Saiu recentemente no jornal Nexo a coluna da psicanalista Marília Velano: “Os efeitos psíquicos da morte em massa no imaginário social”. Ela argumenta que a rejeição da morte em massa que vem acontecendo no Brasil, seria uma forma de atender à necessidade de manter fora do campo da consciência o nosso histórico escravocrata.
“Em tempos de covid-19, a indesejada das gentes passa a ser o prenúncio da nossa própria morte. A morte em massa é o rejeito da nossa história, um navio negreiro devolvido da ressaca do mar oleoso, da lama de Brumadinho e Mariana, do genocídio da população indígena, da população preta, pobre e periférica, e que atravessa agora a rua da casa de todo mundo.”
Em uma carta aberta, mais de 100 psiquiatras incluindo os do Reino Unido, estão convocando o novo presidente do Colégio Real de Psiquiatras a revisar a sua resposta ao racismo sistêmico e à discriminação em todo o setor.
Os signatários da carta condenam a história da profissão de não apenas ignorar os efeitos da discriminação sobre os seus pacientes, mas de pintar outras culturas como “psicologicamente primitivas” e os efeitos prejudiciais de “enquadrar as suas abordagens para entender o sofrimento como superstições retrógradas”.
A poderosa carta revela a história alarmante da psiquiatria, que “rotulou como psicóticos os manifestantes de direitos civis e os dissidentes políticos”. Ela também destaca a trágica desigualdade que persiste até hoje, já que a profissão “continua a encarcerar desproporcionalmente os negros e a coagi-los ao tratamento”. Revela que os pacientes negros têm mais probabilidade de morrer sob medidas de restrição enquanto recebem cuidados de saúde mental do que os branco.
No entanto, são os psiquiatras na linha de frente, que testemunham as consequências devastadoras do racismo e da discriminação na vida daqueles “vistos como ‘outros’ e desumanizados”, que estão agora pressionando para uma ação de longo alcance.
Os signatários estão pedindo ao Royal College of Psychiatrists (RCPsych) que corrija urgentemente este erro e que crie uma comissão independente para examinar todos os currículos de treinamento e diretrizes práticas que o College produz. Também pede que a força-tarefa inclua diversos usuários de serviços e especialistas reconhecidos em racismo institucional e colonialismo.
A carta conclui com força: “Esperamos que vocês vejam isso como nós vemos – uma oportunidade única em uma geração para colocar a psiquiatria na vanguarda do combate ao racismo sistêmico e aos legados malignos do colonialismo na medicina e na sociedade em geral”.
Eles esperam que a carta seja amplamente publicada no primeiro dia da nova Presidência do RCPsych, para manter a pressão sobre o corpo profissional neste momento crítico.
Ajude a divulgar essa carta, em suas redes sociais, conversando com os seus amigos, ou mesmo enviando uma carta ao próprio College.
A CARTA ENVIADA AO PRESIDENTE DO ROYAL COLLEGE OF PSYCHIATRISTS
Dr Adrian James,
President
Royal College of Psychiatrists
21 Prescot Street
London
E1 8BB
10 de Julho de 2020
Prezado Dr. James,
Como novo presidente eleito do Colégio Real de Psiquiatras, sabemos que o Sr. está tão chocado como nós com os chocantes atos de violência contra os negros que têm sido destacados e que se tornam o foco de protestos sustentados no mundo inteiro desde a morte de George Floyd. Aplaudimos a nomeação futura de dois líderes presidenciais para a igualdade racial e que são encorajados pelo compromisso da sua plataforma eleitoral de defender a igualdade e a diversidade. No entanto, gostaríamos de exortá-lo a estender este empreendimento para a criação de uma comissão independente.
Como psiquiatras, damos testemunho das consequências devastadoras do racismo e da discriminação sobre aqueles vistos como outros e desumanizados. Há discriminação persistente e desigualdades generalizadas na sociedade que fazem com que os membros do grupo dominante recebam diariamente benefícios enquanto outros são desqualificados, silenciados e atacados, ou tornados invisíveis em o nome de uma igualdade ilusória. A psiquiatria, a psicologia e a psicoterapia estão profundamente arraigadas nas raízes históricas através das quais os sistemas e estruturas sociais criados pela colonização, escravidão e exploração econômica se institucionalizaram e foram incorporadas em nossos modos de vida e nas percepções uns dos outros. Historicamente, a psiquiatria foi conivente com o assassinato em massa eugênico na Alemanha nazista e rotulou os manifestantes de direitos civis e dissidentes políticos como psicóticos. Até hoje, continuamos a encarcerar de forma desproporcional pessoas negras e a coagi-las a um tratamento. Além disso, se você é negro, você mais provavelmente morrerá sob medidas restritivas ao receber cuidados de saúde mental do que se você for branco.
Compartilhamos um histórico com a psicologia e a psicoterapia de não apenas ignorar os efeitos de discriminação, mas de apresentar outras culturas como sendo psicologicamente primitivas e lançando as suas abordagens para entender o sofrimento psíquico como superstições atrasadas. Para o Colégio Real de Psiquiatras poder advogar em nome dos mais marginalizados da nossa sociedade, ele deve primeiro colocar a sua casa em ordem e erradicar todos os exemplos de racismo institucional e mentalidade colonial em seus currículos de treinamento e em suas várias diretrizes práticas. Por isso, conclamamos o Colégio Real de Psiquiatras a criar uma comissão independente para examinar todos currículos de treinamento e as diretrizes práticas que o Colégio produz.
Tal força-tarefa deve conter uma diversidade de usuários de serviços e reconhecidos especialistas em racismo institucional e colonialismo.
Esperamos que o Sr. veja isto como nós o vemos; enquanto uma oportunidade ímpar para a nossa geração colocar a psiquiatria na vanguarda no combate ao racismo sistêmico e ao legados malignos do colonialismo na medicina e na sociedade em geral. Estamos divulgando amplamente essa chamada. Pensamos que uma resposta dentro de duas semanas é uma expectativa razoável.
Atenciosamente,
Os nomes abaixo todos pertencem a um dos oito graus de filiação disponíveis no Colégio,
Para consultas e entrevistas com a mídia, entre em contato:
Dr Sami Timimi (Consultor da Criança e do Adolescente Psiquiatra e Fellow do Royal College of Psychiatrists) – Telefone: 07733110471; Email: [email protected]
Um novo estudo comparou o gerenciamento intensivo de casos com a abordagem cognitivo- comportamental com e sem uso de antipsicóticos em jovens diagnosticados com psicose do primeiro episódio. Os pesquisadores descobriram que não havia diferença nos resultados no final dos seis meses. Ambos os grupos melhoraram, e não houve nenhum benefício adicional em ter tomado medicamentos antipsicóticos. Os autores do estudo, escrevendo no Schizophrenia Bulletin, explicam:
“Não houve vantagem discernível em receber medicamentos antipsicóticos desde o início do estudo”, escrevem os pesquisadores.
O estudo foi conduzido pela Shona M. Francey em Orygen, The National Centre of Excellence in Youth Mental Health, Parkville, Austrália.
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O estudo foi triplo cego, o que significa que os pesquisadores, clínicos e participantes não sabiam se estavam no grupo placebo ou antipsicótico. Isto evita o enviesamento dos resultados devido às expectativas de eficácia.
Ambos os grupos tiveram aproximadamente a mesma duração de psicose não tratada e a gravidade inicial dos sintomas antes de receber o tratamento. Ambos os grupos receberam então psicoterapia intensiva baseada em terapia cognitivo-comportamental que também incluiu o tratamento de casos. Um grupo recebeu mais tarde ou risperidona ou paliperidona (dependendo de quando foram recrutados), enquanto o outro grupo recebeu um placebo projetado para parecer exatamente como a medicação ativa.
Os resultados avaliados pelos pesquisadores incluíram o “funcionamento” avaliado tanto pela Escala de Funcionamento Social e Ocupacional (SOFAS) quanto pela Escala de Qualidade de Vida Heinrich (QLS). Eles também avaliaram depressão, ansiedade e ambos os sintomas “positivos” (por exemplo, alucinações, delírios) e “negativos” (por exemplo, apatia, falta de fala, falta de emoção) de psicose. O principal desfecho do ensaio clínico foi de seis meses.
Os pesquisadores descobriram que não havia diferença significativa nos resultados em nenhuma dessas escalas no ponto final de seis meses, o que significava que o placebo era tão bom quanto o medicamento antipsicótico.
“Ambos os grupos haviam melhorado em todas as medidas de psicopatologia após seis meses, e não havia diferenças entre os grupos”, escrevem os pesquisadores.
Eles escrevem que isto “desafia a sabedoria convencional” sobre o papel dos medicamentos antipsicóticos, especialmente para os “sintomas positivos” da psicose.
Além disso, os participantes que tomaram medicamentos antipsicóticos interromperam o estudo a uma taxa mais alta, e mais cedo, do que os que tomaram placebo. Alguns deles relataram ter saído devido aos efeitos adversos dos medicamentos que lhes foram prescritos.
Os defensores do tratamento antipsicótico podem esperar ver as pessoas descontinuarem o grupo de placebo devido ao agravamento dos sintomas ou a falha em melhorar – de qualquer forma, os pesquisadores dizem que isso não aconteceu.
“É importante ressaltar que não houve mais interrupções por deterioração clínica (piora dos sintomas) ou falha em melhorar no grupo placebo, nem houve eventos adversos mais graves”.
Os pesquisadores também incluíram informações menos bem controladas dos pontos finais de 12 meses e 24 meses. Embora ainda não tenham encontrado diferenças entre os grupos, exceto em uma medida (“sintomas negativos”), eles afirmam que estes parâmetros fornecem informações inconclusivas sobre se o placebo ainda era tão bom quanto um medicamento antipsicótico ativo.
A pesquisa sobre se uma maior duração da psicose não tratada causa piores resultados não é clara. Um estudo de 2017 descobriu que não houve ensaios aleatórios e controlados comparando o tratamento antipsicótico com placebo na psicose do primeiro episódio. Mad in America forneceu uma visão geral das evidências do tratamento antipsicótico, bem como de seus efeitos nocivos.
Francey et al. relataram suas conclusões de forma muito conservadora, observando que “esta descoberta só pode ser generalizada para uma proporção muito pequena de casos de FEP nesta fase, e um estudo maior é necessário para esclarecer se o tratamento sem antipsicóticos pode ser recomendado para subgrupos específicos daqueles com FEP”.
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Francey, S. M., O’Donoghue, B., Nelson, B., Graham, J., Baldwin, L., Yuen, H. P., . . . McGorry, P.D. (2020). Psychosocial intervention with or without antipsychotic medication for first-episode psychosis: A randomized noninferiority clinical trial. Schizophrenia Bulletin Open. DOI: 10.1093/schizbullopen/sgaa015 (Link)
Um novo estudo, publicado em Frontiers in Psychiatry, discute uma controvérsia que está ocorrendo na Austrália, após a recomendação da FDA do uso da tarja negra advertindo que o uso de antidepressivos pode causar um aumento de pensamentos e comportamentos suicidas em pessoas com menos de 18 anos com um diagnóstico de depressão ou outros transtornos. Os autores do estudo também revisam dados sobre prescrição de antidepressivos e tendências suicidas e de autoflagelação para avaliar se diferentes perspectivas sobre a segurança desses medicamentos são apoiadas por evidências do mundo real.
O artigo sugere que pesquisadores e psiquiatras proeminentes têm sistematicamente apresentado uma narrativa de que os antidepressivos são seguros e que reduzem o risco de suicídio em jovens sem evidências que apoiem estas alegações, negligenciando evidências convincentes de que o oposto pode ser verdade.
Os pesquisadores, liderados por Martin Whitely, um defensor dos direitos dos pacientes mentais e pesquisador da Universidade Curtin na Austrália, explicam que as principais instituições psiquiátricas têm se recusado a reconhecer essa questão:
“Várias proeminentes organizações australianas de defesa da saúde mental e psiquiatras australianos influentes contestaram o nexo entre o antidepressivo e o suicídio dos jovens, e alegaram que o uso de antidepressivos, quando tudo é levado em conta, reduziu o risco de suicídio dos jovens.”
Há evidências crescentes que mostram que tomar antidepressivos aumenta o risco de pensamentos e comportamentos suicidas em pessoas com menos de 18 anos de idade. No entanto, a opinião pública e profissional continua a minimizar os riscos e a fazer alegações não fundamentadas sobre o perfil de segurança do medicamento.
De acordo com os autores, várias agências – tanto governamentais quanto independentes – e indivíduos têm emitido relatórios e declarações públicas que ignoram evidências indispensáveis que dão suporte ao nexo antidepressivo-suicidalidade. Os líderes de opinião, como pesquisadores e psiquiatras, também têm desempenhado um papel fundamental para minimizar os riscos e para insistir que os antidepressivos reduzem o suicídio.
“A maior autoridade da Austrália na prevenção de suicídios fez alegações não referenciadas, deturpou as conclusões da revisão de Gould et al., ignorou as principais conclusões da revisão da Cochrane, e minimizou a importância dos avisos de suicídio da FDA e da TGA”, escrevem os pesquisadores.
Os principais líderes de opinião do país – que muitas vezes receberam financiamento da indústria farmacêutica – têm citado incorretamente pesquisas para apoiar as alegações de que os antidepressivos são seguros e reduzem o risco de suicídio. Os autores do estudo mostram que as pesquisas usadas para apoiar tais alegações ou eram muito mais cautelosas em suas conclusões do que os formadores de opinião sugerem, ou simplesmente não foram citadas apropriadamente.
Em um caso, devido a uma discrepância entre o resumo e o texto completo do artigo, “os resumos não relataram a taxa significativamente maior de ideação/tentativa suicida com a fluoxetina em comparação com placebo”.
Além disso, a maioria dos antidepressivos (90,4%) são prescritos por médicos de clínica geral (GPs) na Austrália. Os autores sugerem que os médicos de clínica geral frequentemente repetem prescrições iniciadas por psiquiatras. Uma entrevista de rádio citada pelos autores mostrou que alguns GPs seniores podem estar a trabalhar com evidências desatualizadas sobre os antidepressivos que há muito se provou serem imprecisas. Os órgãos governamentais também diminuíram os riscos do uso de antidepressivos na juventude, contribuindo potencialmente para uma falta de consciência do público e dos consumidores.
O estudo reviu e analisou dados nacionais sobre o uso de antidepressivos, suicídio e tendências de automutilação, tendo como plano de fundo o debate e a controvérsia em torno da segurança e dos riscos associados a esta classe de drogas.
Na Austrália, o segundo maior consumidor per capita de antidepressivos entre os países desenvolvidos, 101.174 pessoas entre 0 e 18 anos de idade receberam antidepressivos entre julho de 2017 e junho de 2018. O número de jovens australianos que receberam uma prescrição de antidepressivos diminuiu significativamente após o aviso da FDA ter sido emitido. No entanto, os autores sugerem que um aumento subsequente na dosagem de antidepressivos e nas taxas de suicídio apoiadas pelos dados pode ter sido influenciado por conselhos que contrariaram diretamente as advertências da FDA.
Nos últimos 10 a 15 anos, tem havido uma preocupante tendência de aumento tanto na prescrição de antidepressivos quanto nas taxas de suicídio e automutilação na juventude. “279 australianos com menos de 25 anos morreram por suicídio em 2009, e 458 em 2018”, escrevem os autores.
Entre os anos de 2006 e 2016, houve um aumento de 98% nas intoxicações anuais intencionais, sendo os antidepressivos prescritos a crianças e adolescentes muitas vezes o meio de automutilação.
Os pesquisadores mostram que existe um padrão consistente de associação entre o aumento da dose de antidepressivos e o aumento das taxas de suicídio:
Os autores alertam os leitores para a interpretação dos dados. Muitos fatores contribuem para fenômenos complexos como suicídio e automutilação, e a correlação não significa causa. No entanto, apesar dos dados, os principais líderes de opinião e agências governamentais continuam a desempenhar um papel essencial na elaboração da narrativa sobre o risco e a segurança dos antidepressivos na juventude.
“Visto que os Professores McGorry e Hickie continuam a ser tão influentes, como evidenciado pelo seu papel proeminente na mesa redonda pós-eleitoral sobre o suicídio, a sua contínua defesa do uso de antidepressivos como meio de reduzir o suicídio é significativa”.
Este estudo foca uma área negligenciada de pesquisa: como a opinião de especialistas e o discurso público podem moldar as tendências de prescrição e a consciência do risco. Além de apresentar os dados sobre suicídio e automutilação de jovens, o estudo contextualiza as descobertas, articulando as forças e poderes em jogo e mostrando que as evidências científicas podem ser mal interpretadas ou apresentadas apenas parcialmente no discurso público com consequências para as políticas públicas e a prática clínica.
Os autores terminam com uma nota sóbria:
“Há evidências claras de que mais jovens australianos estão tomando antidepressivos, e mais jovens australianos estão se matando e se auto-mutilando muitas vezes por causa de uma overdose intencional das próprias substâncias que supostamente os ajudarão”.
No recente artigo publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, os autores abordam a prescrição de psicofármacos na primeira infância. A pesquisa, realizada por Mariana Pande, Paulo Amarante e Tatiana Baptista, fez um levantamento de bases bibliográficas da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) e do Scielo.
O artigo tem origem a partir do aumento global de pesquisas sobre os fenômeno dos diagnósticos psiquiátricos e sobre os malefícios dos psicofármacos, ao mesmo tempo em que vem crescendo a prescrição de psicotrópicos para crianças de até 6 anos. A literatura relaciona efeitos adversos de psicofármacos em crianças e adolescente entre eles: Síndrome de Dress, agravamento da depressão e tentativas de suicídio, síndrome neuroléptica maligna, efeitos extrapiramidais, problemas metabólicos e cardiovasculares como obesidade e risco aumentado de diabetes.
A pesquisa constatou que, a nível nacional, existe uma carência quanto a pesquisas de médio e longo prazo que identifiquem os efeitos dos psicofármacos na população em geral, e mais ainda, em relação à população infantil. Foram achados dois estudos apenas abordando o assunto. Os dois analisavam prontuários em serviços de saúde no sul do país. Porém, nenhuma das duas foram claras quanto à faixa etária das crianças.
Nos estudos brasileiros, constatou-se que crianças tratadas com psicofármacos permaneciam por mais tempo em atendimento no serviço e apresentam menos registros de alta e melhora do que aquelas em tratamento apenas psicoterapêutico. Também identificou-se o aumento do número de crianças medicadas ao longo do tempo. O outro estudo, trouxe que a prevalência do diagnóstico de TDAH é de 20,4% na faixa etária de 3 a 16 anos dos usuários daquele serviço. O fármaco mais utilizado (92,6%) foi o metilfenidato, mas concluiu-se que houve pouca adesão ao tratamento por parte dos cuidadores.
Já as pesquisas internacionais foram mais abundantes e trouxeram o aumento das prescrições de psicotrópicos para pré-escolares em países como Estados Unidos, Canadá, França e Alemanha, realizadas principalmente por médicos generalistas e pediatras. Um dos estudos demonstraram que a prescrição de antipsicóticos para crianças entre 2 a 5 anos em planos privados de saúde nos EUA quase dobrou entre 1999-2001 e 2007. E assim por diante.
Os autores revelam que uma parte significativa dos psicofármacos utilizados na primeira infância é definida como “off label”.
“O uso off label de um medicamento (não apenas psicotrópicos, nem apenas na infância) implica em não haver indícios satisfatórios da eficiência, eficácia e segurança necessárias para a sua autorização. Outros fatores também fazem com que os medicamentos sejam off label: quando, por exemplo, não há a formulação infantil específica, ou quando a prescrição se recomenda o fracionamento da dose.”
No Brasil a ANVISA aprova alguns psicofármacos para o uso na população infantil sem estudos suficientes para seu uso seguro. Assim, a prescrição fica ao cargo pessoal do prescritor. O uso de medicamentos “off label”, tanto psicofármacos como outras classes de medicamentos, não é proibido no Brasil e nem em outros países como os EUA, pois entende-se que os médicos teriam o direito de prescrever medicamentos para usos não autorizados.
O que a literatura internacional vem mostrando é a grande variedade na prescrição de medicamentos para crianças, um exemplo é uma pesquisa que constatou a utilização de 30 diferentes tipos de combinações medicamentosas para o tratamento de TDAH em crianças de até 3 anos. Portanto, o uso de medicamentos “off label” constitui um paradoxo ético. Por um lado, são prescritos medicamentos com efeitos pouco conhecidos por evidências científicas; por outro, há limitações éticas e regulatórias importantes na realização de pesquisas clínicas com crianças.
“Um exemplo dos malefícios a longo prazo é evidenciado em um projeto chamado Risperdal Boys. É um trabalho fotográfico que dá visibilidade a casos de rapazes norte-americanos que fizeram uso da risperidona ainda quando crianças, tendo sido acometidos por um efeito indesejado irreversível, a ginecomastia. Com o passar dos anos, muitos deles precisaram realizar mastectomias. Estima-se que mais que 18 mil pessoas tenham processado a indústria farmacêutica nos Estados Unidos devido a efeitos indesejados desse medicamento.”
Como conclusão, o artigo evidencia a carência de estudos brasileiros sobre o uso de psicofármacos na infância, abrindo lacunas importantes. Aconselha-se maiores estudos na área e o investimentos em políticas públicas que contribuam com a centralização das informações e com sua divulgação. Uma verdadeira urgência epidemiológica.
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PANDE, Mariana Nogueira Rangel; AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho; BAPTISTA, Tatiana Wargas de Faria. Este ilustre desconhecido: considerações sobre a prescrição de psicofármacos na primeira infância. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 25, n. 6, p. 2305-2314, June 2020 .
Na semana passada, James Moore entrevistou para a MIA Radio John Read e Irving Kirsch. Eles são coautores junto com Laura McGrath do artigo “Terapia eletroconvulsiva para depressão: uma revisão da qualidade da ECT versus ensaios simulados de ECT e metanálises”, publicado recentemente na revista Ethical Human Psychology and Psychiatry. Escrevemos anteriormente uma análise desse estudo e suas descobertas.
A eletroconvulsiva-terapia (conhecida entre nós como eletrochoque) é um assunto polêmico, com proponentes e críticos. No início de 2019 o Ministério da Saúde publicou um documento que, entre outras medidas, dá sinal verde para a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia para o Sistema Único de Saúde (SUS). Na verdade, essas medidas representam um retrocesso da Lei de Proteção e Direitos das Pessoas Portadoras de Transtornos Mentais (10.216, de 6 de abril de 2001), conhecida como a lei da Reforma Psiquiátrica brasileira. A respeito, Paulo Amarante afirmou em uma entrevista dada para o Centro de Estudos Estratégicos da FiOCRUZ (CEE): “pergunto às pessoas quanto elas acham que custa um aparelho de ECT que o Estado vai comprar e espalhar pelas unidades; qual o custo da capacitação de quem vai aplicar tal tratamento. Com tantas prioridades e precariedades na saúde pública brasileira, o fato de priorizar e investir recursos na compra de ECT só indica que há uma pressão da indústria de equipamentos médicos”.
Afinal de contas, ECT é uma terapia baseada em evidências científicas? Confira ouvindo essa entrevista:
Entrevistados: John Read, professor de psicologia da University of East London; Irving Kirsch, psicólogo, da Harvard Medical School.
Entrevistador: James Moore (Mad in America, Mad in UK).
Conteúdo da entrevista:
Que o trabalho teve como objetivo revisar a qualidade das metanálises e de quaisquer estudos clínicos relevantes da ECT.
Como apenas 11 estudos compararam a ECT com a ECT simulada (SECT).
ECT simulada é quando o anestésico é administrado, mas não seguido por choques no cérebro.
Além de revisar a qualidade dos estudos, o artigo considerou o efeito do placebo na administração da ECT.
Que, ao revisar a qualidade dos estudos, foi utilizada uma escala de 24 pontos e que os pontuadores ficaram cegos para as classificações uns dos outros.
A escala de 24 pontos incluiu 5 critérios básicos da Colaboração Cochrane e 19 indicadores de qualidade adicionais, alguns dos quais específicos aos procedimentos de ECT.
A pontuação média de qualidade em todos os estudos foi 12,3 de um máximo de 24.
Uma das descobertas mais importantes foi que nenhum dos estudos revisados era duplo-cego.
A razão para isso é que os pacientes não podem ficar cegos para o procedimento porque os efeitos colaterais adversos são muito óbvios.
Ao revisar os estudos, às vezes acontecia que apenas o psiquiatra responsável avaliava a eficácia do procedimento, não o paciente.
As 5 meta-análises em si continham apenas 1 a 7 dos onze estudos disponíveis.
A recomendação do artigo é que o uso da ECT seja suspenso enquanto se aguarda um ensaio clínico rigoroso e adequadamente controlado.
Que o Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (NICE) do Reino Unido decidiu revisar suas recomendações de ECT em suas diretrizes para depressão, considerando a revisão.
Que o Colégio Real de Psiquiatras [Royal College of Psychiatrists] indicou que eles atualizarão sua declaração de posição sobre ECT à luz da revisão.
Chegou à luz recentemente que o NHS Trusts no Reino Unido às vezes usa informações desatualizadas ou incorretas em seus folhetos de orientação da ECT, um exemplo disso refere-se à ECT que corrige um ‘desequilíbrio químico no cérebro’.
Como as expectativas do médico podem influenciar a condição da pessoa submetida ao tratamento.
Que o efeito placebo pode ser grande e duradouro e que quanto mais invasivo o procedimento, maior o efeito.
Que uma das características da depressão é o sentimento de desesperança e que, quando você recebe um novo tratamento, pode instilar um sentimento de esperança que contraria a desesperança.
Que a chamada para proibir a ECT é porque os efeitos negativos da ECT são muito fortes, o fato de que as evidências que a sustentam são tão fracas (especialmente a longo prazo e além da melhora devido ao placebo) e que existem outros meios para abordar as dificuldades com as quais a pessoa está lidando.
Que os placebos são, em essência, um tipo de terapia psicológica.
Uma nova re-análise colaborativa de ensaios controlados com placebo de antidepressivos constata que os medicamentos ainda estão ligados a um risco aumentado de tentativas de suicídio.
“No geral, consideraríamos um aumento na taxa de tentativas de suicídio, e possivelmente também de suicídios, entre aqueles tratados com antidepressivos, como sendo uma descoberta confiável na análise Bayesiana”, escrevem os pesquisadores.
No ano passado, os pesquisadores Michael P. Hengartner e Martin Plöderl re-analisaram um estudo que usou o que eles descreveram como uma técnica estatística inapropriada para medir se os antidepressivos estavam relacionados ao aumento das tentativas de suicídio. O estudo original não encontrou nenhuma ligação, mas em sua re-análise, Hengartner e Plöderl descobriram que aqueles que foram designados aleatoriamente para uso de antidepressivos em ensaios controlados por placebo tiveram 2,5 vezes mais chances de tentar suicídio do que aqueles designados aleatoriamente para placebo.
Seu artigo foi criticado, no entanto, por não usar técnicas meta-analíticas que poderiam ter sido responsáveis por outros fatores. Na época, Hengartner e Plöderl responderam a essas críticas, fornecendo vários métodos estatísticos diferentes, os quais encontraram uma ligação entre o uso de antidepressivos e tentativas de suicídio.
Em resposta às críticas, Hengartner e Plöderl também corrigiram seus dados: duas das tentativas de suicídio foram incorretamente listadas como ocorrendo no grupo placebo, mas ocorreram depois que os pacientes tomaram o antidepressivo ativo, reforçando ainda mais suas descobertas.
No início deste ano, os pesquisadores Jakob André Kaminski e Tom Bschor argumentaram que a análise usada por Hengartner e Plöderl (agrupando todos os medicamentos antidepressivos) também pode não ter sido a análise mais adequada. Eles re-analisaram a re-análise com sete métodos estatísticos diferentes e encontraram resultados variados – alguns métodos encontraram uma ligação entre o uso de antidepressivos e tentativas de suicídio, enquanto outros não.
De acordo com Martin Plöderl (escrevendo no Twitter), ele e Hengartner procuraram Kaminski e Bschor para ver se eles poderiam se unir – colaborar para trabalhar em uma nova análise estatística que resolveria suas dúvidas sobre diferenças de método.
A análise final foi publicada recentemente no Journal of Affective Disorders.
Hengartner, Plöderl, Kaminski e Bschor produziam várias análises bayesianas, diferentes maneiras de ver os dados que fornecem resultados um pouco diferentes. No entanto, eles ainda encontraram um aumento consistente nas tentativas de suicídio para aqueles que tomam antidepressivos.
“As análises sugerem consistentemente um risco elevado de tentativas de suicídio e, menos confiável, também de suicídios em coortes de adultos”.
O risco aumentado variou de 1,7 vezes maior (consistentemente, nas análises conservadoras) a 6,3 vezes maior em uma análise.
“Isso é notável para medicamentos usados para tratar sintomas depressivos”, eles escrevem.
Os pesquisadores também mencionam questões de viés nos estudos que podem aumentar a taxa de suicídio nos grupos dos ensaios clínicos com placebo, o que significa que o risco pode estar no lado mais alto.
Por exemplo, eles escrevem: “Muitos pacientes estavam em um antidepressivo antes de entrar no estudo, e randomizá-los para o grupo placebo pode haver induzido sintomas de abstinência, levando a um risco inflado de suicídio (tentativa) no grupo do placebo”.
Os pesquisadores concordaram com a necessidade de considerar criticamente os resultados estatísticos:
“Concordamos que devemos ser céticos em confiar na significância estatística ou nas estimativas pontuais em nossa análise. Também precisamos ser céticos, dada a rara ocorrência de suicídios nos ensaios clínicos, a sensibilidade aos diferentes procedimentos meta-analíticos, os vieses dos métodos e o agrupamento de diferentes modelos de ensaios.”
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Plöderl, M., Hengartner, M. P., Bschor, T., & Kaminski, J. A. (2020). Commentary to “antidepressants and suicidality: A re-analysis of the re-analysis.” Journal of Affective Disorders, 273, 252-253. https://doi.org/10.1016/j.jad.2020.04.025 (Link)
O artigo publicado na revista Faipe realizou uma revisão de literatura com o objetivo de descrever as políticas, o cuidado e a atenção em saúde mental, voltadas às famílias dos usuários dos serviços de saúde mental.
O interesse de Octavianni et. al nasce a partir da experiência da reforma psiquiátrica, que ao defender a desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos, trouxe a família para o centro do cuidado desses sujeitos, assim como os serviços substitutivos, focando no cuidado em liberdade. Nesse sentido, é essencial a colaboração entre profissionais, família e sociedade, buscando a ampliação da rede social de apoio no território.
A aproximação da família com o serviço e o cuidado com o usuário pode significar uma aproximação das relações afetivas e da diminuição do preconceito em relação ao usuário. Mas, não se pode esquecer que pode ser extremamente difícil para a família o cuidado de um familiar diagnosticado com algum transtorno, podendo gerar sobrecarga emocional, física e econômico.
“Os familiares precisam ser notados como um grupo que precisa de apoio e orientação para lidar com o impacto gerado pelo sofrimento psíquico de longa duração em seu núcleo familiar que, inegavelmente, acarreta alteração nas atividades cotidianas e no orçamento familiar.”
Conclui-se que as políticas de saúde mental já compreendem que a família é merecedora de atenção e cuidados por parte dos profissionais de saúde. Porém, o cuidado às famílias ainda é um desafio. Os profissionais apresentam dificuldade em se adequar aos modelos de cuidado, a produção de atenção humanizada, e trabalho interdisciplinar, centralizando a atenção ao usuário. Existem estratégias de inserção da família nos serviços, mas são pouco utilizadas pelos profissionais.
Pode -se ainda falar sobre a formação acadêmica dos profissionais de saúde, ainda voltada para uma clínica individual e individualizante, algo não abordado na pesquisa, mas que provavelmente influencia a dificuldade dos profissionais em realizar um trabalho com uma rede de pessoas, e não só com o paciente, de maneira isolada.
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Octaviani, J.V. et al. Saúde Mental: políticas, cuidado e atenção à família. Revista Faipe, v. 10, n. 1, p. 85-95, jan./jun. 2020. (Link)
Um artigo recente publicado no Journal of the History of Ideas traça o envolvimento do psiquiatra radical Frantz Fanon com a abordagem anti-racista e anticolonial da psiquiatria, conhecida como “psicoterapia institucional”. O autor, Camille Robcis, da Columbia University, explora a insatisfação precoce de Fanon com uma abordagem neurológica excessivamente medicalizada, bem como seu trabalho para descolonizar a clínica psiquiátrica eurocêntrica.
“De maneira mais ampla, Fanon articulou um ponto que ele reiterou ao longo de sua vida: o colonialismo teve um efeito psíquico direto. Poderia literalmente enlouquecer alguém sequestrando sua pessoa, seu ser e seu senso de si. O confisco da liberdade e a alienação provocada pelo colonialismo e pelo racismo sempre foram simultaneamente políticos e psíquicos ”, escreve Robcis.
George Floyd protests in Uptown Charlotte, 5/30/2020 (IG: @clay.banks)
Frantz Fanon era um psiquiatra Martinicano radical que escreveu contra o racismo e o colonialismo na prática psiquiátrica ocidental. Seus livros clássicos Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra exploraram os efeitos psicológicos das estruturas sociais e econômicas racistas enquanto faz perguntas sobre como as pessoas podem se libertar dessas formas prejudiciais de organização da sociedade.
Fanon escreveu e praticou uma forma de psiquiatria radical chamada “psicoterapia institucional”, semelhante ao do psicanalista francês Felix Guattari, em instituições como o hospital Blida-Joinville, na Argélia.
No entanto o nome de Fanon é menos frequentemente associado à psicoterapia institucional do que Guattari e outros. De uma perspectiva descolonizadora, muitas pessoas críticas à psiquiatria acreditam que Fanon ainda tem muito a oferecer ao cenário atual da prática em saúde mental.
O artigo atual explora a história do envolvimento de Frantz Fanon com psicoterapia institucional, incluindo os objetivos políticos e psicológicos de seu trabalho. Camille Robcis rastreia a insatisfação de Fanon com o trabalho psiquiátrico com foco neurológico, bem como o seu trabalho no hospital Blida-Joinville, instituindo uma forma de psiquiatria mais respeitosa das tradições culturais e mais focada na libertação social do que na adaptação e conformidade.
Fanon acreditava que a psique era diretamente impactada pela situação política em uma determinada sociedade. Embora grande parte de seu treinamento psiquiátrico tenha sido direcionado ao entendimento neurológico, ele rapidamente ficou desiludido com essa abordagem, dado que marginalizava os reais e poderosos efeitos do racismo e do colonialismo nos mais marginalizados.
Ao estudar o marxismo e a psicanálise de Jacques Lacan, bem como por seu envolvimento em organizações políticas radicais como a Frente de Libertação Nacional anticolonial (FLN), Fanon chegou a acreditar que a experiência das pessoas era condicionada pela forma como as outras pessoas se relacionavam entre elas – por suas relações sociais.
Ele ficou desanimado com a forma como os médicos tratavam os muçulmanos do norte da África, alegando que seus sintomas psicológicos eram “imaginários” ou até mentirosos porque não encontravam nada fisicamente errado com eles. Descrevendo o que ele chamou de “Síndrome do Norte da África”, Fanon declarou:
“Ameaçado em sua afetividade, ameaçado em sua atividade social, ameaçado em ser membro da comunidade – o africano do Norte combina todas as condições que tornam um homem doente. Sem família, sem amor, sem relações humanas, sem comunhão com o grupo, o primeiro encontro consigo mesmo ocorrerá de modo neurótico, de modo patológico; ele se sentirá esvaziado, sem vida, em uma luta corporal com a morte, uma morte deste lado da morte, uma morte na vida. ”
Essas insatisfações levaram Fanon a trabalhar com o psiquiatra radical François Tosquelles no hospital Saint-Alban, na França, onde ele entrou em contato com os métodos da psicoterapia institucional.
Opondo-se ao “concentracionismo” – ou ao “potencial de qualquer instituição ou grupo de se tornar autoritário, opressivo, discriminatório e excludente” – Tosquelles e Fanon trabalharam para criar um ambiente psiquiátrico onde formas alternativas de relações e atividades sociais pudessem trabalhar para curar aqueles que teriam sido alienados da comunidade e, finalmente, eles próprios.
Esses métodos incluíam: “terapias em grupo, reuniões gerais, grupos autogerenciados de pacientes (também conhecidas como “o Clube ”), oficinas de ergoterapia (como impressão, encadernação, trabalhos em madeira e cerâmica), bibliotecas, publicações e uma ampla variedade de atividades culturais (como filmes, shows e teatro).”
O objetivo dessas práticas era incentivar a construção da comunidade e a autodeterminação entre os pacientes – uma “reconstituição” do social – em vez de forçá-los a se submeter à autoridade de um estabelecimento médico condescendente.
Fanon levou consigo para o norte da África as lições que aprendeu em Saint-Alban. Ele estabeleceu práticas semelhantes, com uma filosofia subjacente de libertação descolonizante, no hospital Blida-Joinville, na Argélia. Fanon acreditava que se tinha que “curar o hospital” antes de poder ajudar os médicos ou pacientes.
Embora com poucos funcionários, Fanon iniciou vários novos programas em Blida-Joinville com a ajuda de estagiários de mente progressista. Ele criou um café que funcionava como uma espécie de clube social ou local de reunião. Ele “organizou reuniões diárias, construiu uma biblioteca, montou estações de ergoterapia – tecelagem, cerâmica, tricô, jardinagem – e promoveu esportes, especialmente o futebol, que, ele argumentou, poderia desempenhar um papel importante na ressocialização dos pacientes”.
Fanon notou que essas atividades eram instantaneamente bem-sucedidas com mulheres européias, produzindo laços sociais mais fortes e autodeterminação, mas menos com os muçulmanos sob seus cuidados. No ato da descolonização, ele e seus colegas começaram a se sensibilizar com a cultura desses homens, em vez de continuar a impor uma “grade ocidental” imperialista sobre eles.
Ele viajou pela Argélia e descobriu que a cultura muçulmana estava mais interessada em encontros religiosos e familiares do que em “festas”. Eles estavam mais familiarizados com a narrativa e poemas épicos recitados do que com modos de entretenimento como teatro.
Em resposta, Fanon e colegas “mudaram sua seleção de filmes de ação; eles escolhiam jogos que eram familiares aos argelinos; eles comemoravam os feriados muçulmanos tradicionais; eles convidavam cantores muçulmanos para se apresentarem no hospital e contratavam um contador de histórias profissional para falar com os pacientes.”
Fanon continuou seu engajamento político anticolonial até o fim de sua vida, mantendo sempre o vínculo íntimo entre violência sociopolítica e econômica e saúde mental.
Ao falar sobre o projeto de emancipação, Fanon acreditava que os oprimidos na sociedade devem seguir uma linha tênue entre o enraizamento da tradição e uma abertura humanista mais universal em relação ao futuro. Ele encorajou as pessoas a evitar “imitar a Europa” e seus modelos de vida (e psiquiatria), além de evitar um retorno sem esperança a um passado pré-colonial ou tribalismo imaginado.
Robcis conclui:
“Nem a psicoterapia institucional nem a autodeterminação nacional foram concebidas como modelos ou grades rígidas que poderiam ser aplicados indiscriminadamente e independentemente do contexto. Em vez disso, eles deveriam funcionar mais como uma ética, como uma prática da vida cotidiana que poderia impedir o aparecimento de ‘concentracionismos’ e, finalmente, levar a uma liberdade que seria coletiva e pessoal ao mesmo tempo “.
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Robcis, C. (2020). Frantz Fanon, institutional psychotherapy, and the decolonization of psychiatry. Journal of the History of Ideas, 81(2), 303-325. (Link)
Você é paciente psiquiátrico? Você é um profissional de saúde mental? Sendo dependente do tratamento psiquiátrico, você tem interesse em deixar de ser paciente psiquiátrico? Sendo profissional de saúde mental, você quer saber como é possível um paciente psiquiátrico ou usuário dos serviços de assistência em saúde mental deixar de ser dependente da psiquiatria?
O professor Peter C. Gøtzsche escreveu este livro para ajudar as pessoas com problemas de saúde mental a sobreviver e a voltar à vida normal. O público em geral acredita que os medicamentos contra a depressão e a psicose são mais prejudiciais do que benéficas, e é também isso o que a ciência mostra. Mesmo assim, a maioria das pessoas continua tomando medicamentos psiquiátricos por muitos anos. Isso ocorre principalmente porque elas desenvolveram uma dependência às drogas.
Os psiquiatras e outros médicos tornaram centenas de milhões de pessoas dependentes de drogas psiquiátricas e, no entanto, não fazem nada na prática para descobrir como ajudá-las a sair das drogas com segurança, na medida em que esse processo pode ser muito difícil. As diretrizes oficiais em todo o mundo sobre como diminuir as drogas psiquiátricas são insuficientes, enganosas e perigosas. Como resultado, os pacientes encontram soluções por conta própria e aconselham outros pacientes a parar com segurança nas comunidades de sobreviventes da abstinência e da psiquiatria.
O livro de Gøtzsche explica em detalhes como as drogas psiquiátricas são nocivas e é dito às pessoas como elas podem se retirar delas com segurança. Também aconselha sobre como as pessoas com problemas de saúde mental podem evitar a fazer a ‘carreira’ enquanto paciente psiquiátrico e perder 10 ou 15 anos de sua vida para a psiquiatria.
“O termo ‘sobrevivente psiquiátrico’ diz tudo isso em apenas duas palavras. Em nenhum outra especialidade médica os pacientes chamam a si mesmos de sobreviventes no sentido de que eles sobreviveram apesar de serem expostos a essa especialidade. Eles construíram o seu caminho fora de um sistema que raramente é útil e que muitos sobreviventes têm descrito como experiência de aprisionamento psiquiátrico ou como estando em uma instituição onde há uma porta de entrada, mas não uma porta de saída. Em outras especialidades médicas, os pacientes agradecem por terem sobrevivido devido aos tratamentos que seus médicos aplicaram neles. Nós nunca ouvimos falar em um sobrevivente da cardiologia ou de um sobrevivente de uma doença infecciosa. Se você sobreviveu a um ataque cardíaco, você não é tentado a fazer o oposto do que seu médico recomenda. Na psiquiatria, você pode morrer se fizer o que seu médico manda você fazer.” (p.8)
Infelizmente, no Brasil não há movimentos de ex-usuários ou de sobreviventes da psiquiatria organizados, embora o processo de reforma psiquiátrica brasileira conte com movimentos de usuários organizados. A perspectiva é que na medida em que os usuários e os profissionais de saúde mental tenham acesso a informações e evidências, como as que o Dr. Peter Gøtzsche sistematicamente nos traz em seus artigos científicos e livros, as condições para se libertarem do modelo biomédico da psiquiatria estarão melhor disponíveis para todos. Como diz o Dr. Peter Gøtzsche neste seu último livro:
“Muitos sobreviventes psiquiátricos descrevem como a psiquiatria, com o seu uso excessivo de drogas nocivas e ineficazes, havia roubado 10 ou 15 anos de suas vidas, antes que um dia decidissem assumir ter de volta a responsabilidade por suas vidas que estava entregue aos seus psiquiatras e que descobrissem que a vida é muito melhor sem drogas.” (p.8)
Finalmente, há algo mais que se deve ter em nossa mente de forma muito clara. Como qualquer processo de libertação, se libertar de um tratamento psiquiátrico que lhe está sendo nocivo não é um feito alcançado de um dia para o outro. Nesse sentido, as palavras do Dr. Peter Gøtzsche merecem ficar em destaque:
“A maioria das pessoas tem problemas de saúde mental de vez em quando, assim como elas têm problemas com a sua saúde física. Não há nada anormal nisso. Ao longo deste livro, darei conselhos com base nas evidências científicas que tenho boas razões para acreditar que levará a melhores resultados do que se o meu for ignorado. Mas observe que, o que você faz e seja qual for o resultado, você não pode me responsabilizar. As informações que eu forneço não são um substituto para consultas com profissionais de saúde, mas pode capacitá-lo a participar de discussões significativas e informadas ou a decidir para resolver os problemas você mesmo.” (p. 10).
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Para adquirir o livro:
Vá à conta do Peter C. Gøtzsche, GoFundMe , faça a doação de DKK150 (equivalente R$ 114,36) e escreva o endereço do seu email no campo da mensagem.