Vieses substanciais encontrados nos principais periódicos de psicologia e psiquiatria

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Uma nova revisão dos resumos publicados nos principais periódicos de psicologia e psiquiatria identificou uma mudança substancial no relato de resultados de ensaios clínicos não significativos. Esta revisão transversal vem na sequência de estudos semelhantes e serve como um aviso contra o consumo não crítico de novas pesquisas por cientistas, médicos e público em geral.

Os autores desta revisão, liderada pelo Dr. Samuel Jellison da Oklahoma State University, analisaram especificamente os estudos de janeiro de 2012 a dezembro de 2017 e descobriram que a maioria dos resumos continha alguma forma de viés. Isso significa que os autores desses resumos aludiram aos benefícios do tratamento que não eram apoiados pelas evidências. Essa tendência é preocupante, pois estudos mostram que muitos médicos dependem de resumos de pesquisas para orientar suas decisões na prática.

“Acrescentar viéses ao resumo de um artigo pode enganar os médicos que estão tentando tirar conclusões sobre o tratamento para os pacientes”, escrevem os autores. “A maioria dos médicos lê apenas o resumo do artigo na maioria das vezes, enquanto até 25% das decisões editoriais são baseadas apenas no resumo“.

A presença de vieses, que foi definida como “uso de estratégias de relato específicas, de qualquer motivo, para destacar que o tratamento experimental é benéfico, apesar de uma diferença estatisticamente não significativa para o desfecho primário, ou para distrair o leitor de resultados estatisticamente não significativos.” Não é novo, nem se restringe à psicologia e à psiquiatria. Outros estudos apontam para a sua presença em pesquisas em saúde, pesquisas sobre o uso de antidepressivos para ansiedade, e até mesmo no famoso estudo RAISE.

Isso ocorre em um momento especialmente crítico para a psicologia, já que o campo perdeu a confiança de muitos, dada a recente crise de replicação, que levantou preocupações sobre seus experimentos mais populares. Ao mesmo tempo, o consumo de jornalismo científico está em alta, em parte devido a comunicados de imprensa gerados pelo autor e relatos da mídia que prosperam com sendo os mais novos da ciência, muitas vezes com resultados embaraçosos.

Os padrões éticos no campo exigem que os pesquisadores relatem os resultados de seus estudos de forma clara e completa, e sigam o protocolo que emite diretrizes sobre como relatar objetivos primários e secundários. Apesar disso, a deturpação de dados em estudos, resumos e, consequentemente, relatos da mídia tem sido desenfreada – nem a neurociêncianem a psicoterapiasão imunes aos pesquisadores, independentemente de sua motivação, usando uma linguagem que dá a aparência de benefício quando ele não algum.

Enquanto ensaios controlados randomizados são considerados o padrão-ouro em pesquisas, o relato de seus resultados, como este estudo atual encontrou, também não é isento de viés. O viés da publicação e do relatório de resultados, o p-hacking e o mau uso de técnicas estatísticas são algumas das inúmeras maneiras pelas quais os resultados dos testes são deturpados.

À luz destas questões, o presente estudo responde a algumas questões urgentes sobre a falta de informação e vieses nos campos da psicologia e psiquiatria. Os autores podem frequentemente escolher como interpretam e relatam os resultados em seus resumos, e sua declaração incorreta pode ter consequências terríveis para os médicos que baseiam seu tratamento e cuidado nesses achados.

O presente estudo, juntamente com muitos outros, levanta preocupações sobre pressões de financiamento para pesquisadores e sobre o consumo nosso do jornalismo médico. Como o financiamento futuro depende de resultados significativos, e os manuscritos médicos precisam chamar a atenção dos leitores, os resultados positivos são frequentemente relatados, apesar de evidências fracas ou inexistentes para sustentar suas afirmações.

Jellison e outros autores da revisão utilizaram o banco de dados PubMed para encontrar ensaios controlados randomizados em periódicos importantes como JAMA Psychiatry, Revista Americana de Psiquiatria, Jornal de Psicologia Infantil e Psiquiatria, Medicina Psicológica, British Journal of Psychiatry, entre outros. Os critérios de inclusão foram ensaios clínicos randomizados em humanos, nos quais uma intervenção foi testada quanto à significância estatística entre dois ou mais grupos e resultou em resultados primários não significativos. O título do estudo, resultado e conclusão no resumo, e objetivos selecionados para relato foram todos examinados para evidência dos vieses. Os autores explicam:

“Consideramos que existem evidências de viés se os autores do estudo se concentraram em resultados estatisticamente significativos, interpretaram resultados estatisticamente não significativos como equivalentes ou não, usaram uma retórica favorável na interpretação de resultados não significativos (por exemplo,” tendência à significância “) ou alegaram benefícios de uma intervenção apesar dos resultados estatisticamente não significativos. ”

A significância dos resultados foi decidida com base no valor alfa e nos intervalos de confiança estabelecidos pelo estudo. 116 estudos foram incluídos na revisão e os autores encontraram evidências de spin em 65 (56%) desses estudos. O viés foi encontrada em títulos (2%), resultados abstratos (21%) e conclusões (49%), sendo as conclusões mais atravessadas com questões de falsidade ideológica. O viés também foi mais prevalente em estudos que compararam os grupos tratamento-usual e placebo a um grupo para comparação.

Pesquisadores usaram muitas maneiras para, intencionalmente ou não, relatarem incorretamente seus resultados. Por exemplo, alguns optaram por se concentrar em objetivos secundários para os resultados significativos, em vez de reportar objetivos primários que mostravam não-significância. Outros recorreram a relatórios parciais, onde um objetivo primário significativo foi enfatizado, mas o outro que não conseguiu alcançar significância foi ignorado. Poucos fizeram alegações de equivalência para um resultado não significativo, enquanto outros usaram uma linguagem equivocada que aludia à significância quando não havia nenhuma (“tendências para significância”).

Autores relatam que não encontraram associação entre financiamento da indústria e vieses; os estudos foram considerados como financiados pela indústria se representassem sua fonte de financiamento como “indústria” ou “parcerias com a indústria”. Nesta revisão, o viés foi mais comumente relacionado a pesquisas de financiamento público em parceria com o privado. É imperativo que o efeito do financiamento da indústria nos resultados da pesquisa seja documentado, dadas as transgressões éticas impostas pela indústria e a influência de conflitos de interesses na produção de vieses (por exemplo, contratar pessoas na folha de pagamento de uma empresa para serem especialistas na produção de reportagens).

Os pesquisadores são eticamente obrigados a relatar seus achados de forma precisa e completa. Os autores desta revisão sugerem que os revisores externos busquem vieses antes que os estudos sejam publicados.

Embora seja verdade que os cientistas enfrentam imensa pressão e que os resultados positivos têm maior probabilidade de serem publicados, eles ainda têm uma responsabilidade ética para com as pessoas afetadas por essas descobertas e os clínicos que dependem delas. Ao mesmo tempo, essas descobertas também oferecem uma advertência para que outros cientistas, jornalistas, médicos e pacientes estejam cientes do viés pessoal e dos conflitos de interesse nas pesquisas que leem e consomem.

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Jellison, S.S., Roberts, W., Bowers, A., Combs, T., Beaman, J., Wayant, C., Vassar, M. (2019). Evaluation of spin in abstracts of papers in psychiatry and psychology journals. BMJ: Evidence-Based Medicine. Published Online First: 05 August 2019. doi: 10.1136/bmjebm-2019-111176(Link)

Culpar o “mentalmente doente”: isto é discurso do ódio

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Como seria de se esperar, após os assassinatos em massa em El Paso e Dayton, temos políticos e outros culpando os “doentes mentais” pelos assassinatos. Ouvimos isso repetidamente, e acho que é hora de chamar isso o que de fato é: discurso de ódio.

Aqui está como o dicionário de Oxford descreve o discurso do ódio:

“Discurso ou escrita abusiva ou ameaçadora que expressa preconceito contra um grupo em particular, especialmente com base em raça, religião ou orientação sexual.”

Culpar os “doentes mentais” por assassinatos em massa se encaixa nessa descrição. É a fala que afirma que há um grupo de pessoas em nossa sociedade que são perigosas e são em grande parte responsáveis ​​por assassinatos em massa em nossa sociedade, e é discurso que implica que precisamos identificar os “doentes mentais” e que de uma maneira ou de outra se restrinja seus direitos de cidadania. Em sua forma mais extrema, essa restrição pode envolver a sua colocação sob uma ordem judicial que os obrigue a tomar medicamentos antipsicóticos.

O último rumo é o que E. Fuller Torrey pediu em um editorial publicado no domingo no Wall Street Journal.

E por conseguinte, discurso de ódio. Culpabilizar os “doentes mentais” está ameaçando um grupo em particular e expressa o preconceito contra esse grupo. E como pode ser facilmente visto, essa acusação nos impede de reconhecer a verdade óbvia: a presença regular de assassinatos em massa em nossa sociedade precisa ser vista como um fracasso social. Dizer que o culpado são os “doentes mentais” – quem quer que seja esse grupo mítico – simplesmente ajuda a perpetuar esse fracasso.

O bode expiatório é uma forma de discurso de ódio

Na segunda-feira, o presidente Trump comentou – reconhecidamente em seu inimitável estilo de salada de palavras – sobre os assassinatos em massa em El Paso e Dayton. “A doença mental e o ódio puxaram o gatilho”, anunciou ele. “Não a arma.”

Trump, evidentemente, estava repetindo um ponto típico do discurso republicano. No entanto, a parte referente à doença mental ecoa como uma crença bipartidária.

Nós todos sabemos o contexto político para a declaração de Trump. Embora possa haver muitos fatores que levaram nossa sociedade a este lugar muito obscuro, o primeiro fator é o seguinte: nós, como sociedade, temos possibilitado que as pessoas possuam armas para cometer assassinatos em massa.

O Partido Republicano, é claro, tornou a oposição ao controle de armas parte central de sua estratégia para atrair um bloco de votação, e nós temos uma organização de lobbying, a NRA, que fornece fundos para os líderes daquele partido. Assim, quando ocorre um assassinato em massa, o Partido Republicano tem necessidade, dada a sua oposição a medidas de controle de armas, de colocar a culpa em outro lugar, e assim mostra o desviante como “mentalmente doente”.

Em outras palavras, os republicanos estão destacando os “doentes mentais” para fins de bodes expiatórios. Isso satisfaz os critérios para o discurso do ódio: ele está ameaçando um grupo específico (aqueles vistos como mentalmente doentes), e os rotula como “perigosos” para a sociedade, estabelecendo a possível tramitação de leis que restringiriam seus direitos de cidadania. E tudo isso está sendo feito para fins políticos, para desviar a culpa de sua própria política.

Preconceito Bipartidário

Enquanto os democratas podem ser a favor de medidas de controle de armas, sob o presidente Obama os “deficientes” mentalmente doentes foram apontados como um grupo perigoso. Sua razão para emitir um regulamento pode ter sido diferente do uso dos “doentes mentais” pelos republicanos para fins de bode expiatório, mas, após um exame atento, o próprio regulamento se enquadra na categoria de “discurso do ódio”.

Após o massacre de crianças na Escola Secundária Sandy Hook em 2012, Obama emitiu um regulamento de “bandeira vermelha” destinado a evitar que os chamados “deficientes” doentes mentais – aqueles que receberam do governo cheques de invalidez por causa de um transtorno psiquiátrico – comprassem armas. O regulamento exigia que a agência da Previdência Social submetesse os nomes de tais adultos ao banco de dados federal para verificação de antecedentes. No entanto, o regulamento não entrou em vigor até pouco antes do governo Trump ser inaugurado, e então Trump rapidamente cancelou.

Obama sugeriu que isso adicionaria 75.000 nomes ao banco de dados de verificação de antecedentes e, assim, evitaria que esse grupo de pessoas com deficiência comprasse armas. No entanto, esse número de 75.000 é muito baixo. Atualmente, existem mais de 4,5 milhões de adultos com deficiência devido a um transtorno mental, e outros milhões de pessoas com deficiências do governo que, embora incapacitadas por outro motivo, têm um diagnóstico psiquiátrico. Assim, parece que a regulamentação de Obama, se já tivesse sido implementada, teria adicionado milhões de nomes ao banco de dados de verificação de antecedentes.

Eu não estudei a lista de assassinos em massa, mas não conheço nenhum estudo que tenha descoberto que pessoas que recebem do governo uma pensão devido a um distúrbio psiquiátrico estejam mais propensas a usar uma arma para cometer um assassinato em massa do que a população em geral, quer dizer, mais provável do que os homens brancos com idades entre 18 e 45 anos.

De fato, para comparação, imagine o seguinte cenário. O assassino no genocídio de Sandy Hook foi Adam Lanza, que é um homem branco de 20 anos de idade. Se Obama houvesse então emitido um regulamento “bandeira vermelha”  para homens brancos com idade entre 18 e 45, tornando mais difícil para eles comprar armas, eu tenho certeza que ele teria sido amargamente atacado por seu “preconceito” contra os homens brancos e por promover “o discurso de ódio” contra os brancos. Isso seria assim mesmo – dada a lista de assassinatos em massa que temos – “com base nas evidências” os homens brancos de 18 a 45 anos de idade estão mais propensos assassinatos em massa  do que aqueles que recebem pensão do governo por incapacidade devida a algum distúrbio psiquiátrico.

Com este exemplo em mente, é evidente que havia um elemento de “discurso de ódio” no regulamento de Obama. Sendo de fato “ameaçador” para um grupo específico (os “deficientes” mentalmente doentes), e submete esse grupo ao “preconceito” social. Fica evidente que está havendo a substituição de “homens brancos” por “deficientes por doenças mentais” na equação da bandeira vermelha, havendo o elemento aí do discurso de ódio, inconsciente como pode ter sido a intenção do governo Obama.

Quem são os doentes mentais?

Como o Washington Postescreveu em um de seus artigos sobre os comentários de Trump, a acusação de doença mental feita por ele poderá fornecer suporte para leis de “bandeira vermelha” que venham tornar mais difícil para os doentes mentais obterem armas. A regulamentação de Obama visava pessoas com deficiência; o mantra da doença mental da “culpa” implica que a sociedade deve lançar uma rede muito mais ampla.

É dito que um em cada cinco adultos americanos sofra de uma doença mental em qualquer ano. Esta cifra surge de inquéritos populacionais que usam o Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Americana de Psiquiatria para definir as linhas limítrofes para determinar quem é “mentalmente doente”.

Isso significa que há 46 milhões de adultos que são considerados “doentes mentais” nos Estados Unidos. Mais uma vez, não conheço nenhum estudo que tenha descoberto que esse grande grupo de pessoas em nossa sociedade seja mais violento ou tenha maior probabilidade de cometer assassinatos em massa do que a população em geral. Mas quando temos políticos e outros culpando a doença mental como a causa raiz do assassinato em massa, trata-se de um discurso que destaca essa população como  a “mais perigosa” do que o resto da população dos EUA.

Agora, o que nossa sociedade poderia fazer em resposta a essa crença? Deveríamos, com base nesses números, aprovar leis que examinariam toda a população com doenças mentais e impedir que os 46 milhões de adultos que são considerados doentes mentais comprem armas, enquanto permitem que o resto da população faça isso?

Eu duvido que faremos isso. Essa ampla rede de escaneamento captaria muitas pessoas que possuem armas, o que tornaria politicamente inaceitável. Nesse sentido, a acusação de “doença mental” é apenas conversa vazia, de natureza diversa, e não pretende ser a base para qualquer mudança legislativa.

No entanto, já temos uma agenda legislativa que focaliza um subgrupo menor de “doentes mentais” – aqueles que estiveram em um hospital psiquiátrico. Para aqueles que têm essa experiência em seus currículos, aonde nos leva E. Fuller, o Flautista do Discurso de Ódio?

Culpando o assassinato em massa no doente mental “não medicado”

Durante vinte anos, E. Fuller Torrey tem usado o espectro da violência dos doentes mentais “sem tratamento” para defender as leis estaduais que autorizem seu tratamento forçado na comunidade. Por exemplo, em uma entrevista para o 60 Minutes.

em 2013, Torrey disse que sem essa legislação, o país precisaria aceitar ocorrências regulares de assassinatos em massa, como o que aconteceu em Tucson, Arizona, e na Virginia Tech.

Seu editorial no Sunday Wall Street Journal, intitulado Doença Mental e Assassinato em Massa, não passou de repetição do que costuma dizer. Ele afirmou que havia um milhão de pessoas nos Estados Unidos que no passado teriam sido institucionalizadas em hospitais públicos, mas que agora viviam na comunidade, e que talvez metade dessa população não estivesse sendo tratada por sua doença. Ele então sugeriu que este é o grupo responsável pela maioria dos assassinatos em massa. Ele escreveu:

“O que fica claro em todos os bancos de dados é que esses assassinatos em massa estão aumentando em frequência e ocorrendo desde os anos 80. Não por coincidência, foi quando o esvaziamento dos hospitais mentais do estado esteva em seu auge ”.

Tendo posto a culpa pela maioria dos assassinatos em massa aos doentes mentais “não tratados”, Torrey argumentou que o tratamento ambulatorial forçado poderia ajudar a eliminar a ameaça que essas cerca de 500.000 pessoas apresentavam à nossa sociedade. Uma vez que os doentes mentais são tratados, ele disse, eles não são mais propensos a cometer violência do que a população em geral.

“Nós sabemos o que fazer para reduzir o número de assassinatos em massa associados à doença mental”, concluiu ele. “A questão é se temos a vontade de fazê-lo.”

O discurso de ódio, é claro, conta mentiras sobre o grupo-alvo e usa essa informação para provocar preconceito em relação ao grupo. A acusação de Torrey aos doentes mentais não tratados pela maioria dos assassinatos em massa faz exatamente isso. Aqui estão apenas alguns dos fatos que desmentem seu argumento:

  • Vários de nossos assassinos em massa estavam tomando drogas psiquiátricas quando cometeram seus atos assassinos. Os antidepressivos, em particular, são objeto de uma possível culpabilidade; estudos descobriram que eles podem atiçar impulsos homicidas.
  • Torrey não forneceu evidências de que a maioria dos assassinatos em massa nos últimos 25 anos tenha sido cometida por pessoas que tiveram alta de hospitais psiquiátricos, e ainda assim suas leis de tratamento forçado visam esse grupo. Pessoalmente, gostaria de ver um estudo que tenha avaliado a porcentagem de nossa lista de assassinos em massa nos últimos 25 anos que passou um tempo em um hospital psiquiátrico; estou disposto a apostar que a porcentagem é muito baixa.
  • Na era anterior à introdução de drogas antipsicóticas, os pacientes que receberam alta dos hospitais psiquiátricos cometeram crimes na mesma proporção ou em uma taxa menor do que uma coorte combinada (nível de educação e renda) na população em geral. O risco de violência por parte dos “doentes mentais graves”, apesar de muito exagerado na mente do público hoje, subiu acima da taxa geral da população durante nossa era moderna de uso generalizado de drogas psicotrópicas.
  • O número de pessoas tratadas para transtornos psiquiátricos aumentou drasticamente desde os anos 80, com 20% da população adulta tomando diariamente uma droga psiquiátrica diariamente. Se aplicarmos o raciocínio de Torrey, podemos concluir que “a frequência de assassinatos em massa” aumentou com a expansão da empresa psiquiátrica no país.

Então, o que Torrey está fazendo em seu editorial? Ele está incitando o ódio social para quase meio milhão de pessoas – esse número é sua estimativa – que estiveram em hospitais psiquiátricos e pararam de tomar drogas psiquiátricas. Ele está colocando um grande rótulo vermelho de PERIGO neste grupo, e os culpando pelo aumento dos assassinatos em massa e pedindo que sua liberdade seja tirada, como se isso fosse um remédio para essa violência que regularmente irrompe em nossa sociedade. Ele está usando um argumento alarmista para promover sua própria agenda política.

E assim, por favor: que não mais se culpe os “doentes mentais” por essa violência horrível em nossa sociedade. É um tipo de discurso de ódio, por todas as razões listadas acima, e tudo o que ele faz é provocar um profundo preconceito social contra as pessoas diagnosticadas com um distúrbio psiquiátrico, e impedir que façamos algo que possa realmente reduzir a frequência de tais horríveis e vergonhosos eventos.

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Nota dos Editores do Mad in Brasil:

Aguardem as próximas edições. Serão duas postagens nas quais Robert Whitaker mostra, a partir das evidências científicas, o quanto a  Psiquiatria baseada no modelo biomédico é falaciosa, quando defende o “tratamento involuntário” para o tratamento psicofarmacológico. 

“O Diagnóstico é uma Forma de não Escutar”

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Publicado na última edição da Revista RADIS, agosto 2019: uma entrevista com Will Hall. No dia 02/7/19, a convite do LAPS (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental), Will Hall deu uma palestra sobre Os Desafios com a Retirada da Droga Psiquiátrica. Em seguida, a jornalista Elisa Batalha, da RADIS, Will Hall deu essa interessante entrevista.

“Na entrevista, ele fala sobre sua relação com a família, resgata situações do tempo em que era paciente e de hoje, quando atua como terapeuta, defende a participação dos usuários nos processos de recuperação e alerta para as estratégias de cooptação engendradas pelo mercado. Ao fim, recomenda: ‘A solução para os problemas de saúde mental é ouvir a voz dos pacientes’.”

A respeito do diagnóstico psiquiátrico, um dos temas centrais do III Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, que ocorrerá na última semana de Outubro de 2019, na ENSP/RJ, evento promovido pelo LAPS, Will Hall perguntado sobre o que ele acha da proposta da Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia responde o seguinte:

“É uma alternativa de diagnóstico mais orientada pela história e pela vida da pessoa. E também pelo trauma. A proposta é boa, mas ainda não vai até as raízes do problema. Qualquer coisa que enfrente o trauma, ouvindo as vozes e interessada na história da pessoa, é muito melhor do que temos agora. O que temos agora é o diagnóstico, que é uma forma de insultar, é uma forma de não escutar. O raciocínio é: ‘Eu vou ouvir e escutar só até ter o suficiente para dar um diagnóstico ou para colocar você em uma categoria.’ Nós já sabemos que, se para ter uma relação de amizade eu te coloco em uma categoria, isso vai destruir nossa relação. Então, temos que enfrentar o outro como outro e estar aberto à sua própria história, e desenvolver uma relação de confiança. Isso é essencial para a recuperação.”

 

 

 

 

Veja a matéria na íntegra, clicando aqui →

 

A Medicalização dos Índios Xukuru de Cimbres

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O artigo Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres de autoria das pesquisadoras Valquiria F. B. Barbosa, Luana B. Cabral e Ana Carla S. Alexandre, todos do Instituto Federal de Pernambuco, e publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, traz um tema muito relevante para a saúde mental brasileira, e ainda pouco tratado pela academia, o uso de psicofármacos pela população indígena.

O processo de medicalização favorece a perda da autonomia por parte do sujeito, a despolitização dos problemas sociais e a desvalorização do contexto, desconsiderando que a saúde é uma experiência complexa, que vai mais além da falta de doença. Dessa forma, o sujeito é culpabilizado e suas experiências individualizadas.

“Envolve modelos de atenção à saúde e estratégias de cuidados e tratamento que focalizam comportamentos individuais. Esse processo encontra forte apoio na indústria de produtos farmacêuticos e, ao mesmo tempo, ignora os contextos dos sujeitos e coletividade, reduzindo as explicações de problemas e ignorando os fatores sociais, culturais, psicológicos ou ambientais que influenciam o fenômeno.”

A medicalização do sofrimento é ainda mais grave quando olhamos para os povos indígenas. O conceito de saúde para eles está ligado à terra e à ideia de harmonia com a natureza.

“O conceito de saúde para esses povos está relacionado à terra e à harmonia com a natureza, entendida como construção coletiva, inserida num sistema de organização próprio, que contempla o equilíbrio do corpo. Assim, alguns elementos são considerados
fundamentais à saúde, como: autonomia, cidadania plena, propriedade da terra, uso exclusivo dos recursos naturais e integridade dos ecossistemas específicos.”

O estudo proposto pelas autoras é descritivo, desenvolvido na comunidade indígena Xukuru de Cimbres, localizada no município de Pesqueira – PE, no ano de 2016. Em 2001 o povo de Xukuru de Ororubá vivenciou uma batalha interna que gerou a divisão em dois grupos: o Xukuru de Ororubá e o Xukuru de Cimbres. Após a morte de dois indígenas que eram aliados dos Xuruku de Ororubá, houve a divisão da comunidade. Os índios Xukuru de Cimbres migraram para as periferias da cidade de Pesqueira -PE, onde ficaram sujeitos às condições precárias de vida e trabalho.

Da amostra de 75 indígenas, 8% utilizam psicotrópicos. Entre os psicotrópicos consumidos 78,67% fazem uso de Benzodiazepínicos, 17,33% fazem uso de antidepressivos e 4% fazem uso de outros psicotrópicos como Barbitúricos, Antipsicóticos e compostos do Lítio. O maior uso de psicofármacos é realizado por mulheres, na faixa etária de 30 a 59 anos, que possuem uma renda maior que um salário mínimo.

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“A maioria dos usuários de psicotrópicos dos três grupos não procura o pajé, correspondendo a 93,22% (55) dos que usam BZD e 100% dos
usuários de Antidepressivos (13) e outros psicotrópicos (3). Já no quesito tempo de uso, a maioria dos grupos estudados utiliza o psicotrópico há mais de 2 anos, resultado representado por 83,05% (49) dos que usam BZD; 76,92% (10), dos que utilizam Antidepressivos; e 66,67% (2) dos que consomem outros psicotrópicos.”

O fato dos Xukuru de Cimbres estarem afastados da aldeia faz com que eles se afastem também da natureza e de seus recursos, assim como da liderança espiritual do pajé, responsável por curar as doenças do corpo e da alma, ocasionando em uma perda de referência.

“(…) faz-se perceptível o impacto do desaldeamento, desterritorialização e aculturação na predominância de práticas terapêuticas alopáticas características do modelo biomédico, em detrimento das práticas tradicionais de cura indígenas, que envolvem rituais, rezas, banhos, chás e beberagens.”

É necessário maior interesse e investimento no estudo da saúde mental indígena, principalmente frente aos ataques recebidos por essa população. A luta pela preservação do território indígena, o desmatamento, a falta de recursos naturais, entre outros acontecimentos atuais, são possivelmente causas de adoecimento para essa população. Apenas medicar essas queixas e sofrimentos é uma forma de calar esses sujeitos, ao invés de resolver as causas do adoecimento relacionadas à violação dos direitos indígenas.

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BARBOSA, Valquiria Farias Bezerra; CABRAL, Luana Beserra; ALEXANDRE, Ana Carla Silva. Medicalização e Saúde Indígena: uma análise do consumo de psicotrópicos pelos índios Xukuru de Cimbres. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 24, n. 8, p. 2993-3000,  ago.  2019 . (Link)

A PSICOLOGIA SOB ATAQUE

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No domingo passado, dia 11 de agosto de 2019, houve um debate muito importante no canal da pós-TV 247.

Há um explícito e contundente avanço da política neofascista do governo Bolsonaro. Os órgãos de representação dos psicólogos não escapam dessa ofensiva. Os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia estão sob ameaça de passarem a ser dirigidos por bolsonaristas e fundamentalistas evangélicos.

O Brasil tem cerca de 343.000 psicólogos, apenas atrás dos Estados Unidos.  A tradição da Psicologia é seu compromisso com a Ciência, estar a serviço das demandas da população por melhores condições de vida e promoção da saúde mental, a defesa intransigente dos Direitos Humanos e a diversidade religiosa, de gênero e cultural, entre outros princípios ético-profissionais.

Entre os dias 23 e 27 de agosto de 2019 teremos eleições para as direções dos Conselhos.

É o momento de estarmos todos juntos na Frente, tão diversa e plural, que concorre nos diversos estados brasileiros. O madinbrasil apoia entusiasticamente a chapa  11 para o CRP-RJ , Ética e Democracia em Defesa da Psicologia, e  para o CFP, chapa 21, cujo nome é Frente em Defesa da Psicologia Brasileira.

Veja no mapa as chapas apoiadas pela Frente →

Vejam o debate clicando aqui →

Antidepressivos Mitigam a Capacidade para Sentir Empatia

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Photo Credit: U.S. Army photo

A empatia é parte integrante da socialização humana. É como mostramos aos outros que entendemos e nos importamos com o estado emocional deles. Mas o que acontece se os medicamentos que você está tomando diminuírem essa capacidade? Um novo estudo sugere que tomar antidepressivos prejudica a empatia, enquanto a experiência da depressão em si não faz o mesmo.

A pesquisa foi liderada por Markus Rütgen e Claus Lamm, da Universidade de Viena, na Áustria. Foi publicado na revista Translational Psychiatry.

Photo Credit: U.S. Army photo

Pesquisadores anteriores sugeriram que a depressão em si resulta em menor empatia em relação aos outros. No entanto, essa pesquisa é limitada por uma falha significativa – quase inteiramente conduzida em pessoas que estão tomando antidepressivos. Um problema adicional com pesquisas anteriores é que elas se concentraram na empatia autorrelatada – que não é confiável em estudos de depressão.

No presente estudo, os pesquisadores procuraram resolver essas duas falhas com o desenho do projeto de pesquisa que fizeram. Primeiro, eles compararam pessoas com um diagnóstico de depressão (“TDM aguda”) sem estar a tomar antidepressivos para pessoas sem diagnóstico de depressão (grupo de controle ‘saudáveis’). Eles então fizeram o mesmo teste depois que os participantes tiveram três meses de uso de antidepressivos. Três diferentes antidepressivos foram usados: escitalopram, venlafaxina e mirtazapina, cada um com efeitos ligeiramente diferentes no sistema de serotonina.

Além disso, ademais de pedir aos participantes que relatassem seus níveis de empatia, os pesquisadores usaram uma tomografia computadorizada de ressonância magnética funcional. Eles usaram os testes padrão de fMRI para conectividade funcional entre partes do cérebro associadas a respostas empáticas à dor. Enquanto eram submetidos ao scan do cérebro, os participantes assistiram a vídeos de uma pessoa que sofria de dor por cerca de seis minutos e meio.

Os resultados? Pessoas com diagnóstico de depressão não foram diferentes daquelas do ‘grupo de controle dos saudáveis’ em termos de resposta empática, conforme medido pelo fMRI.

Os pesquisadores escrevem que isso indicava “uma resposta empática ‘normal’em pacientes com TDM aguda antes de serem submetidos a tratamento antidepressivo”.

No entanto, após três meses de tratamento com antidepressivos, as pessoas tiveram muito menos ativação nas áreas do cérebro associadas à empatia. Não houve diferença com base em qual o antidepressivo foi o usado.

Curiosamente, a empatia autorrelatada também mudou: após os participantes tomarem antidepressivos por três meses, eles relataram que era significativamente menos desagradável observar uma pessoa com dor por seis minutos e meio. Segundo os pesquisadores:

“Após três meses de terapia, os pacientes mostraram respostas neurais diminuídas em áreas do cérebro selecionadas a priori que são ativadas de forma confiável pela dor empática (IA bilateral e CCAM), e relataram um decréscimo do afeto desagradável em resposta à dor de outros.”

O estudo, portanto, demonstrou que os medicamentos antidepressivos facilitam a observação de outros com dor e que esse efeito é detectável no cérebro.

Em sua conclusão, os pesquisadores sugerem que a falta de empatia em relação aos outros “pode ser um efeito colateral vantajoso enquanto uma função protetora”.

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Rütgen, M., Pletti, C., Tik, M., Kraus, C., Pfabigan, D. M., Sladky, R., . . . Lamm, C. (2019). Antidepressant treatment, not depression, leads to reductions in behavioral and neural responses to pain empathy. Translational Psychiatry, 9(164). https://doi.org/10.1038/s41398-019-0496-4 (Link)

A Depressão entre Jovens Britânicos

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A matéria do jornal britânico The Guardian, produzida por Eleanor Morgan, mostra que os jovens britânicos estão utilizando cada vez mais serviços de saúde mental, que em apenas dois anos houve uma aumento de 45% (700.000) de encaminhamentos de jovens para esses serviços. O que estaria causando tamanho aumento? Será que a atual geração de jovens é mais deprimida, ansiosa e vulnerável do que as anteriores?

Existem algumas pistas, segundo a matéria. O atual governo neoliberal britânico vem produzindo o aumento da pobreza no país e cortando verbas dos benefícios sociais básicos da população. A falta de apoio e ajuda que esses jovens vem enfrentando, apesar das frequentes campanhas de saúde informando que eles devem pedir auxílio de outras pessoas e do sistema de saúde, o que também pode ter provocado ao mesmo tempo um crescente medo e a patologização de emoções fortes, comuns e indispensáveis à existência humana. Por outro lado, também existe um crescente exagero nos diagnósticos realizados, e consequentemente, uma maior medicação e cronificação desses sujeitos.

 

Leia a matéria na íntegra → Young, British and Depressed: we need way more TV like this (link)

Algumas Notas sobre a Importância da Atenção à Saúde Mental no Contexto do Trabalho

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O trabalho ocupa atualmente uma função central na vida dos indivíduos, desta maneira, os mais diversos aspectos relacionados à atividade laboral ocasionarão demandas no campo da saúde mental. Analisar o trabalho em uma perspectiva psicossocial é uma das formas de considerar a realidade do trabalho como um conjunto de processos permeado por questões do contexto, das relações interpessoais estabelecidas e da trajetória individual de cada trabalhador.

Para compreender o sentido do trabalho em uma perspectiva psicossociológica no contexto atual – e toda a intensidade e predominância que ele representa – é preciso considerar não apenas que o seu papel é resultante dos vários momentos históricos que foram de diferentes maneiras, moldando a relação do indivíduo com o trabalho; como também é preciso compreender que é recente o entendimento de que o trabalho tem efeitos sobre a saúde mental, visto que o trabalho não está apartado das dimensões emocionais e cognitivas, mas na verdade, configura-se como um dos elementos centrais de expressão destas dimensões. Neste sentido, ao se falar do trabalho do ponto de vista psicológico é necessário considerar que o trabalho rege a vida, a organização do tempo, das relações interpessoais e dos grupos sociais, entretanto, por muito tempo o trabalho humano não foi pensado como parte da vida das pessoas e não era considerado fator importante na constituição da dimensão psíquica (Borsoi, 2007).

É importante compreender ainda que o trabalho demanda processos no âmbito psicológico tanto em função das implicações das condições de trabalho na saúde do trabalhador, como também em função da sua ausência, pois não compor o cenário do mercado de trabalho representa carência em vários âmbitos: do meio de subsistência, da forma de elaboração criativa, da organização do tempo, da perspectiva futura de sustento, da inserção em um grupo social, do desenvolvimento da carreira, da expressão da identidade – o que pode ocasionar sofrimento, além de exclusão social, pois quando o individuo encontra-se desempregado ou aposentado sente-se vulnerável em decorrência da ausência do trabalho. Tudo isto porque o trabalho não se restringe à satisfação das necessidades básicas, mas é também constituinte da identidade humana, favorece a autoestima, as potencialidades e o sentimento de pertença no meio social (Navarro & Padilha, 2007).

O trabalho é resultado dos esforços do ser humano para assegurar a satisfação de suas necessidades e sobrevivência e, de acordo com Ramos (2008), o trabalho data dos tempos mais remotos da história humana, porém nas sociedades antigas e pré-letradas não era institucionalizado, desta maneira, passou a ser tema de discussão a partir da industrialização, quando a produção exigiu que ele fosse mais eficiente e prático. Atualmente, o trabalho, quando formalizado configura-se como emprego – trabalhoconfigura-se como um esforço intencional que produz alteração no ambiente visto que tem o propósito de produzir transformação, neste sentido o trabalhopode ser remunerado ou não, como é o caso do trabalho informalou trabalho voluntário; já o empregoconfigura-se como a formalização, por meio de vínculo legal, da atividade de trabalho (Zanelli & Silva, 2008). A discussão aqui se refere ao trabalhoem qualquer uma de suas formas de expressão, independente de seu modelo adotado. Neste sentido, despendendo do formato executado, a ação de trabalharpode ser fonte de prazer a partir do momento que proporciona capacidade de transformação além da possibilidade de constantemente aprendizado, aquisição de conhecimento, invenção e modificação da natureza. Entretanto, o trabalho também pode gerar sofrimento, quando realizado em condições precárias, com falta de recursos financeiros, sob relações abusivas e falta de autonomia (Viana & Machado, 2011).

A compreensão da dimensão central do trabalho na vida humana levou a Psicologia, no percurso de seu desenvolvimento, a englobar o trabalho no seu escopo de estudo, tendo em vista que compreender a forma como os seres humanos vivenciam a ação de trabalhar possibilita uma melhor compreensão acerca do comportamento humano – o trabalho representa o elo entre as experiências pessoais e coletivas e, diante da ocorrência de intensas pressões por trabalho em todos os níveis hierárquicos nas organizações, da intensificação das mudanças tecnológicas, da concorrência globalizada e do desemprego estrutural, das cobranças contínuas pela resolução de problemas e obtenção de produtividade; as demandas relacionadas ao trabalho são processos de expressão de fragilidade e também de satisfação e prazer (Zanelli, 2010). Vale ressaltar que ainda atualmente grande parte dos profissionais do campo da saúde mental não se atenta ao fato de que, o indivíduo que busca suporte psicológico é um trabalhador ou alguém que vivencia a falta de trabalho, portanto, mesmo de forma indireta, muitos dos processos relacionados ao universo contemporâneo do trabalho estarão relacionados às suas queixas psíquicas elaboradas.

O estudo do sofrimento psicológico no campo do trabalho pode ser embasado em abordagens distintas – as Individualistas, as Psicossociológicas e a Psicodinâmica do trabalho. Na perspectiva das Abordagens Individualistasa explicação para o processo de saúde-doença no ambiente de trabalho tem o foco mais nas características pessoais do que nas condições de trabalho e na relação do trabalhador com a atividade; em relação às Abordagens Piscossociológicaso trabalho é visto como estruturante para o indivíduo e para a sociedade e, desta maneira, trabalhar é fonte de promoção de saúde e de construção da identidade, entretanto, pode também ser fonte de adoecimento – neste sentido, a explicação para o processo saúde-adoecimento tem o foco nas condições de trabalho, sendo este cenário eleito como origem do nexo causal entre trabalho/saúde-doença; com respeito à Psicodinâmica, a discussão sobre a saúde psíquica e o contexto do trabalho pauta-se na intenção em focar a saúde e as estratégias que os trabalhadores empregam para a manutenção da saúde, o trabalho tem um papel apenas desencadeador dos processos de fragilidade psíquica e o nexo entre a relação trabalho/saúde-doença não é centralizado (Borges, Guimarães & Silva, 2013).

Independente do olhar voltado para os problemas de ordem da saúde mental no contexto do trabalho é preciso considerar que tais alterações são resultado de um processo dinâmico composto por fatores de esfera biológica, psicológica e social e, portanto, necessitam de formas de atuação que proporcione a atenção à saúde, com vistas a criar estratégias de intervenções pautadas em prevenção, assistência e promoção da saúde, sob uma perspectiva ampla que integre diversas áreas do conhecimento demarcado pela interdisciplinaridade (Sato, Lacaz & Bernardo, 2006).

Os efeitos do trabalho nas esferas biológica, psicológica e social podem,por exemplo,ser observados nas atividades realizadas no turno noturno: as queixas sobre o cansaço físico, o estresse, a desregulação do ciclo do sono e os impactos gerados nos relacionamentos sociais (representados pela dificuldade em encontrar familiares, amigos, grupos de convivência, falta de energia para aproveitar as folgas em momentos de lazer), possuem relação com processos de adoecimento dos trabalhadores de diversas áreas, como os Serviços Gerais, os profissionais do setor Hoteleiro, os profissionais da Saúde e da Segurança (Belo, Costa, França, Nascimento e Pereira Neta, 2017). Tais trabalhadores exercem suas atividades vivenciando constantes riscos ocupacionais que podem ser caracterizados como ocultos, aqueles cujo trabalhador sequer desconfia de sua existência; latentes, àqueles que ocasionam danos em situação de emergência; reais, quando todos os envolvidos têm conhecimento de sua existência, porém, por seus custos serem elevados ou pela falta de interesse público em resolvê-los, estes riscos têm suas possibilidades de controle diminuídas (Bulhões, 1994).

Os diversos processos de preconceito e exclusão social também são responsáveis por vivências de fragilidade no contexto do trabalho, portanto, o estudo do preconceito é uma das formas de acesso a esta problemática. Neste aspecto o preconceito pode ser conceituado tanto em uma vertente da Cognição Social – com enfoques afetivos e emocionais, como em uma visão psicossociológica – com enfoque nos processos de exclusão e inclusão social na qual o preconceito é definido como uma forma de relação intergrupal organizada em torno das relações de poder entre grupos, produzindo representações ideológicas que buscam justificar a expressão de atitudes negativas e depreciativas, bem como a expressão de comportamentos hostis e discriminatórios (Camino & Pereira, 2000).

Nesta perspectiva o contexto do trabalho configura-se como um cenário de construção das representações discriminatórias com discursos hostis produzidos na dinâmica da interação social, constituindo-se assim como um elemento fundamental para que as representações sejam compartilhadas e também instituídas e reelaboradas.Os discursos são pronunciamentos sobre uma dada realidade e quando proferidos, trabalham com as ideias de seu tempo e da sociedade em que foram elaborados – discursos discriminatórios são capazes de moldar as ações discriminatórias dos indivíduos, inclusive de forma sutil, pouco reconhecível à primeira vista e expressado de várias maneiras no contexto laboral.

Discutir a respeito da importância da atenção à saúde mental no contexto do trabalho não se esgota nos aspectos aqui mencionados quando se chega à conclusão que falar em trabalho é falar em um processo central que solicita instâncias físicas, psíquicas e sociais, realizado, na maioria das vezes, em um contexto de precariedade. Diante disto, os profissionais da saúde mental necessitam estar atentos aos atuais marcadores sociais que regem as questões no campo do trabalho e, somado a isto, considerar a possibilidade de uma ligação entre a vivência do trabalho e as queixas da esfera psíquica.

Referências

Belo, R. P.; Costa, W. R. da; França, R. S. de; Nascimento, F. H. M. do e Pereira Neta, A. S. (2017). O trabalho noturno em diferentes campos de atuação: seus efeitos na saúde do trabalhador da cidade de Parnaíba-PI. Relatório do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC e Programa Institucional de Iniciação Científica Voluntária – ICV. Universidade Federal do Piauí.

Borges, L. de O.; Guimarães, L. A. M. e Silva, S. S. da (2013). Diagnóstico e promoção da saúde psíquica no trabalho. Em: L. Borges e L. Mourão, O trabalho e as organizações. Porto Alegre: Artmed.

Borsoi, I. C. F. (2007). Da relação entre trabalho e saúde à relação entre trabalho e saúde mental. Revista Psicologia & Sociedade, 19, 103-111.

Bulhões, I. (1994).Riscos do trabalho de enfermagem.2.ed. Rio de Janeiro: Editora Folha Carioca.

Camino, L. & Pereira, C. (2000). O papel de Psicologia na construção dos Direitos Humanos: Análise das teorias e práticas psicológicas na discriminação ao homossexualismo. Revista Perfil (13), 49-69.

Navarro, V. L. e Padilha, V. (2007). Dilemas do Trabalho no Capitalismo Contemporâneo. Psicologia e Sociedade; 19, Edição Especial 1, 14-20.

Ramos, G. (2008). Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho.Brasília: Conselho Federal de Administração.

Sato, L.; Lacaz, F. A. de C. e Bernardo, M. H. (2006). Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na Saúde Pública de São Paulo. Estudos de Psicologia, 11(3), 281-288.

Viana, E. A. de S. e Machado, M. N. da M. (2011). Sentido do trabalho no discurso dos trabalhadores de uma ONG em Belo Horizonte. Psicologia & Sociedade, 23 (1), 46-55.

Zanelli, J. C. e Silva, N. (2008). Interação humana e gestão: a construção psicossocial das organizações de trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Zanelli, J. C. (2010). Estresse nas organizações de trabalho: compreensão e intervenção baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed.

Uma Experiência Brasileira Baseada no Diálogo Aberto (Open Dialogue)

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Há dois anos foi iniciado em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, o projeto Roda de Conversa, baseado nos sete princípios do Open Dialogue (Diálogo Aberto): resposta imediata, inclusão na rede social, flexibilidade e mobilidade, responsabilização, garantia de continuidade, tolerância à incerteza e dialogismo. Como resultado dessa experiência, foi produzido o artigo Open Dialogue: Uma Experiência no Brasil, de autoria do psiquiatra Marcelo José Fontes Dias e publicado na revista Diversitates (UFF).

O autor realizou uma primeira experiência em 2015, quando trabalhava como apoiador matricial de equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) da cidade de Jaraguá. Baseado em dois dos princípios do Diálogo Aberto, ‘dialogismo’ e ‘inclusão na rede’, Marcelo realizou intervenções em três pacientes em crise psicótica, as quais foram realizadas na casa do paciente e com a presença da família. Como resultado da intervenção, todos os pacientes saíram da crise em no máximo 15 dias e somente um deles fez uso de medicação em doses baixas. Além disso, não houveram internações e todos os pacientes voltaram a trabalhar.

Com os bons resultados, a gestão e outros profissionais doa saúde mental de Jaraguá, decidiram ampliar a ação territorial. Resolveram então, utilizar novamente o modelo do Diálogo Aberto, dessa vez tentando se aproximar dos sete princípios propostos pela abordagem finlandesa, mas com a consciência da possível necessidade de adaptação para a realidade do local. Isso porque não haviam profissionais suficientes nem a formação exigida no Diálogo Aberto, além da rede de serviços ser diferente da finlandesa. Em função da adaptação a estratégia foi chamada de Roda de Diálogo.

A primeira dificuldade encontrada pela equipe foi quanto à formação e capacitação dos profissionais, pois na Finlândia é exigida a formação de três anos para os profissionais atuarem com o Diálogo Aberto. A solução encontrada pela equipe foi realizar uma apresentação sobre a abordagem finlandesa e seus princípios para todos os profissionais da saúde mental e da atenção básica, a fim de que todos pudessem participar na Roda de Diálogo. Qualquer profissional de nível médio ou superior poderia participar da equipe, desde que participasse também dos encontros semanais de educação permanente.

Os princípios de inclusão na rede social, flexibilidade e mobilidade foram alcançados sem obstáculos. Todos os encontros aconteceram na residência do paciente em crise, com as pessoas da sua rede social. As decisões a respeito do tratamento foram sempre tomadas durante as ‘rodas de diálogo’, inclusive quanto ao uso de medicamentos. O princípio da responsabilização foi levada em consideração a partir da criação de um grupo de Whatsapp formado pelos profissionais que aderiram ao projeto, os casos eram colocados no grupo e agendados dentro de 24 horas. A roda deveria ser composta por pelo menos dois profissionais, e um deles deveria participar de todos os encontros. Apenas dois casos tiveram descontinuação no acompanhamento.

A tolerância à incerteza foi considerado o princípio mais difícil de ser alcançado. Este princípio significa que o profissional deve participar da roda sem definições preliminares, a verdade é do paciente. As maiores dificuldades encontradas pela equipe foi a presença diária nas rodas, já que o Diálogo Aberto sugere que no início do tratamento os encontros devem ser diários nos primeiros 10 a 12 dias. Outra dificuldade encontrada foi de não inciar logo o medicamento e não se colocar em uma relação verticalizada em relação à rede. Apesar das dificuldades, a equipe conseguiu fazer até 3 rodas por semana e não medicaram no início do tratamento. Quanto ao princípio do Dialogismo, o autor fez uma fusão entre o modelo finlandês e a sua realidade como psicanalista de orientação lacaniana, associando algumas ideias do dialogismo de Bakhtin, fortemente empregadas pela abordagem do Diálogo Aberto, com algumas propostas de Lacan.

Dos pacientes abordados pelo trabalho (10 pacientes), apenas 3 encontravam-se em sua primeira crise psicótica, do restante alguns já faziam uso de psicofármacos. Desses apenas 1 precisou ser internado e outro foi encaminhado para tratamento exclusivo no CAPSII. Dois pacientes saíram das crises sem uso de medicamentos e os demais o utilizaram, mas em doses baixas.

A maioria dos profissionais envolvidos se mobilizou para um rápido início de tratamento dos pacientes, e a inclusão de profissionais da atenção básica e de nível técnico nas rodas foram facilitadores do diálogo, assim como a presença de um psicanalista auxiliou no entendimento e aplicação do dialogismo. A implicação dos gestores de saúde mental e atenção básica foi identificado como fundamental já que a eficácia do Diálogo Aberto depende dos contextos institucionais e treinamento de equipe.

Como dificuldades o autor apontou para a pouca adesão de profissionais do CAPS, a gestão ficou centrada nas mãos dos apoiadores matriciais. A proposta feita pelo autor é criar uma equipe fixa e delimitar a clientela – ou seja, aqueles que estejam na sua primeira crise psicótica -, e que a gestão ocorra a partir do CAPS. A forte cultura da medicalização entre os profissionais pode ter influenciado a dificuldade quanto a tolerância à incerteza. Também foi sugerido pelo autor que a equipe tenha acompanhamento psicoterapêutico.

O artigo tem uma enorme relevância, traz uma experiência pioneira de grande importância para o cenário da saúde mental brasileira. Existem alguns artigos brasileiros sobre o Diálogo Aberto, mas nenhum ainda havia trazido uma experiência de tentativa de implementação nos serviços brasileiros. Essa experiência mostra que o princípios do Diálogo Aberto, mesmo em uma cultura muito diferente da finlandesa, obtiveram resultados significativos, o que nos deve deixar atentos a essa abordagem. Ademais, podemos ver que não foi necessário aumento dos gastos financeiros, ou uma mudança drástica nos serviços para a implementação do projeto, o que abre portas para mais tentativas de implementação. É possível que futuramente tenhamos mais experiências bem- sucedidas no Brasil!

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DIAS, M.J.F. Open Dialogue: uma experiencia no Brasil. Diversitates Int j 09(3): 97-110, 2017. (link)

Ajudar as pessoas a sair da medicação – ruim para os negócios?

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JAMA, o Jornal da Associação Médica Americana publicou recentemente um artigo de opinião de dois influentes cientistas, Alan Leshner, da Associação Americana para o Avanço da Ciência, e Victor Dzau, da Academia Nacional de Medicina, que defendem o chamado tratamento baseado em medicação para o ‘transtorno de uso de opioides’. O tratamento baseado em medicação envolve o uso de metadona, buprenorfina ou naltrexona de liberação prolongada para ‘aliviar os sintomas de abstinência, reduzir os desejos de opiáceos e diminuir a resposta ao uso futuro de drogas’, cuja causa é o uso de analgésicos opiáceos.

Prescrição de medicamentos para resolver problemas causados por outras drogas

O que Lesnher e Dzau sugerem é usar drogas prescritas para resolver problemas causados por outros medicamentos prescritos. Concordo que, em certos casos, isso pode ser útil ou até mesmo necessário para ajudar os pacientes. Mas luto para entender a omissão de uma solução que, pelo menos para mim, parece a melhor a longo prazo para os pacientes; ou seja, ajudando-os a reduzir com segurança e gradualmente o analgésico à base de opioides dos quais eles se tornaram dependentes.

Essa omissão obscurece um fator importante na crise dos opioides e que tem sido deliberadamente explorada pelas empresas farmacêuticas. As drogas são fáceis de serem obtidas, prescritas e tomadas, mas é muito difícil, às vezes quase impossível, parar de tomá-las.

A Food and Drug Administration (FDA) dos EUA reconheceu esse problema. Em 9 de abril, a Agência emitiu o seguinte comunicado de segurança:

“A FDA identifica os danos relatados pela interrupção repentina de medicamentos para a dor como são os opiáceos e requer alterações no rótulo para orientar os prescritores a como proceder para a sua gradual e individualizada diminuição”.

Eu apoio integralmente essa afirmação, mas também vejo um grande problema prático. Como os médicos devem seguir a orientação dada pela agência reguladora ? Usando apenas medicação padrão, essa abordagem cautelosa simplesmente não é possível. Muitos pacientes que tentaram fazer isso já sofreram desnecessariamente. Isso não pode continuar a ocorrer. Não vou aqui falar de suas histórias, mas elas podem ser facilmente encontradas nos sites do Mad, bem como naqueles de apoio dado entre colegas, como o Surviving Antidepressants, embora raramente isso se passe na literatura médica científica.

Para seguir o conselho da FDA, os médicos devem ser capazes de prescrever uma agenda personalizada de redução, permitindo que os pacientes diminuam gradualmente por longos períodos de tempo, dando passos muito curtos. Na Holanda, isso foi possível na prática graças ao desenvolvimento das tiras com doses reduzidas. Para comentar o que foi dito por Leshner e Dzau, considero esta informação relevante para os leitores do JAMA. Portanto, junto com Jim van Os, submetemos a seguinte carta ao Editor.

Carta ao editor do JAMA: Medicação decrescente permite estar conforme à nova orientação de retirada de opioides dada pela FDA

O número de vítimas de abuso de opiáceos na população dos EUA, com cerca de 130 pessoas morrendo a cada dia por overdoses de opiáceos, é entristecedor. [1]  Para ajudar a reduzir o impacto da atual epidemia, Leshner e Dzau defendem o uso de tratamento medicamentoso para o tratamento de transtornos por uso de substâncias. Embora concordemos que em alguns casos uma abordagem baseada em medicação possa ser solicitada e útil, nos perguntamos se, resolvendo o problema da prescrição excessiva de um medicamento pela prescrição de outras drogas, não estamos apenas substituindo um problema de dependência a uma substância pela dependência a uma outra.

Em 9 de abril, a FDA anunciou que exigirá mudanças no rótulo para orientar os prescritores sobre a redução gradual e individualizada dos medicamentos analgésicos baseados em opiáceos, porque a interrupção (forçada) dos opioides pode resultar em dor descontrolada, sintomas sérios de abstinência, sofrimento psicológico e suicídio. [2]

A agência FDA adverte, os profissionais de saúde não devem descontinuar abruptamente os opioides em um paciente que esteja fisicamente dependente. Como não existe uma programação padrão de redução de opiáceos adequada a todos os pacientes, eles devem criar um plano específico para o paciente para reduzir gradualmente a dose do opioide e garantir monitoramento e suporte contínuos, para evitar sintomas sérios de abstinência, piora da dor do paciente ou estresse psicológico.

A questão importante é: podemos fazer a redução gradual possível na prática de forma tal que este bom conselho, que é igualmente apropriado para outros tipos de drogas onde são conhecidos os sintomas de abstinência, possa ser seguido?

Nós abordamos exatamente essa questão desenvolvendo as chamadas tiras com doses reduzidas, que permitem a um médico prescrever cronogramas personalizados, usando uma abordagem compartilhada de tomada de decisão médico e paciente. [3] Os resultados do primeiro estudo observacional sobre o uso dessas tiras mostram o quão bem-sucedida a abordagem pode ser. [4] Dos 895 pacientes que desejaram descontinuar um antidepressivo, 636 (71%) conseguiram se estabilizar completamente, muitos dos quais haviam falhado uma ou várias vezes antes ao usarem outros métodos.

Inicialmente, as tiras com doses reduzidas foram desenvolvidas apenas para reduzir a paroxetina e a venlafaxina, mas depois de recebermos solicitações de pacientes e médicos para também disponibilizá-las para outros tipos de medicação, as tiras também foram desenvolvidas para outros antidepressivos, antipsicóticos, sedativos e antiepilépticos, trabalhando analgésicos centralmente como metadona, oxicodona e tramadol e alguns outros medicamentos. As primeiras experiências com o uso em doses reduzidas gradualmente [5] sugerem que o uso de tiras com doses reduzidas para opioides, como a oxicodona, pode ser uma valiosa primeira opção de tratamento para pacientes que desejarem descontinuar a medicação opioide.

Rejeição de JAMA

“Infelizmente, por causa das muitas submissões que recebemos e das nossas limitações de espaço na seção Cartas, não podemos publicar sua carta no JAMA. . . . . determinamos que a sua carta não recebeu uma classificação de prioridade alta o suficiente para publicação.”

JAMA não quis publicar nossa carta, porque não obteve uma classificação de prioridade alta o suficiente. Fiquei surpreso e desapontado e quis saber quais critérios foram usados para chegar a essa conclusão. Então eu escrevi o seguinte email para o editor.

E-mail para o editor do JAMA

Você escreve que a nossa carta não tem uma classificação de prioridade alta o suficiente. Por que isso é assim,ds não é explicado, então eu só posso adivinhar. Isso significa que JAMA:

  1. Não acha ser um problema de alta prioridade que nos EUA todos os dias 130 pacientes morram de uma overdose de drogas opiáceas e um número muito maior sofra muito tentando sair desses medicamentos com segurança (e muitas vezes em vão)?
  2. Não acha ser um problema se um número desconhecido de pacientes no futuro próximo terá que sofrer desnecessariamente porque eles poderiam ter sido melhor ajudados se seus médicos tivessem sido informados pelo JAMA? O JAMA é uma plataforma importante e influente que atinge um grande público. Todo médico promete não fazer mal. Este compromisso não se aplica também ao JAMA?

Em vista dessas perguntas, peço a gentileza de reconsiderar sua decisão. Se, após reconsiderar, o corpo editorial ainda achar que nossa carta não tem uma classificação de prioridade alta o suficiente, eu agradeceria muito que você fosse gentil em nos explicar quais são as razões para chegar a essa conclusão.

Dentro de alguns dias, recebi a seguinte resposta:

“Eu sinto muito que você não tenha ficado satisfeito com a nossa decisão. Publicamos vários artigos sobre a epidemia de opiáceos, por isso não é exato que não consideremos o tópico uma prioridade alta. No entanto, cada revista tem prioridades diferentes quando se trata de selecionar cartas para o editor publicar. Consideramos as cartas como uma forma de revisão por pares pós-publicação. Assim, procuramos por cartas que comentem diretamente sobre uma questão levantada em um ponto de vista ou em um artigo de pesquisa. Para o JAMA, a coluna de cartas não é um local para informar os leitores sobre novas descobertas científicas, que consideramos ser do espaço de artigos de pesquisa.

Apenas cartas “que comentem diretamente sobre uma questão levantada em JAMA”

JAMA, aparentemente, só quer cartas que “comentem diretamente sobre uma questão levantada em um ponto de vista ou em artigo de pesquisa“. Na minha opinião, isso é precisamente o que fizemos. Dada a urgência e gravidade do problema – somente nos EUA todos os dias 130 pessoas morrem de overdose de opiáceos! – Não consigo entender como nossa contribuição não pode ser considerada diretamente relacionada à questão levantada no artigo de Leshner e Dzau em JAMA.

Concluí que o JAMA simplesmente não quis publicar a nossa contribuição e que seria uma perda de tempo escrever ao editar novamente. Em vez disso, decidi escrever este blog para levantar a seguinte questão:

“Por que uma revista médica influente não está interessada em uma solução prática que comprovadamente ajuda pacientes e que já está disponível?”

No futuro, mas não agora!

Ao longo dos anos, depois de ler milhares de artigos científicos sobre transtornos psiquiátricos e o uso de medicamentos psiquiátricos, ficou muito claro para mim que as revistas médicas querem publicar principalmente sobre drogas ou intervenções que se espera que funcionem melhor do que as existentes, que tenham menos efeitos adversos e que, por fim, devem levar a melhores tratamentos e a melhores diretrizes. No futuro.

Talvez eu tenha me tornado um pouco cínico, mas o que vejo acontecendo de novo e de novo é o seguinte:

Promessas feitas em revistas médicas são principalmente sobre ajudar pacientes no futuro e raramente sobre como ajudá-los exatamente agora.

A mensagem geral, especialmente em editoriais, convidando comentários e artigos de opinião, é que “este novo estudo mostra uma grande promessa“, que “estamos quase lá” e, talvez mais importante, que “precisamos de mais pesquisas“. Minha interpretação é: “que nos dê o dinheiro e ficaremos felizes em realizar isso“. Com a promessa implícita de que, uma vez que essa nova pesquisa tenha sido feita, teremos um mundo melhor.

Mas nós estamos conseguindo um mundo melhor? Em muitos casos, não vejo isso acontecendo. O que eu vejo é que depois de alguns anos o ciclo simplesmente se repete, levando a novos editoriais, convite a comentários e artigos de opinião afirmando que “este novo estudo mostra uma grande promessa”, que “estamos quase lá’ e que “precisamos de mais pesquisa”. E assim por diante. Trabalhos em andamento que nunca terminarão e que continuam gerando renda estável para os pesquisadores. Sem ajudar muito pacientes e médicos na prática clínica diária.

Quanto progresso fizemos realmente para melhorar a farmacoterapia para problemas de saúde mental?

O que eu observo é que nós temos cada vez mais, e propositalmente, tornado fácil o começo de pacientes com o uso de drogas psiquiátricas, com pouca pesquisa ou esforço clínico para ajudar os pacientes a sair dos medicamentos ou para tentar entender ou reduzir os sintomas de abstinência.

E não estamos falando aqui de novas drogas. Estamos falando de drogas que foram descobertas décadas atrás (mais de 70 anos no caso do lítio e da clorpromazina). Muitas dessas drogas ainda estão em uso hoje e a maioria se tornou extremamente barata, porque todas estão sem patente. Tão barato que a solução mais em conta para ‘ajudar’ os pacientes quase invariavelmente é prescrever mais remédios do que tentar outra coisa para ajudá-los a sair da medicação.

As empresas farmacêuticas que trouxeram essas drogas para o mercado sabem sobre os diversos problemas da abstinência, mas não fizeram e ainda nada fazem para desenvolver soluções práticas para evitá-los. Infelizmente, eles ainda não têm a obrigação de fazer isso quando trazem uma nova droga ao mercado.

E o que a psiquiatria fez até agora para encontrar uma solução para o problema da abstinência? O que eu vejo é que tivemos que esperar até 2019 para que o Colégio Real Britânico de Psiquiatras admitisse que os sintomas de abstinência poderiam ser mais severos e mais duradouros do que as diretrizes oficiais dizem. Que se deixe que algo será feito. Isso é algo que eles prometem que farão no futuro.

Isso me traz de volta à minha pergunta. Por que as revistas médicas influentes, como a JAMA, apenas estão interessadas em soluções que levarão a melhores tratamentos e diretrizes no futuro? E não em uma solução prática, como reduzir a medicação com tecnologia que já está disponível e que pode ajudar os pacientes exatamente agora?

Isso é porque ajudar os pacientes a sair da medicação com segurança é ruim para os negócios?

Veja as notas de pé de página:

  1. Leshner AI, Dzau VJ. Medication-Based Treatment for Opioid Use Disorder. JAMA. 2019;321(21):2071-2072. https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2732941
  2. FDA drug safety announcement: FDA identifies harm reported from sudden discontinuation of opioid pain medicines and requires label changes to guide prescribers on gradual, individualized tapering. April 9, 2019. fda.gov/drugs/drug-safety-and-availability/fda-identifies-harm-reported-sudden-discontinuation-opioid-pain-medicines-and-requires-label-changes
  3. Groot PC. Tapering strips for paroxetine and venlafaxine. Tijdschrift voor Psychiatrie. 2013;55(10):789-794 (article in Dutch, English version available at https://www.taperingstrip.nl/wp-content/uploads/Groot_2013_Taperingstrips_paroxetine_venlafaxine.pdf
  4. Groot PC, van Os J. Antidepressant tapering strips to help people come off medication more safely. Psychosis 2018;10(2):142-145. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17522439.2018.1469163
  5. taperingstrip.org (a not-for-profit website of the User Research Center of Maastricht/Utrecht University Medical Center, the Netherlands

Nota dos Editores

Peter Groot tem a sua presença confirmada no III SEMINÁRIO INTERNACIONAL A EPIDEMIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS. De 28 a 31 de Outubro, na Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de Janeiro. A Programação estará disponível aqui no nosso site.

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