar aos serviços especializados, senão estar presente nas ações de todos os trabalhadores envolvidos.
No estudo, emergiram três categorias de análise: Evento inesperado com a população desprevenida; Aumento do número de pessoas em sofrimento psíquico e agravo dos casos já em tratamento; Estratégias atuais do município. Constatou-se que após os desastres causados pela chuva em 2008 nesse município, houve o aumento expressivo na procura da
população, especialmente por serviços de saúde mental, o agravamento de quadros preexistentes e sob tratamento antes do desastre, e a ocorrência de novos casos de
sofrimento mental enfocam a pertinência do tema para a formação profissional em
saúde.
A ação dos profissionais de saúde nessas circunstâncias são um verdadeiro desafio, já que não existem planos de contingência ou preparo da equipe para as ações em saúde mental. Por outro lado, o Apoio Matricial e a Educação Permanente se efetivaram e se mostram importantes ferramentas para a população e trabalhadores envolvidos em situações de desastre.
Os autores destacam a importância da qualificação dos trabalhadores para lidarem com a crise, promovendo a saúde da população em contexto pós-desastre. Assim como também, olhar para o sofrimento da própria equipe, enquanto parte da população direta ou indiretamente afetada.
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Rafaloski, A.R et al. Saúde mental das pessoas em situação de desastre natural sob a ótica dos trabalhadores envolvidos. Rev. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 2, p. 230 – 241, jul. 2020. (Link)
O artigo publicado pela revista Psicologia e Saúde, aborda o que as famílias pensam sobre as internações psiquiátricas dos seus familiares em sofrimento psíquico. As autoras, Raíssa de Brito Braga e Renata Fabiano Pegoraro, se propuseram a investigar os itinerários terapêuticos desses usuários que passaram por internações, através de seus familiares. Foram entrevistadas 10 famílias de um CAPS no triângulo mineiro, utilizando um questionário semiestruturado.
Após uma breve contextualização histórica sobre os espaços de cuidado da loucura até a Reforma Psiquiátrica. As autoras localizam o lugar da família a partir da Reforma, quando passaram a ser compreendidas como parte efetiva no tratamento da pessoa em sofrimento psíquico. A família acaba sendo a principal responsável por identificar as mudanças de comportamento que sinalizem o início de uma crise, e a responsável por procurar ajuda. Apesar do alto grau de responsabilidade e sobrecarga sobre as famílias, elas recebem pouco ou quase nenhum suporte.
“Os autores destacam que é possível perceber que boa parte dos familiares possui certa resistência em internar, mas veem essa como a única possibilidade de melhora diante da crise, mesmo não compreendendo a internação como única forma de cuidado na vida do familiar em sofrimento mental.”
Pesquisas apontam que as famílias costumam procuram resolver o problema sem intervenção médica, mas quando não conseguem êxito, recorrem ao serviço psiquiátrico, com um sentimento de culpa, exaustão, impotência, desespero.
A maioria dos familiares entrevistados relatou a percepção de internação conectado ao uso de medicamentos. Alguns destacaram que a internação possibilita que os usuários tomem seus medicamentos com regularidade, enquanto outros destacaram o uso excessivo dos medicamentos. Os autores chamam a atenção que os familiares destacaram a medicação como principal ou única forma de tratamento nas internações, ou seja, como contenção química.
“ele estava muito dopado, sabe? Aí ‘mãe, olha como eu estou, eu estou muito dopado, eu não quero ficar assim.”
O fornecimento de alimentos e dormitório para os usuários, foi outro tema levantado pelas famílias sobre o período de internação. Para as famílias, a internação acaba sendo um tempo para si, em que transferem o cuidado do usuário para o serviço de saúde.
“Essas questões não são novas e foram relatadas por Tsu (1993), que afirmou que apenas pequena parte dos familiares que solicitava a internação a relacionavam, de fato, com a ideia de tratamento. Para ela, muitos deles a solicitavam para ajudar na função custodial do paciente. Devido à sobrecarga que sofriam para exercer o cuidado, as famílias buscavam a internação para ter um tempo para si.”
A pesquisa também apontou para a falta de orientação dada as famílias. As poucas explicações recebidas se relacionavam com orientações sobre o uso de medicamentos ou sobre encaminhamentos. Nenhuma família citou receber informação sobre o quadro do paciente ou sobre formas de cuidado, bem como não houveram espaços para tirar duvidas ou relatar suas dificuldades.
Houve dificuldade dos entrevistados em lembrar de todo o percurso terapêutico do paciente, já que muitos tiveram diversas internações ao longo da vida. Alguns familiares entrevistados não haviam acompanhado o percurso terapêutico do usuário desde seu início, o que acabou limitando a pesquisa. Os autores consideram importantes mais investigações para avaliar a qualidade das internações, já que estas ainda fazem parte dos serviços de saúde mental brasileiro.
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BRAGA, Raissa de Brito; PEGORARO, Renata Fabiana. Internação psiquiátrica: o que as famílias pensam sobre isso?. Rev. Psicol. Saúde, Campo Grande , v. 12, n. 1, p. 61-73, abr. 2020. (Link)
Em um novo artigo, o psicólogo indígena Joseph Gone da Universidade de Harvard argumenta que a descolonização dos métodos de pesquisa não só é necessária para o avanço da justiça social, mas que também melhorará o estado da ciência psicológica. Os apelos para a psicologia descolonizante decorrem do reconhecimento de que o campo tem mantido formas rígidas de pensar e pesquisar a saúde mental que estão enraizadas em concepções historicamente ocidentais – levando à exclusão e até mesmo à exterminação de formas multiculturais de abordar estas questões.
Neste último artigo, publicado no Journal of Counseling Psychology, Gone usa exemplos de tradições de cura indígenas para ilustrar como a descolonização enquanto metodologia pode proporcionar novos caminhos para a pesquisa em psicologia.
“Quer a marginalidade experimentada por outros grupos seja colonial ou não, muitas das sugestões concretas na seção ‘Rumo à Descolonização’ do artigo ainda podem ser úteis em termos de legitimar o conhecimento local, recuperar sistemas de significado comunitário e motivar a ação coletiva”, disse Gone.
Joseph Gone. Image: Stephanie Mitchell/Harvard Staff Photographer
A colonização é reconhecida como um fenômeno multifacetado que se manifesta de várias maneiras, dependendo do contexto político e econômico. Seja qual for sua forma, a colonização envolve a desumanização dos colonizados, que se institucionaliza dentro dos sistemas e instituições sociais, incluindo o sistema de saúde mental.
O famoso argumento do psiquiatra martinicano Frantz Fanon nos anos 60 é que muitas das “patologias pós-coloniais” encontradas nos povos originais poderiam muito bem ser o resultado de traumas históricos da colonização europeia-americana.
Com a institucionalização dos sistemas de saúde de estilo ocidental, muitos índios americanos (IA) tendem a buscar esses serviços de saúde mental mais convencionais. Dada a ruptura das práticas de cura cultural causada pela colonização, o processo de recuperação das tradições terapêuticas indígenas se tornou um importante caminho para a descolonização. Entretanto, para que isso ocorra, a psicoterapia e a psicologia em geral nos serviços de saúde devem lidar com a tensão entre as abordagens atuais da psiquiatria e os entendimentos indígenas de saúde e cura.
Gone propõe uma estrutura para compreender a descolonização como uma abordagem a ser pesquisada, em vez de um tipo específico de projeto de pesquisa. Trata-se menos do uso de métodos particulares e mais da utilização de uma abordagem que forneça um conjunto de objetivos para a pesquisa. Considerando que não há muita pesquisa sobre descolonização dentro das áreas de aconselhamento e psicoterapia, este artigo oferece estratégias para os psicólogos participarem da descolonização na pesquisa, prática e treinamento em psicologia nos serviços de saúde.
Ao analisar a narrativa de vida de um curandeiro índio americano Gone demonstra esta abordagem da descolonização enquanto uma metodologia. Este exemplo demonstra como métodos qualitativos podem ser usados para recuperar uma tradição terapêutica colonizada.
A tradição, em particular, é a do curandeiro dos Aaniiih-Gros Ventre, Bull Lodge. Ao traçar as características essenciais da tradição terapêutica dos Aaniiih, Gone considera como o método, o poder e o processo estão relacionados com a recuperação das tradições terapêuticas indígenas. A história de vida de Bull Lodge, um conhecido curandeiro do século XIX dos Gros Ventres, ilumina o mundo dos Aaniiih dentro do contexto de uma tradição de cura indígena pré-reserva.
O próprio Gone é membro dos índios Aaniiih-Gros Ventre de Montana e das Grandes Planícies do norte. Gone conta dos primeiros casos documentados de Bull Lodge que estão associados à sua ascensão como um curandeiro proeminente, destacando os locais específicos na paisagem Aaniiih onde ele ganhou seu “conhecimento ritual e poder de cura” juntamente com a construção de relacionamentos com seus Pais espirituais.
“De especial relevância para a descolonização, tais tradições frequentemente assumem que grande parte do mundo ‘natural’ é animado e sensível e que muito do poder para manter o bem-estar humano depende das relações com os seres que habitam lugares específicos do mundo”.
Destacados na narrativa de Bull Lodge estão os “sete buttes”, onde Bull Lodge trabalhou para ganhar notoriedade e favorecimento dos que estão acima (Seres do Alto). Através de uma série de provas testando seu caráter através de jejuns e oferendas, ele acabou sendo presenteado pelos Seres do meio-ambiente que sentiram respeito e piedade para com Bull Lodge.
Para prepará-lo para sua vida como um nobre curandeiro, tais presentes incluíam conhecimento de onde adquirir medicamentos fitoterápicos, proteção em batalha com um escudo e manto feitos de pele de búfalo e um apito com o qual convocar o Ser Butte para restaurar a saúde. Esses eventos foram o início de uma vida de conexão entre Bull Lodge e os Seres do Alto.
Aplicando isso à psicologia descolonizante, Gone delineia as convergências e divergências entre a psicoterapia ocidental e a tradição de cura Aaniiih. Isso inclui a distinção da doença em seus aspectos físicos, mentais, espirituais e sociais, bem como a cura sendo entendida como sagrada versus secular por natureza. O papel do curador Aaniiih é o de mediador entre os Seres do Alto e os humanos por meio do ritual, e o curador deve promover esses relacionamentos para toda a vida.
“Essas dinâmicas relacionais revelam uma hierarquia de pessoas que são classificadas por facilidade e acesso ao poder para trazer o mundo em alinhamento com seus desejos ou vontades, incluindo a cura.”
A análise de Gone da narrativa de vida de Bull Lodge inclui os domínios do método, poder e processo na recuperação descolonial das tradições terapêuticas indígenas com aconselhamento e psicoterapia.
Em termos de método, os métodos de cura de Bull Lodge eram interpessoais no sentido de que seus relacionamentos com os seres de Butte eram centrais. Gone contrasta essa abordagem com as intervenções comportamentais mais mecanicistas comuns na psicologia ocidental.
Do ponto de vista da pesquisa, existem muitos tipos diferentes de métodos que podem ser usados para estudar narrativas de vida e práticas de cura para obter uma compreensão mais rica dessas tradições dentro do contexto de sua cultura específica. Métodos de pesquisa, como pesquisa de arquivo e outras formas de investigação qualitativa, oferecem oportunidades para comparar essas tradições entre comunidades de IA e ao longo do tempo.
Gone invoca a obra do filósofo Michel Foucault para explorar como o poder está vinculado ao conhecimento e expresso por meio de instituições sociais que controlam o que é considerado normal e desviante. A psicoterapia muitas vezes visa assimilar os usuários do serviço em um senso psicocêntrico de self, com o domínio cultural geralmente sendo minimizado nas tentativas de “competência cultural“.
Descolonização em aconselhamento e psicoterapia significa prestar mais atenção a como o poder pode se manifestar dentro da psicoterapia entre indivíduos de culturas diferentes. O poder da Bull Lodge é exercido pela intenção de focalizar a vontade de trazer a própria vontade à realidade em comunhão com outros.
Para psicólogos dos serviços de saúde, reconhecer que as comunidades indígenas americanas podem ter entendimentos divergentes sobre cura e bem-estar requer sua integração com os serviços psicológicos que servem a essas comunidades. Como uma disciplina acadêmica e profissional, uma agenda descolonial em psicologia de serviços de saúde implicaria tanto conhecimento, prática, quanto treinamento.
Gone enfatiza que a descolonização como um processo que acontece dentro de um contexto colonizador-colonial para os povos indígenas americanos requer a repatriação das terras indígenas, considerando a importância do meio-ambiente para o bem-estar dos índios. A serviço da resistência indígena à colonização, os psicólogos do serviço de saúde devem ajudar as comunidades colonizadas a recuperar seus conhecimentos e a legitimá-los.
O ‘acompanhamento‘ das comunidades colonizadas exige que os psicólogos façam pesquisas a partir de uma orientação de ação mais participativa em vez de que os psicólogos assumam o papel de ‘especialista’. Os psicólogos também devem desnaturalizar a violência epistêmica decretada para colonizar ainda mais o outro. Uma posição descolonial na prática da psicologia dos serviços de saúde identificaria e trabalharia com curandeiros locais, legitimaria suas práticas e daria espaço para eles dentro dos serviços de saúde da comunidade. Isto também poderia incluir a colaboração com outros membros da comunidade para a prestação de serviços de psicologia da assistência em saúde.
A descolonização dentro do treinamento em psicologia de serviços de saúde incluiria o apoio a mais estudantes de comunidades colonizadas para o aprendizado da profissão de psicólogo. Programas e locais de treinamento trabalhariam na construção de relacionamentos com curandeiros locais para que eles pudessem compartilhar sua experiência com os estudantes. O currículo do treinamento poderia incluir exposição a tradições de cura não dominantes, aprendizagem de análise cultural e trabalho colaborativo com as comunidades.
Através da história de vida da carreira de cura de Bull Lodge, este trabalho fornece à psicologia dos serviços de saúde um exemplo de descolonização como uma estrutura para se envolver em atividades que promovam a libertação dos povos colonizados. Ao utilizar tal estrutura, a psicologia dos serviços de saúde pode alavancar seu conhecimento, prática e treinamento de disciplinas para avançar significativamente a justiça social de diversas maneiras com diferentes povos colonizados.
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Gone, J. P. (in press). Decolonization as methodological innovation in counseling psychology: Method, power, and process in reclaiming American Indian therapeutic traditions. Journal of Counseling Psychology.
A COVID-19 e as precauções de contenção de doenças provocaram mudanças radicais no modo como são prestados os serviços de saúde mental em escala global. Entre as mudanças mais aparentes está a mudança de pessoa para telepsicologia.
Em maio, uma equipe de pesquisadores liderada por Bradford Pierce da Virginia Commonwealth University pesquisou uma amostra nacional de 2.619 psicólogos formados nos EUA sobre suas abordagens à prática clínica no contexto do distanciamento social e das precauções de contenção da doença. Seus resultados, recentemente publicados no American Psychologist, identificaram a descoberta espantosa de que aqueles que faziam atendimento ambulatorial relataram um aumento de 26 vezes na telepsicologia em resposta à pandemia.
De todos os entrevistados da pesquisa, 67,32% indicaram que estavam realizando ativamente todo o seu trabalho clínico através da telepsicologia. Os resultados da pesquisa também forneceram uma variedade de insights convincentes sobre telepsicologia em relação a variáveis contextuais relevantes (ou seja, características demográficas dos clínicos). Eles sugeriram que muitos profissionais pretendem continuar a integrar bem os elementos da telepsicologia no futuro.
“Telepsicologia, de acordo com a APA, é o uso de qualquer uma das várias tecnologias de telecomunicações para prestar serviços psicológicos”, explicam os pesquisadores. “Portanto, os serviços de telepsicologia podem executar desde a gama de aplicativos de smartphone destinados a melhorar a adesão ao tratamento de pessoas com depressão e outras extensões de serviços presenciais até a provisão sincrônia de telepsicoterapia audiovisual”.
Durante o fechamento total [shutdown] em todo o país da China, foram feitas rápidas adaptações na área de saúde mental para atender às demandas preexistentes, além das necessidades emergentes decorrentes do aumento da ansiedade, estresse e depressão em torno da COVID-19 na população em geral. Plataformas como a WeChat e a TikTok foram aproveitadas por profissionais médicos para disseminar recursos de psicoeducação. Os médicos também utilizaram aplicativos e várias plataformas de telessaúde para aconselhamento e avaliação. Tendências similares têm sido observadas desde então em todo o mundo.
Como é destacado por Pierce e colegas, há uma série de aspectos positivos potencialmente associados à adoção rápida e generalizada de tecnologias para facilitar a telepsicologia. Por exemplo, a telepsicologia pode expandir as oportunidades de atendimento a populações historicamente mal atendidas. As iniciativas de telessaúde podem reduzir as barreiras de tempo e recursos para o atendimento. Para alguns pacientes, a terapia virtual e a avaliação podem ser experimentadas como menos incômodas do que as etapas necessárias para se envolver em apoio psicológico presencial.
Vantagens à parte, as iniciativas para agilizar a implementação de programas de telessaúde não têm sido perfeitas. As preocupações com a ética, privacidade, práticas de gerenciamento de dados e eficácia da prestação virtual de serviços de saúde mental justificam uma pesquisa contínua.
Dada a natureza nova e precária do cenário atual para a prática, muitos pesquisadores começaram a avaliar o que está funcionando com a mudança para serviços virtuais versus o que não está. O trabalho de Pierce e seus colegas lança luz sobre algumas das implicações imediatas para a prática entre psicólogos licenciados em meio à COVID-19, precauções de distanciamento e suas intenções futuras em relação à telepsicologia.
“A pandemia […] coincidiu com o que alguns chamaram de ‘revolução da telemedicina’, embora nenhuma pesquisa até hoje tenha examinado precisamente como o uso da telepsicologia pelos psicólogos mudou durante a pandemia, nem que variáveis podem explicar a mudança no uso”, escrevem os pesquisadores. “O objetivo deste estudo foi examinar (a) a quantidade de uso da telepsicologia pelos psicólogos antes da pandemia COVID-19, durante a pandemia, e o uso antecipado após a pandemia; bem como (b) os preditores demográficos, de treinamento, de política e de prática clínica dessas mudanças”.
Pierce e colegas recrutaram psicólogos por e-mail através de organizações profissionais, centros de aconselhamento, clínicas de saúde mental e grupos de notícias de psicologia para participar de sua pesquisa com itens demográficos e itens sobre telepsicologia. Suas perguntas se referiam a características pessoais, ambiente profissional e seu “uso da telepsicologia, treinamento e políticas organizacionais relativas a 20 de janeiro de 2020, quando o primeiro caso COVID-19 foi confirmado nos Estados Unidos”.
Os dados foram analisados em conjunto, assim como estratificados de acordo com as características demográficas/contextuais. Os respondentes (N = 2.619) eram predominantemente mulheres, com idade média de 57,29 anos.
“O gênero identificado como mulher, o ambiente de prática não-rural, o aumento das políticas organizacionais de apoio à telepsicologia e o aumento do treinamento em telepsicologia foram todos associados a aumentos na porcentagem de uso da telepsicologia. Idade e raça/etnicidade não esteram associadas a mudanças na prestação de serviços de telepsicologia”.
Consistentes com pesquisas anteriores, os resultados indicaram que muito poucos entrevistados se engajavam em muita telepsicologia em seu trabalho clínico antes de janeiro de 2020. A disseminação da COVID-19 contribuiu para um grande aumento no engajamento em telepsicologia, e muitos entrevistados indicaram que planejam sustentar este aumento (embora, em menor grau) mesmo quando a COVID-19 diminuir ser uma ameaça à saúde pública. Os psicólogos das comunidades rurais e aqueles fortemente engajados em testes e avaliações gostariam de mudar para uma abordagem virtual.
“No estudo atual, os psicólogos estimaram realizar 7,07% de seu trabalho clínico com telepsicologia antes da pandemia. Isto está em comparação com as estimativas dos psicólogos de que a telepsicologia compreendia 85,53% de seu trabalho clínico durante a pandemia, um aumento de mais de 12 vezes. Além disso, os participantes projetaram que 34,96% de seu trabalho clínico seria realizado via telepsicologia mesmo após o fim da pandemia, refletindo uma mudança importante nas atitudes em relação ao uso da telepsicologia”.
É necessária uma pesquisa mais abrangente para se estabelecer um quadro mais claro do que foi feito e, talvez o mais importante, do que tem funcionado neste clima de serviço distante. De acordo com os autores, a mudança radical para serviços virtuais pode ter facilitado uma rápida redução das barreiras ao fornecimento de telepsicologia (por exemplo, regulamentos de privacidade e segurança, reembolso, etc.). Entretanto, só porque a modalidade de serviço mudou rapidamente para atender a demandas sem precedentes, não significa que o refinamento seja desnecessário.
“As mudanças substanciais na porcentagem de uso da telepsicologia observadas no estudo atual sugerem que muitas das barreiras à telepsicologia anteriormente documentadas têm sido abordadas, pelo menos temporariamente, seja por mudanças de procedimento ou pelas necessidades imediatas dos pacientes e provedores durante a pandemia da COVID-19. Embora algumas mudanças facilitadoras possam ser de curta duração, estes resultados também mostram que os psicólogos planejam continuar usando a telepsicologia em taxas maiores no futuro em relação a antes da pandemia, sugerindo importantes mudanças de atitudes em relação ao uso da telepsicologia”.
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Pierce, B. S., Perrin, P. B., Tyler, C. M., Mckee, G. B., & Watson, J. D. (2020). A revolução da telepsicologia COVID-19: Um estudo nacional das mudanças baseadas na pandemia na prestação de cuidados de saúde mental nos EUA. Psicólogo americano. DOI:10.1037/amp0000722 (Link)
O mês de setembro é conhecido pela campanha “Setembro Amarelo” onde são realizadas diversas ações de conscientização em massa sobre a prevenção ao suicídio, juntamente com mídias sociais, entrega de folhetos, passeatas e outras ações públicas. Iniciada em 2014, com integrantes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em parceria com o Conselho Federal de Medicina – (CFM), o “Setembro Amarelo” tem como dia oficial, 10 de setembro, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Diante disso, faço o seguinte questionamento: que vida queremos valorizar?
De acordo com Brasil (2009, p.40) pode-se definir o suicídio como “ato humano de causar a cessação da própria vida” e a tentativa de suicídio consiste no “ato de tentar cessar a própria vida, porém, sem consumação”. Sabe-se que o suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. Por ser multifatorial engloba fatores sociais, econômicos, psicológicos, biológicos e, sobretudo, políticos. Precisamos falar sobre o suicídio, mas também precisamos falar sobre o “Setembro Amarelo”.
A narrativa do “Setembro Amarelo”, diversas vezes, vem acompanhada de uma positividade tóxica, com discursos de “você é especial”, “valorize a vida” ou “todos pela vida”, que podem ser geradores de gatilhos e culpabilização por quem sofre, além de reforçar, em sua maioria, valores mercadológicos que, muitas vezes, despotencializam e desvalorizam o verdadeiro significado de prevenção ao suicídio. Dessa forma, o interlocutor, no caso os profissionais de saúde ou especialistas na área e afins, não estão preparados para dispor de um diálogo aberto e, consequentemente, leva a não legitimação da dor de quem está sofrendo. Entre avanços e recuos do “Setembro Amarelo” é possível estabelecer críticas contundentes que visem construir um novo lugar social.
Em outras palavras, estamos falando de uma sociedade, que no atual contexto político e de contrarreforma psiquiátrica, exclui e segrega o ano todo. Mas, especificamente no mês de setembro se mostra compreensível e empática. É imperativo que falemos sobre o suicídio de forma ampla, isso quer dizer, compreender que o suicídio está associado a fatores como sofrimento psíquico, baixo nível educacional, desemprego, preconceito quanto as questões étnico-raciais, de gênero e orientação sexual, machismo, desigualdade social e violência. É fácil falar que devemos valorizar a vida, por meio de programas e postagens sensacionalistas, enquanto o atual contexto político se afunda cada vez mais em discursos opressores e individualistas e onde tentam sucatear o Sistema Único de Saúde (SUS), visando romancear a privatização da assistência. Todos os dias a sociedade morre um pouco, pois é difícil viver em um mundo sem esperança, com diluição de laços e desamparo social.
O sociólogo Émile Durkheim, em sua obra “O Suicídio” (1897), analisa muito bem o fenômeno do suicídio como um fato social, onde o elemento central é a coesão social. Para Durkheim (1973, p.16), “cada sociedade tem, a cada momento de sua história, uma aptidão definida perante o suicídio”. Nesse caso, o suicídio pode ser egoísta, mais comum em sociedades modernas onde o indivíduo não se sente pertencente a grupos sociais; suicídio altruísta quando é feito para defender uma sociedade coesa; e suicídio anômico quando o indivíduo perde as esperanças na sociedade devido a mudanças sociais e ausência de regras (ex: desemprego, crise econômica, etc.). Dessa forma, a teoria de que todo suicídio ocorre por alguém que, necessariamente, possui uma doença mental cai por terra. São múltiplas as influências extra-sociais e propriamente sociais que precisam ser compreendidas. Logo, a estatística dos 95% que diz que todas as pessoas que cometem suicídio possuem um transtorno mental é enviesada, já que o suicídio é multicausal.
Há que se reconhecer a importância do “Setembro Amarelo”. A campanha mobiliza inúmeras pessoas em um objetivo comum: o da prevenção. A ampliação do debate do fenômeno do suicídio constrói, de forma exponencial, a quebra de tabu sobre o assunto. Sem a campanha do “Setembro Amarelo” provavelmente seria mais difícil falar de suicídio. Entretanto, para uma pessoa o “Setembro Amarelo” pode funcionar. Mas para outras não. Isso vai de acordo com a realidade biopsicossocial de cada, sendo uma percepção individual. São escolhas. E só quem realmente sente e precisa é que sabe. No entanto, deve-se buscar desconstruir o modelo tradicional e (re)pensar outras formas de abordagens promovendo um processo de transformação social que ocorra o ano todo. No que tange aos profissionais de saúde e/ou outros divulgadores da campanha do “Setembro Amarelo”, é imperativo que divulguem e ofereçam ajuda dentro dos seus limites de atuação e de forma responsável e crítica, pois a dor de quem sofre é urgente. Cabe lembrar que qualquer ajuda não ajuda.
Pensar no fenômeno do suicídio no Brasil demanda mudanças estruturais. Uma das estratégias para se pensar em conscientizar a população sobre o suicídio são as estratégias de advocacy, pois visam fortalecer a democratização da sociedade em um processo de tomada de decisão. Nesse sentido, as propostas, as informações e os argumentos sobre prevenção ao suicídio deverão ser confiáveis e transparentes, com vistas a obter maior conscientização sobre uma causa e envolver outros atores formadores de opinião, inclusive o setor público para repensar políticas públicas relacionadas ao fenômeno do suicídio. Outro ponto importante é fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) incluindo uma lógica desinstitucionalizadora e antimanicomial. Essas medidas, se adotadas, terão forte potencial para fazer frente ao grave problema de saúde pública decorrente do suicídio no Brasil.
A crítica ao “Setembro Amarelo” é urgente para que possamos construir pontes sobre, mas também quebrar qualquer ideia obsoleta sobre o tema, compreendendo que o suicídio não é meramente relacionado a alguma doença mental, mas um problema coletivo com consequências sociais e extremamente danosas para o país. Cabe a nós a informação e a responsabilidade em divulgar essa informação.
Sem delongas, perante o contexto social e político em que estamos vivenciando, pensar em “Setembro Amarelo” requer estratégias globais e de fortalecimento de políticas públicas TODOS OS MESES DO ANO.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual instrutivo de preenchimento da ficha de notificação/investigação de violência doméstica, sexual e outras violências. Brasília: MS; 2009.
Há doze anos, Ronald Kavanagh – que na época era revisor de drogas psiquiátricas para a FDA – tornou-se um denunciante, dizendo ao Gabinete do Inspetor Geral que seus superiores na FDA estavam fechando os olhos para os riscos de um novo antipsicótico atípico, a asenapina, e fazendo isso em conluio com a Schering-Plough, a empresa que estava procurando comercializar o medicamento. Asenapina, argumentou ele, era ineficaz como tratamento para esquizofrenia e para pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados, e ainda assim a aprovação exporia esses dois grupos de pacientes a seus perigos, o que incluía um risco maior de morte.
Kavanagh foi logo despedido por seus esforços, e a asenapina foi aprovada como tratamento tanto para a esquizofrenia quanto para o bipolar I. O CEO da Schering-Plough, Fred Hassan, usou a aprovação iminente do medicamento para negociar uma fusão com a Merck, um acordo que trouxe a ele e a outros executivos da Schering-Plough mais de 100 milhões de dólares.
Kavanagh nunca desistiu de fazer as denúncias. Em 2012, ele entrou com uma ação judicial e, nos anos seguintes, escreveu cartas ao Presidente Obama, ao Presidente Trump e ao Senador Charles Grassley, nenhuma das quais lhe deu qualquer alívio. Em maio deste ano, ele renovou sua queixa mais uma vez, escrevendo aos membros do Congresso e ao Gabinete do Inspetor Geral.
Pode parecer que há poucos motivos para se revisitar a reclamação feita por ele, já que ela nunca ganhou nenhuma aceitação no Congresso, no gabinete do Inspetor Geral, ou nos tribunais. É improvável que, desta vez, a situação seja melhor. No entanto, uma revisão de documentos neste caso, incluindo as revisões da FDA do New Drug Application (NDA) para asenapinas, revela muito sobre a mentalidade da FDA na época e as normas que ela aplicou para aprovar um medicamento psiquiátrico. Os documentos apoiam as queixas de Kavanagh, incluindo provas de que a FDA minimizou – ou mesmo obscureceu – os riscos com o fármaco.
A queixa de Kavanagh também alegava que os efeitos colaterais potencialmente letais da asenapina eram comuns a outros antipsicóticos atípicos que, como a asenapina, tinham se mostrado ineficazes para pacientes bipolares com sintomas leves a moderados. Ele advertiu que o uso de atípicos levaria a 5.000 ou mais mortes a cada ano em tais pacientes, e há evidências de que esta preocupação provou ser verdadeira. Ele também advertiu que a asenapina e outros atípicos poderiam causar mortes em recém-nascidos cujas mães foram expostas a esses medicamentos durante a gravidez, e os registros do FDA Medwatch revelam que houve um número de bebês com menos de dois anos de idade que morreram devido à exposição a um antipsicótico atípico.
Asenapina
Asenapina foi sintetizada pela empresa farmacêutica Organon nos anos 80. Depois que Organon conduziu testes de fase inicial do medicamento, em 2003 celebrou um acordo de co-marketing com a Pfizer, que então assumiu a liderança na condução de testes de fase III da asenapina como tratamento tanto para a esquizofrenia quanto para o transtorno bipolar I. A Pfizer havia pago à Organon 100 milhões de dólares quando negociou o acordo, mas depois de analisar os resultados da fase III, que não forneceram provas “conclusivas” de eficácia, retirou-se do acordo em novembro de 2006.
Entretanto, a Organon continuou a desenvolver o medicamento e, na primavera de 2007, o CEO da Schering-Plough, Fred Hassan, negociou um acordo para comprar a Organon de sua empresa-mãe, AkzoNobel, por US$ 14,4 bilhões. A Organon tinha vários compostos em fase final de desenvolvimento, e Hassan percebeu que a asenapina tinha um valor particular desde que a Organon estava se preparando para apresentar um Novo Pedido de Droga (NDA) para ela. A Organon protocolou seu NDA em 31 de agosto de 2007 e, em novembro, Schering-Plough completou o acordo.
Naquele momento, Hassan precisava que a FDA aprovasse a asenapina, e ainda que ele estivesse fechando a compra do Organon, ele começou a pressionar a FDA para fazer exatamente isso, dizendo à revista Fortune que “quando os burocratas ficam sob pressão, eles tendem a escolher o caminho de pedir mais dados, ao invés de aprovar o medicamento”. Sua mensagem política era clara: uma FDA que não aprovasse rapidamente novas aplicações de medicamentos estaria lançando obstáculos no caminho dos negócios americanos.
O registro de Hassan como CEO
Antes de sua aquisição da Organon, Fred Hassan havia sido festejado por haver mudado a sorte de duas empresas farmacêuticas que ele havia liderado: A Pharmacia e a Schering-Plough. Em ambos os casos, ele e suas empresas o fizeram escondendo os efeitos adversos de seus medicamentos mais vendidos, o que posteriormente levou a uma investigação no Congresso, processos judiciais e acordos multimilionários e multas.
Fred Hassan
Hassan foi contratado como CEO da Pharmacia and Upjohn em 1997. Dois anos depois, ele negociou uma fusão com a Monsanto, que tinha um novo medicamento que acabara de chegar ao mercado, o Celebrex. Essa era a droga que poderia resgatar Pharmacia.
A Monsanto que tinha feito um marketing conjunto Celebrex com a Pfizer, e agora Pharmacia juntamente com a Pfizer, disse ao público que este inibidor da Cox-2, um anti-inflamatório não esteroide para tratamento da dor, não causava um aumento do risco de eventos cardiovasculares, incluindo ataques cardíacos e derrames. As duas empresas fizeram esta afirmação, embora os resultados de um ensaio clínico, de que tinham conhecimento desde 1999, tivessem mostrado o contrário. A ocultação deste risco potencialmente mortal mostrou-se rentável para ambas, com as vendas da Celebrex totalizando 10,2 bilhões de dólares de 1999-2003.
As duas empresas lançaram um segundo inibidor da Cox-2 (Bextra) no mercado em 2002 e, mais uma vez, falaram ao público sobre um medicamento que não aumentava o risco de eventos cardiovasculares. Hassan vendeu com sucesso a Pharmacia para a Pfizer por US $ 62 bilhões no final de 2002.
Pouco mais de um ano depois, ficou conhecido que as duas empresas haviam escondido os riscos cardiovasculares do público. A Bextra foi retirada do mercado, e a FDA, em 2005, colocou um aviso de tarja negra no Celebrex. A Pfizer passou então anos respondendo a processos, afinal pagando 894 milhões de dólares a pacientes prejudicados pelos dois medicamentos; outros 486 milhões de dólares a investidores que compraram ações da Pharmacia e da Pfizer de 2000 a 2003; e uma multa de 2,3 bilhões de dólares ao governo federal para dirimir acusações criminais por sua comercialização fraudulenta do Bextra e de outros medicamentos.
Em 1999, depois de negociar a venda da Pharmacia, Hassan – contratado pela Schering-Plough em abril de 2003 para ser seu CEO – foi escolhido pelo Financial Times como o CEO do Ano por seu sucesso nessa empresa. Este foi visto como sendo um período difícil para a Schering-Plough, pois a patente de seu medicamento mais vendido, o Claritin, havia se esgotado em dezembro de 2002. O futuro da empresa era agora visto como estando ligado à Zetia (ezetimibe), um medicamento para baixar o colesterol que havia sido aprovado recentemente pela FDA. “O sucesso do Sr. Hassan pode depender de sua capacidade para levantar a Zetia”, relatou o Wall Street Journal.
Estatinas como Lipitor e Crestor, que eram drogas de bilhões de dólares, inibiam a produção de colesterol LDL no corpo, que por sua vez havia demonstrado retardar a arteriosclerose, o acúmulo de placa nas paredes arteriais e que leva a ataques cardíacos e derrames. Ezetime trabalha de uma maneira ligeiramente diferente. Inibe a absorção do colesterol intestinal. Embora reduza os níveis de colesterol LDL, não foi demonstrado ser tão eficaz quanto as estatinas a esse respeito, e tampouco foi demonstrado que esse método de redução do colesterol LDL retarde a arteriosclerose.
Pouco antes da chegada de Hassan, Schering-Plough havia se unido à Merck para lançar um ensaio clínico chamado ENHANCE, que foi projetado para testar se um medicamento que combinava Zetia com o Zocor (simvastin) da Merck seria mais eficaz do que uma estatina sozinha para reduzir o acúmulo de placa bacteriana. Simvastin era uma estatina que havia perdido a patente, e sua esperança era que o ensaio ajudasse a fazer seu medicamento combinado, o Vytorin, o medicamento número 1 para baixar o colesterol. Em 2004, antes da conclusão do ensaio ENHANCE, as empresas obtiveram a aprovação da FDA para comercializar Vytorin com base em seus efeitos de redução do colesterol.
No final de 2005, as duas empresas analisaram os resultados dos primeiros inscritos em seu estudo e descobriram que não havia diferença entre os dois braços do estudo. O cego não tinha sido quebrado, mas com este resultado não importava qual braço era a droga combinada e qual era a estatina sozinha – o fato de não haver diferença entre os dois braços significava que a adição de ezetibime ao simvastin não tinha proporcionado nenhum benefício. O ensaio clínico foi concluído em abril de 2006, e não muito tempo depois disso, Schering-Plough e Merck sabiam definitivamente que Vytorin havia falhado no teste.
ENHANCE foi um estudo de alto nível, e a comunidade cardiológica, assim como a comunidade de investimentos, esperava que os resultados fossem anunciados na reunião do outono de 2006 da Associação Americana dos Cardiologistas. Essa reunião passou sem anúncio, e assim também as reuniões de primavera e outono da associação em 2007. Durante esses 18 meses, Hassan e Schering-Plough, juntamente com a Merck, promoveram de forma ativa a eficácia da Vytorin.
“A história de baixar (colesterol) é melhor continuar”, disse Hassan aos investidores no outono de 2007. “A ciência médica em evolução continua a descobrir que atingir metas cada vez menores para o LDL é melhor para os pacientes e Vytorin e Zetia fornecem opções muito boas”.
As duas empresas encheram as rotas aéreas com anúncios em 2006 e 2007 contando como Vytorin tinha sido aprovado em estudos clínicos para baixar mais o colesterol do que o alcançado pelo Lipitor da Pfizer e o Crestor da AstraZeneca. Os pronunciamentos públicos funcionaram: Vytorin e Zetia geraram US$ 3,87 bilhões em vendas globais em 2006 e US$ 5,2 bilhões em 2007, que produziram quase 70% dos lucros da Schering-Plough naquele ano.
Hassan foi muito bem recompensado por este sucesso comercial. Além de seu salário regular, seu contrato de CEO previa vários prêmios em dinheiro e ações com base no desempenho financeiro da empresa em 2007. Os escritórios de advocacia que posteriormente processaram Schering-Plough e Merck por fraude calcularam que Hassan recebeu bônus de desempenho em 2007 no valor de $38,9 milhões. Outros executivos também receberam bônus de um milhão de dólares, com um executivo vendendo $28 milhões de ações da Schering-Plough enquanto seu preço estava voando bem alto.
Entretanto, Hassan e os outros executivos da Schering-Plough e da Merck não conseguiram manter esta história fraudulenta para sempre. Quando as duas empresas não anunciaram os resultados do julgamento ENHANCE na reunião de outono de 2007 da Associação Americana dos Cardiologistas, o Congresso iniciou uma investigação, pedindo-lhes que produzissem registros até dezembro. Como primeira resposta, as duas empresas – como o Wall Street Journal mais tarde relatou – “criaram a ata de uma reunião crucial sobre um grande estudo a respeito do seu medicamento para o colesterol” para encobrir seus rastros. Finalmente, em 14 de janeiro de 2008, a empresa anunciou os “resultados preliminares” do julgamento ENHANCE, reconhecendo que a Vytorin não havia demonstrado nenhum “benefício estatisticamente significativo” em relação ao placebo.
Os procuradores gerais de Nova York e Connecticut anunciaram que estavam lançando uma investigação e, em 31 de março de 2008, as duas empresas apresentaram os resultados em uma conferência do American College of Cardiology, com a publicação no mesmo dia no New England Journal of Medicine. Vytorin tinha produzido “nenhum resultado-zilch”, disse o investigador principal John Kastelein. “Em nenhum subgrupo, em nenhum segmento, houve qualquer benefício adicional”.
Cinco anos mais tarde, a Merck pagou US$ 688 milhões para resolver ações de investidores que compraram ações em uma das duas empresas enquanto elas escondiam os resultados do estudo ENHANCE. Mas nessa época, Hassan – com muitos milhões no bolso pelos seus prêmios de desempenho – já estava noutra, e agora ele tinha o objetivo de obter a aprovação da asenapina. Este medicamento, ele disse aos investidores, seria um “sucesso de bilheteria“.
Erguendo bandeiras vermelhas na FDA
Ron Kavanagh, que tinha vindo trabalhar na FDA em 1998, era um especialista em farmacologia clínica, no estudo de como os agentes químicos são absorvidos e metabolizados e suas possíveis toxicidades. Ele havia obtido seu PhD na Universidade do Texas e um PhD na Universidade de Washington, estudando cinética de drogas e farmacodinâmica. Após terminar esse treinamento, ele foi trabalhar para a Merck em sua divisão de assuntos regulatórios internos. “Meu trabalho era conseguir a aprovação de medicamentos e a aprovação com agências reguladoras em todo o mundo”, disse ele.
Ron Kavanagh
Depois de entrar para a FDA, ele frequentemente dava palestras e apresentações para revisores da FDA e pessoal médico sobre como as empresas farmacêuticas desenvolviam medicamentos e os testes farmacológicos que uma empresa precisava realizar.
Seus primeiros anos na FDA o ensinaram a ter cuidado com as novas drogas investigadas. Ele começou na divisão endócrina da agência, onde trabalhou com um colega que tinha detectado toxicidade causada por um duo de drogas para obesidade, fenfluramina e dexfenfluramina, o que levou à sua proibição em 1997.
Em seguida, ele se mudou para a divisão gastrointestinal, onde analisou o Lotronex (alosetron hydrochloride), que deveria ser comercializado para a síndrome do intestino irritável nas mulheres. Kavanagh pensou que havia evidências de que a droga poderia causar colite isquêmica, um efeito colateral potencialmente fatal. Embora a droga tenha sido aprovada em 2000, ela foi retirada do mercado um ano depois de seu uso ter levado a cinco mortes.
O recall da FDA do medicamento, escreveu o editor da Lancet Richard Horton, “revela não apenas falhas perigosas no processo de aprovação e revisão de um único medicamento, mas também o quanto a FDA – seu Centro de Avaliação e Pesquisa de Medicamentos em particular – se tornou um servidor da indústria”.
Kavanagh foi então transferido para a divisão de drogas neuro e psiquiátricas, onde revisou o NDA da Eli Lilly para Cymbalta (duloxetina). Ele alertou sobre possíveis problemas hepáticos que poderiam ser esperados com esta droga, uma preocupação que Eli Lilly “não levou em conta”, disse ele.
Em seguida, ele analisou o bifeprunox, um antipsicótico atípico semelhante ao aripiprazol em seu mecanismo de ação, pois tinha um efeito misto agonista/antagonista tanto nos receptores dopaminérgicos quanto nos receptores serotonérgicos. Entretanto, o bifeprunox causava um inchaço no cérebro e outras toxidades que levavam à morte nos ensaios clínicos, e em 2007, graças em parte à revisão de Kavanagh, o medicamento não foi aprovado.
Mesmo assim, naquela época, Kavanagh estava se tornando persona non grata na FDA. Grandes empresas reclamavam com frequência de sua revisão crítica de suas drogas, e ele também se tornou cada vez mais crítico em relação à FDA. Em 2005, ele começou a levar suas alegações ao Congresso, falando ao Comitê Financeiro do Senado sobre “corrupção na divisão psiquiátrica e no Escritório de Farmacologia Clínica e outros escritórios da FDA”. Ele também ficou incomodado com a comercialização de medicamentos psiquiátricos não rotulados, particularmente para seu uso em crianças, e em 2007, ele foi temporariamente suspenso e lhe foi dito para parar seus esforços de denúncia se ele quisesse continuar trabalhando lá.
Depois que a Organon protocolou seu NDA em agosto de 2007 (a Schering-Plough ainda não havia fechado a sua aquisição da empresa), a FDA foi obrigada a avaliar se a empresa havia realizado os estudos farmacológicos necessários – a biodisponibilidade do medicamento, como ele era metabolizado, as possíveis toxicidade dos metabólitos e assim por diante – o que permitiria uma revisão substantiva. Em outubro, Kavanagh recomendou que devido a uma “falta de validação dos ensaios em estudos farmacocinéticos”, o NDA não era passível de revisão.
Este acabou sendo o primeiro tiro no que viria a ser uma guerra com seus superiores na FDA por causa da asenapina. O diretor da divisão de psiquiatria do Centro de Avaliação e Pesquisa de Drogas da FDA, Thomas Laughren, o rejeitou, o que significava que o processo de revisão – avaliando a eficácia e a segurança dos resultados dos ensaios – iria agora ocorrer.
A eficácia dos Dados
Esquizofrenia
Organon conduziu quatro testes de seis semanas de asenapina como tratamento para a esquizofrenia. Os pacientes recrutados para os ensaios foram retirados de qualquer antipsicótico que estivessem tomando e randomizados para asenapina, placebo ou um medicamento comparador. O principal desfecho foi a redução dos sintomas, medida pela Escala de Síndrome Positiva e Negativa. A PANSS avalia 30 sintomas em uma escala de 1 a 7, o que significa que a pontuação total pode variar de 30 a 210. Os pacientes também poderiam receber medicamentos concomitantes durante o estudo: zolpidem, zalepam, hidrato de cloral, benzodiazepina e medicamentos anticolinérgicos para tratar os efeitos colaterais extrapiramidais.
Nos quatro testes, houve um total de seis ensaios clínicos de asenapina versus placebo: três ensaios de uma dose de 5 mg (administrada sublingualmente duas vezes ao dia); dois ensaios de uma dose de 10 mg duas vezes ao dia, e um ensaio de um programa de dosagem flexível (de 5 mg a 10 mg). Em quatro dos seis ensaios, a cenapina falhou em ser melhor que o placebo. No quinto, uma dose de 5 mg forneceu uma superioridade “estatisticamente significativa” sobre o placebo, mas o medicamento comparador -risperidona- não, e quando o medicamento comparador em um ensaio falhou em relação ao melhor placebo, o estudo é considerado como tendo fracassado. Como um artigo de 2008 publicado na revista Psychiatry explicou, “Nenhuma conclusão pode ser tirada sobre o medicamento investigado em um estudo fracassado”.
Assim, houve apenas um exemplo de seis tentativas – onde apareceu um achado positivo “significativo” para a asenapina. E nesse caso, a diminuição do PANSS foi de 16,2 pontos para a dose de 5 mg, 14,9 para a dose de 10 mg, 15,4 para o haloperidol e 10,7 para o placebo. Embora não houvesse praticamente nenhuma diferença na redução dos sintomas entre as doses de 5 mg e 10 mg de asenapina (1,3 pontos em uma escala de 210 pontos), a dose de 5 mg apenas ultrapassou a linha de “significância estatística” em relação ao placebo, enquanto que a dose de 10 mg não o fez. Um total de 70 pacientes no grupo de 114 aleatorizados para a dose de 5 mg completaram o ensaio de seis semanas.
Tais eram os dados de eficácia. O fato de que eram permitidos medicamentos concomitantes – três sedativos diferentes, um medicamento antiansiedade e um tratamento para os sintomas de Parkinson – também significava que não tinha havido nenhum teste de asenapina como monoterapia para sintomas psicóticos.
Finalmente, os pesquisadores determinaram que deve haver pelo menos uma diferença de 15 pontos na escala PANSS entre o medicamento e o placebo no final do ensaio para que um medicamento proporcione um benefício “clinicamente significativo”. No entanto, nos quatro ensaios clínicos, não houve um único caso em que qualquer dose de asenapina tenha se aproximado deste padrão.
Bipolar I
Organon realizou dois estudos de três semanas de asenapina, ambos em dose flexível de 5 mg a 10 mg (duas vezes ao dia), como tratamento para episódios maníacos e mistos em pacientes bipolares 1. O principal desfecho foi a redução dos sintomas na Jovem Escala de Classificação de Mania (YMRS). Esta é uma escala de 60 pontos, e neste estudo, os inscritos tiveram que ter pontuação de base maior ou igual a 20.
Em ambos os estudos, a asenapina foi vista como proporcionando um benefício estatisticamente significativo em relação ao placebo. A diferença entre os dois grupos em um estudo foi de 3,7 pontos na escala YMRS e, no outro, de 5,3 pontos. Entretanto, em ambos os estudos, o medicamento comparador, olanzapina, proporcionou uma redução maior dos sintomas do que a asenapina.
Quanto ao benefício real deste medicamento para bipolar, os pesquisadores concluíram que é necessária uma diferença de 6,6 pontos na escala YMRS para que um medicamento proporcione um benefício “clinicamente significativo” em relação ao placebo. Asenapina não atingiu este padrão em nenhum dos dois ensaios.
Resumo dos dados de segurança
Nos seis estudos controlados por placebo (quatro para esquizofrenia e dois para bipolar), havia 2.251 pacientes que haviam sido expostos à asenapina. Onze morreram e 14% sofreram um evento adverso grave (risco de vida ou necessidade de hospitalização). Setenta e oito por cento sofreram um evento adverso de algum tipo; os efeitos colaterais mais comuns foram sedação, tonturas, ganho de peso, sintomas extrapiramidais e dormência oral.
A Organon também havia realizado uma série de estudos não controlados, e assim o banco de dados de segurança completo consistia de 3.457 pacientes expostos à asenapina. Vinte e dois haviam morrido, incluindo oito por suicídio. Oito haviam morrido por eventos cardíacos e respiratórios, e um por morte neonatal. O bebê morreu horas depois de nascer prematuro, às 32 semanas, para uma mulher no ensaio que tinha sido tratada com asenapina.
Revisão de Kavanagh
Embora Kavanagh tivesse declarado anteriormente que a Schering-Plough não havia fornecido informações suficientes para conduzir uma revisão farmacológica adequada, na primavera de 2008 foi-lhe atribuída a responsabilidade de fazer exatamente isso como parte da avaliação geral da eficácia e segurança da asenapina feita pela FDA.
Desde cedo, Kavanagh observou que os dados de eficácia da esquizofrenia não eram convincentes, particularmente quando os quatro estudos – e seis testes de asenapina – eram vistos como um corpo coletivo de provas.
À primeira vista, parecia que os resultados dos estudos com bipolares eram convincentes e passavam facilmente no padrão “dois testes positivos” para aprovação na FDA. Entretanto, Kanavagh analisou os dois estudos para bipolares, dividindo os pacientes em “quintis” com base na gravidade de seus sintomas na linha de base, e descobriu que em pacientes com sintomas bipolares leves a moderados (nota YMRS inferior a 27), o medicamento não havia proporcionado nenhum benefício. A taxa de melhora no grupo placebo e neste subgrupo de pacientes bipolares foi praticamente idêntica durante as três semanas.
Como tal, a equação de risco-benefício para pacientes esquizofrênicos e para cerca de 50% de todos os pacientes bipolares I era evidente. Eles estariam expostos aos perigos desta droga sem nenhum benefício e, portanto, o tratamento certamente faria mais mal do que bem.
Havia muitas preocupações evidentes no banco de dados de segurança: riscos cardíacos, toxicidade hepática, deficiências renais e assim por diante. E havia uma outra preocupação nova para Kavanagh. Ele havia conversado com um antigo revisor da FDA que havia ido trabalhar para a indústria e tinha experiência com asenapina, e este “informante” o havia avisado que era problemático porque agia como um “agonista inverso” do receptor 5HT2B (um receptor para serotonina). A estimulação deste receptor pelo fen-fen tinha sido identificada como uma possível causa de hipertensão arterial pulmonar (HAP) e estenose da válvula cardíaca. Isto levou Kavanagh a se preocupar que a HAP pudesse levar a abortos espontâneos e a um aumento de mortes neonatais para bebês em amamentação.
Kavanagh então concentrou sua atenção nos registros de morte dos estudos com asenapinas, revendo o formulário de relato de caso para cada um deles. Estes são os formulários que os investigadores de cada local preenchem para cada paciente, que são então resumidos pela empresa farmacêutica em um resumo de segurança em seu NDA. Kavanagh também revisou os estudos com animais e estudos com voluntários saudáveis que se espera que identifiquem possíveis toxicidades de medicamentos.
Esta investigação o levou a identificar uma série de preocupações de segurança. Ele também descobriu casos específicos em que parecia que Schering-Plough havia obscurecido os possíveis riscos com asenapinas, ou os encoberto.
Mortes Neonatais
Embora o caso de morte neonatal tenha aparecido no resumo de segurança, ele não havia sido assinalado nas revisões médicas preliminares da FDA como motivo de preocupação real. Foi dito que a mãe tinha tido abortos espontâneos anteriores, e a ideia era que isso explicava a morte da criança, mesmo que o investigador que havia tratado a mulher tivesse declarado que a morte do bebê estava “possivelmente relacionada” à asenapina.
Os estudos com animais deram motivos para pensar que este poderia ser o caso. Tanto em ratos quanto em coelhos, a exposição à asenapina durante a gravidez havia levado a um aumento “da perda pós-implantação em todas as doses”, o que significa que houve um aumento das mortes dos filhotes fetais antes do nascimento. Nos estudos com ratos, houve também um aumento acentuado de “mortes prematuras de filhotes” até o “dia 21 pós-parto”.
Além disso, os estudos com animais alertaram sobre outros riscos congênitos – anormalidades na formação óssea e tecidos conjuntivos, e – em uma única cria – um defeito cardíaco.
Estas descobertas não haviam sido mencionadas nas revisões de segurança que Kavanagh havia lido até aquele momento. Este era, pensou Kavanagh, um caso onde um possível risco tóxico havia sido deliberadamente obscurecido quando a Schering-Plough arquivou seu NDA.
Mortes Cardíacas
Havia oito pacientes expostos à asenapina que haviam morrido devido a eventos cardíacos e respiratórios. Embora a FDA, em suas revisões preliminares, não tenha identificado essas mortes como possivelmente relacionadas à asenapina, descobriu-se que o medicamento causou prolongamento do QT em alguns pacientes, o que significava que seus corações estavam demorando mais do que o normal para recarregar entre batimentos. Isto era um sinal de alerta de possíveis danos cardíacos.
Enquanto Kavanagh vasculhava os estudos com voluntários saudáveis, ele descobriu que, em um caso, um homem de 27 anos, descrito como apto e não fumante, teve uma parada cardíaca após receber asenapina. “Não há dúvida de que ele se tornou assistólico e, como se observou, era necessário realizar massagem cardíaca para sustentar o débito”, escreveu o cardiologista da empresa, Graham Jackson, em um relatório de dezembro de 1991. “Isso quase certamente deve ser classificado como um efeito induzido por drogas com sendo um sério efeito adverso no sistema de condução do coração”.
No entanto, a Schering-Plough havia descrito esse incidente de forma diferente em seu resumo dos testes voluntários saudáveis. A descrição ali relatada de um homem de 27 anos que havia sofrido um episódio de “bradicardia reflexa neuralmente mediada”, que, escreveu um revisor do FDA, “é um evento benigno, autolimitado e a causa mais comum da síncope vasovagal”.
Estas descrições falam de dois eventos muito diferentes. A assistolia é descrita nos dicionários médicos como um “ritmo de parada cardíaca sem atividade elétrica discernível no monitor de eletrocardiograma”. O coração não está funcionando. É uma condição de risco de vida que requer ação imediata”. A síncope vasovagal é descrita nos dicionários médicos como o que “ocorre quando você desmaia porque seu corpo reage exageradamente a certos estímulos, tais como a visão de sangue ou extrema angústia emocional”.
Para Kavanagh, este foi um segundo caso de corrupção: uma parada cardíaca em um voluntário saudável havia se transformado no NDA em um episódio de desmaio.
Anafilaxia
Quando Kavanagh analisou os formulários de relato de caso para as 22 mortes, ele encontrou um que contava de uma mulher de 57 anos com esquizofrenia que, após ser tratada com asenapina por 470 dias, sofreu um “edema de Quincke”. Esta é uma reação alérgica que causa um inchaço na parte de trás da garganta ou úvula que pode fechar as vias aéreas superiores, e o relato do caso contou que a mulher esteve em um ventilador por quatro dias depois de ter sofrido esta “falha respiratória”.
No entanto, o sumário de segurança para esta mulher não revelou haver ocorrido uma possível reação alérgica. Ele simplesmente afirmou que ela desenvolveu “insuficiência respiratória súbita… a causa da morte foi embolia pulmonar”.
Suicídios
Houve oito suicídios nos 3.451 pacientes que foram expostos à asenapina nos estudos de curto e longo prazo do medicamento (em comparação com nenhum suicídio nos 706 pacientes placebo nos ensaios de curto prazo). Cinco dos oito haviam ocorrido nos 33 dias seguintes à exposição inicial ao medicamento: dois por enforcamento, dois por saltos para a morte e o quinto por um método desconhecido.
Esta erupção de suicídios dentro de um mês após a exposição à asenapina pode ser vista como um sinal de suicídio devido à acatisia induzida por drogas. A acatisia é um fator de risco conhecido para o suicídio, e o resumo de segurança de fato declarou que 1 em 16 pacientes expostos à asenapina haviam experimentado este efeito adverso.
Além disso, Kavanagh raciocinou, este medicamento agia sobre o sistema serotonérgico, assim como os antidepressivos SSRI que haviam sido encontrados pela FDA para aumentar o risco de comportamento suicida em crianças e adolescentes. Esta era outra preocupação a ser assinalada e a mais investigada.
Entretanto, os revisores da FDA, seguindo a orientação do resumo de segurança da Schering-Plough, estavam tratando esses suicídios como um risco inerente à “doença” (esquizofrenia e bipolar). Havia quatro suicídios naqueles tratados com olanzapina, e uma vez calculada a taxa de suicídio de acordo com os “anos-paciente” de cada droga, era a mesma para ambos: 1,3 suicídios por 100 anos-paciente. A olanzapina já estava no mercado há mais de uma década e, portanto, o suicídio não parecia ser uma preocupação particular para esta droga.
Isto é um efeito de classe?
Após Kavanagh ter avaliado a eficácia da asenapina para bipolar, descobrindo que ela não proporcionava nenhum benefício para conter a mania em pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados, ele examinou os dados de eficácia de vários outros atípicos que haviam sido testados para bipolar I: Zyprexa, Risperdal, Geodon, e Invega. Ele descobriu que o padrão se aplicava também a esses medicamentos: Eles eram ineficazes para aqueles com sintomas leves a moderados.
Como tal, Kavanagh viu agora um processo de revisão que levou vários atípicos a serem aprovados para um diagnóstico, mesmo que 50% dos pacientes bipolares I não recebessem nenhum benefício e estivessem expostos aos muitos perigos desses medicamentos. Estes medicamentos tinham uma caixa negra avisando que aumentavam o risco de morrer em idosos, e também era bem conhecido que os atípicos podiam induzir disfunções metabólicas que aumentavam o risco de morte precoce. No mínimo, argumentou Kavanagh, a FDA deveria colocar esta informação – que a asenapina era ineficaz para aqueles com sintomas bipolares leves a moderados I – no rótulo, e adicioná-la aos rótulos também para os outros atípicos.
Kavanagh delata
A revisão da farmacologia clínica feita por Kavanagh sobre asenapinas estava prevista para 15 de maio de 2008, e pelo menos uma semana antes disso ele havia soado um alarme, afirmando em uma grande reunião de escritório que ele achava que este medicamento era perigoso e largamente ineficaz, e que Schering-Plough havia procurado esconder os riscos. Enquanto seu relatório de 520 páginas estava repleto de detalhes técnicos sobre a biodisponibilidade da droga, como ela era metabolizada, e assim por diante, Kavanagh tinha um histórico pessoal que estava ajudando a alimentar sua oposição a esta droga.
Ele mesmo admitiu que sofria de “doença mental”. Ele havia sofrido mais de uma dúzia de episódios de depressão, incluindo uma hospitalização, e não havia encontrado antidepressivos que fossem particularmente úteis. Quando tinha cerca de 40 anos de idade, ele contou a um psiquiatra de uma época de sua vida em que havia se apaixonado, descrevendo-a como um período de grande felicidade. O psiquiatra viu isso como evidência de mania e diagnosticou Kavanagh simplesmente como bipolar. Embora Kavanagh não concordasse com o diagnóstico e não tomasse nenhum medicamento para bipolar, ele falou sobre esta vulnerabilidade pessoal quando levantou suas queixas sobre a asenapina na FDA.
Como ele escreveu mais tarde: “Eu também disse que o medicamento, assim como outros, poderia ser usado não apenas para o que estava sendo desenvolvido atualmente, mas no futuro também poderia ser aprovado para doenças de que eu ou meu filho sofremos, ou com as quais fui mal diagnosticado (o que é comum para pessoas com doenças psiquiátricas), ou que poderia ser promovida para uso ou usada fora do rótulo para nossas doenças e por isso fomos pessoalmente afetados por isso”.
Em 16 de maio, ele escreveu aos seus superiores na FDA que estava mudando sua recomendação para “não aprovação”. Ele estava preocupado com as mortes nos ensaios clínicos e declarou que acreditava que essa toxicidade era “mediada pelo agonismo do receptor 5HT2B”. Além disso, ele escreveu que havia provas de que o “patrocinador sabia desta toxicidade e especificamente tentou evitar que a detectássemos”. E, finalmente, havia o dano que viria do uso fora do rótulo da asenapina.
“Simplesmente não acredito que haja nada que possamos fazer que eduque adequadamente médicos e pacientes para os riscos e que, com o uso não rotulado, estaremos diante de uma epidemia de toxicidade cardíaca e pulmonar potencialmente letal em crianças daqui a vários anos”, escreveu ele.
Uma semana mais tarde, com suas emoções se intensificando, ele enviou um e-mail a Janet Woodcock, diretora do Centro de Avaliação e Pesquisa de Drogas, para informá-la de uma “iminente preocupação de saúde pública” relacionada à asenapina e à prescrição de atípicos já aprovados para pacientes bipolares com sintomas mais leves.
Ele a advertiu que estava pronto para sair da agência com suas reclamações. “Notifiquei a divisão clínica da aparente atividade criminosa do patrocinador (isto é, não relatar eventos adversos graves e mortes, conforme necessário), e solicitei uma investigação criminal”, disse ele a Woodcock. “No entanto, a divisão clínica aparentemente tentou encobrir isto”.
Essa última frase certamente o colocaria em situação muito complicada frente aos seus colegas, e em 30 de maio, Kavanagh escreveu a Woodcock que seus superiores estavam “intimidando-o” e que ele não confiava mais no “processo” interno da agência para responder às suas reclamações. A partir deste ponto, ele lhe disse: “Prefiro lidar com o Congresso”.
A agência, ele disse, não estava fazendo seu trabalho.
“Não gosto do que tem acontecido nos últimos anos. Com base em minha experiência, acredito que o processo de revisão passou (pelo menos no nível de revisor) de compartilhamento, colaborativo, eficiente e tentando tomar decisões equilibradas para não ficar atolado na burocracia, revisores apenas cortando e colando o que os patrocinadores dizem sem avaliação crítica, sendo grosseiramente ineficiente, cortando isso ou aquilo apenas para dar conta de prazos e para evitar ser retaliado, e todos sendo defensivos”.
Kavanagh entrou em contato com o Escritório do Inspetor Geral e Senador de Iowa Charles Grassley. Em junho, ele apresentou duas emendas à sua revisão de 15 de maio, detalhando e documentando suas preocupações. Seus colegas da FDA, ele escreveu em 30 de junho, foram “cúmplices” da Schering-Plough na atividade criminosa.
Então ele sabia que seu futuro com a FDA havia terminado. “Quando comecei a levantar estas questões de segurança no início de maio, eu sabia que este era o fim de minha carreira”, disse ele.
A FDA de Thomas Laughren
Ao ir ao Congresso para apresentar as denúncias, Kavanagh estava apresentando a aprovação iminente da agência de asenapina como um desvio da norma. No entanto, havia um registro de 20 anos de aprovação de medicamentos psiquiátricos que mostrava que este não era o caso. Sob a liderança de Thomas Laughren, a FDA tinha um histórico de aprovação de medicamentos psiquiátricos que eram, na melhor das hipóteses, de eficácia marginal, e um histórico de fazê-lo sabendo que a empresa patrocinadora tinha procurado esconder, ou pelo menos obscurecer, os efeitos colaterais do medicamento.
Dada esta história, que foi bem documentada, as acusações de Kavanagh neste caso foram realmente uma acusação contra os procedimentos operacionais padrão da FDA, pelo menos na divisão psiquiátrica. E a Asenapine NDA não foi um caso particularmente grave.
Laughren tinha vindo para a FDA em 1985, servindo pela primeira vez como líder de equipe na Divisão de Produtos Farmacêuticos Neurofarmacológicos. Como Laughren escreveu mais tarde, nesta posição ele “supervisionou diretamente os profissionais médicos envolvidos na revisão de todas as atividades de desenvolvimento de drogas conduzidas sob INDs e na revisão de todos os NDAs e suplementos para novas reivindicações de drogas psiquiátricas”. Em 2005, ele se tornou o diretor da Divisão de Produtos Psiquiátricos, onde ele continuou a supervisionar a “revisão de todos os NDAs”.
Thomas Laughren
O primeiro NDA que Laughren teria revisto em sua posição de líder de equipe teria sido para Prozac (fluoxetina). Enquanto este medicamento foi promovido ao público como um medicamento revolucionário para depressão após sua aprovação no final de 1987, os ensaios clínicos contaram uma história completamente diferente.
No início, durante os ensaios clínicos de fluoxetina, descobriu-se que ela poderia induzir uma intensa agitação em alguns pacientes. Em resposta, Eli Lilly alterou os protocolos dos ensaios para que os pacientes pudessem receber uma benzodiazina como medicação concomitante. Como Dorothy Dobb da Eli Lilly admitiu mais tarde em um caso legal, isto foi “cientificamente ruim”, uma vez que “confundiria os resultados” e “interferiria na análise tanto da segurança quanto da eficácia”.
Eli Lilly conduziu cinco estudos clínicos de seu medicamento, e quando os resultados de todos os cinco estudos foram reunidos, a melhora na pontuação HAM-D – a escala usada para avaliar os sintomas depressivos – foi apenas um ponto maior para os pacientes com fluoxetina do que para o grupo placebo, uma diferença que não tem sentido. Além disso, Eli Lilly havia se engajado em vários manobras desonestas de codificação, orientando seus investigadores a registrar eventos adversos relacionados a drogas como “sintomas de depressão”, e mudando os relatos de “ideação suicida” nos formulários de relato de casos para “depressão”.
Os revisores médicos da FDA detectaram muito desse engano. Eli Lilly, escreveu o revisor da FDA David Graham, havia se engajado em “subnotificar em larga escala” os danos que a fluoxetina poderia causar.
Mesmo assim, a FDA deu sua aprovação à fluoxetina, e a explosão do ISRS estava em andamento. Outras empresas desenvolveram antidepressivos ISRS similares, e a FDA manteve o padrão que havia estabelecido com a fluoxetina. A Pfizer realizou seis estudos clínicos de sertralina (Zoloft), e em quatro dos seis, não conseguiu vencer o placebo. Houve um quinto estudo que era “questionável”, e um sexto que era positivo para a sertralina. Como um funcionário da Pfizer confessou em um memorando de 11 de abril de 1991, a sertralina havia “recebido uma revisão desfavorável em vários países”. A questão chave comum é que os reguladores não estão convencidos da eficácia da sertralina versus placebo”.
Mas a FDA deu luz verde à Pfizer, e logo Zoloft estava a caminho de se tornar o medicamento mais vendido. Os dados de eficácia para os ISRSIs que se seguiram foram muito parecidos.
A seguir, foram os antipsicóticos atípicos, com risperidona (Risperdal) e olanzapina (Zyprexa) liderando. A Johnson & Johnson, em seus ensaios com risperidona, comparou doses múltiplas de risperidona a uma dose elevada de haloperidol (a droga comparadora), um projeto que permitiu a Janssen escolher os melhores resultados de uma das três doses de risperidona e compará-la com uma dose de haloperidol que certamente causaria muitos eventos adversos. Este foi um projeto tendencioso que poderia fazer com que a risperidona parecesse boa, e os revisores da FDA não foram enganados. Como eles observaram, estes estudos foram “incapazes de fornecer qualquer comparação significativa dos dois medicamentos”.
Da mesma forma, os revisores da FDA concluíram que os ensaios de olanzapina da Eli Lilly foram “tendenciosos por projeto” contra o haloperidol e, portanto, seu grande ensaio de fase III, que não foi controlado por placebo, forneceu “poucos dados úteis sobre a eficácia”. Vinte pacientes tratados com olanzapina morreram nos ensaios, e Paul Leber da FDA advertiu que “ninguém deve se surpreender se, na comercialização, eventos de todo tipo e gravidade não identificados previamente [nos ensaios] forem relatados em associação com o uso da olanzapina”.
Foi assim que os testes de medicamentos psiquiátricos e sua aprovação tomaram forma durante a primeira década que Laughren serviu como líder de equipe na Divisão de Produtos Neurofarmacológicos da FDA. Foram aprovados medicamentos que mostraram pouca eficácia e foram testados em ensaios tendenciosos, mesmo quando os riscos eram minimizados ou obscurecidos, e depois foram promovidos como medicamentos inovadores, o que representou bilhões em vendas.
Muitas das empresas farmacêuticas então comercializaram agressivamente seus medicamentos para uso fora da marca em crianças e uma porcentagem cada vez maior de adultos. A FDA se manteve, na maior parte das vezes, como isto aconteceu, e o que se pode entender hoje é que a venda de medicamentos psiquiátricos durante este período evoluiu para uma empresa fraudulenta. Eli Lilly, Johnson & Johnson, GlaxoSmithKline, Astra Zeneca, Abbot, Bristol Myers Squibb, Park Davis, Forest Laboratories, Novartis, Warner-Lambert e Otsuka acabaram pagando multas ao governo federal por comercialização imprópria de suas drogas psiquiátricas, com vários declarando-se culpados de acusações criminais.
No entanto, mesmo enquanto usava seu chapéu da FDA, Laughren ajudou a promover as drogas psiquiátricas e seu uso não rotulado. Em uma reclamação de 2007 ao Comissário da FDA Andrew von Eschenbach, a Aliança para a Proteção da Pesquisa em Humanos (AHRP), uma organização de vigilância, preparou uma lista detalhada dos “laços de colaboração de Laughren com funcionários da indústria farmacêutica e psiquiatras financiados pela indústria no meio acadêmico e em associações profissionais”.
A AHRP forneceu links para documentos de origem em sua reclamação. Inclusive as atividades da Laughren:
Participando de um painel de consenso patrocinado pela indústria, convocado pela Academia Americana de Psiquiatria Infantil e Adolescente, que recomendou usos não rotulados de drogas psiquiátricas em crianças.
Coautor de mais de uma dúzia de artigos com “líderes de pensamento” financiados pela indústria, que estavam sendo pagos para atuar como consultores, conselheiros e palestrantes. Em um caso, ele foi coautor de um capítulo de livro com o diretor médico de Eli Lilly, Leigh Thompson.
Participou de um “painel de desenvolvimento” para uma conferência sobre “distúrbios do humor”, subscrita pelas principais empresas farmacêuticas. O relatório de 2002 endossou avaliações de depressão para uma ampla gama de pacientes com doenças físicas – doenças cardiovasculares, câncer, Parkinson, AIDS e outras – que certamente expandiriam o mercado de medicamentos psiquiátricos.
Laughren também ganhou a ira de muitos pais quando se soube que ele havia descartado as preocupações com os SSRIs agitando os impulsos suicidas nas crianças. Em 1996, a reclamação da AHRP observou que um oficial de revisão médica da FDA havia relatado uma incidência sete vezes maior de suicídio em crianças que receitaram sertralina. Em resposta, Laughren escreveu que “Eu não considero estes dados como um sinal de suicídio tanto em adultos quanto em crianças”.
Então, em 2004, Laughren impediu que um revisor da FDA, Andrew Mosholder, falasse em uma audiência pública sobre se os antidepressivos aumentavam o risco de suicídio em crianças e adolescentes. Mosholder havia concluído que os dados do julgamento mostravam que assim seria, mas Laughren e outros funcionários da FDA, relatou o Wall Street Journal, temiam que ele “condenasse as drogas com demasiada força perante o comitê consultivo”. Laughren apresentou a análise de Moshholder, mas “enfatizou a falta de confiabilidade dos dados ao invés do possível risco das drogas”.
A queixa da AHRP detalhou outros casos em que Laughren tinha trabalhado para conseguir a aprovação de um medicamento sobre o qual outros revisores da FDA tinham levantado bandeiras vermelhas. Em 2007, os médicos da FDA recomendaram que o pedido da Eli Lilly para o uso pediátrico de Zyprexa fosse rejeitado, tanto por questões de segurança como porque quase metade dos dados tinham vindo da Rússia, o que os oficiais da FDA suspeitavam que poderia ser fraudulento. No entanto, em 29 de abril de 2007, Laughren os indeferiu e considerou o pedido da Eli Lilly para uso pediátrico “aprovável”.
Tais eram os padrões predominantes para aprovação de NDAs de medicamentos psiquiátricos sob a liderança de Laughren. Havia um histórico da agência se inclinando para trás para encontrar evidências de “eficácia”, tolerando ensaios que eram “tendenciosos por projeto”, e deixando os patrocinadores se safarem com relatórios de segurança que, de uma forma ou de outra, procuravam obscurecer os possíveis danos que suas drogas poderiam causar.
Mandato do Congresso
Embora Laughren tenha recebido uma quantidade razoável de críticas públicas, ele estava, em seus esforços para conseguir a aprovação de novas drogas, seguindo um mandato do Congresso que surgiu nos anos 90. Durante a era Reagan, grupos conservadores reclamavam regularmente que a FDA, com suas longas revisões das NDAs, estava frustrando os interesses comerciais das empresas farmacêuticas e, ao fazer isso comprometia a saúde pública. Newt Gingrich, que subiu à presidência da Câmara em 1995, reclamou que a FDA era o “principal assassino de empregos na América“. A mensagem era clara: a FDA precisava se tornar uma agência que ajudasse a trazer novos medicamentos para o mercado.
As empresas farmacêuticas também ganharam uma nova influência financeira sobre este processo de revisão. Em 1992, o Congresso aprovou o PDUFA (Prescription Drug User Fee Act), que exigia que as empresas farmacêuticas financiassem as revisões da FDA sobre suas Novas Aplicações de Medicamentos. Isto proporcionou à indústria uma alavancagem financeira sobre a FDA – se a agência não aprovasse mais prontamente os medicamentos, a indústria faria lobby duro contra esta lei quando chegasse a hora, a cada cinco anos, de o Congresso renová-la.
Tudo isso serviu para corromper a FDA. Em 2006, em uma pesquisa realizada com cientistas da FDA, um quinto respondeu que haviam “sido solicitados, por razões não científicas, a excluir ou alterar inadequadamente informações técnicas ou suas conclusões em um documento científico da FDA”. Quarenta por cento disseram que temiam retaliações por expressar preocupações de segurança em público.
Enquanto isso, David Graham, que havia advertido sobre a subnotificação de Eli Lilly dos danos de Prozac, disse ao Congresso em 2004 que ele havia sido avisado “por seus superiores para não advertir o público sobre os perigos de drogas como Vioxx”, o que acabou sendo lembrado. Depois de advertir o público, ele testemunhou que foi “marginalizado pela administração da FDA e não foi convidado a participar da avaliação de nenhuma questão de segurança de drogas”. É um tipo de ostracismo”.
No ano seguinte, Graham – que era então diretor associado do Escritório de Segurança de Medicamentos da FDA – afirmou que “a FDA é inerentemente tendenciosa em favor da indústria farmacêutica. Ela vê a indústria como seu cliente, cujo interesse ela deve representar e avançar. Ela vê sua missão principal como aprovando o maior número possível de medicamentos, independentemente de os medicamentos serem seguros ou necessários”.
Dada esta história e a política da agência, os protestos de Kavanagh, tanto dentro da agência quanto para o Congresso e o Escritório do Inspetor Geral, quase certamente caíram em ouvidos surdos. Não havia nada de anormal com a aprovação iminente da asenapina pela agência. E ele poderia esperar ser colocado no ostracismo – e talvez pior – por haver feito um alarido legal a respeito disso.
Isto foi mais do mesmo, e mesmo quando a FDA estava passando pelo processo de revisão, Hassan expressou publicamente consternação em um artigo de primeira página do Wall Street Journal que o asenapine ainda não havia sido aprovado: “O que será necessário para que novos medicamentos sejam aprovados? A questão é que não sabemos”.
O artigo, intitulado “Drug Makers Say FDA Safety Focus Is Slowing New-Medicine Pipeline”, foi publicado em 30 de junho de 2008. Isso foi menos de três meses desde que a fraude da Zetia havia feito manchetes, e ainda assim, neste artigo, Hassan recebeu um púlpito – e uma alta consideração moral – para reclamar da lentidão da FDA em aprovar a asenapina.
As Reclamações de Kavanagh são Desconsideradas
A queixa do denunciante de Kavanagh foi rapidamente arquivada. Alguns agentes do FBI o entrevistaram, mas concluíram que este era um caso de opiniões diferentes dentro da FDA sobre a eficácia e segurança da asenapina. Ao mesmo tempo, tanto o revisor de dados de segurança da FDA, Robert Levin, quanto Laughren escreveram relatórios resumidos que, dentro da agência, colocaram o assunto em banho-maria.
Em uma revisão de 26 de junho, Levin forneceu breves histórias de casos das 22 mortes de pacientes tratados com asenapina. Ele descartou todos, exceto dois, como “provavelmente sem relação” com a droga, e mesmo nos outros dois, ele minimizou seu possível significado.
Houve um suicídio de um homem de 67 anos que um investigador, no formulário de relatório de caso, concluiu que “possivelmente” estava relacionado à droga, mas, disse Levin, o investigador não tinha “dado nenhuma razão clara para isso”. A morte neonatal, embora possivelmente relacionada à droga, também poderia ser explicada pela história da mãe “de 3 partos prematuros anteriores”, escreveu ele.
Era isso: um atestado de saúde aprovado para a droga. Também não houve menção de uma morte devido a uma reação alérgica; como o resumo de segurança da empresa havia dito, a mulher de 57 anos havia morrido devido a uma embolia pulmonar.
Em 1º de agosto, Laughren determinou que a asenapina fosse aprovável tanto para a esquizofrenia quanto para a bipolar I. Ele escreveu algumas linhas sobre cada uma das principais queixas de Kavanagh.
A falta de eficácia de Re asenapine para a esquizofrenia: “Pelo que vi, ele [Kavanagh] não fez nenhum argumento credível para apoiar estas amplas declarações”.
A falta de eficácia da Re asenapina para pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados: “Considero [sua análise] uma abordagem falha na análise desses dados. . . estes escores de gravidade não têm significado diagnóstico e não seria apropriado sugerir que a gravidade básica poderia ser usada para selecionar pacientes para tratamento. Na minha opinião, a interpretação correta desses dados é que a asenapina tem se mostrado eficaz no tratamento agudo de manias e episódios mistos, e acho que deveria ser deixado aos clínicos a decisão de como selecionar os pacientes para tratamento”.
A empresa está escondendo os riscos de segurança: Não havia razão para pensar que o agonismo do receptor 5HT2B seria um risco particular; a mulher grávida cujo recém-nascido morreu tinha um histórico de gravidez complicada; a voluntária saudável tinha sofrido um episódio de desmaio, não uma parada cardíaca; não havia evidência de que a mulher de 57 anos tivesse morrido de uma reação alérgica; e o suicídio era um risco das duas doenças.
“Não compartilho a opinião [de Kavanagh] de que o patrocinador não relatou informações críticas de segurança que estava em sua posse, ou que eles deturparam o que foi apresentado na tentativa de enganar, pelo menos com base no que eu revisei”, escreveu Laughren.
Havia um aspecto do relatório do Escritório de Farmacologia Clínica de Kavanagh que Laughren achou que tinha valor, que era a necessidade da empresa de fornecer mais informações sobre os metabólitos do medicamento. “Se o Escritório de Farmacologia Clínica estiver correto em suas afirmações, que é que temos poucas garantias de que os dados de carcinogenicidade animal ou de toxicidade reprodutiva sejam relevantes para os humanos, assim sendo saberíamos tão pouco sobre o que está circulando nos humanos. Até que esta questão seja resolvida, estou inclinado a concordar com o Escritório que esta é uma deficiência grave”.
Quinze dias depois que Laughren escreveu seu relatório “aprovável”, Kavanagh foi escoltado desde a saída da sua sala na FDA. A carta de rescisão que ele recebeu posteriormente declarou que, além do comportamento que poderia estar ligado a seus esforços de denúncia, ele estava sendo demitido por ter sido indelicado e agressivo em reuniões com empresas farmacêuticas.
A deficiência no NDA da Schering-Plough em relação aos metabólitos da asenapina atrasou a emissão de uma carta de aprovação formal, mas isso veio no início de 2009. Uma reunião do comitê consultivo foi realizada em julho daquele ano, com a votação de 10-2 para aprovar a asenapina para esquizofrenia e 12-0 para aprová-la para bipolar. Kavanagh não foi autorizado a falar na reunião; suas preocupações não foram manifestadas. O medicamento, comercializado como Saphris, foi lançado no mercado naquele inverno.
O pagamento para Hassan
Quando Hassan levou Schering-Plough a adquirir a Organon, ele sabia que se asenapinas fossem aprovadas tanto para a esquizofrenia quanto para a bipolaridade, isso aumentaria o valor da Schering-Plough. Em março de 2009, logo após a FDA notificar a Schering-Plough que a asenapina era “aprovável”, ele negociou a venda de sua empresa, na forma de uma fusão, à Merck por US$ 41,1 bilhões.
As contas publicadas da fusão declararam que Hassan e outros nove executivos da Schering-Plough receberiam 132 milhões de dólares no negócio. A participação de Hassan foi estimada em $51 milhões em dinheiro e benefícios de pensão, embora houvesse relatos que colocavam os de Hassan em um patamar muito mais alto.
A fusão com a Merck foi encerrada naquele inverno, e Hassan foi mais uma vez aclamado por sua administração bem sucedida de uma empresa farmacêutica. Em agosto de 2010, a CBS News publicou uma entrevista com Hassan intitulada: “Como eu venci as chances de um negócio farmacêutico de 14 bilhões de dólares“.
A chave, disse Hassan à CBS News, foi que os compostos que a Schering-Plough adquiriu quando comprou o Organon, “provaram ser valiosos, especificamente a droga esquizofrênica asenapina, nome comercial Saphris”.
“Muitas pessoas geralmente não estavam entusiasmadas com a Organon. Havia muito ceticismo em relação ao Saphris, do qual a Pfizer havia se afastado. A opinião predominante era que a Pfizer desistiu da asenapina porque eles viam grandes problemas com ela, tanto científica como comercialmente. Empresas, analistas de Wall Street e até mesmo a imprensa se perguntavam em voz alta como poderíamos ter sucesso onde a Pfizer não poderia, e se eventualmente chegaríamos à mesma conclusão que a Pfizer chegou. Mas a Saphris foi aprovada pela FDA em agosto [2009] e posteriormente lançada … Portanto, isto foi algo que realizamos e que antes não estava claro para os outros. Pouquíssimos negócios se realizam tão bem quanto este”.
A fusão, no entanto, não resultou particularmente bem para a Merck. A Saphris não ofereceu nenhuma vantagem sobre os atípicos já existentes no mercado, e em 2013, com a Saphris gerando vendas líquidas de apenas US$ 150 milhões naquele ano, a Merck vendeu seus direitos de comercialização de asenapina a Forest Laboratories por US$ 240 milhões.
Laughren Psychopharm Consultoria
Em 2012, Laughren deixou a FDA para formar a Laughren Psychopharm Consulting com o objetivo de ajudar as empresas farmacêuticas a levar seus medicamentos ao mercado. Um de seus primeiros clientes foi a AstraZeneca, uma empresa que ele havia ajudado três anos antes quando procurava obter a aprovação da Seroquel para uma gama mais ampla de condições, inclusive para uso em adolescentes.
Na reunião do painel consultivo, Wayne Ray da Universidade de Vanderbilt contou sobre suas pesquisas que haviam ligado a morte cardíaca súbita ao Seroquel quando este era usado com alguns outros medicamentos. Entretanto, como a revista Science relatou mais tarde, Laughren dispensou a pesquisa de Ray e disse ao painel que as próprias descobertas clínicas de AstraZeneca, que não tinham encontrado nenhum risco aumentado de morte, deveriam ser consideradas a pesquisa definitiva.
O painel votou esmagadoramente para aprovar quetiapina para novas indicações e não exigiu nenhuma rotulagem sobre o risco de morte cardíaca súbita. Dentro de dois anos, a FDA havia recebido relatos de 220 mortes devido a eventos cardíacos relacionados ao uso do Seroquel, e então exigiu que a AstraZeneca alertasse sobre este risco em seu rótulo.
O artigo da revista Science foi intitulado: “A porta giratória da FDA”: As empresas frequentemente contratam funcionários de agências que administram suas bem sucedidas análises de medicamentos”. Rirren, ao que parece, ilustrou melhor este caminho de carreira.
Uma advertência profética
Kavanagh, por sua vez, nunca colocou seus esforços de “denunciante” para descansar. Mais uma vez, ele tentou chamar a atenção do público para a aprovação da FDA para este medicamento e outros atípicos para o bipolar 1 e para os danos que vieram de outras aprovações da FDA. Além disso, em suas ações legais subsequentes e cartas aos presidentes Obama e Trump e aos membros do Congresso, ele procurou defender o argumento de que havia sido demitido por seus esforços de denúncia em 2008.
Ao longo do caminho, ele reuniu algumas munições adicionais para seus esforços de denúncia.
Durante os primeiros 10 meses em que a asenapina esteve no mercado, a FDA recebeu 52 relatos de pacientes sofrendo uma “reação alérgica grave” ao medicamento (reações do tipo 1, que incluem anafilaxia). Como se estima que apenas 1% a 10% das reações adversas a um medicamento são relatadas ao programa Medwatch da FDA, isto sugere que houve entre 520 e 5.200 pacientes tratados com asenapina durante seus primeiros 10 meses no mercado que tiveram uma resposta alérgica severa ao medicamento. Em 1º de setembro de 2011, a FDA emitiu um aviso relacionado a este risco, exigindo que ele fosse adicionado ao rótulo.
Uma segunda preocupação de Kavanagh era que a asenapina e outros medicamentos atípicos, quando prescritos a mulheres grávidas, levariam a mortes neonatais. Em 2011, quando Kavanagh estava se preparando para entrar com uma ação judicial qui tam, ele procurou os relatórios do Medwatch por mortes causadas por drogas atípicas, e encontrou o seguinte:
O dossiê Seroquel contou 1.844 mortes, com mais de 5% dessas mortes em bebês com menos de dois anos de idade.
De 1% a 3% dos óbitos de Risperdal, Geodon, Abilify e Zyprexa estavam nesta faixa etária.
Em sua ação judicial qui tam, Kavanagh calculou que, de 2000 a 2012, havia cerca de 3.500 bebês com menos de dois anos de idade que haviam morrido devido à exposição a atípicos, com esta exposição – pareceria estar chegando durante a gravidez e através do aleitamento materno. No entanto, mesmo este número é, sem dúvida, um número inferior: Uma revisão de 2015 dos resultados neonatais com “exposição a antipsicóticos” durante a gravidez constatou que havia um risco maior de “grandes malformações, defeitos cardíacos, parto prematuro, partos gestacionais de pequeno porte e diminuição do peso ao nascer”.
Em sua ação judicial, Kavanagh também buscou contabilizar os danos causados aos pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados a quem, no entanto, são prescritos um antipsicótico atípico. Ele estimou que 500.000 pacientes se enquadram neste subgrupo e, dada uma taxa de mortalidade de 1% a 1,2% para voluntários em ensaios de medicamentos antipsicóticos, ele calculou que isto levaria a 5.000 ou mais mortes a cada ano. “Para não mencionar”, acrescentou, “os numerosos outros efeitos adversos graves que ocorrem com os antipsicóticos, incluindo convulsões, coágulos sanguíneos, ataques cardíacos, diabetes, toxicidade neurológica, etc.”.
Como uma ação judicial qui tam alega que os governos estaduais e federal estão sendo defraudados, neste caso porque a Medicaid e a Medicare estavam pagando por tratamentos medicamentosos que Kavanagh alegava serem ineficazes e prejudiciais, a possibilidade de sucesso geralmente depende se o governo federal “se junta” à ação judicial. E enquanto o processo de Kavanagh alegava que os fabricantes desses medicamentos haviam procurado esconder seus danos, também alegava que a FDA havia sido cúmplice dessa fraude. O governo federal teria tido que atropelar a sua própria agência para se juntar à ação e optou por não fazê-lo, o que levou ao arquivamento de seu processo em 2014.
Depois disso, Kavanagh renovou periodicamente suas petições a funcionários eleitos e agências governamentais. Ele o fez em 2016 e 2017, e em maio passado deu um último empurrão, enviando cartas e resumos de suas queixas ao Presidente Trump, ao Congressista Jamie Raskin, ao Senador Charles Grassley, ao Comitê de Supervisão e Reforma da Câmara e à Divisão de Investigação do Departamento de Justiça. Este último esforço dele ainda está pendente.
Contando as mortes
Em sua estimativa de mortes, Kavanagh concentrou-se em pacientes bipolares I com sintomas leves a moderados. No entanto, a aprovação pela FDA de atípicos para o distúrbio bipolar 1 levou naturalmente à prescrição desses medicamentos a pacientes bipolares II e àqueles diagnosticados com distúrbio do espectro bipolar, o que significa que eles também estão expostos aos perigos dos medicamentos, embora possa haver poucas evidências de ensaios clínicos aleatórios de que eles proporcionem um benefício significativo para a mania e episódios mistos.
A bula de Asenapine falava de uma longa lista de riscos à saúde associados ao seu uso, que foram apresentados como típicos dos antipsicóticos “atípicos”. Eles incluem: acatisia, sonolência, síndrome neuroléptica maligna, sintomas extrapiramidais, distonias, discinesia tardia, hiperglicemia, diabetes mellitus, ganho de peso, síncope, leucopenia, neutropenia, agranulocitose, prolongamento do QT, hiperprolactinemia, convulsões, potencial de comprometimento cognitivo e motor, desregulação da temperatura corporal e disfagia.
Traduzir esse aumento nas taxas de mortalidade em um número de mortes para pacientes bipolares é uma tarefa incerta. No entanto, mesmo cálculos conservadores produzem uma contagem estimada de 15.000 mortes adicionais por ano, ou um total de 180.000 mortes adicionais desde 2008, quando Kavanagh procurou pela primeira vez alertar sobre este risco.
A FDA sob revisão
Revisando a queixa de Kavanagh sobre o denunciante fornece uma nova maneira de ver o processo de revisão da FDA e as normas “aprováveis” para drogas psiquiátricas em ação. O que pode ser visto é que a FDA aprovará um medicamento que tenha demonstrado eficácia “estatística” marginal em ensaios clínicos, mesmo que esse “benefício” fique muito aquém de ser clinicamente significativo e seu uso exponha os pacientes a uma longa lista de perigos. Este é um padrão de revisão de medicamentos que certamente introduzirá no mercado medicamentos que, em termos de saúde pública, farão mais mal do que bem.
O artigo publicado na revista Argumentum traz uma investigação sobre as internações nos leitos de saúde mental disponíveis em um Hospital Geral, localizado em uma cidade no interior do Paraná. O estudo foi quanti-qualitativo utilizando a abordagem teórico-metodológica da da Análise Institucional.
Na proposta da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), o Hospital Geral (HG) é parte da rede de serviços de saúde mental. A proposta é que eles acolham pessoas em crise grave até sua recuperação, substituindo os Hospitais Psiquiátricos (HP). O objetivo é que a assistência prestada seja realizada no menor tempo possível, atuando de forma articulada e integrada aos outros serviços da rede extra-hospitalar.
No entanto, observa-se que no Brasil existem duas forças contrárias que tentam se apropriar do espaço do HG: a Reforma Psiquiátrica e a Psiquiatria Clínica. Ao modelo da Psiquiatria Clínica, somam-se grupos de interesses fundamentalistas e neoliberais que ameaçam as conquistas alcançadas pela RPB.
De 2002 à 2014 houve uma redução de 50% do número de leitos do SUS em HP, passando para 25.988 leitos. Enquanto os números de leitos em HG, em 2014, era de 888 em todo Brasil. Através desses dados, fica claro que o principal dispositivo para a internação em saúde mental no Brasil ainda é o HP.
Os autores analisaram dois bancos de dados no período de março de 2018 a junho de 2018, disponibilizadas pelo gestor do hospital. A primeira análise foi dos laudos do sistema de regulação estadual, disponibilizados pelo hospital desde a abertura desse serviço, em setembro de 2014, até o mês de dezembro de 2017, constituindo-se 545 laudos, dos quais foram consultados os seguintes dados: local de moradia (urbano ou rural), faixa etária, sexo, procedimento solicitado, diagnóstico principal, tempo de permanência, outros procedimentos solicitados, local de encaminhamento, número de internamentos e reinternamentos.
O segundo banco de dados foi construído através das informações repassadas pelo setor de Serviço Social do Hospital, referentes à internação involuntária e números de transferências para outros serviços hospitalares.
Constatou-se com a pesquisa, que o HG escolhido não conta com equipe específica para o atendimento nos leitos de saúde mental. A equipe que atende esses leitos é a mesma que atende as demais internações hospitalares, composta por um médico clínico geral, uma assistente social, enfermeiro(a)s e técnico(a)s de enfermagem. Não há áreas de convivência específica.
Em relação ao total de pessoas atendidas, foram 64% homens e 36% mulheres, a maioria residente na zona urbana do município (55%) e 66% encontravam-se entre os 19 à 49 anos. Observou-se que 47,9% das internações ocorreram devido a problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas, 44,8% devido à esquizofrenia, transtornos esquizotípicos, transtornos delirantes e 4,6% a transtornos de humor (afetivos). 64,9% dos casos foram encaminhados pelo Pronto Atendimento Municipal da região.
Ao olhar os dados mais de perto, é possível perceber que das internações relacionadas ao uso abusivo de substâncias, 89% são do sexo masculino, enquanto as internações relacionadas ao comportamento, 59% são do sexo feminino. Isso pode estar relacionado, ao fato dos homens associarem o cuidado com o feminino, buscando ajuda apenas em casos de crise, quando as coisas saíram do seu controle.
Um resultado muito importante para a discussão sobre o benefício dos HG para a saúde mental, é que 82% dos usuários permaneceram acolhidos por pouco tempo, até 7 dias. Em 2017, apenas 9% foram internados de forma involuntária. Já dos 545 internados no período analisado, apenas 16 (3%) foram encaminhados para outros serviços.
Analisando os dados, é possível constatar que o HG estudado vem respondendo ao estabelecido pela portaria 148/2012, inciso I do artigo 3, onde diz que as internações devem ser de curta duração, até a estabilidade de cada caso. Os autores inferem que isso foi possível graças a rede de atenção psicossocial fortalecida, pois os usuários têm outras opções assistenciais para o cuidado.
Outro dado relevante, é que houveram 22% dos casos de reinternação, índice inferior a aqueles apresentados por outros estudos. Mesmo sendo abaixo do esperado, é um dado que merece atenção, uma vez que pode revelar o fenômeno da porta giratória, quando os pacientes não permanecem por longos períodos internados, mas são internados diversas vezes por um período curto de tempo, o que também não é recomendado. Esse fenômeno pode representar falta ou insuficiência dos serviços substitutivos e comunitários, dificuldade de aderência a esses serviços pelos usuários e/ou ausência de vínculos familiares e comunitários.
Como conclusão, os autores consideram que a presença dos leitos de saúde mental nos HG da rede colaboram com o modelo de atenção psicossocial, favorecendo a proximidade com os demais pontos da rede e com o território de vida dos usuários, assim como possibilita internações curtas e permite que o usuário seja pensado em sua totalidade. A baixa transferência para HP é importante, mas deve ser investigado o que motivou aquelas que acorreram, para que futuramente sejam ainda menores. Por fim, ressaltam a necessidade de mais pesquisas, para complementar o atual estudo.
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Schinemann, V., & Zambenedetti, G. (2020). Caracterização das internações nos leitos de saúde mental em hospital geral . Argumentum, 12(2), 141-164. (Link)
Retirado do Boletim da Faculdade de Comunicação Social da UERJ → Entrevista com a jornalista e professora da UFRJ, Raquel Paiva.
Na entrevista, Raquel Paiva destaca o papel fundamental das mídias comunitárias no combate ao coronavírus. Segundo ela, os espaços populares se apropriaram das diferentes formas de comunicação, destacando o fortalecimento da comunidade como fator essencial para que o desampara do Estado não fosse ainda mais devastador durante a pandemia.
“Sem o fortalecimento comunitário os espaços populares não teriam tido condições de lidar com a pandemia.”
Foi com este mesmo título em inglês, “A disease called childhood”, que Allen Frances publicou o emblemático texto no New York Times na data de 31 de março de 2013, no qual denuncia o aumento vertiginoso do diagnóstico de crianças e do uso de estimulantes para o tratamento do transtorno de déficit de atenção. Segundo Frances, em vinte anos esse mercado cresceu de US $ 70 milhões para US$ 7 bilhões. Quatro por cento das crianças usavam drogas prescritas. Neste mesmo período, as taxas de transtorno de déficit de atenção triplicaram, enquanto o transtorno autista e o transtorno bipolar infantil aumentaram 40 vezes. Frances é enfatico ao afirmar que “nossos filhos não ficaram mais doentes de repente, só que os diagnósticos são aplicados a eles de forma mais livre”. A recomendação final é “não devemos medicalizar as dores e sofrimentos da infância normal”. Ora, mas como e por que isso aconteceu? Existem saídas possíveis? Quais?
A infância transformou-se em um tempo da vida a ser gerido sob inúmeras expectativas e demandas. O discurso sobre a infância tem sido cada vez mais orientado por práticas supostamente preventivas que visam minimizar ou até mesmo eliminar os riscos à saúde mental. Segundo Sassolas (2012), a nova cultura psiquiátrica privilegia os atos técnicos, assim como a avaliação e a previsibilidade, apoiando-se em
marcadores supostamente objetivos. Estes dispositivos associam práticas pedagógicas que legitimam uma intervenção médica na esfera privada, especialmente nas relações familiares e no cuidado com as crianças.
Detectar precocemente vestígios de transtornos mentais na infância transformou-se em uma verdadeira obsessão, em torno da qual se articula o DSM-V. Podemos pensar que os impulsos agressivos que eram tolerados anteriormente, bem como algumas condutas “indesejáveis” que faziam parte do universo infantil, ingressaram no universo psiquiátrico, passando a representar indicadores de risco para doenças mentais graves na vida adulta. Crianças que poderiam ser descritas como peraltas, mal-educadas, indisciplinadas ou desmotivadas começaram a ser tomadas como acometidas por disfunções nos circuitos cerebrais. Irrompeu o ideal de uma “criança perfeita” associado diretamente à saúde mental, cujas imperfeições devem ser precocemente mapeadas, localizadas e evitadas tanto quanto possível (Lima, 2016).
Como exemplo da infância como doença, temos muitas análises críticas sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Ao realizar um estudo aprofundado sobre o TDAH, Lima (2005) indica que a tentativa de descrever como condição médica diversas condutas infantis tratadas como “maus comportamentos” não é recente, datando dos estudos pioneiros do pediatra inglês George Frederic Still em 1902. Entre 1917 e 1918 as consequências da pandemia de encefalite ajudaram a reforçar a hipótese de uma causa biológica para distúrbios de conduta infantis. Durante esse período e nos dez anos que se seguiram, as crianças mostravam como sequela uma marcante hiperatividade, impulsividade e comportamento perturbador, cujo quadro foi denominado por Holman em 1922 de “desordem pós-encefalítica do comportamento”. Situações como estas contribuíram para o estabelecimento da categoria “lesão cerebral mínima”, expressão consagrada por Strauss e Lehtinen em 1947. As crianças apresentavam comportamentos semelhantes aos das vítimas de encefalite, porém não haviam sido atingidas por esta doença. Tais crianças passaram a ser consideradas como portadoras de um dano na estrutura cerebral presumido. Este termo pretendia explicar não somente os transtornos de comportamento como também os de linguagem e aprendizado (Lima, 2005). Ou seja, historicamente, há uma tendência à formulação de diagnósticos excessivamente abrangentes que sequestram a diversidade infantil.
Com a generalização de hipóteses localizacionistas cerebrais e a persistência em identificar lesões para justificar os distúrbios no comportamento infantis, propôs-se a denominação “Disfunção Cerebral Mínima” (DCM) em 1966. O surgimento e a aceitação rápida desse diagnóstico podem ser explicados pelo contexto histórico e social dos EUA na década de 60, quando houve queda da prosperidade econômica experimentada no pós-guerra e a estabilidade da família americana começaram a dar sinais de crise (Lima, 2005).
Para diferenciar um indivíduo com e sem o transtorno de TDAH, o discurso psiquiátrico faz comparações. As performances produtivas, a adaptação social às exigências do entorno e a capacidade de autocontrole são confrontadas. Mas como definir cientificamente essa comparação? A suspeita em torno do diagnóstico do TDAH é também marcada pelo dilema metodológico da objetividade científica. Embora as imagens cerebrais tentem dizer o contrário, a linha que separa o indivíduo TDAH do sujeito normal é tão frágil e tênue que, na clínica e na esfera da vida prática, longe do ambiente laboratorial, ela não pode ser visualizada. Apesar dos avanços dos métodos de visualização cerebral, no dia-a-dia da prática diagnóstica eles não revelam muita coisa. Até o momento, nenhum teste ou exame específico e preciso para a “identificação” do TDAH foi definido. Seu diagnóstico continua sendo feito através de um processo misto, que inclui testes psicológicos, história clínica, análise do desempenho escolar e entrevistas com pais e professores (Caliman, 2010; 2008).
Como pensar saídas para esse emaranhado que mistura medicalização, psiquiatrização e técnicas avaliativas? Uma proposta “desmedicalizante” visa apostar em uma clínica e em uma escuta que opere no sentido de implicar o sujeito no sintoma do qual se queixa. Com base na psicanálise, Tenório (2000) destaca a importância de desmedicalizar para subjetivar, ou seja, desmedicalizar a demanda para subjetivar a queixa. A psicanálise possui arcabouço teórico-clínico que valoriza principalmente o conteúdo do sintoma na medida em que diz respeito à experiência do sujeito, ou seja, o sintoma tem um sentido e uma significação. A partir desse pressuposto, o propósito da psicanálise seria, num primeiro momento, desvendar o sentido do sintoma (Freud, 1915/2015).
A clínica psicanalítica, desde a descoberta do inconsciente por Freud, comporta especificidades essenciais para fazer frente ao enfoque medicalizante, sobretudo, no que tange ao sintoma infantil. A psicanálise atribui, a ele, um sentido intimamente articulado à existência particular do sujeito. O sintoma é o porta-voz da verdade do sujeito, portanto, corresponde à articulação estrutural entre o sintoma infantil e o discurso dos pais, assim como a historicização do sintoma.
É essencial não restringir a sintomatologia apresentada
pela criança à perspectiva médica que se apoia exclusivamente na otimização de habilidades hipervalorizadas por nosso código cultural. É necessário que a crescente medicalização da infância encontre como alternativa a escuta psicanalítica, através da qual o sintoma pode liberar o conflito subjetivo através da palavra, recuperando, assim, a diversidade infantil.
Referências
CALIMAN, L. V. O TDAH: entre as funções, disfunções e otimização da atenção. Psicologia em estudo, v. 13, n. 3, p. 559-566, 2008.
CALIMAN, L. V. Notas sobre a história oficial do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade TDAH. Psicologia: ciência e profissão, v. 30, n. 1, p. 46-61, 2010.
“Journey to the Madhouse é a poderosa e impactante história pessoal da luta de Kate Millett para manter o controle de sua vida após ter sido diagnosticada como maníaco-depressiva. Após dois breves internamentos em instalações psiquiátricas, a artista, escritora e ativista feminista começa a viver aterrorizada por estar presa novamente. Finalmente, seu pior pesadelo se torna realidade e ela é internada durante uma viagem à Irlanda por decisão de seus parentes. Nestas memórias, Millett evoca magistralmente o percurso de montanha-russa de sentimentos que a desordem bipolar implica (euforia e desespero; paranoia e desespero; angústia e vergonha de se conhecer como incapaz) e constrói uma trajetória de luta pels direitos civis dos doentes mentais na sociedade e na família. Millett, que morreu em 6 de setembro de 2017, provocando uma onda de reações no mundo artístico e feminista (“a revolucionária sexual”, segundo o El País), publicou sua tese Política Sexual em agosto de 1970, onde ofereceu uma ampla crítica à sociedade patriarcal na sociedade e na literatura ocidental. Em particular, ela ataca o que ela visualiza como sexismo e heterossexismo nos romancistas D.H. Lawrence, Henry Miller e Norman Mailer, contrastando suas opiniões divergentes com o ponto de vista do romancista e poeta Jean Genet.” Patrícia Rey