Aprendendo de uma maneira diferente: uma entrevista com a psiquiatra maori Diana Kopua

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Diana Kopua lembra as histórias que ela usa em seu trabalho. De enfermeira de uma comunidade psiquiátrica à chefe do departamento de psiquiatria de Hauora Tairawhiti em Gisborne, Nova Zelândia, sua árdua jornada de 13 anos é profundamente pessoal e política. Kopua diz que fez isso para “se tornar uma cunha que manteve a porta aberta para permitir que líderes indígenas” no mundo dela mudassem o sistema. Pode-se dizer que ela é uma contadora de histórias, embora o mais adequado seja chama-la de colecionadora de histórias.

Como psiquiatra, Kopua lida com sofrimento humano, mas seu interesse não está nas classificações psiquiátricas; em vez disso, ela se concentra em compreender o sofrimento através das histórias de criação maori, Purakau . Ela desenvolveu Mahi a Atua , “um compromisso, uma avaliação e uma intervenção” para abordar o sofrimento mental entre os maoris da Nova Zelândia. Mahi a Atua não é apenas um conjunto de técnicas ou uma nova terapia culturalmente sensível, mas uma maneira drasticamente diferente de conceituar a experiência vivida dos maoris.

Recentemente, junto com o especialista em arte e cultura Mark Kopua e o psiquiatra crítico Pat Bracken, ela publicou um artigo sobre essa abordagem na Transcultural Psychiatry . Seu trabalho pode ser visto como uma alternativa às intervenções farmaco-terapêuticas ocidentais que estão sendo atualmente promovidas em todo o Sul global através do movimento global de saúde mental.

Pesquisadores têm criticado a exportação de práticas psiquiátricas ocidentais, muitas vezes citando o famoso estudo da OMS que relatou melhores resultados para pessoas diagnosticadas com transtornos mentais no mundo em desenvolvimento. Sendo a única psiquiatra Ngati Porou (uma nação Maori) existente no mundo, trabalhando com uma população conhecida pelos seus resultados ruins de saúde mental, o trabalho de Kopua oferece uma visão sobre o que pode ser aprendido com métodos de cura locais, indígenas e tradicionais.

Há muitos os que agora pedem uma “mudança de paradigma” na psiquiatria ocidental e, em nossa entrevista, cobrimos tópicos que vão desde as especificidades da abordagem Mahi a Atua, o movimento global de saúde mental, e a importância da linguagem e narrativas em como nós entendemos nosso mundo e como aliviar o nosso sofrimento.

Ouça o áudio da entrevista aqui.

 

E em seguida, um resumo da entrevista traduzido para o Português.

Ayurdhi Dhar: Você pode nos dizer o que é Mahi a Atua e como a abordagem funciona?

Diana Kopua: Eu desenvolvi Mahi a Atua em meados dos anos noventa. Naquela época, eu era uma enfermeira da comunidade psiquiátrica trabalhando em um serviço de saúde mental Maori. O serviço Kaupapa Maori é um serviço desenvolvido especificamente para o crescimento e manutenção de abordagens maori para os maoris que entram nos serviços de saúde mental.

Na Pré-colonização, tínhamos uma forte compreensão e conexão com o relacionamento e a nossa posição em nosso meio ambiente, com os elementos naturais, e agora muitos de nós, como maoris, estamos desconectados de nossa cultura, de nossa língua e do conhecimento da nossa ancestralidade. Eu havia acabado de concluir um curso de imersão na cultura Maori, que é onde eu aprendi essas histórias. Quando voltei a trabalhar em saúde mental, vi o quão valiosas seriam essas histórias em conversas com pessoas que chegavam com sofrimento psíquico.

Eu então passei a trabalhar com adolescentes. Quanto mais eu compartilhava essas histórias, menos usava ferramentas tradicionais de avaliação psiquiátrica. Eu acho que parecia certo. Estávamos no ambiente certo para testar essas ideias e funcionava. O serviço envolveu-se na formação de psiquiatras registrados, os médicos treinando para serem psiquiatras.

A maioria dos psiquiatras registrados, não sendo nativos da Nova Zelândia, nem nascidos na Nova Zelândia, eram fascinados pela cultura Maori. Mas através da avaliação psiquiátrica, eles acabavam patologizando o maori. Houve alguma relutância, mesmo dos meus colegas maoris. Eles se sentiam desconfortáveis ou não tinham confiança em sua identidade maori; recorriam aos quadros ocidentais do conhecimento. Então, decidimos nos envolver em Mahi a Atuae apresentá-lo a um fórum nacional.

Nós a [a abordagem] apresentamos nacionalmente, recebemos um feedback muito bom, mas o que eu notei é que as pessoas continuavam a procurar o psiquiatra e o psicólogo por respostas e para discutir os problemas de uma perspectiva ocidental. Eu decidi ir para a escola de medicina para me tornar uma psiquiatra e para ganhar poder. Durante essa jornada, conheci meu marido Mark em 2009, que é o outro autor [no artigo da pesquisa]. A união de nós como um casal é inseparável da união de nossos mundos no mundo psiquiátrico com uma mesma agenda, que foi que os nossos modos maori de conhecimento deveriam estar na linha de frente no trabalho nessa comunidade e das questões que dizem respeito ao Maori.

Quando você fala sobre como nós utilizamos isso, na verdade é sobre nós enquanto indivíduos em nossa comunidade, privilegiando nossos espaços. Como asseguramos que nosso sistema de conhecimento seja priorizado? Para fazer isso, temos que permanecer aprendizes ativos. Mesmo que possamos ser especialistas em psiquiatria, não somos especialistas no modo de conhecer indígena. Portanto, quando estamos trabalhando com maori, como mantemos esse estado de aprendizado ativo? Eu não vejo isso muitas vezes com psiquiatras.

Além disso, as pessoas que estão usando Mahi a Atua tentam adotar feedback negativo. Em 2009, deparei-me com a abordagem de feedback de Scott Miller e Barry Dunkin. Isso repercutiu em mim porque, para aumentar nosso desempenho coletivo no desenvolvimento do Mahi a Atua, precisávamos aprender maneiras de receber feedback negativo e dar feedback negativo.

Quando se tratava de indivíduos e do trabalho com famílias em sofrimento psíquico, procedia-se com um formato particular, que é oferecer um Karakia, um encantamento ou uma oração consistindo no que a família valorizava, não no que fazíamos. Como sistema, decidimos que abordaríamos o racismo institucional e promoveríamos a indigeneidade ao voltar para o passado aprendendo e reintegrando-nos à nossa tradicional forma de orar. Então diremos a pessoa quem somos e de onde somos. O objetivo é conectar, encontrar uma conexão.

Depois disso, e muito semelhante ao Open Dialogue, trata-se de encontrar o significado por trás do sofrimento, tendo um diálogo compartilhado. Em seguida, um dos dois colegas de trabalho na sala desenhará e o outro escreverá uma história. Usamos nossas histórias de criação, e algumas delas podem levar dois minutos, outras dez. Atuas diferentes (deuses maori) são personificações do ambiente natural. Você pode usá-los como uma base estrutural psicológica. Quando terminamos de ouvir a história, temos uma conversa: fica-se curioso sobre os personagens da história e o que mais ressoa em você. O objetivo é tentar mudar a lente da gente para assim pensar sobre o problema de uma perspectiva diferente e ouvir um ao outro.

Nós temos um ditado “nada sobre as famílias sem as famílias”, então nós conversamos uns com os outros e permitimos que as famílias ouçam e respondam aos pensamentos, e então nós coletivamente reunimos algumas ideias sobre qual é o próximo passo. Tolerando a incerteza, acreditando na espiritualidade e no relacionamento, e valorizando uma conexão com a história; nossa conexão com nossas histórias de criação fortalece nossa conexão com os outros e, em seguida, cria um espaço que permite que as famílias que estão em perigo narrem sua própria história. Em essência, isso é Mahi a Atua.

Dhar: Qual é a importância da linguagem, das palavras que usamos para definir a experiência, em tudo isso?

Kopua: Meu pai cresceu em uma pequena cidade na costa leste da Ilha do Norte, Tikitiki. Ele e muitos outros foram punidos por falarem sua língua nativa. Então, em casa, eles falavam a língua maori, e é assim que eles formulavam conceitualmente sua emoção e sua experiência. Com a psiquiatria, quando sabemos que você está gravemente triste, estamos procurando que a pessoa se encaixe nos critérios corretos. Mas aqui encontramos o significado por trás desse sofrimento, porém sem impor um sistema de conhecimento que é estranho em nosso país.

Mahi a Atua está sendo capaz de restabelecer o que foi tirado de nós para que possamos reconceitualizar e reimaginar como é para nós nos sentirmos como um povo que foi colonizado. Nós tivemos terra, língua e cultura roubadas de nós.

Quando somos solicitados a falar de uma palavra, essa palavra nunca se traduz bem em uma palavra maori. Quando você está continuamente patologizando os povos indígenas que estão expressando a realidade de serem colonizados, meu trabalho, como psiquiatra, é conscientizá-los do contexto político em que a psiquiatria e a psicologia estão inseridas. Então, como nós compartilhamos histórias, a linguagem é muito importante. Encontramos frases e palavras-chave que mostram alguns deuses maoris sofrendo angústia e problemas também.

Algumas coisas surpreendentes saem das histórias, por exemplo, noho tatapu, é uma palavra para expressar o estar em um estado de restrição, referindo-se ao tempo em que nossos pais primordiais, o céu e a terra, foram mantidos em um abraço apertado. Com o tempo, eles ficaram frustrados com o aperto e a falta de movimento. Enquanto compartilhamos essas histórias, as pessoas começam a perceber que quando as famílias entram em nosso escritório, elas estão em um estado de noho tatapu. Ouvir essa história e permitir que elas entendam a restrição e o significado que ela adquire a em diferentes níveis culturais, políticos e sociais, e também introduz uma nova linguagem para nós utilizarmos, para conceituar uma nova maneira de entender o sofrimento psíquico que é única para nós como maori colonizado.


Dhar: Vivemos em um momento de crescente homogeneização cultural. Então, aonde você vê essa abordagem, uma abordagem baseada na conexão com o passado, e não com práticas psiquiátricas ‘modernas’?

Kopua: Estamos muito esperançosos. Vivemos em uma cidade pequena com pouco menos de 50.000 pessoas. Nós formamos uma massa crítica. Isso se tornou um movimento. A mídia social se tornou nossa amiga; somos capazes de nos dispersar e juntar as mãos àquelas pessoas que querem promover a ideologia indígena para mudar os resultados patéticos em nossa sociedade para os maoris.

Tudo o que fizemos foi criar uma massa crítica e está ganhando força. Nós não somos os únicos. O tribunal de Waitangi acabou de divulgar as recomendações sobre a Organização de Saúde Primária que é racista, e isso assegurando que prestem contas do que fazem, e estamos entusiasmados com isso.


Dhar:  Alguns podem perguntar até onde você pode ir? Hoje é um grupo de 50.000 pessoas. Você começa a desenvolver novos conhecimentos para grupos de 10.000 e 15.000? Isso é viável?

Kopua: As pessoas da psicologia crítica e da psiquiatria estão dizendo que as famílias têm as soluções. Elas têm os recursos dentro delas. Precisamos projetar o sistema que aas respeite e as valorize como soluções. Acredito que as comunidades têm as soluções para seus problemas e precisamos pensar em como investimos. Nós não precisamos ser a resposta. Eu acho que isso é paternalismo. Sabemos agora que com este serviço que desenvolvemos reduzimos para metade o número de jovens que precisavam de ser encaminhados para serviços secundários.

Nós temos resultados. Paramos de diagnosticar, o que significa que deixamos de fazer do médico a coisa que precisávamos ir. Nós paramos de precisar de medicação. O que foi feito às nossas comunidades é que elas estão convencidas de que nós, psiquiatras e psicólogos, somos os especialistas, e devemos desfazer isso.

Eu não acho que muitos psiquiatras discordem de que isso tenha se tornado ridículo. Eu não acho que se trata de acabar com a psiquiatria e a psicologia, mas eu acho que existem alguns guardiões sentados em todos os níveis que se apegam às psicodisciplinas. Em um nível individual, em que eles gastaram muito tempo e dinheiro investindo nessas ferramentas para equipá-los para ajudar a comunidade, para agora ser dito por pessoas como eu que não o profissional não é útil e que é prejudicial, isso é uma ameaça à integridade e à identidade profissional.


Dhar: Eu acho que você chamou isso de fluxo unidirecional de expertise.

Kopua: Sim, e aqui na Nova Zelândia, leva muito tempo para realmente sair dos serviços, especialmente se você é um maori, no momento em que põe o pé na porta, você tem uma grande chance de conseguir um mau resultado.


Dhar: Eu li sobre isso. Os números de diagnóstico e resultado são terríveis para os maoris. Você acha que eles são reais ou resultados do racismo institucional e da colonização?

Kopua: Eles são todos os itens acima. Se não tivéssemos o DSM ou o CID, como seria? O serviço que nós desenvolvemos, e há um relatório público formal; triplicou o número de maoris que recorreram ao serviço em busca de ajuda. No momento em que os governos estão procurando maneiras de aumentar o acesso, nós fizemos isso.

Eles não estão sendo patologizados. Os resultados são muito bons: internações hospitalares foram reduzidas, menos pessoas estão sob tratamento compulsório agora. Mas nesse mesmo relatório, avaliando esse serviço, você tem clínicos gerais e organizações de saúde primárias e clínicos que podem não gostar dessa mudança.
Dhar: Houve recuo quando você estava tentando falar sobre isso?

Kopua: Então, em nível nacional, há pouco mais de uma dúzia de psiquiatras indígenas Maori. E um dos meus colegas tinha muitas pessoas o chamando, dizendo: “O que o Dr. Di está fazendo lá?” Além disso, nossa saúde primária está com as OS, privadas.  Eles não são locais para a nossa comunidade. O que tivemos foi uma desconexão dos dados e o que eles representam; as estatísticas nacionais que mostram iniquidade. Isso criou um enorme retrocesso que nos atrapalha a tentar revolucionar o modo como trabalhamos.

Mahi A Atuafoi considerado algo que não dava às pessoas uma escolha. E, no entanto, o relatório formal mostra que víamos as pessoas mais cedo. Nós envolvemos mais famílias e usamos o tratamento informado como feedback. Nosso resultado foi realmente a valorização da voz da família. Isso não era apreciado porque acredito que o racismo institucional nos faz pensar que a configuração atual dos sistemas e os recursos são alocados de forma justa.


Dhar: Como sua abordagem e sua ética subjacente se encaixam na crítica que surgiu em torno do movimento global de saúde mental?

Kopua: O fortalecimento do sistema de classificação, o DSM é uma perpetuação da colonização, sem dúvida. O movimento global de saúde mental e a OMS querem resultados melhores. As políticas, no entanto, não refletem a experiência vivida das pessoas colonizadas. E eles precisam.

Se reconhecermos que o sistema de classificação está causando mais danos ao maori, então temos de abordar a questão: “O que precisa acontecer a seguir?” E é mais do que apenas o sistema de classificação. É mais que psiquiatria. Se você olhar para o nosso sistema de educação, nosso sistema de justiça criminal, nosso Ministério da Infância e Desenvolvimento social, as iniquidades estão em todos esses setores. Trabalhar enquanto coletivos é absolutamente essencial. O Trabalho Cooperativo nos permite tocar nosso colega no ombro e dizer: “Ei, não tenho certeza se a família entendeu isso” ou “Ei, acho que vi você conversando sobre a família”.

O sistema de classificação impacta a confiança da nossa comunidade através do mito da meritocracia, que é que se eu trabalhar duro o suficiente eu posso conseguir tudo o que desejo. Não é verdade. E eu acho que é sobre isso que Mahi a Atuaé. Algumas tribos foram forçadas a sair da terra durante a noite. A pobreza é o problema real, mas estamos empobrecidos por um motivo. E assim a história colonial e o significado por trás disso, isso é uma parte enorme.

Quando conhecemos pessoas que entram no sistema porque podem estar deprimidas ou ter um transtorno de ansiedade, é uma maneira desconectada de encará-las. E acho que está desconectado porque estamos tão conectados ao ato de saúde mental, às ferramentas de diagnóstico e à medicação, e quando pensamos que estamos sendo holísticos, isso significa TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental).


Dhar: O que é algo que seria considerado não necessariamente problemático entre os maoris, mas no momento em que a linguagem é traduzida, ela se torna um distúrbio?

Kopua: Vamos direto para o ouvir vozes. Na pré-colonização a maioria de nós como povos indígenas tinha uma conexão com o mundo espiritual, mas se entender isso agora é difícil. Você consegue imaginar uma criança sendo capaz de dizer a seus pais livremente que ouviram vozes? Mas nossa realidade é o momento em que uma criança diz a seus pais que elas ouvem vozes, os pais vão querer que o filho faça de conta que não disse isso. Eles vão dizer a eles: “Não conte isso a ninguém”. Isso é para aqueles de nós que estão desconectados ou não têm nenhum caminho a seguir para aprender mais sobre isso de uma maneira espiritualmente enriquecedora.

A maioria dos psiquiatras concorda que a cultura é importante, mas as estruturas e a maneira como somos financiados por recursos financeiros têm tudo a ver com os diagnósticos e esse conceito de tratamentos baseados em evidências. Ninguém está interessado nas evidências encontradas na prática, evidências baseadas na prática. Mas sei que nossos curandeiros espirituais têm tantas histórias de famílias que obtêm resultados fantásticos com eles. Porque não é algo sobre o que falamos abertamente, publicamente, com que diabos estamos destinados a crescer?


Dhar: Em minha pesquisa em partes muito rurais do Himalaia, havia uma mulher cuja mãe costumava ouvir vozes e ver pessoas dançando enquanto ela trabalhava na lavoura. Ela dançava com eles em vez de se sentir angustiada ou com medo.

Kopua: Como indígenas os psiquiatras entram em uma comunidade, aonde a maioria da população é maori, uma proporção significativa dos médicos sendo maori, mas as pessoas que tomam todas as decisões importantes são do exterior. O que eu notei é que quando eu entrei, se podia igualmente ter dito que eu estava ouvindo vozes. Eu ficava dando risadinhas para mim mesma, porque, pensava eu, bem que eu poderia muito bem estar a ouvir vozes e vocês não poderem ouvi-las, e vocês não quererem ouvi-las, e vocês só querendo é calar as vozes.

Eu estava pensando em quanto de isolamento isso pode ser, mas e se você estiver em uma comunidade que valorize essa experiências! Meu primo é um ouvinte de voz. Eu tenho sobrinhas e sobrinhos e amigos; eu aprendi com a experiência deles.
Dhar: Isto abre um conjunto de respostas para a experiência de ouvir vozes além do medo. Você está ciente de algum trabalho semelhante hoje em dia no mundo e que lhe excite?

Kopua : Eu sei que você mencionou o Diálogo Aberto; Eu acho que o trabalho deles é incrível. Eu só me pergunto sobre as populações indígenas. O Diálogo Aberto é ótimo. Eu não sei se quando você está trazendo [essa abordagem] para um outro país, se estamos acertando. Eu acho que as comunidades têm tantas soluções, mas não temos tempo suficiente [para falar disso agora].


Dhar: Você falou sobre o contexto histórico, como o Tohunga Suppression Act. Você pode falar um pouco sobre isso?

Kopua: Isso contribuiu para a redução e o número de Tohunga que contribuíram para a cura. O Tohunga Suppression Act contribuiu para o desaparecimento do Mukku facial das nossas artes culturais. E assim, ser capaz de restabelecer essas artes é cura coletiva. Recuperar a nossa linguagem é cura coletiva.

A legislação na Nova Zelândia é a colonização em ação. Nós tivemos nossas mães Maori que foram informadas de que a amamentação era [algo] suja, não apenas em público, apenas amamentar. Eu lhe falei sobre não poder usar nossa linguagem. Nós não fomos autorizados a comprar terras enquanto um coletivo. Isso ainda está acontecendo hoje. Estamos construindo autoestradas pelas terras indígenas das pessoas.

Quando as pessoas vêm do exterior e não entendem o impacto da colonização nos povos indígenas, acho que elas mesmas perpetuam o racismo. Elas sabem a resposta por serem especialistas em psiquiatria. Isso vai contra tudo o que eu valorizo ​​e que eu acredito. Então, realmente, estou pensando em me afastar da psiquiatria. Para abordar a individualidade, a meritocracia; restaurar as nossas histórias.


Dhar: O que você tem a dizer para as pessoas que dizem que podemos integrar Mahi a Atuaao conhecimento psiquiátrico, ou a algo como a TCE [terapia cognitivo-comportamental]?

Kopua: Todas as nossas ideias são adjuntas. Eles são adicionais e, apesar de estarem com a melhor intenção, são adjuntas e não estão bem. De fato, no serviço que desenvolvemos, [a nossa abordagem] é o carro-chefe do serviço, é a porta da frente para os que estão em perigo. É uma metodologia Maori e um serviço mainstream. Nós estamos dando um cabalo de pau e fazendo disso o mainstream.

Eu tenho esse conjunto de conhecimentos e acho que é o que chamamos de conhecimento clínico. Mas o que a palavra ‘clínico’ significa? Existe essa expectativa de que o clínico é ocidental. Temos tentado encontrar uma palavra que tire a atenção da clínica porque muitas vezes usamos essa palavra para validar nossas suposições básicas que são absolutamente racistas, sem a ideia de que ela é proveniente de um espaço racista.
Dhar: Você pode me dar um exemplo disso?

Kopua: Um homem maori de 30 anos cuja mãe trabalha em uma organização de alto nível e o pai é separado. Eles queriam o Mark e eu. Em nosso serviço, você pode perguntar quem você quer. Então, nós passamos pelo processo com eles. Esse homem que era suicida, tão deprimido e em um espaço escuro, ganhou vida ao ouvir a história.

Agora, ele entra em nosso serviço e nós o medimos, e ele se sai muito bem. Mas para o serviço básico de saúde, com quem deveríamos trabalhar em parceria, eles queriam registros sobre os caminhos clínicos para alguém como ele. E dizer que fizemos Mahi a Atuasignifica que há um risco clínico. Porque não fizemos uma avaliação clínica, mas a partir de um paradigma maori, fizemos tudo o que é consistente com o que valorizamos. A família e o homem se engajaram e voltaram de novo e de novo. E um dos problemas que temos para os maori é a) eles entram [no sistema de assistência] muito tarde e b) param de vir. Isso é [típico] de um sistema que valoriza os clínicos que se comportam clinicamente.


Dhar: Isso acontece com a esquizofrenia, que as pessoas parem de vir para o tratamento e tomar a medicação, e são rotuladas como resistentes ao tratamento.

Kopua: Talvez esse seja o papel da saúde mental global, e mais pesquisas precisam ser feitasporque há uma falta de conhecimento sobre como retirar alguém de um grande tranquilizante, preparando as famílias para serem parceiras. Nós não somos muito bons nisso. Ser capaz de retirar o diagnóstico.

Um dos meus traineesnotou que quando vemos as famílias, estamos desfazendo o dano que aconteceu. Não seria ótimo se fortalecêssemos nossos estagiários nessa área e nos tornássemos uma subespecialidade da psiquiatria mais crítica e tivéssemos mais recursos para os psiquiatras desfazerem os danos que a instituição faz em primeiro lugar?

O Princípio da Dialogicidade no ‘Diálogo Aberto’

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Mais um estudo brasileiro foi realizado sobre a abordagem finlandesa Open Dialogue (Diálogo Aberto), dessa vez realizado por Ana Carolina Florence, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). O artigo A abordagem Open Dialogue: história, princípio e evidências foi publicado recentemente na revista Polis e Psique (UFRGS).

O artigo traz os principais elementos do Diálogo Aberto através de uma ampla revisão narrativa de literatura, trabalho relevante já que a maior parte dos materiais sobre a abordagem encontram-se em inglês. A abordagem finlandesa vem ganhando relevância no Brasil, de maneira especial pelos seus altos índices de recuperação no tratamento de casos de psicose, através de um modo dialógico. A possibilidade de reabilitação da pessoa com quadro psicótico é especialmente relevante para o campo da Atenção Psicossocial brasileira, pois esta lida com problemas graves de saúde mental, sempre visando evitar a institucionalização e cronificação dos problemas.

A autora nos lembra que houveram grandes avanços no processo de desinstitucionalização do cuidado em saúde mental, mas ainda temos algumas dificuldades no atendimento de crises psicóticas, quando a principal estratégia hoje, quando não a única, é  a medicação. Existem vários estudos mostrando que pessoas medicadas com neurolépticos desde o início do tratamento se recuperam menos a longo prazo quando comparadas com pessoas que não utilizaram neurolépticos ou que tiveram suas doses reduzidas.

Vamos destacar alguns elementos que a autora traz no artigo. Primeiro, o Diálogo Aberto tem um entendimento da psicose diferente do DSM-V. Enquanto o DSM-V vê a psicose como uma doença, o Diálogo Aberto acredita que as crises psicóticas são um modo de lidar com experiências assustadoras que o sujeito encontrou, sendo as alucinações e delírios a única expressão possível para ele. As situações de estresse podem produzir reações psicóticas, e quando não são tratadas, podem se cristalizar e dificultar o tratamento.

O artigo vai expor de maneira muito clara os sete princípios que orientam o trabalho do Diálogo Aberto, mas eu gostaria de apresentar aqui aquele que talvez seja o mais complexo de entender, a dialogicidade. Para começar, dialogicidade vem de diálogo, e para a abordagem finlandesa, diálogo é diferente de uma conversa. Enquanto na conversa os participantes são orientados para um consenso comum, a diálogo tem a função de produzir novos sentidos.

A dialogicidade significa que as reuniões de tratamento realizadas na rede social do paciente tem como seu primeiro objetivo gerar diálogo. É através da dialogicidade que novos sentidos sobre o problema podem ser construídos e a capacidade de administração da vida pode ser expandida. A escuta nesse momento é importante para permitir que todos tenham um espaço para falar. E um detalhe da maior importância: é a equipe dos profissionais refletir abertamente suas reflexões e impressões com todos os participantes da reunião.

O Diálogo Aberto tem algumas bases epistemológicas que sustentam sua prática da dialogicidade, entre elas estão o construtivismo social, os filósofos Buber, Levinas e Bakhtin, além dos trabalhos de Vygotsky sobre o desenvolvimento da linguagem. Por influência do construtivismo social, o Diálogo Aberto parte do princípio de que não há separação entre a verdade e as formas de expressão humana,  a construção de sentido é co-produzida pela linguagem. Portanto, o efeito terapêutico da dialogicidade está na sua capacidade de produzir novas palavras e histórias no contexto da rede próxima da pessoa em sofrimento.

Buber, Levinas e Bakhtin influenciam o Diálogo Aberto em seu entendimento que há uma assimetria fundante entre o Eu e o Outro, e a possibilidade de diálogo está no reconhecimento do Outro como um outro Eu.  Dessa forma, é no espaço entre as pessoas que a dialogicidade tem a sua contribuição, pois é aí que se produz a co-criação de narrativas. O Diálogo Aberto não vai explicar os fenômenos da psicose, mas vai se preocupar como uma determinada família discute um problema e cria novas possibilidades para novas respostas nesse processo.

Por fim, Vygotsky também exerce influencia sobre a abordagem finlandesa, de maneira especial com a Zona de Desenvolvimento Proximal. Descrito como uma janela no desenvolvimento, em que novas habilidades mais complexas podem ser adquiridas através da ajuda de una pessoa mais experiente, leva a compreender as propriedades terapêuticas  da dialogicidade. Nas reuniões a equipe tem a função de funcionar como o outro mais experiente, que não se encontra tão afetado pelo problema e que já viveu outras situações em que as crises puderam ser superadas, ela então se coloca como uma presença calma e reconfortante que demonstra que é possível falar sobre assuntos extremamente difíceis e sobreviver.

Dentro da dialogicidade, outro tema relevante é a ‘polifonia’. Termo introduzido por Bakthin, baseia-se em compreender que a realidade é construída socialmente através de múltiplas vozes, e não tem como objetivo encontrar uma voz dominante. Essas vozes não se referem apenas ao que foi falado, mas também à consciência. A polifonia significa que as mensagens se constroem no espaço entre sujeitos e adquirem novos e diferentes sentidos a cada nova situação. Por conseguinte, nas reuniões todas as vozes são importantes e devem ser ouvidas, e não há o interesse de estabelecer quais vozes são mais verdadeiras que outras. Quanto mais vozes se apresentam ao diálogo, maior é a possibilidade de construir novos sentidos e novas compreensões, produzindo assim respostas.

Depois de apresentar as evidências de efetividade do Diálogo Aberto, a autora termina concluindo que a abordagem finlandesa não concorre com outras ofertas terapêuticas, portanto poderia ser um opção válida para compor a rede de serviço brasileira, principalmente no atendimento ao primeiro episódio psicótico, que já conta com uma riqueza de possibilidades.

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FLORENCE, A.C. A abordagem Open Dialogue: história, princípios e evidências. Rev. Polis e Psique, 2018; 8(1): 191 – 211. (link)

O DSM: diagnósticos “cientificamente sem sentido”

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(Image Credit: Will Laren/Flickr Creative Commons)

Um novo estudo, publicado no periódico científico Psychiatry Research, mostra que os pressupostos básicos das categorias de diagnóstico em psiquiatria são falhos e contraditórios. Este trabalho foi realizado por Kate Allsopp e uma equipe de pesquisadores da Universidade de Liverpool, e que também incluiu figuras proeminentes como Rhiannon Corcoran, John Read (editor da revista Psychosis, e autor de numerosos artigos científicos, bem como o livro Models of Madness: Psychological, Social, and Biological Approaches to Schizophreniae Peter Kinderman(ex-presidente da Sociedade Britânica de Psicologia e autor de A Prescription for Psychiatry: Why We Need A Whole New Approach to Mental Health and Wellbeing).

Os pesquisadores analisaram a linguagem usada na chamada ‘Bíblia’ dos diagnósticos psiquiátricos. Os pesquisadores descobriram que o manual de diagnóstico e estatística, ou DSM, é internamente inconsistente, prejudicando a sua própria mensagem. Seus diagnósticos estão focados tanto na promoção de um modelo médico – em que as categorias são conhecidas como ‘transtornos’ biomédicos -, quanto que ao mesmo tempo fornece aos clínicos maneiras de alterar as categorias e de diagnosticar sob bases de julgamento que é puramente subjetivo. De fato, o que o manual diz é que reconhece que esses ‘transtornos descritos’ são simplesmente categorias arbitrárias. Os pesquisadores escrevem,

“Na medida que o DSM-5 reconhece que as experiências nem sempre se encaixam nos limites de um transtorno específico, suas regras são, portanto, internamente inconsistentes. O manual apresenta uma classificação de distúrbios determinados e homogêneos, mas reconhece  ao mesmo tempo que essa estrutura nem sempre pode ser seguida devido à sobreposição entre as categorias diagnósticas ”.

(Image Credit: Will Laren/Flickr Creative Commons)

Um argumento comum a favor do diagnóstico psiquiátrico é que ele auxilia na pesquisa. Os proponentes do diagnóstico argumentam que isso permite que os pesquisadores criem grupos para testar hipóteses. No entanto, isso só faz sentido se os grupos forem significativos – se os indivíduos de um grupo, de alguma forma, forem semelhantes entre si.

Ao contrário dos diagnósticos médicos, os critérios para diagnósticos psiquiátricos são bastante amplos. Segundo os pesquisadores,

“Na maioria dos diagnósticos tanto do DSM-IV-TR quanto do DSM-5 (64% e 58,3%, respectivamente), duas pessoas poderiam receber o mesmo diagnóstico sem que compartilhem qualquer sintoma em comum.”

Geralmente, para um distúrbio (transtorno) médico, seria de se esperar sintomas semelhantes entre as duas pessoas com a mesma doença diagnosticada.

Devido a esses critérios amplos e variados, muitos dos indivíduos com os mesmos diagnósticos podem não ter o sintoma específico que os pesquisadores desejam estudar. Dessa forma, os diagnósticos realmente dificultam a pesquisa, agrupando indivíduos muito diferentes em categorias arbitrárias.

Isso também afeta o trabalho clínico. Para trabalhar com clientes que apresentam depressão, por exemplo, os médicos têm duas escolhas. Eles podem seguir os tratamentos ‘baseados em evidências’, que são baseados na melhoria média de um grande grupo de pessoas, que podem ter ‘sintomas’ ou experiências diferentes – o que significa que não há conhecimento de quem pode ou não se beneficiar desses tratamentos. Em essência, com base na suposta semelhança de pessoas com depressão, os médicos estão dando um tiro no escuro

Por outro lado, os médicos podem adaptar a sua abordagem ao indivíduo com quem estão trabalhando. No entanto, isso é baseado inteiramente nas crenças subjetivas do clínico sobre o que irá funcionar, em vez de se basear em pesquisas.

Nenhuma delas é uma abordagem realmente científica, segundo Allsop e os outros pesquisadores. No entanto, os clínicos muitas vezes confiam na abordagem ‘pragmática’ de adaptar sua intervenção ao cliente individual, dizendo que pelo menos ela se baseia na pessoa e não em uma classificação arbitrária.

Eles escrevem: “Uma abordagem pragmática da avaliação psiquiátrica, permitindo o reconhecimento da experiência individual, pode, portanto, ser uma maneira mais eficaz de entender o sofrimento psíquico do que manter o compromisso com um sistema categórico falso”.

Os pesquisadores fizeram uma análise temática de cinco capítulos do DSM. Isso permitiu que eles determinassem como os sintomas eram enquadrados dentro e entre os diagnósticos.

Por exemplo, na maioria das situações, cabe ao clínico definir o que é ‘comum’ ou normal” para o seu cliente.

Além disso, como ocorre com o Transtorno Pós-Traumático, os diagnósticos baseiam-se em ‘sintomas’ que geralmente são aceitos como respostas normais a eventos traumáticos intensos e dolorosos. No entanto, os critérios diagnósticos não especificam como determinar quando essas respostas normais se tornam significantes ‘anormais’ da ‘doença’.

Os autores observam que o DSM inclui as categorias “Outros especificados” e “Não especificado” para cada transtorno, que não incluem nenhum critério. Esses diagnósticos permitem que os médicos rotulem os usuários do serviço, mesmo que não apresentem nenhum sintoma, baseado inteiramente no ‘julgamento clínico’.

Os pesquisadores escrevem que alguns diagnósticos exigem a presença de ‘sofrimento clinicamente significativo’, que, é claro, é definido pelo médico sem uma medida objetiva. No entanto, alguns critérios permitem que os clínicos ignorem até mesmo esse julgamento subjetivo e façam um diagnóstico de ‘uma mudança marcante’ no funcionamento, mesmo que a pessoa não esteja sofrendo.

Curiosamente, o DSM-5 afirma que é um sistema ‘ateórico’ de classificação – ou seja, a própria ‘bíblia’ diagnóstica não oferece teorias sobre como ou por que esses supostos ‘transtornos’ emergem. No entanto, um capítulo é agrupado de acordo com a teoria – que é o capítulo sobre Transtorno Pós-Traumático. Os distúrbios nesta seção exigem uma exposição prévia a experiências de risco de vida que seriam traumáticas em qualquer situação. Os sintomas nesta seção se sobrepõem consideravelmente com relação às outras seções, principalmente com os diagnósticos de depressão e esquizofrenia. No entanto, essas duas categorias diagnósticas não mencionam a possibilidade de trauma como sendo o fator causal.

Os pesquisadores sugerem ser este um dos maiores erros no DSM: que implica que o trauma é apenas um fator causal importante para diagnósticos muito particulares, como o ‘Transtorno Pós-Traumático’. Não obstante, os pesquisadores vem descobrindo evidências de que o trauma está implicado no contexto da maioria dos diagnósticos, apesar das tentativas de rotulá-los como meramente ‘biológicos’.

A categorização do DSM ofusca o impacto do trauma e dos estressores (como são a pobreza e o isolamento) no bem-estar humano. Mesmo para o ‘Transtorno Pós-Traumático’, isso implica que a resposta (evitação, pesadelos, etc.) seja um trauma intenso e potencialmente fatal para o ‘transtorno’. Os pesquisadores escrevem:

“Fazendo referência a trauma ou estresse apenas em um capítulo, o DSM-5 implica que as outras categorias diagnósticas não estejam relacionadas ao trauma. A consideração de adversidades sociais, psicológicas ou outras em cada um dos diagnósticos é, portanto, minimizada; os sintomas são construídos como anômalos ou desordenados, em vez de potencialmente compreensíveis em relação às experiências de vida de uma pessoa. Mesmo dentro do capítulo de transtornos relacionados a trauma e seus estressores, as experiências avaliadas, apesar de estarem especificamente relacionadas ao trauma, são vistas como sintomáticas de uma resposta desordenada ou inadequada a esse trauma. ”

Assim, Allsopp e os outros pesquisadores sugerem que o DSM é em seu todo um manual falho, contraditório, cientificamente inútil e que os médicos já pouco fazem uso dele (em vez disso, os médicos passam a confiar no julgamento subjetivo puro).

Agências federais estão começando a se dar conta disso. O Conselho Superior de Saúde da Bélgica acaba de publicar um relatório recomendando ‘cautela’ no uso de sistemas de diagnóstico como os que são usados nos sistemas de saúde dos Estados Unidos e da Europa.

De acordo com esse relatório, “as classificações não fornecem um quadro dos sintomas, necessidades de manejo e prognóstico, porque lhes faltam validade, confiabilidade e poder preditivo”.

É urgente:

“Uma abordagem baseada em recuperação (clínica, pessoal e social), que contextualize melhor os sintomas e adapte as intervenções de acordo com os valores, afinidades e objetivos dos pacientes, trabalhando em estreita colaboração com eles”.

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Allsopp, K., Read, J., Corcoran, R., & Kinderman, P. (2019). Heterogeneity in psychiatric diagnostic classification. Psychiatry Research, 279, 15-22. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2019.07.005 (Link)

“Liberdade é terapêutica”: a ‘revolução’ da saúde mental de Trieste

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Da BBC / People Fixing the World: “Todos os anos, profissionais de saúde mental do mundo inteiro visitam Trieste, na Itália, para ver o que podem aprender com a abordagem da cidade para a doença mental.

Em 1978, Trieste liderou uma ‘revolução’ nos cuidados de saúde mental na Itália, fechando seus asilos e acabando com a contenção de pacientes. Hoje, a cidade é designada como ‘centro de colaboração’ pela Organização Mundial de Saúde, em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro.

O repórter Ammar Ebrahim visita Trieste para ver como o sistema funciona – dos centros comunitários informais aonde as pessoas podem entrar e permanecer o tempo que precisam, para as empresas que oferecem oportunidades de carreira para aqueles que passaram pelo sistema psiquiátrico.

Ouvimos sobre a política da cidade de ‘sem portas trancadas’ e perguntamos como a Trieste lida com pacientes que outras sociedades podem considerar ‘perigosas..”

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Como a Lógica Proibicionista Afeta os Usuários de Drogas Ilícitas

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No contexto político-social conservador e intolerante em que estamos vivendo, o artigo Sofrimento e Violência que a Lógica Proibicionista Gera na Vida de Usuários de Drogas Ilícitas, é de grande relevância. A publicação realizada pela revista Estudos e Pesquisa em Psicologia (UERJ), é de autoria de Bárbara S.B. da Silva e Paulo José B. de A. Pessoa, ambos da Faculdade Frassinetti do Recife.

O estudo nasceu do interesse dos autores sobre o tema após o curso de pós graduação de saúde mental. Tem como objetivo conhecer o sofrimento e a violência que a lógica proibicionista causa na vida dos usuários de substâncias ilícitas. Para tal, a metodologia escolhida foi a revisão bibliográfica, realizado no período de 2013 à 2017.

O artigo inicia descrevendo um pouco sobre a história do proibicionismo das drogas psicoativas, mesmo que elas sejam tão antigas quanto a própria humanidade, e seu uso também. Ainda sim, tornaram-se um problema de Estado a partir do século XIX, com a guerra do ópio entre Inglaterra e China, inicialmente movida por questões econômicas. No século XX o proibicionismo se torna uma política mundial por meio de acordos e tratados internacionais, influenciado especialmente pelos EUA e já tornando-se um “problema sanitário”.

No Brasil o uso de plantas medicinais e psicoativas pelos indígenas era comum. Porém apenas com a abolição da escravatura o proibicionismo de certas substâncias virá a tona como forma de controlar a cultura negra, visto que o uso da maconha era comum entre eles. A planta foi proibida no território brasileiro em 1921.

(…) A postura proibicionista tem duas áreas de atuação: acabar com a produção, o cultivo e o tráfico de drogas no mundo, isto é, acabar com o consumo de drogas ilícitas no mundo, onde o uso das drogas tem uma associação dualista entre o bem e o mal, o certo e errado.” (Sodelli,2010)

Já a política de redução de danos surge no Estado brasileiro com a constatação da insuficiência da estratégia de guerra às drogas e perante o aumento da variedade e do uso de substâncias ilícitas, recebendo apoio de movimentos sociais de direitos humanos. É uma proposta que confronta a lógica proibicionista de diversas maneiras.

“A redução de danos, por seu turno, fundamenta-se nos princípios de pluralidade democrática, exercício da cidadania, respeito aos direitos humanos e da saúde.(Ribeiro, 2013, p. 46)

A redução de danos tem por objetivo um conjunto de medidas que busca minimizar as consequências adversas do uso/abuso de drogas. O próprio usuário deve tomar a iniciativa na estruturação de estratégias para cuidar de sua saúde, junto com os profissionais, permitindo que o sujeito responsabilize-se pela sua existência.

“(…) em todas as ações de redução de danos devem ser preservadas a identidade e a liberdade da decisão do usuário sobre qualquer procedimento relacionado à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento (Brasil, 2005), isto necessariamente levará a minimização que a violência e o sofrimento produzido pelo proibicionismo imprime na vida dos usuários de drogas ilícitas, já que valoriza a promoção de um mecanismo individual de autocontrole/autorregulação do consumo (Cruz & Machado, 2013) (…).”

Os autores chegaram a conclusão que o ideal de um mundo sem drogas, promovido pela lógica proibicionista, é intangível, visto que, o uso de drogas faz parte das possibilidades existenciais, o uso de drogas ilícitas é muito mais complexo, pois está vinculado ao sentido que o sujeito estabelece com a substância, a partir da relação com o seu contexto vivencial e social.

A lógica proibicionista gera estigmas, sofrimento e violência para os usuários, diminuindo a liberdade existencial do indivíduo. Isso se intensifica mais quando o usuário é pobre, negro e vive na favela. A violência institucional impossibilita o crescimento do indivíduo, impedindo que este desenvolva escolhas mais livres e conscientes.

“A compreensão fenomenológica existencial e humanista nos mostrou  que o ser humano tem uma tendencia ao crescimento, a autonomia, a atualização; mas diante de quaisquer circunstância que impede a tomada de consciência dos sentimentos e significações pessoais levam o indivíduo a sentir angustia, medo, rejeição.”

A abstinência e repressão não reduzem a vulnerabilidade dos indivíduos, nem os ajuda a relacionar-se com a substância de outro modo, bem como não constrói uma rede de cuidados. Portanto, a redução de danos é a melhor opção, pois diminui as distâncias sociais e o sofrimento existencial. Através da escuta, do respeito e da liberdade, é possível resgatar o que passa no íntimo do indivíduo, refletindo e trazendo novas possibilidades existenciais.

O artigo trata da redução de danos para os usuários de drogas ilícitas, mas também é utilizado por algumas pessoas para as drogas psiquiátricas. Como é o caso de Will Hall e o grupo de ex pacientes psiquiátricos estadunidenses, já que o uso de psicofármacos também pode ser usados de maneira abusiva. O movimento luta para que os usuários de saúde mental tenham sua autonomia e responsabilidade sob o tratamento respeitadas pelo sistema de saúde.

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SILVA, B.S.B. da; PESSOA, P. J. de A.Sofrimento e violência que a lógica proibicionista gera na vida de usuários de drogas ilícitas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro v. 19 n. 1 p. 187-205 Janeiro a Abril de 2019. (Link)

 

Modelo biomédico de doença mental cria estigma para estudantes universitários

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Um estudo recente, publicado no Journal of College Student Psychotherapy, explora como é que receber um diagnóstico psiquiátrico e medicação psiquiátrica pode levar ao estigma social para estudantes universitários. O estudo baseia-se em pesquisas anteriores sugerindo que as caracterizações biológicas da doença mental, especialmente quando ligadas à intervenção farmacêutica, podem produzir estigma social, atribuindo a responsabilidade pelo sofrimento vivenciado principalmente aos indivíduos que o vivenciam.

Segundo os autores do estudo, liderado por Benjamin Johnson, um doutorando em psicologia clínica na Marquette University:

“O estigma em relação à doença mental tem sido estudado extensivamente e numerosos temas de pesquisa têm surgido. Por exemplo, os pesquisadores têm examinado os determinantes das atitudes estigmatizantes como sendo uma função tanto das características pessoais das pessoas que mantêm essas atitudes como também das características clínicas da pessoa ou das pessoas que são alvo do estigma.”

Indo mais longe, eles acrescentam que:

Uma atribuição importante e frequente sobre doenças mentais diz respeito ao controle e à responsabilidade. Estudos têm mostrado que as pessoas tendem a atribuir mais capacidade de controle a doenças mentais do que a doenças médicas. . . Atribuições de responsabilidade, às vezes atribuídas como fraqueza pessoal. . . têm sido encontradas associadas com reações emocionais negativas (como medo e raiva) e reações comportamentais discriminatórias (como a evitação ou falta de vontade de contratar alguém).

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Isso faz parte de uma longa história de psiquiatras que usam pesquisas sobre o cérebro para explicar comportamentos individuais que parecem se desviar das normas sociais estabelecidas. Essa tendência para um modelo biomédico de saúde mental tornou-se mais pronunciada após a publicação do DMS-III, a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico para Transtornos Mentais, em 1980. Desde então, tem havido uma meta abrangente para desenvolver critérios operacionais para transtornos mentais que possam ser ligados com mais sucesso à intervenção farmacêutica.

E ainda, o modelo biomédico de doença mental tornou-se cada vez mais alvo de críticas por pesquisadores clínicos, profissionais de saúde mental e sobreviventes / usuários de serviços psiquiátricos. Além das acusações de que as abordagens neurobiológicas da psicologia se baseiam em um conjunto de pressuposições errôneas, tem sido sugerido que as abordagens biomédicas dos cuidados com a saúde mental marginalizam as vozes e as experiências daqueles que recebem serviços. Este fenómeno foi descrito em termos de injustiça contributiva, em que aqueles que sofrem psiquicamente não estão autorizados a contribuir para discussões sobre o que pode ou não estar errado com eles.

Johnson et al., os autores do estudo, descrevem como recentes “campanhas de educação pública visando reduzir o estigma têm reforçado a ideia das causas biológicas da doença mental”, e ainda “o efeito dessas campanhas tem sido contraditório e potencialmente contraproducente”. Assim sendo, enquanto a promoção de explicações biomédicas pode ter levado a uma mudança geral na percepção pública sobre as habilidades dos indivíduos para ‘controlar’ seus sintomas, tais campanhas “não parecem ser bem sucedidas em reduzir outras reações estigmatizantes e podem, na verdade, estar aprimorando-as de várias maneiras.”

A pesquisa realizada por esses autores analisou especificamente como essas reações estigmatizantes poderiam ter um papel na vida dos estudantes universitários. Tomar como foco esta população é especialmente importante, na medida em que os serviços de saúde mental e os medicamentos para TDAH são geralmente mais acessíveis para eles do que para outros grupos.

Os autores desenvolveram as três hipóteses abaixo para testar como os estudantes universitários podem reagir cognitiva, emocional e comportamentalmente ao sofrimento de um colega quando ele é caracterizado em termos psiquiátricos:

  • “Primeiro, com base na expectativa de que a esquizofrenia teria maior probabilidade de ser percebida como sendo causada por fatores biológicos do que o transtorno depressivo maior, previa-se que os participantes atribuíssem mais responsabilidade ao aluno-alvo descrito como deprimido.
  • Segundo, com base na pesquisa de atribuição, previa-se que os participantes mostrariam mais reações emocionais negativas e disposições comportamentais mais estigmatizantes em relação ao aluno-alvo com depressão.
  • Finalmente, previa-se que os participantes atribuiriam mais responsabilidade, endossariam mais reações emocionais negativas e disposições comportamentais mais estigmatizantes, quando a vinheta incluísse uma declaração de que o aluno-alvo havia tomado uma medicação para a doença, mas que depois que havia parado. ”

Para realizar esta pesquisa, os autores criaram quatro vinhetas separadas de universitários do sexo masculino, metade descrevendo ‘um episódio de depressão severa’ e a outra metade ‘um episódio de esquizofrenia’. Cada participante universitário recebeu uma vinheta para ler antes de preencher um questionário sobre como essa pessoa pode ser percebida se encontrada.

A pesquisa abrangeu seis diferentes escalas de estigma, categorizadas em termos de responsabilidadefalta de simpatiaraivaindisposição para ajudarcoerção para o tratamento e distância social. Possíveis atribuições que os participantes poderiam escolher variavam de sentimentos como “eu pensaria que sua condição atual é da sua inteira responsabilidade” e “a sociedade deveria forçá-lo a procurar tratamento” até “eu sentiria pena dele”.

Para encontrar correlações entre essas variáveis o grupo de pesquisadores realizou várias análises estatísticas ANOVA. Conforme explicam, os resultados parecem indicar que quando os ‘alunos-alvo’ eram considerados responsáveis ​​por suas ações, havia uma maior probabilidade de emoções negativas ou de outras crenças estigmatizantes expressas em relação a eles. Além disso, o estigma aumentava se um ‘aluno-alvo’ recebesse medicamentos psicotrópicos em algum momento, mas que, por qualquer motivo, parasse de tomá-los.

Os participantes também responderam de maneira muito diferente aos casos descritos como ‘depressão grave’ do que aos descritos como ‘esquizofrenia’. Em geral, os ‘alunos-alvo’ diagnosticados com depressão foram considerados mais responsáveis ​​pela sua angústia, o que por sua vez gerou menos simpatia dos participantes. Alunos-alvo diagnosticados com esquizofrenia, em contraste, foram considerados “menos responsáveis ​​[porém] mais simpáticos, presumivelmente por causa de uma crença na causa biológica do distúrbio”.

E, no entanto, os participantes também eram muito mais propensos a considerar os ‘alunos-alvo’ diagnosticados com ‘esquizofrenia’ como mais perigosos (para si mesmos e para os outros) do que aqueles diagnosticados com ‘depressão severa’. Isto também foi associado com a suposição de que a coerção no tratamento médico em casos envolvendo esquizofrenia pode ser não somente útil, mas frequentemente necessária quando medicações psicotrópicas não são usadas como prescrito.

Considerando-se o valor demonstrado, o estudo parece sugerir que os estudantes universitários que recebem serviços de saúde mental provavelmente encontrarão estigma social de pares em uma variedade de formas. O estudo também apoia pesquisas anteriores que indicam que esse estigma pode ser reforçado por suposições populares de que: a) existem causas biológicas para o sofrimento mental, e b) tratamentos farmacológicos são uma forma efetiva de intervenção psiquiátrica para o sofrimento. Finalmente, os autores observam que as crenças estigmatizantes eram menos prováveis ​​entre os participantes que haviam tido alguma experiência anterior com serviços de saúde mental, seja para si ou para amigos / familiares.

Embora os insights acima sejam importantes, há algumas limitações que devem ser lembradas em relação a essa pesquisa. As vinhetas dadas aos participantes eram, auto-reconhecidamente, representações excessivamente simplistas de situações que envolviam sofrimento mental, bem como se concentravam exclusivamente em indivíduos do sexo masculino. Elas também foram escritas de maneiras que incluíam intencionalmente estereótipos comuns relacionados à ‘doença mental’. De fato, dada a frequência com que o termo ‘doença mental’ foi referenciado ao longo do estudo, não fica claro a partir do artigo como um conjunto alternativo de suposições poderia parecer, ou como os pesquisadores se proporiam a estudá-lo.

Os autores também observaram que os participantes tiveram taxas desproporcionalmente baixas de exposição a serviços de saúde mental quando comparados à população geral. Dado que os participantes eram todos estudantes de graduação, e o modelo biomédico é considerado a abordagem padrão para a atenção em saúde mental, poderia valer a pena explorar se tais crenças e premissas estigmatizantes foram reforçadas nos cursos universitários que os participantes realizaram.

No entanto, Johnson e seus colegas expressam otimismo de que suas pesquisas podem, no mínimo, servir como um estudo-piloto para uma exploração mais profunda das formas como o estigma relacionado aos serviços de saúde mental afeta a vida dos estudantes universitários. Especificamente, eles esperam que essa pesquisa estimule os educadores e administradores universitários a refletirem mais conscientemente sobre as maneiras pelas quais os estudantes com histórico de receber serviços de saúde mental:

“Podem enfrentar uma carga especial de expectativa – e estigma associado – se não tomarem medicamentos, que têm sido promovidos como úteis por várias décadas. Isso é especialmente relevante, uma vez que os medicamentos não ajudam todas as pessoas com depressão e, de fato, demonstraram ser menos eficazes que a psicoterapia no tratamento da depressão em adultos ”.

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Benjamin T. Johnson, Peter P. Grau & Stephen M. Saunders (2019): Psychiatric Medications and Stigmatizing Attitudes in College Students, Journal of College Student Psychotherapy, DOI: 10.1080/87568225.2019.1600092 (Link)

As triagens de saúde mental para jovens valem o risco?

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Em um esforço para aumentar o apoio a crianças vulneráveis ​​a ‘doenças psiquiátricas’, avaliações por rastreamento de risco em saúde mental são agora recomendadas por uma ampla gama de órgãos reguladores para experiências adversas na infância (ACEs) como depressão, ansiedade, tendências suicidas, etc. Não obstante, tem sido observado nos recentes anos um aumento da intensidade e zelo na aplicação de políticas gerais de rastreamento, particularmente relacionadas à depressão e ao risco de suicídio.

Em seu comentário publicado na semana passada no Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, os pesquisadores Schuyler Henderson, Ruth Gerson e Blake Phillips oferecem uma perspectiva crítica e oportuna a respeito das evidências conflitantes sobre o que constitui ‘alto risco’ e o que pode (e não pode) ser feito em resposta quando os riscos são identificados.

“A Comissão Conjunta ordena uma avaliação de suicídio para pacientes que apresentam comportamento suicida ou que tenham testado positivo para ideação suicida” seguido de estratificação de risco: após “esta avaliação, os pacientes devem ser classificados como alto, médio ou baixo risco de suicídio”, eles escrevem.’“ “Mas a estratificação de risco de suicídio em psiquiatria infantil está pronta para o horário nobre? Estamos colocando o carrinho de avaliação de risco antes do cavalo?”

Henderson, Gerson e Phillips não são os primeiros a identificar padrões de esforços alarmantemente liberais para detectar disfunções psicossociais e comportamentais entre os jovens, por meio de triagem ou avaliação de risco. Em um artigo de 2014 da Mad in America intitulado A Pesquisa Proativa de Doenças Mentais em Crianças, Bob Wipond explorou a triagem e a vigilância em iniciativas clínicas e, cada vez mais, sendo feitas na escola. Ele chamou a atenção para a falta de evidências de um programa na British Columbia chamado Programa de Apoio à Prática para a Saúde Mental de Crianças e Jovens (PSP-CYMH), uma iniciativa conjunta do Ministério da Saúde e os Médicos do British Columbia.

Em 2017, Jeanne Lenzer, editora associada do BMJ, criticou a Declaração de Recomendação da Força-Tarefa dos Serviços Preventivos dos EUA sugerindo que todas as crianças e adultos sejam rotineiramente rastreados para depressão, afirmando que “muitos órgãos criadores de diretrizes serviriam melhor à prática clínica fazendo menos recomendações: com mais reflexões sobre a incerteza com respeito às decisões de tratamento. O que precisamos são menos recomendações e mais evidências de alta qualidade para fundamentar as decisões. Atualmente, parece que estamos vendo exatamente o oposto”. Algumas das complexidades do debate em relação à triagem foram exploradas em um debate publicado no Wall Street Journal.

Em seu relatório, Henderson, Gerson e Phillis estruturam suas percepções primeiramente abordando o que pode estar implícito no alto risco (observando alguma variabilidade nas definições e implicações), explorando como as determinações do nível de risco são feitas (estratificação de risco), identificando ‘o risco arriscar’, e concluindo com alternativas potenciais à direção em que a psicologia e a psiquiatria estão se movendo juntas.

O alto risco, eles observam, pode significar qualquer número de coisas, variando da vulnerabilidade ao bullying, do baixo SES ao potencial para fracasso escolar. Os autores sugerem que as determinações do nível de risco podem ser úteis quando se pode prever com segurança resultados perigosos e quando apropriadamente é possível vinculá-los a cuidados efetivos.

No entanto, usando o suicídio como exemplo, enfatizam a falta de sofisticação das ferramentas atualmente disponíveis para prever precisamente o nível de risco, a ausência de sistemas formalizados para vincular as crianças ao apoio, a escassez de iniciativas de intervenção empiricamente apoiadas até mesmo em comunidades onde programas estão disponíveis.

“Os instrumentos de rastreio de suicídio podem ser úteis para orientar os médicos ou outras pessoas que trabalham com crianças e adolescentes que, de outra forma, poderiam não saber como realizar uma avaliação de risco de suicídio ou até mesmo perguntar sobre a probabilidade de suicídio”, escrevem eles. “No entanto, esses instrumentos não adicionam necessariamente qualquer valor -seja na estratificação de risco ou na previsão de comportamento suicida – acima deste padrão clínico de atendimento que é feito pelos psiquiatras.”

Sua exploração das determinações do nível de risco destaca a natureza muitas vezes obscura das designações. Os fatores de risco para o suicídio têm sido bem estabelecidos em pesquisas, mas a precisão na predição permanece fraca. Assim, as distinções entre categorias de risco (por exemplo, alta, média ou baixa) podem não fornecer os insights para as entidades reguladoras. A diferenciação entre as categorias de risco pode ser menos clara do que se supõe frequentemente.

“A regulamentação pode inspirar e direcionar avanços científicos, mas ainda assim é um problema quando as regulamentações são baseadas em uma convicção prematura sobre a base de evidências”.

Henderson, Gerson e Phillis rejeitam a suposição que o que as agências reguladoras promovem é sem prejuízos na triagem, citando evidências da baixa sensibilidade de algumas ferramentas populares na identificação de necessidades, a falta de programação adequada devido à natureza antiética de se identificar risco sem oportunidade para intervenção apropriada e o protocolo impraticável para uma intervenção quando os suportes estão disponíveis. Eles escrevem:

“Se quisermos levar a sério o risco, sabemos de fato o que começar a fazer. Em vez de respostas algorítmicas que demandam serviços que podem não estar disponíveis ou mesmo indicados, as medidas em saúde pública devem começar pela restrição ao acesso a meios letais, mitigando os fatores de risco em um nível populacional e aumentando o amplo acesso aos cuidados ”.

Os autores enfatizam o valor potencial na regulamentação mais rigorosa das armas, das substâncias e da medicação potencialmente perigosa, juntamente com um movimento em direção a um sistema que valorize a segurança da juventude em relação às conveniências do adulto. Além disso, os esforços para promover a comunidade e a inclusão a nível escolar poderiam reduzir o risco de depressão entre os jovens. A psicoeducação para crianças e famílias e a ênfase na conectividade são práticas baseadas em evidências que também podem impactar a mudança.

Henderson, Gerson e Phillis argumentam convincentemente que, sem a ampliação do amplo acesso a serviços de apoio e o reconhecimento generalizado da importância do contexto, mesmo as melhores ferramentas de triagem teriam um valor prático mínimo. Eles concluem:

“Não devemos esquecer, como defensores da saúde mental infantil e familiar, que toda vez que falamos de crianças em risco, precisamos pensar em por que os adultos estão colocando as crianças em risco e o que realmente devemos fazer a respeito”.

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Henderson, S. W., Gerson, R., & Phillips, B. (2019). What Is “High Risk” and What Are We Actually Supposed to Do About It? Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, 58(6), 561-564. (Link)

A Qualidade dos Cuidados de Saúde Mental Comunitária Depende dos Direitos Humanos e da Expertise dos Usuários

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(Photo Credit: European Union/Barbara Minishi/Flickr Creative Commons)

Os prestadores de serviços em toda a Europa reuniram-se para definir uma visão compartilhada de cuidados alta qualidade para a saúde mental comunitária. Este esforço está centrado em uma perspectiva de direitos humanos e na experiência de pares para promover a recuperação para todos.

A Rede de Prestadores de Serviços de Saúde Mental da Comunidade Europeia (EUCOMS) publicou recentemente um documento de tomada de posição onde delineia seis princípios para melhorar as estruturas dentro da saúde mental comunitária e informar governos, entidades e financiadores.

“De acordo com a visão dos membros do EUCOMS, os bons serviços de saúde mental são descritos como sendo abrangentes, acessíveis igualitariamente para todos, integrados, voltados para a recuperação, destinados a proteger e respeitar os direitos humanos, a fazer emprego de intervenções efetivas e personalizadas e a trabalhar em colaboração com os usuários dos serviços e as suas redes.”

(Photo Credit: European Union/Barbara Minishi/Flickr Creative Commons)

Em 2015, a rede EUCOMS foi criada quando os provedores se reuniram para uma reunião sobre atendimento integrado e a divulgação assertiva. Ao reconhecer as tendências de desinstitucionalização e a crescente necessidade de cuidados de qualidade baseados na comunidade, eles procuraram visualizar e redefinir os “bons” cuidados de saúde mental comunitária.

O desenvolvimento de serviços comunitários de saúde mental tem sido um dos principais objetivos da política de saúde, já que as atitudes do provedor e do usuário do serviço se distanciaram dos cenários da internação psiquiátrica de longa permanência. No entanto, os hospitais continuam a receber a maior parte do financiamento e dos recursos, tornando os cuidados comunitários como os mais baixos na lista de prioridades políticas. Além disso, há uma falta de consenso entre as partes interessadas sobre como desenvolver com sucesso o cuidado baseado na comunidade. As barreiras incluem a falta de cooperação entre os setores social e de saúde, a resistência à mudança, a falta de liderança clara e forte e as dificuldades que envolvem a integração da saúde mental nos contextos de saúde primários.

Com base na necessidade de identificar os princípios e elementos-chave de cuidados de alta qualidade baseados na comunidade, para desenvolver esse  documento de tomada de posição, a rede do EUCOMS consultou especialistas em saúde mental, usuários com expertise a partir de suas próprias experiências e pesquisadores.  Este artigo, de autoria de René Keet e da equipe do EUCOMS, foi recentemente publicado no BMC Psychiatry. O objetivo do artigo é contribuir para diminuir a distância entre evidência, política e prática:

“O EUCOMS pretende contribuir para a discussão sobre como reduzir a distância entre evidências, políticas e práticas na Europa, apoiando a implementação regional de cuidados de saúde mental de qualidade, levando em consideração os diversos contextos.”

Seis princípios foram identificados pela rede do EUCOMS como sendo os principais componentes para informar a organização e a estruturação de cuidados comunitários. Saúde mental comunitária de alta qualidade: “(1) protege os direitos humanos, (2) tem um enfoque de saúde pública, (3) apóia os usuários em sua jornada de recuperação, (4) faz uso de intervenções efetivas baseadas em evidências e objetivos do cliente, (5) promove uma ampla rede de apoio na comunidade e (6) faz uso da expertise de pares na elaboração e na dispensação de serviços.”

Os direitos humanos são apresentados como um princípio fundamental. De fato, Keet e seus colegas observam que o movimento para enfatizar os direitos humanos foi uma força motriz para fechar hospitais psiquiátricos e avançar para o cuidado baseado na comunidade. A rede do EUCOMS está alinhada com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência(CRPD) e com o Relator Especial Dainius Pūras (ver relatório no MIB) para melhorar estruturalmente as instalações de saúde mental de acordo com um quadro de direitos humanos.

“O documento de tomada de posição recomenda evitar a exclusão da vida comunitária, o que impacta negativamente a capacidade de se integrar à sociedade, atingir metas de recuperação e levar uma vida significativa. Para realizar isso, os governos precisam garantir que os direitos de todas as pessoas sejam respeitados com a mesma base legal. Isso requer uma revisão das políticas nacionais e dos quadros legislativos.”

Os autores esclarecem que a saúde pública se refere à equidade entre grupos, assim como a saúde em nível da população. Isso vai além do tratamento e inclui promoção e prevenção. Desse modo, uma perspectiva de saúde pública é fundamental para o cuidado baseado na comunidade e estende o direito humano ao “mais alto padrão atingível de saúde”. O artigo descreve numerosas considerações para facilitar a implementação bem-sucedida de metas de saúde pública em nível comunitário.

Ao longo do documento, a rede EUCOMS enfatiza constantemente a necessidade de os provedores darem suporte aos usuários em sua jornada de recuperação, oferecendo esperança, colaborando ao em vez de tomar decisões para o usuário do serviço e centralizando novamente o foco nos pontos fortes do usuário. A recuperação é descrita como complexa, tanto individual quanto multidimensional.

Os autores escrevem: “A recuperação tem várias dimensões, incluindo a recuperação clínica (alívio dos sintomas psiquiátricos); recuperação funcional (participação significativa na sociedade) e recuperação pessoal (restauração da identidade pessoal). A recuperação é um processo individual único ou uma experiência que pode ser melhor descrita enquanto uma jornada. Em bons cuidados de saúde mental baseados na comunidade, os profissionais são companheiros nesta jornada pelo menor tempo possível, embora o tempo que for necessário”.

Apoiar a recuperação bem-sucedida e os cuidados de saúde mental baseados na comunidade é fazer uso de evidências científicas para orientar as intervenções, de acordo com o EUCOMS. Eles recomendam o uso de “tratamento psicológico baseado em evidências”. A medicação deve ser usada “como uma ferramenta e não como um objetivo”, esclarecem. A rede do EUCOMS tenta fundir os diferentes campos de cuidados baseados em evidências e voltados para a recuperação, observando que os dois devem se informar mutuamente. Eles escrevem:

“A terceira e próxima era em saúde mental é a era moral, com uma redução de medidas obrigatórias, abrindo mão da prerrogativa profissional e uma transição para a civilidade e a colaboração entre pacientes e cuidadores. O movimento em direção à terceira era é impulsionado por evidências limitadas de melhores resultados de abordagens biológicas e psicológicas apenas em saúde mental, e pelo crescente conhecimento sobre a poderosa influência de fatores sociais, como a desigualdade na saúde mental ”.

No centro dos cuidados comunitários de saúde mental está o reconhecimento de que a saúde mental envolve toda uma abordagem sistêmica que se baseia na expertise de provedores em colaboração em uma equipe multidisciplinar. Para aumentar a resiliência dos usuários do serviço e de suas redes de apoio, é importante considerar suas redes de suporte relacional e preencher a lacuna entre profissionais e não profissionais, afirma a rede do EUCOMS.

“A experiência profissional dos membros da equipe é combinada com a experiência vivida pelos usuários. O mesmo princípio pode ser aplicado à colaboração intersetorial ”, escrevem eles.

“No entanto, esses objetivos podem ser obstruídos quando pressões econômicas externas ditam sistemas e intervenções de saúde mental”, conforme os autores.

“A integração dos serviços comunitários de saúde mental, setores e colaboração com a rede social do usuário do serviço pode ser dificultada por um sistema de financiamento que favoreça o cuidado institucional (por exemplo, recompensando a ocupação do leito). Portanto, recomenda-se criar um sistema de financiamento flexível que permita incentivos para diferentes serviços que abordem os domínios relevantes da vida de pessoas com uma doença mental ”.

Além das evidências científicas e da expertise dos provedores, a rede EUCOMS sugere a valorização da expertise e das contribuições dos pares em contextos comunitários de saúde mental. Os pares não apenas fornecem um exemplo vivo da possibilidade de recuperação, mas também podem fornecer orientação e apoio inestimáveis a outros em sua jornada para a recuperação por meio de seu envolvimento na concepção, implementação e avaliação de intervenções. No espírito de “nada sobre nós sem nós”, a rede do EUCOMS sugere redistribuir o poder para envolver os usuários do serviço como especialistas e fornecer os recursos apropriados para facilitar essa prática.

É importante ressaltar que, apesar de tentar tirar proveito das perspectivas de diversas partes interessadas, a equipe do EUCOMS não teve representação igual entre os grupos de partes interessadas. Os autores revelaram a super-representação de membros de países da Europa Ocidental e que receberam relativamente pouca contribuição de usuários de serviços e cuidadores.

Eles concluem:

Com este documento de tomada de posição, o EUCOMS espera contribuir para a discussão sobre como melhorar as estruturas dos cuidados de saúde mental e diminuir a distância entre evidências, políticas e práticas na Europa. Os próximos passos essenciais para o sucesso do EUCOMS são conectar e envolver os diversos grupos de partes interessadas com o diálogo contínuo, o consenso de pesquisa e a construção de capacidades de defesa da causa ”.

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Keet, R., de Vetten-Mc Mahon, M., Shields-Zeeman, L., Ruud, T., van Weeghel, J., Bahler, M., . . . Nas, C. (2019). Recovery for all in the community; position paper on principles and key elements of community-based mental health care. BMC psychiatry19(1), 174. https://doi.org/10.1186/s12888-019-2162-z (Link)

A criação de uma alternativa conceitual para o DSM: uma entrevista com a Dra. Lucy Johnstone

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No ano passado, Lucy Johnstone, Mary Boyle e seus colegas no Reino Unido lançaram o Power Threat Meaning Framework (PTMF), que traduzimos para o Português como Poder, Ameaça e Sentido (PAS). Trata-se de conjunto de ideias que tem representado um afastamento das concepções biomédicas que animam o Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana (DSM).  Essa estrutura desloca a noção de “O que está errado com você?” – como é recomendado pelo DSM – para “O que aconteceu com você?”. Ao assim fazer, rejeita o processo médico de diagnosticar ‘transtornos’, em favor de uma resposta narrativa que conte contextos, dinâmicas de poder e sistemas. Para que o leitor tenha uma ideia, veja o vídeo de lançamento desse Modelo de referência, que foi produzido pela própria Sociedade Britânica de Psicologia, e que está com legendas em português.

No momento em que o Movimento Global de Saúde Mental está exportando o modelo biomédico ocidental pelo mundo afora, Johnstone, Boyle e a equipe do projeto PAS, que inclui aqueles que se identificam como usuários / sobreviventes, e que buscam promover uma maneira radicalmente diferente de se entender o sofrimento. As respostas ao P.A.S. variaram de críticas à gratidão.

Johnstone, uma psicóloga clínica e consultora, com larga experiência em trabalhar há muitos anos em ambientes de saúde mental para adultos, acredita que o atual sistema de saúde mental falhou, e que estamos agora no processo de testemunhar o desmoronamento do paradigma médico do sofrimento emocional. Ela acredita que precisamos de uma abordagem baseada em princípios fundamentalmente diferentes. O P.A.S. , que se baseia em uma ampla gama de evidências e exemplos de alternativas existentes, é uma tentativa de descrever como isso pode se dar. A equipe do projeto P.A.S. espera que possa ser uma contribuição para a tão necessária revolução.

Em uma recente postagem, o Mad in Brasil trouxe ao conhecimento do nosso público um artigo publicado pela Clinical Psychology Forum onde são avaliados os resultados após um ano do lançamento oficial da Abordagem do P.A.S. Nesta entrevista que agora estamos trazendo ao conhecimento do público, 18 meses após o lançamento, Lucy Johnstone reflete sobre a reação ao P.A.S. e o impacto que teve até agora. Como as ideias estão sendo usadas? Há chance de se tornar mais amplamente adotado? Lucy também descreve como suas próprias experiências de vida influenciaram o seu trabalho.

A transcrição abaixo foi editada para maior clareza. (Ao final da transcrição você pode ouvir a entrevista completa.)

Zenobia Morrill: Para começar, por que você acredita que nós necessitamos de um modelo de diagnóstico alternativo? Com outras palavras, qual é o problema com o DSM?

Lucy Johnstone: Não achamos que precisamos de um novo manual de diagnóstico, achamos que precisamos de uma nova estrutura que não seja diagnóstica. Então é isso que tentamos fornecer. Mas você e qualquer um da comunidade Mad está bem ciente, como muitas outras pessoas, de que a atual estrutura de diagnóstico está enfrentando muitos problemas.

É claro que experiências de sofrimento psíquico são muito reais. As pessoas realmente se sentem suicidas e desesperadas, ansiosas e sem esperança, ouvem vozes hostis e têm mudanças de humor e assim por diante, mas nunca foi demonstrado que essas experiências reais são melhor entendidas como sendo doenças médicas que precisam ser diagnosticadas. Há também uma grande quantidade de evidências de que as pessoas estão, em última análise, respondendo a eventos em suas vidas quando passam por essas experiências muito difíceis.

Nós claramente precisamos de algo diferente (do DSM). Agora, é claro, as pessoas têm ideias variadas sobre como esse sistema diferente deva ser; se deveria ser, de algum modo, um quadro de diagnóstico melhor e mais eficaz, ou se deveria ser algo completamente diferente. Mas é óbvio que todos os lados do debate pensam que o sistema de diagnóstico atual não está funcionando. Precisamos, pelo menos, de algo diferente e é nossa opinião que a grande diferença precisa ser um afastamento fundamental da suposição de que essas dificuldades e essas formas de sofrimento psíquico são mais bem entendidas enquanto doenças médicas.

Morrill: Como você responderia às pessoas que dizem que o DSM ou o CID são úteis, pois agrupam pessoas com sintomas semelhantes para fins de pesquisa, fornecem uma linguagem comum aos praticantes ou até ajudam a fins de reembolso e categorizam diferentes tratamentos para pessoas com sintomas semelhantes?

Johnstone:  O diagnóstico enquanto tal, o diagnóstico médico, faz essas coisas. É por isso que temos isso, para que possamos agrupar os sintomas e sugerir os melhores tratamentos ou intervenções. Eu realmente desafiaria essa linguagem, antes de tudo. A linguagem dos ‘sintomas’, das ‘doenças’ e dos ‘tratamentos’, tudo faz parte desse mesmo modelo não comprovado. Na verdade, acho que seria muito difícil sustentar que os diagnósticos psiquiátricos executam qualquer uma das funções que o diagnóstico faz no que eu chamaria de ramos legítimos da medicina.

Precisamos de fato de maneiras de agrupar diferentes tipos de experiências, para que possamos pensar sobre o melhor caminho a seguir e tudo o mais, porém o sistema de diagnóstico não faz isso. Estamos afirmando que criamos algo que faz isso melhor. Igualmente, é verdade que, no sistema atual, o diagnóstico é necessário para alguns propósitos práticos, como o acesso aos serviços públicos e benefícios, e no futuro previsível provavelmente se passará. Queremos afirmar que descobrimos que existem formas mais eficazes de fazer isso que não exigem que você assine um rótulo, o que na verdade não é válido e que é experimentado por muitas pessoas como prejudicial.

Morrill: Você acha que o DSM ajudou a formar o pensamento social e profissional sobre as dificuldades psiquiátricas que é de uma maneira prejudicial?

Johnstone: O DSM e seu equivalente europeu, o CID, certamente tiveram um profundo efeito na formação do pensamento social e profissional, e é a galinha e o ovo, não é assim? Surgiu de um certo modo de pensar sobre as coisas. Isso teve um efeito profundo. Eu certamente argumentaria, como muitas outras pessoas, que o efeito geral tem sido muito prejudicial.

Eu acho que é quase impossível subestimar a sua influência e entender quão profundamente ela está infiltrada em todos os tipos de áreas de nossas vidas. Não são apenas serviços, mas o sistema legal, o sistema de saúde pública, a tal ponto em que as pessoas estão realmente chegando já tendo se autodiagnosticado. Esse idioma está em toda parte: em campanhas, como campanhas anti-estigma, no Google, na mídia, nos programas de treinamento das pessoas. Tornou-se algo que Mary Boyle, em sua frase útil, chama de “a mentalidade do DSM”.

Há uma horrorosa quantidade de evidências, e se irá saber disso, é claro, mas pessoas como Robert Whitaker mostraram, eu acho bastante conclusivamente, que esse tipo de abordagem, juntamente com as drogas psiquiátricas que a abordagem convida, não ajuda as pessoas ou as torna melhores, em longo prazo, em média. Na verdade, os níveis de incapacidade entre os países vem ao mesmo tempo aumentando. O modelo fundamental claramente não está funcionando e precisamos claramente de algo diferente.

Morrill: Você está mostrando que esse sistema tem causado danos, não tem validade e não está funcionando. E que o quadro de referências P.A.S. oferece outra coisa. Quais são os principais objetivos do P.A.S.

Johnstone: O P.A.S. é uma tentativa absurdamente simples e ambiciosa – uma tentativa em andamento, não uma resposta completa – que esperamos que comece a delinear uma alternativa conceitual ao modelo de diagnóstico da angústia.

Nós já temos várias maneiras diferentes de abordar o sofrimento, que não são baseadas em diagnósticos, e nos debruçamos em muitas delas. Muito do que está no quadro de referências não é novo. Nós escolhemos a expressão ‘quadro de referências’deliberadamente. É uma espécie de guarda-chuva que dá suporte, centraliza e dá mais algumas evidências, credibilidade e suporte para as muitas formas não-diagnósticas de trabalho que já existem, além de sugerir novos caminhos para o futuro.

Estamos pretendendo que isso seja um passo importante, não apenas para um uso particular da linguagem, um uso particular de rótulos, mas uma maneira completa de pensar – afastar-se de toda a mentalidade do DSM. Em parte, é por isso que o documento é tão longo, denso e detalhado, porque não queríamos apenas ajustar o sistema existente. Não queríamos apenas dizer: “Bem, aqui está uma maneira extra de fazer as coisas que podem ser úteis”. Queríamos ir além disso, o que exigia que nos aprofundássemos profundamente nos princípios filosóficos e conceituais da abordagem do DSM e apresentar uma visão geral sólida de toda a pesquisa relevante.

O objetivo é mover-se, em termos simples, para longe do “O que está errado com você?” para a pergunta “O que aconteceu com você?”.  Para dizer o mais rapidamente quanto o possível, estamos evidenciando, esperamos, a ideia de que o sofrimento das pessoas seja compreensível no contexto, mas queríamos pensar sobre o contexto em sua forma mais ampla. Uma das coisas que queríamos fazer era deixar bem claro o elo entre o sofrimento psíquico pessoal e o contexto social, a desigualdade social e as injustiças sociais. Em outras palavras, colocar o poder no mapa. [A problemática] o poder não está faltando apenas no pensamento psiquiátrico, mas também está faltando muito no pensamento psicológico, e faz muita falta ao pensamento psicoterapêutico.

Junto com isso, queríamos ter um quadro de referências que apoiasse as pessoas para ajuda-las a contar suas histórias, narrativas de todos os tipos. Portanto, a resposta mais simples para “O que você faz ao em vez de diagnóstico?” é  “você ouvir as histórias das pessoas”. Essa é um quadro de referências que, esperamos, valida a ideia de que as narrativas são uma alternativa ao diagnóstico e apoie a construção ou a co -construção de narrativas particulares e analise padrões nessas narrativas.

Finalmente, a terceira coisa importante a dizer é que o quadro de referências se aplica a todos nós. Nós realmente queríamos nos afastar de toda essa ideia de que há um grupo de pessoas que são de alguma forma doentes mentais ou diferentes de alguma forma fundamental. Estamos todos sujeitos à influência negativa do poder. Todos nós sofremos de vez em quando. O quadro de referências é, na verdade, sobre todos nós.

Uma das principais coisas sobre o quadro de referências é, na verdade, dar às pessoas o conhecimento, a informação, para decidir sobre como querem descrever sua própria experiência. Essa é uma forma realmente importante de restaurar o poder das pessoas: a capacidade de criar seus próprios significados. Em última análise, criar novas narrativas que façam mais sentido.

O modelo biomédico de psiquiatria é um excelente exemplo do uso do poder ideológico, porque é uma cosmovisão que não tem nenhuma evidência para apoiá-lo, que nunca teve evidências para apoiá-lo, que opera claramente no interesse de pessoas que já são bastante poderosas – profissionais, empresas farmacêuticas, e assim por diante – claramente operando para as desvantagens de pessoas que já são menos poderosas, se não provavelmente não estariam optado pelos serviços. O modelo biomédico claramente opera impondo uma forma de significado às pessoas, que segue as linhas de: você tem uma doença mental do tipo X, Y ou Z. Se você começar a desafiar isso, você descobrirá rapidamente que o poder está em outro lugar. Você não tem permissão para contestar. Todos os tipos de consequências podem vir ao desafiar esse modelo.

Morrill: Como sua experiência pessoal e profissional influenciou a sua participação e construção do P.A.S.?

Johnstone: Eu sempre acreditei que a loucura tem significado, mas também acho que provavelmente todos nós no grupo do projeto diríamos a mesma coisa. De certa forma, o P.A.S. é a culminação de nossa experiência pessoal e profissional. Nós, todos nós, trouxemos uma gama de experiências para essa tarefa que envolveu pesquisa, prática clínica, treinamento e experiência pessoal. Em conjunto, acho que houve uma mistura rica em que todos nós, com esses aspectos de nossas experiências, fomos capazes de alimentá-la na produção do documento.

Se eu pensar sobre mim mesma, eu certamente diria que não foi por acaso que passei a trabalhar em trabalho de saúde mental e desenvolvi as visões que hoje tenho. Eu sou uma pessoa normal. Eu venho de um background de uma família de classe média típica do Reino Unido, meus pais são professores, eu tenho um irmão e uma irmã, eu fui para uma escola de uma bom padrão. . . Quero dizer, em certo sentido, nada de terrível aconteceu comigo. Em outro sentido, havia uma série coisas que que me levaram a estar sempre muito infeliz quando criança, quando adolescente, quando jovem, e passei muito tempo pensando sobre isso. Está claro para mim que havia razões para isso.

Eu venho de uma geração que foi bastante influenciada pelo chamado movimento antipsiquiátrico. Quando comecei a treinar como psicóloga, ainda havia pessoas por perto, algumas das quais eram muito inspiradoras para mim, que haviam trabalhado com Laing, por exemplo. Essas ideias ainda estavam por aí. Tudo tinha a ver comigo. O fio condutor das experiências pessoais, que o sofrimento psíquico ou a loucura têm significado, se harmonizou muito com algumas das correntes que ainda existem na cultura. Eu sempre acreditei nisso, eu sempre segui esse fio condutor.

Morrill: Como foi o processo intelectual de construir o P.A.S.?

Johnstone: Em certo sentido, o ponto de partida é a declaração do posicionamento que a Divisão de Psicologia Clínica emitiu em maio de 2013, exatamente na mesma época em que o DSM-5 foi publicado, e eu fiz parte dessa posição, assim como algumas outras pessoas que estavam no grupo. Em essência, era todo um corpo profissional que pedia o fim do modelo de doença do sofrimento, o que é bastante corajoso e desafiador ser feito.

Uma das recomendações era que, se nós fossemos pedir isso, precisaríamos saber como seria uma alternativa e nos juntarmos aos sobreviventes e outros grupos interessados em ver como isso poderia ser.

Isso evoluiu a partir disso, sem qualquer plano. Mary e eu éramos os líderes do projeto. Eu nunca estive envolvida em algo tão ambicioso antes. Eu acho que o que ajudou é que o grupo principal, todos nós nos conhecíamos há anos, se não décadas. Todos nós sabíamos de onde vínhamos e não acho que nenhum outro grupo teria conseguido executar essa tarefa com tanta facilidade. Houve um grande grau de confiança e amizade compartilhada e ideias e entendimentos divididos.

Nós começamos a nos encontrar regularmente. Começamos a consolidar algumas de nossas ideias. Começamos a atribuir diferentes aspectos do documento a diferentes pessoas para que assumissem a liderança. Começamos a atrair outros membros e pessoas para dar conselhos e consultas. Criamos um grupo consultivo de usuários de serviços e cuidadores. Cerca de três anos depois, Mary e eu percebemos que, a menos que dedicássemos um tempo realmente sólido para isso, isso nunca aconteceria. Nós essencialmente passamos dois anos sem sermos remuneradas financeiramente na frente de nossos computadores, cada uma de nós, juntando tudo, e depois o documento saiu.

Foi muito estressante em vários momentos. Acho que é justo dizer que, por cerca de dois anos, acho que senti, e sei que Mary assim se sentiu, e acho que os outros provavelmente sentiram o mesmo, esse tipo de pensamento: “Que diabos estamos fazendo aqui? Parece que estamos vagando em um deserto intelectual.” Firmemente, como acreditávamos que o modelo existente não é adequado para esse propósito, na verdade seria uma tarefa muito maior reunir algo que que se mantivesse unido do ‘colocar seu dinheiro onde sua boca já está’  [em algo seguro, já dado] – como dizemos no Reino Unido,  Por isso foi muito estressante e às vezes muito difícil, mas emergimos do outro lado com um documento em evolução e imperfeito, mas acho que nos sentimo-nos muito orgulhosos.

Morrill: O que você acha que o P.A.S. realizou? Como você deseja que seja usado, e como isso mudaria o pensamento social e profissional se ele for adotado?

Johnstone: Não tínhamos ideia de como isso iria se desenvolver e é ainda algo em evolução. Eu não sei aonde isso irá dar ou como será. Se for de fato totalmente implementado, a paisagem aparecerá bem diferente. Eu acho que é realmente difícil conceituar, porque se está trazendo algumas questões realmente fundamentais, como: “necessitamos de um sistema de saúde mental?” Nem todas as culturas e países tiveram ou têm um sistema de saúde mental. Nós precisamos mesmo de um? Essa é uma grande questão.

Em um nível mais imediato, nós deliberadamente não definimos respostas específicas sobre “Como eu poderia trabalhar de maneira diferente com essa pessoa?” Ou “Como os serviços podem parecer de maneira diferente?” Porque queríamos que isso fosse um recurso conceitual, um conjunto de ideias. Cabe às próprias pessoas pensar em como elas poderão colocá-lo em prática. Queremos colaborar, deixar que as pessoas façam o que parece ser útil, porque elas serão os especialistas em seu ambiente e em sua posição. A segunda etapa do projeto é que isso aconteça na medida em que estiver acontecendo. Esperamos receber feedback sobre isso.

Esperamos aprender como as pessoas o estão usando, o que funcionou, o que não funcionou e assim por diante. Eu acho que o que nós queríamos principalmente alcançar era algum senso de apoio para as pessoas que querem pensar e fazer as coisas de maneira diferente ou ver suas vidas de maneira diferente – algumas ideias para que eles ponham em prática para levá-las mais adiante. É assim que parece estar funcionando. Isso é ótimo. É uma jornada em andamento, então vamos ver.

Morrill: Como os objetivos centrais do P.A.S. se encaixam ou se chocam com o movimento para globalizar a saúde mental?

Johnstone:  Um dos maiores escândalos de nossa era, penso eu, não é apenas que o modelo de diagnóstico está falhando de forma abrangente na maioria dos países industrializados ocidentais nos quais foi desenvolvido, mas que ao mesmo tempo – e isso pode não ser uma coincidência – esteja sendo exportado pelo mundo todo.

Isso geralmente é visto como sendo bom, e tenho certeza de que as pessoas estão motivadas para o bem, a maioria delas, ao promoverem isso. Embora não esteja tão segura quanto às empresas farmacêuticas.  Mas acho que estamos perto demais para ver o que o escandaloso que isso é. Isso me lembra bastante como há cem anos, 80 anos atrás, o que ocorria com os missionários exportando o cristianismo, obedientemente e bem motivados.  Mas na verdade isso é em certo sentido semelhante, e diria que é até mesmo mais prejudicial. É uma forma de colonização e é insidiosa, porque trata-se de conquistar as mentes das pessoas e persuadir as pessoas de que isso é o que elas querem, essas maravilhosas novas formas científicas ocidentais de tratar as chamadas doenças. Uma das fortes mensagens do P.A.S., esperamos, é uma mensagem de respeito pelas muitas formas diferentes, culturalmente específicas e culturalmente apropriadas, de entender, expressar e tratar o sofrimento em todo o mundo.

Isso é muito diferente da perspectiva do DSM, porque a perspectiva do DSM tem um grande problema em tentar acomodar expressões de sofrimento culturalmente específicas. Porque se estas são doenças médicas, elas pareceriam mais ou menos as mesmas, não é mesmo? Diabetes, uma perna quebrada, malária, ou o que quer que seja pareceria ser mais ou menos o mesmo, onde quer que aconteça. Expressões de sofrimento psíquico podem parecer extremamente diferentes. Podem parecer extremamente diferentes ao longo do tempo, assim como entre culturas. Nos termos da Estrutura de Significado de Ameaça de Poder, isso absolutamente faz sentido porque um dos nossos principais argumentos é que, em vez de entender o sofrimento através de padrões biológicos, padrões que são emprestados dos tipos de padrões que vemos quando as coisas dão errado em nossos corpos, precisamos entender o sofrimento através de padrões organizados por significado. Eles são organizados pelo significado, não pela biologia, que é um grande salto conceitual, um dos saltos conceituais fundamentais que acho que fizemos. Precisamos estar pensando sobre como esses padrões são baseados ou organizados por significados sociais e culturais, não pela biologia e algo que deu errado com nossos corpos.

Assim que você se depara com isso, percebe, do ponto de vista do quadro de referências, é claro, expressões e experiências de sofrimento psíquico vão parecer muito diferentes culturalmente, porque são culturas diferentes com significados, normas, significados e pressupostos diferentes. Isso define o cenário para dizer, bem fantástico. Se isso funciona, é ótimo. Na verdade, ir além disso e dizer que pode haver coisas que podemos aprender com culturas não-ocidentais não industrializadas, em vez do contrário. “Vamos impor nossas visões ‘modernas’”.

Morrill: Que críticas você recebeu e como a psiquiatria respondeu ao P.A.S.?

Johnstone: Bem, os psiquiatras variam. Tem sido interessante porque há um grupo de psiquiatras no Reino Unido chamado Rede de Psiquiatria Crítica, que são críticos muito diretos do modo como a psiquiatria funciona. Fui convidada para falar em sua conferência anual este ano. Eles foram muito solidários, muito interessados, muito acolhedores.

Outros psiquiatras, é claro, viram isso de maneira diferente e, como esperado, têm, bem, gosto de pensar que a linha usual de defesa vai ignorar, atacar, assimilar.

Qualquer abordagem que desafie o status quo que você tende a ver: ignorar, vamos fingir que ninguém disse isso, atacar, vamos rasgar isso, assimilar– de certa forma, a fase mais perigosa, porque é como “Vamos pegar alguns pedaços e partes disso, mas vamos ignorar a mensagem fundamental ” e todo o road showcontinua como antes. Teremos psiquiatria como antes, mas teremos um grupo de ouvidores de vozes por meia hora uma vez por semana enfermaria, onde damos às pessoas algumas estratégias de enfrentamento e, ao mesmo tempo, tudo continuará como antes. Embora, curiosamente, pareçamos ter ido direto para a fase de ataque com o quadro de referências. Eu não sei o que isso significa, mas eu quero dizer que é realmente muito maior do que, como às vezes é inadequadamente dito, psiquiatria versus psicologia. Trata-se de uma forma de pensar que está profundamente enraizada em todas as nossas mentes, em todos os profissionais de qualquer formação.

Acho que é importante ouvir tudo que volta para você, mas algumas coisas me parecem bastante estranhas. Por exemplo, uma das grandes críticas que temos recebido é que “Seu quadro de referências carece de evidências”. Bem, o modelo de diagnóstico não é evidenciado, com certeza. Na verdade, temos 70 páginas de referências e uma visão geral das evidências. Algumas das críticas menos construtivas são: “Você é antipsiquiatria”, que, no Reino Unido, é uma forma generalizada de desacreditar você.

O sistema não vai mudar facilmente, e por sistema quero dizer todos os profissionais que estão envolvidos nele. Mas, como eu disse, não é principalmente para onde estamos mirando. Acho que chegou a hora, tanto quanto podemos, de nos afastarmos de todas essas coisas e promovermos boas práticas e práticas diferentes onde pudermos e onde houver pessoas dispostas a ouvir e experimentar coisas novas.

Morrill: Houve uma crítica ao envolvimento dos usuários e sobrevivente no projeto P.A.S. Você pode discutir essas críticas, assim como suas respostas a elas?
Johnstone: Temos tido comentários realmente, realmente emocionantes, vindos de pessoas específicas que disseram: “Eu vejo minhas dificuldades de uma maneira muito diferente, não preciso me sentir tão diferente, nem culpado ou envergonhado”, e assim por diante. E tivemos algumas críticas muito justas, particularmente que não é muito fácil lê-lo na maior parte da sua forma atual. Eu acho isso justo. Acho que queremos pensar em formas mais acessíveis e estamos fazendo isso.

Há pessoas que dizem: “Não parece realmente se encaixar ou descrever-me”. Isso é absolutamente bom. E há pessoas que estão felizes com o modelo de diagnóstico que se encaixa e se adequa a elas, e isso é absolutamente bom também, porque não é nosso objetivo, nem está ao nosso alcance, impor esse quadro de referências às pessoas. É para as pessoas pegarem se quiserem.

Nós tivemos algumas críticas bastante iradas que eu acho que são baseadas em mal-entendidos e eu não posso culpar ninguém por não ler todo o documento – é longo – mas o risco é você pegar ideias que não são realmente o que dissemos . Um dos comentários regulares que recebemos é: “Eu preciso do meu diagnóstico para o acesso ao bem-estar e ao serviço, e você quer tirar o meu diagnóstico.” E também, “O sistema vai dar pulos com isso e dizer ‘oh, essas pessoas não são doentes, não precisamos dar-lhes apoio’ ”, e assim por diante. Na verdade, nós dissemos claramente, em vários pontos do documento, que a primeira prioridade deve ser proteger o acesso das pessoas a benefícios e serviços, e assim por diante.  Este é um documento para discussão. Não é um plano para serviços ou para agências de benefícios, é uma maneira de discutir ideias.

Eu ainda sustentaria que o atual sistema de benefícios não está funcionando agora e as mesmas pessoas que estão, compreensivelmente, preocupadas com “Isso tornará a vida ainda mais difícil?” Eu acho que seria a primeira a admitir que o sistema é terrível no Reino Unido, e não apenas no Reino Unido. Muitas vezes, o diagnóstico é usado para excluir e incluir pessoas, e a maioria das pessoas está realmente sofrendo e tem que passar por um processo humilhante de se descrever em seu pior dia e aceitar um rótulo que possa não ser o mais feliz para ter o mínimo para viver. Este sistema realmente precisa mudar. Precisa mudar de uma maneira que não coloque as pessoas em risco. Mas acho que temos que ter essas discussões.

Há outras pessoas que eu acho que entenderam ou entenderam mal e estão a dizer: “Nós iremos dar a volta pelo país, arrancando o diagnóstico das pessoas e dizendo: ‘você não tem permissão para usar essa linguagem’.” Eu disse claramente que as pessoas têm que ter o direito de descrever suas experiências de uma maneira que faça mais sentido para elas, mas raramente é oferecida a essas pessoas essa escolha. Essa escolha é raramente oferecida às pessoas.

Morrill: Para onde vamos daqui? O mundo da psiquiatria ainda parece ser principalmente governado pelo DSM. O P.A.S. seria como uma causa perdida, se for esse o caso?

Johnstone: Não parece uma causa perdida porque, na minha opinião, estamos realmente testemunhando o desmoronamento de todo um paradigma. Com ou sem o P.A.S., os dias do paradigma de diagnóstico estão contados. Se você ler o material de Thomas Kuhn, a ‘Estrutura das Revoluções Científicas’, estamos vendo todos os sinais da queda de um paradigma. Estamos vendo contradições maciças dentro do paradigma, tentativas desesperadas de reforçá-lo, uma montanha de evidências que não são corretas, ou que outras formas são um caminho melhor para se seguir.

Uma das coisas que Thomas Kuhn diz é que todas essas coisas podem acontecer e, no entanto, o paradigma não mudará fundamentalmente a menos que ou até que haja outro lugar para onde ir. Bem, eu acho que há realmente um número de lugares para ir, e eu acho que a perspectiva informada pelo trauma, que nós desenhamos em grande parte no quadro de referências, é um deles, mas eu acho o quadro em si, espero eu, também possa ser visto como suporte adicional para esse tipo de abordagem, e como um lugar para se ir de fato. Se se tornar uma pequena parte desse inevitável processo, e eu acho que é inevitável, então ficaremos satisfeitos e orgulhosos.

Morrill: Isso é animador de ouvir.

Johnstone: Como você vê, eu sou totalmente otimista.

Morrill: Algo mais a acrescentar?

Johnstone: Eu penso que não. Eu gostaria de encorajar as pessoas a ler esses links que você irá colocar mais adiante para que conheçam algo mais. Faça o que quiserem desse material.

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Ouçam o audio aqui

Mais informações à respeito do Quadro de Referências Poder, Ameaças e Sentido:

The British Psychological Society: Introducing the Power Threat Meaning Framework (legendado)

Dra. Lucy Johnstone: interview to MIA radio.

A proposta discutida em Nova Zelândia e Austrália (parte I)

Reflections on responses to the power threat meaning framework one year on. 

 

A Atenção Básica Tem Medo da Esquizofrenia

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O artigo Por trás da máscara da loucura: cenários e desafios da assistência à pessoa com esquizofrenia no âmbito da Atenção Básica, publicado na revista Fractal, analisa os cenários e os desafios no atendimento de pessoas diagnosticadas com esquizofrenia na Atenção Básica.

A pesquisa exploratória e descritiva foi realizada no município de Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte, junto aos médicos e enfermeiros que atuam no Estratégia Saúde da Família (ESF), pelo fato de serem os profissionais que estão em contato direto com a população. Foram selecionados cinco enfermeiros e cinco médicos entre oito Unidades Básicas de Saúde. O roteiro que orientou a entrevista foi formado por questões que consideravam as concepções sobre esquizofrenia e seus efeitos, as políticas públicas de saúde mental e o papel da ESF na promoção da saúde mental. Após as entrevistas, foi realizada a análise de conteúdo através da análise e categorização das respostas obtidas nas entrevistas e, assim, avaliou-se a presença de semelhanças e diferenças nos discursos registrados.

A partir da análise das falas, foram gerados quatro categorias temáticas de discussão: Conceituações dos profissionais acerca da esquizofrenia; Assistências às pessoas com esquizofrenia na Atenção Básica – da ideal à real; Entraves para a assistência em saúde à pessoa com esquizofrenia; Possibilidades para a melhoria do trabalho em saúde mental.

Na categoria conceituações dos profissionais acerca da esquizofrenia, o primeiro conceito que surgiu foi “doença incapacitante”,  com sequelas psíquicas e do convívio social. Os profissionais da Atenção Básica manifestam medo de lidar com usuários considerados esquizofrênicos. O segundo conceito que emergiu foi o de “doença que altera o comportamento humano”, nas falas estiveram presentes o desconhecimento ou uma definição reducionista sobre as causas e sintomas do transtorno. Por último, o terceiro conceito é que a esquizofrenia exige diagnóstico e tratamento adequado.

“[…] Eu tenho medo de esquizofrênico! […] Já tive a oportunidade de trabalhar, de fazer visitas a pacientes esquizofrênicos e eu tinha muito medo, sempre ficava na retaguarda porque eu nunca sabia qual reação ele teria. Infelizmente é isso que eu penso.” (profissional de saúde F)

Outra categoria, a de assistência à pessoa com esquizofrenia na Atenção Básica – da ideal à real, o primeiro item identificado pelos profissionais foi o atendimento multiprofissional, mas observar -se uma transferência de responsabilidade do profissional de saúde básica para profissionais de serviços especializados, como o CAPS ou o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, que conta com psiquiatras e psicólogos. Outro item destacado foi a ênfase na terapêutica medicamentosa, dessa forma os profissionais reforçam o modelo biomédico da contenção farmacológica dos sintomas. O último item, foi o papel central da família na adesão e manutenção do tratamento.

“[…] trabalhar a família de modo que permita que esse pessoal esteja realmente fazendo uso do medicamento.” (profissional de saúde G)

” O que é feito no PSF não é nem  acompanhamento da medicação, mas talvez a troca de receitas para que o paciente ele tenha acesso a sua medicação.” (profissional de saúde H)

Já na categoria entraves para assistência em saúde à pessoa com esquizofrenia, três aspectos aparecem nos depoimentos:  a falta de envolvimento e participação da família no tratamento, a ausência de ações e atividades voltadas às pessoas com esquizofrenia e a dificuldade de articulação entre a Atenção Básica e os serviços especializados.

“[…] A família é omissa! A comunidade é rotulante! Para a comunidade  todo mundo é doido e não esquizofrênico! […] A família é omissa tanto no cuidado como na socialização do problema […] (Profissional de saúde F)

Por último, a categoria possibilidades para melhoria do trabalho em saúde mental, a primeira estratégia mencionada foi o fortalecimento do processo de educação permanente dos profissionais para melhorar a qualidade da assistência, enquanto a segunda estratégica citada concerne a participação da família no tratamento. Os participantes da pesquisa também identificam outros instrumentos de intervenção que poderiam ser fortalecidos como a visita domiciliar, que parece ser a única alternativa que estimula o trabalho com a esquizofrenia.

“[…] É muito complicado porque ninguém se aproxima dessa pessoa e ela não vai ter u cuidado e assim ela vai sentir rejeitada e não vai buscar esse cuidado. Vai se sentir doido realmente! Numa crise ele vai para um hospital psiquiátrico de onde ele volta pior do que ele foi, que geralmente é isso que acontece. Então esse é o fator complicador. A comunidade rotula e a família esconde o caso dentro de casa […].” (Profissional de saúde F)

Os autores consideram a partir do estudo, que a assistência às pessoas consideradas esquizofrênicas na atenção básica não identifica as maiores necessidades dessa clientela, se distanciando do princípio da integralidade. Mostrou-se um trabalho totalmente dependente do que é desempenhado no CAPS, no setor hospitalar psiquiátrico e no setor privado, apresentando baixa autonomia nas intervenções. Algumas soluções propostas seriam a qualificação permanente dos profissionais da atenção básica, efetivação de um sistema de referência e contrarreferência entre atenção básica e serviço especializado, a efetivação das políticas públicas em saúde mental, promoção de recursos por parte da iniciativa pública para desenvolver para desenvolver estas ações e a diversificação dos instrumentos de intervenção que ampliem as ações para a comunidade.

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SILVA, Ailton Pereira da et al . “Por trás da máscara da loucura”: cenários e desafios da assistência à pessoa com esquizofrenia no âmbito da Atenção Básica. Fractal, Rev. Psicol.,  Rio de Janeiro ,  v. 31, n. 1, p. 2-10,  abr.  2019 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922019000100002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  jul.  2019.  http://dx.doi.org/10.22409/1984-0292/v31i1/5517.

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