Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 7: Psicose (Parte Três)

0

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a falta de evidências de benefícios e a evidência de danos das drogas para psicose utilizadas em intervenções precoces ou no primeiro episódio psicótico. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

Intervenção precoce? Sim, mas não com drogas para psicose

Um argumento defendido para o uso de drogas para psicose era que é prejudicial não intervir precocemente e, frequentemente, era utilizado o termo “duração da psicose não tratada” (DUP). Alegava-se que o DUP piorava o prognóstico para esquizofrenia e transtornos semelhantes; [16:194, 17:326, 18:79, 18:233, 19:235, 20:416] que era prejudicial para o cérebro estar em estado psicótico; [18:98, 20:416] e que, com intervenção precoce, um curso crônico poderia ser evitado para muitos pacientes; [17:326] que poderiam aprender a lidar com sua vulnerabilidade. [18:80].

Esses argumentos não estão corretos. Quando uma droga não funciona para uma doença, mas apenas acalma os pacientes, não é importante usá-la no início do curso da doença. Além disso, a pesquisa – nenhuma das quais foi referenciada – que afirma que a duração da psicose não tratada está relacionada ao prognóstico é pouco confiável. Pessoas que não são tratadas precocemente não são comparáveis àquelas tratadas precocemente e estão em uma condição pior, em média, com uma série de fatores prognósticos que indicam um desfecho a longo prazo ruim, como falta de moradia e alcoolismo.

Com métodos estatísticos, não é possível ajustar de forma confiável essas diferenças. Como já mencionado, quanto mais variáveis são incluídas em uma regressão logística, mais longe provavelmente se estará da verdade [50] (veja Capítulo 2, Parte Dois).

Um Manual didático observou que a psicose aguda pode ser precedida por estresse agudo ou trauma, e que a remissão completa geralmente será observada dentro de alguns meses, muitas vezes em algumas semanas ou até mesmo dias.[16:232] Isso torna ainda mais inaceitável que os autores, algumas páginas depois, tenham recomendado pílulas para psicose de segunda geração e até mesmo afirmado que “estabilizadores de humor” – provavelmente antiepilépticos – podem ser usados concomitantemente.

Psiquiatras também afirmaram que drogas para psicose são frequentemente um pré-requisito para a psicoterapia e que o tratamento sem drogas foi tentado para psicose aguda em alguns países, mas pode ser muito perigoso, com um risco provável de danos cerebrais e um alto risco de suicídio.[18:233]

Se os pacientes estiverem muito agitados, a sedação pode ajudar a estabelecer contato, mas benzodiazepínicos são melhores nisso do que pílulas para psicose.[165] E geralmente é mais fácil praticar a psicoterapia em um paciente que não está sedado do que em um que tem dificuldade de concentração e foco.

É ultrajante sugerir que não usar pílulas para psicose pode ser muito perigoso. É muito perigoso usá-las; elas não protegem contra danos cerebrais, mas causam danos cerebrais irreversíveis;[63,64] e não reduzem o risco de suicídio, provavelmente o aumentam devido aos efeitos de retirada, por exemplo, quando os pacientes precisam de uma pausa na medicação, o que aumenta o risco de acatisia,[134] e, assim, de suicídio e violência.[7]

Relatos de pacientes na internet mostram que pensamentos suicidas ao tomar pílulas para psicose estão fortemente associados à acatisia; 13,8% dos entrevistados que relataram acatisia também relataram pensamentos suicidas, em comparação com 1,5% daqueles que não mencionaram acatisia (P < 0,001).[160] Esse dano seria esperado estar relacionado à dose da droga anterior, o que claramente é.[170]

A acatisia recebeu pouca atenção por muitos anos, e os médicos geralmente interpretavam o comportamento inquieto como um sinal de que os pacientes precisavam de uma dose maior da droga, o que agrava a situação. Quando os psiquiatras finalmente se interessaram por isso, os resultados foram chocantes. Em um estudo, 79% dos pacientes diagnosticados com transtornos que tentaram se matar sofriam de acatisia.[1:187] Um estudo de 1990 relatou que metade de todas as brigas em um hospital psiquiátrico estavam relacionadas à acatisia,[171,172] e outro estudo constatou que doses moderadas a altas de haloperidol tornavam metade dos pacientes marcadamente mais agressivos, às vezes ao ponto de quererem matar seus “torturadores”, os psiquiatras. Drogas psicotrópicas podem fazer com que as pessoas percam parte de sua consciência, perdendo o controle sobre seu comportamento.[21] Essas pessoas estão em risco muito maior de cometer atos criminosos e violentos.

Um manual didático afirmou que a clozapina parece ser capaz de reduzir o comportamento suicida em pacientes com esquizofrenia e mencionou que dois estudos de pequena escala sugerem que as pílulas clássicas para psicose podem ser preventivas em diferentes diagnósticos.[17:811] Esse pensamento otimista foi manipulado de maneira astuta usando a expressão “parece”; referindo-se a dois estudos pequenos em vez de nos dizer o que todos os estudos mostraram; e omitindo os dois estudos na lista de referências após o capítulo, deixando o leitor totalmente no escuro. Isso foi a antítese da medicina baseada em evidências.

A intervenção precoce na esquizofrenia é benéfica, desde que não seja com pílulas de psicose, mas com intervenções psicossociais.[7:170] Em 1969, a OMS lançou um estudo que mostrou que os pacientes se saíam muito melhor em países pobres – Índia, Nigéria e Colômbia – do que nos Estados Unidos e outros quatro países desenvolvidos.[1:226] Em cinco anos, cerca de 64% dos pacientes nos países pobres estavam assintomáticos e em boa funcionalidade, em comparação com apenas 18% nos países ricos.

Os psiquiatras ocidentais ignoraram os resultados com o argumento de que os pacientes em países pobres poderiam ter uma doença mais branda. Portanto, a OMS fez outro estudo, concentrando-se na esquizofrenia de primeiro episódio diagnosticada com os mesmos critérios em 10 países.[1:228] Os resultados foram bastante semelhantes: nos países pobres, cerca de dois terços estavam bem depois de dois anos, em comparação com apenas um terço nos países ricos.

Os investigadores da OMS tentaram explicar essa grande diferença com vários fatores psicossociais e culturais, mas não tiveram sucesso. A explicação mais óbvia, o uso de drogas, era tão ameaçadora para a medicina ocidental que ficou inexplorada. As pessoas em países pobres não podiam pagar pílulas para psicose, então apenas 16% dos pacientes as usavam regularmente, em comparação com 61% nos países ricos.

Um estudo mais recente realizado pela Eli Lilly não encontrou diferenças entre países pobres e ricos, mas neste estudo todos os pacientes foram tratados com drogas, metade deles com a droga da Eli Lilly, olanzapina, e a outra metade com outras pílulas para psicose.[173]

Um estudo de 20 anos realizado em Chicago, liderado por Martin Harrow, mostrou que, entre 70 pacientes com esquizofrenia, aqueles que não estavam fazendo uso de drogas para psicose após os dois primeiros anos tiveram desfechos muito melhores do que aqueles que estavam fazendo uso.[174] Isso não foi influenciado por um fator de confusão. A razão de chances ajustada de não estar tomando as drogas foi de 5,99 (3,59 a 9,99) para recuperação e 0,13 (0,07 a 0,26) para reospitalização.

Harrow era um proeminente pesquisador de esquizofrenia no Instituto Nacional de Saúde Mental, e outros pesquisadores chegaram a resultados semelhantes, mas todos eles tiveram reduções de financiamento.[1,5]

Além de evitar os efeitos prejudiciais das pílulas para psicose, há outras razões pelas quais as pessoas com esquizofrenia se saíram tão bem em países pobres.[175] A doença muitas vezes é vista como resultado de forças externas, como espíritos malignos e as pessoas são muito mais propensas a manter a pessoa em sofrimento na família e a mostrar bondade, o que ajuda os pacientes a se recuperarem e a participarem novamente da vida social.

Poucos psiquiatras sabem disso. Alguns têm me perguntado se seria mais humano privar as pessoas de sua liberdade amarrando-as a uma árvore do que usar drogas. Isso pode acontecer na África, mas, de maneira geral, as comunidades fizeram um trabalho muito melhor na África do que fazemos no mundo ocidental, onde institucionalizamos a privação de liberdade por meios legais e tratamento forçado e matamos centenas de milhares de pacientes com pílulas para psicose.[6:232] Este não é um sistema humano.

A famosa iniciativa da abordagem do Diálogo Aberto na Lapônia visa tratar pacientes psicóticos em suas casas.[8:91] O tratamento envolve a rede social do paciente e começa dentro de 24 horas após o contato.[176]

Uma comparação entre a Lapônia e Estocolmo ilustra a diferença entre uma abordagem empática e a imposição imediata de drogas a pacientes em primeiro episódio de psicose.[176,177] Os pacientes na Lapônia eram comparáveis aos de Estocolmo, mas em Estocolmo, 93% foram tratados com pílulas para psicose, contra apenas 33% na Lapônia, e cinco anos depois, o uso contínuo foi de 75% versus 17%. Após cinco anos, 62% em Estocolmo versus 19% na Lapônia estavam de licença por invalidez ou afastamento por doença, e o uso de leitos hospitalares também foi muito maior em Estocolmo – 110 versus apenas 31 dias, em média. Essa não foi uma comparação randomizada, mas os resultados são tão diferenciados que seria irresponsável descartá-los. Além disso, há muitos outros resultados que apoiam uma abordagem não medicamentosa para a psicose aguda.[7:330]

O modelo do Diálogo Aberto está ganhando impulso em vários países e ensaios randomizados estão em andamento. Esse modelo começou há 25 anos,[176] e foi surpreendente que os manuais didáticos não o mencionassem. A Dinamarca tem sua própria versão de intervenção precoce com princípios semelhantes, que começou aproximadamente na mesma época. Chama-se OPUS (nome que se dá na música à obra de música clássica) – porque uma orquestra consiste em muitos instrumentos diferentes, todos trabalhando juntos para tocar uma peça de música. A ideia com o OPUS é criar uma parceria entre o paciente e todos os que fazem parte do tratamento, incluindo a família e a rede social.

Os manuais didáticos reconheceram que intervenções psicossociais têm um papel no tratamento da esquizofrenia,[16:615,20:418] e houve muitos comentários sobre os efeitos positivos dessas iniciativas, como o envolvimento da família,[16:194,17:313] abordagem comunitária assertiva nos termos do paciente,[16:616,17:313] equipes multidisciplinares, terapia cognitivo-comportamental,[16:224,17:318] e treinamento neurocognitivo.[16:624]

Foi observado que o estudo OPUS na Dinamarca e o estudo AESOP na Inglaterra mostraram que mais da metade dos pacientes não apresentavam mais sintomas psicóticos após 10 anos.[16:205] Estudos mostraram uma redução nas readmissões, menos dias de hospitalização e um efeito nos sintomas psicóticos, abuso de drogas e sintomas negativos.[16:617]

Um manual afirmou, sem referências, que estudos mostraram que a terapia cognitivo-comportamental pode aliviar tanto os sintomas psicóticos quanto os sintomas negativos, e que ensaios randomizados mostraram que a intervenção familiar reduz pela metade o risco de recaída e dias de hospitalização.[17:318] Outro livro referiu-se a uma revisão sistemática,[16:620] que descobriu que intervenções psicossociais familiares reduziam pela metade a frequência de recaídas de esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo.[178] As internações hospitalares foram reduzidas em 32%, enquanto os dias de hospitalização estavam disponíveis apenas em dois pequenos estudos chineses.

Os autores observaram que os efeitos do tratamento podem ser superestimados devido à baixa qualidade dos ensaios, como a falta de cegamento adequado dos avaliadores. No entanto, o efeito sobre a recaída foi tão grande que dificilmente poderia ser causado apenas por viés.

Um manual observou que o emprego apoiado tornava três vezes mais provável que os pacientes encontrassem trabalho.[16:625] A referência era para uma revisão Cochrane de ensaios em doenças mentais graves, e de longe a maioria dos pacientes foi diagnosticada com esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo. A revisão observou que a evidência era de qualidade muito baixa.[179] Isso se deveu principalmente ao fato de que nenhum dos 14 estudos foi cegado: “Os participantes poderiam identificar a intervenção dada pelo conteúdo do programa.”

Claro que podiam. Algumas intervenções simplesmente não podem ser cegadas, mas conclusões como essas são produzidas quando os pesquisadores seguem servilmente a abordagem do livro de receitas da Cochrane, que reduz a qualidade da evidência para muitas intervenções úteis que não podem ser cegadas como um ensaio clínico de drogas.

É lamentável que as revisões Cochrane rotineiramente diminuam os resultados das intervenções psicossociais, uma vez que estas são claramente superiores às drogas. Outra questão foi que o número de dias de emprego de ampla concorrência, o resultado principal da revisão, foi relatado apenas em metade dos 14 estudos, o que é mais sério, já que todos os estudos eram sobre emprego apoiado.

Um dos manuais, que tinha apenas psiquiatras como autores, estava ainda mais focado em drogas do que as revisões Cochrane. Alegava que a terapia ambiental e técnicas psicoterapêuticas podem ser usadas quando a psicose aguda está sob controle com pílulas para psicose.[18:79] Isso está incorreto. A psicoterapia pode abolir a necessidade de pílulas para a psicose em muitos casos, como demonstrado pela experiência com o modelo Diálogo Aberto e outras abordagens, como o OPUS.

Esse manual também se contradizia. Observava que a psicoterapia é recomendada apenas na fase de estabilização,[18:99] mas na página seguinte, ao comentar sobre o OPUS, afirmava que a psicoterapia também pode ser usada desde o início. Curiosamente, ainda nesta página, o livro afirmava erroneamente que as pílulas para psicose são frequentemente um requisito para a melhoria e para possibilitar a inclusão do paciente em outras ofertas.[18:100]

O manual também afirmava que a terapia cognitivo-comportamental é a única forma de terapia para a qual há evidências de efeito na psicose.[18:102] Isso também está errado. A intervenção familiar, a psicoeducação e a atenção plena também são eficazes.[180]

Por fim, o manual observava que a psicoterapia não era recomendada para a mania aguda, mas era um suplemento bem documentado à medicação como prevenção.[18:117] Já entendemos. Dê a eles todas as drogas. Tudo o mais é suplementar, se usado. Mesmo essa recomendação era duvidosa. Uma metanálise em rede mostrou que a psicoeducação mais a terapia cognitivo-comportamental tem um grande efeito nos sintomas maníacos em comparação com o tratamento usual, tamanho do efeito -0,95 (-1,47 a -0,43).[181]

Um manual muito mais razoável, que é o que mais falou sobre o OPUS,[16] ofereceu cinco referências a revisões Cochrane em uma lista de literatura que não estava diretamente vinculada às declarações sobre seus efeitos. Eu comentei sobre duas delas logo acima.[178,179] As outras três não eram particularmente convincentes.

Uma revisão tratava do manejo intensivo de casos de pessoas em sofrimento mental grave na comunidade, incluindo 40 ensaios clínicos, mas a maioria deles tinha alto risco de relato seletivo de resultados e nenhum deles forneceu dados para recaída ou melhoria importante no estado mental.[182] Apesar disso, os autores escreveram 273 páginas para sua revisão Cochrane – o tamanho de um livro – e concluíram que a intervenção é eficaz na melhoria de muitos resultados e pode reduzir hospitalizações, aumentar a retenção nos cuidados e melhorar globalmente o funcionamento social. Adorável, mas difícil saber se isso é apenas um desejo, dado o quão fraca era a evidência.

A segunda revisão Cochrane tratava da tomada de decisão compartilhada, mas havia apenas dois estudos. Os autores escreveram 45 páginas sobre eles, mesmo que não pudessem concluir nada.[183] Mas não precisamos estudar a tomada de decisão compartilhada em ensaios randomizados. Temos a obrigação ética de respeitar os pacientes e envolvê-los em nossas decisões. Esse imperativo ético não pode ser suspenso, nem mesmo quando os pacientes estão psicóticos, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi ratificada por praticamente todos os países, exceto os Estados Unidos.[7:333,184] Em 2014, a Convenção especificou que os Estados membros devem tomar medidas imediatas para a realização dos direitos, desenvolvendo leis e políticas para substituir regimes de tomada de decisão substitutiva por tomada de decisão apoiada, que respeita a autonomia, vontade e preferências da pessoa.[184]

A terceira revisão Cochrane tratava da intervenção precoce para a psicose.[185] Apesar de haver 18 estudos, eles eram diversos, em sua maioria pequenos, conduzidos por pesquisadores pioneiros e tinham muitas limitações metodológicas, o que geralmente tornava as metanálises inadequadas. Os autores consideraram a evidência inconclusiva, mas ainda assim escreveram 134 páginas sobre isso. É interessante que eles não tenham encontrado evidências convincentes para a intervenção precoce com drogas, já que isso foi alardeado como sendo importante em vários manuais didáticos (ver acima).

Um manual didático observou que as pílulas para psicose reduzem ou removem sintomas positivos, como alucinações, delírios, distúrbios do pensamento e catatonia.[18:86,18:234] Isso dá a impressão errônea de que as drogas são altamente eficazes e têm efeitos específicos na psicose. Elas funcionam da mesma maneira em pacientes, voluntários saudáveis e animais;[7] são tranquilizantes potentes, como eram chamadas no passado distante; e não podem remover alucinações ou delírios. Quando a clorpromazina chegou ao mercado em 1954, foi inicialmente considerada uma lobotomia química, pois produzia muitos dos mesmos efeitos da lobotomia. Também foi chamada de camisa de força química, pois mantinha os pacientes sob controle, e os psiquiatras observaram que ela não tinha propriedades antipsicóticas específicas.[1-142]

Era recomendado tratar mulheres grávidas com esquizofrenia porque a psicose não tratada pode colocar em risco a vida da mãe e da criança.[17:669] Não houve reflexão de que as pílulas aumentam ainda mais esse risco. Este manual observou que a FDA dos EUA em 2011 emitiu um aviso geral contra o uso de drogas para psicose devido a sintomas extrapiramidais e sintomas de abstinência, o que sugere que as drogas afetam o cérebro tanto da criança quanto da mãe.

Sugerir que as drogas afetam o cérebro? Sabemos há 70 anos que as drogas prejudicam as funções normais do cérebro,[1:142] e é por isso que elas são usadas. Como pessoas supostamente especializadas em psicofarmacologia – que era o título do capítulo deste manual – podem escrever tal absurdo? Bem, todos eram professores de psiquiatria, o que parece ser um salvo-conduto para escrever o que quiserem.

Nos folhetos informativos das pílulas para psicose, por exemplo, para a olanzapina,[134] a FDA adverte que as drogas devem ser usadas durante a gravidez apenas se o benefício potencial justificar o risco potencial para o feto. Este não é um conselho útil. Como um médico deve fazer tal julgamento? A FDA observa que neonatos expostos a pílulas para psicose durante o terceiro trimestre estão em risco de sintomas extrapiramidais e de abstinência após o parto. Houve relatos de agitação, hipertonia, hipotonia, tremores, sonolência, dificuldades respiratórias e distúrbios alimentares em neonatos, e em alguns casos, isso exigiu suporte da unidade de terapia intensiva e hospitalização prolongada. Mas, segundo os professores dinamarqueses de psiquiatria, é apenas uma possibilidade que as pílulas de psicose afetem o cérebro.

Um manual observou que pacientes com diagnóstico de esquizotipia, que é um conceito muito duvidoso (como explicarei no Capítulo 15),[8:145] devem ser tratados com pílulas para psicose se houver distúrbios do pensamento, ruminações ou episódios psicóticos, já que 25% desenvolvem esquizofrenia.[18:106] Não há evidências para isso, e muitas pessoas têm distúrbios de pensamento de tempos em tempos ou ruminação.

Essencialmente, isso é um apelo ao tratamento profilático de pessoas razoavelmente saudáveis com drogas tóxicas, uma ideia terrível. O teste diagnóstico para esse transtorno é inútil e falso,[8:145] e parece que a maioria dos psiquiatras testaria positivo (como explicarei no Capítulo 15). Portanto, a maioria dos psiquiatras deveria estar em tratamento profilático com pílulas para psicose, de acordo com o conselho neste manual.[18:106]

Quatro manuais afirmaram que as pílulas também funcionam para sintomas negativos.[16:206,17:653,18:81,20:416] Sintomas negativos incluem afeto embotado, alogia (pobreza de discurso), asocialidade, avolição (falta de motivação ou habilidade para realizar tarefas ou atividades que têm um objetivo final) e anedonia (capacidade diminuída de experimentar emoções agradáveis).[186] Também foi afirmado, em dois manuais, que as pílulas para psicose têm um efeito sobre os sintomas cognitivos,[17:653,20:416] mas duas páginas adiante, um deles observou que os distúrbios cognitivos são amplamente inalterados.[20:418]

Essas informações eram confusas, contraditórias e incorretas. As pílulas pioram os sintomas negativos e a cognição, o que se sabe há 70 anos,[1:142,5,7] e que foi reconhecido em um dos manuais.[16:562]

Um deles mencionou que as drogas para psicose podem inibir estímulos sensoriais e funções psicológicas, o que pode aumentar os sintomas negativos e o isolamento social.[18:235] Isso contradiz diretamente as alegações no mesmo manual, 154 páginas antes,[18:81] de que as pílulas para psicose têm um efeito sobre os sintomas negativos.

Esse manual também observou que as drogas para psicose podem levar ao abuso de substâncias para estimular o sistema de recompensa do cérebro, o que piorará os sintomas psicóticos. Mencionou que a tristeza ou depressão diretas ocorrem, mas que muitas vezes é difícil distinguir entre uma depressão induzida por drogas e a reação psicológica compreensível de ter que viver com uma doença muito grave que abalou a autoimagem.[18:235] Esta é a única vez que me deparei com um relato honesto do que as pílulas para psicose realmente fazem aos pacientes, e isso não é benéfico para eles.

Um manual afirmou que várias meta-análises mostraram que pílulas para depressão têm um efeito sobre os sintomas negativos.[18:101] Não havia referência a essa afirmação notável. Como duvidei que estivesse correta, procurei algumas meta-análises, ambas negativas. Uma delas observou que “a qualidade da informação é atualmente muito limitada para chegar a conclusões firmes”;[187] a outra que “a literatura era de qualidade ruim” e que os resultados poderiam “refletir apenas a notificação seletiva de resultados estatisticamente significativos e viés de publicação”.[188]

Este manual observou que pode ser difícil distinguir entre sintomas depressivos, sintomas negativos na psicose e danos das pílulas para psicose.[18:101] Assim, dois manuais admitiram que as pílulas para psicose pioram os sintomas negativos. No entanto, um deles aconselhou que, em caso de sintomas negativos persistentes, algum alívio pode ser obtido adicionando pílulas para depressão às pílulas para psicose.[16:577]

Este é um tema comum nos manuais didáticos. Em vez de retirar lentamente a droga que causa o problema, os psiquiatras adicionam drogas adicionais, o que é uma razão importante para a massiva supermedicação de pacientes psiquiátricos, como está bem documentado.[5,7,8,113,114] Não importa quais drogas psiquiátricas as pessoas tomem – pílulas para psicose, pílulas para depressão, lítio, estimulantes ou benzodiazepínicos – ou qual seja o seu problema, aproximadamente um terço dos pacientes tem suas prescrições renovadas a cada ano e ainda estão em tratamento com a mesma droga ou uma semelhante 10 anos depois.[113,114]

Isso conta uma história de médicos irresponsáveis que não sabem o que estão fazendo ou o que estão causando. Também confirma o que escrevi em um artigo de jornal em 2014, que nossos cidadãos estariam muito melhores se retirássemos todas as drogas psicotrópicas do mercado, porque está claro que os médicos não conseguem lidar com elas.[189]

Os psiquiatras dinamarqueses admitiram que têm um problema. Em uma pesquisa de 2007, 51% de 108 psiquiatras dinamarqueses disseram que usavam muitos medicamentos e apenas 4% que usavam pouco.[190] Mas o uso de drogas psiquiátricas continuou a aumentar marcadamente na maioria dos países, por exemplo, no Reino Unido, as prescrições de pílulas para psicose aumentaram em média 5% ao ano e as pílulas para depressão em 10%, de 1998 a 2010.[191] Não nos tornamos mais mentalmente doentes nesse grau. Isso é efeito de marketing e corrupção.[6-8]

O foco principal da psiquiatria para as próximas décadas deveria ser ajudar os pacientes a retirarem lentamente e com segurança as drogas que estão tomando, em vez de dizer a eles que precisam continuar tomando e adicionar ainda mais.

Mas isso não vai acontecer. O foco da psiquiatria é nela mesma – uma espécie de selfie eterna que ela envia para o mundo o tempo todo.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

***

Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Medicalização, Sociedade e a Lógica Preventivista

1

Com uma forma temática e uma abordagem que decorre de pontuações de marcos históricos da medicalização e da saúde coletiva, sobretudo, na atenção primária em saúde no Brasil, o artigo “Medicalização, sociedade e a lógica preventivista” refere-se à medicalização com um olhar genealógico e documental histórico por meio de Michel Foucault. Entende-se que o processo de redemocratização brasileira, que ocorreu no final da década de 1980, consolidou a saúde como um direito garantido a cada brasileiro já na constituição, tornando assim o Estado como o principal financiador, articulador e executor das políticas de saúde, possuindo um sistema público antes limitado à atuação, principalmente hospitalar, e com isso o Estado passa a ter responsabilidade por atuar também a nível preventivo.

Onde na Constituição Federal de 1988, determina que as três esferas de governo – federal, estadual e municipal – financiem o Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo que cada pessoa tenha o atendimento à saúde de forma equitativa, integral e resolutiva, para que assim o sujeito tenha acesso ao conjunto de serviços, no entanto, é perceptível a dificuldade do sujeito em manter a saúde em um grau elevado, a fim de manter suas atividades e necessidades diárias, se instaurando na sociedade uma mudança na compreensão do que é ser saudável. Problemas comuns que são vivenciados por muitos na sociedade, se tornaram com o passar do tempo alterações que devem ser corrigidas, desde uma criança “levada” ser um problema psiquiátrico/comportamental, a depressão caso você esteja muito triste e durma mal. Transformações como essas que transportam o sujeito a medicalização.

Os centros de saúde do início do século XX passou a assumir outras funções no território de atenção/atendimento, compondo o que se convencionou chamar de Atenção Básica. O principal instrumento dessa política passou a operar, a partir da década de 1990, como Programa Saúde da Família (PSF, que após alterações, será chamado de Estratégia Saúde da Família – ESF). Esta nova forma de atuação tem como premissa a atuação nos domicílios, através da visita domiciliar, fazendo diagnóstico e acompanhamento do quadro de saúde da população definida no território, priorizando aqueles que possuem menor qualidade de vida, dessa forma a população definida seria em grande parte a população negra.

Na década de 70 o Movimento Sanitarista tratou uma pressão biologicista de cunho biomédico ou médico-centrado que foi operando na política de saúde coletiva, fazendo assim retornar a lógica preventivista biomédica em articulação com a curativa de tratamento na atuação das equipes e instrumentos da Atenção Básica. Dessa forma corroborando com Foucault que ao asseverar que a biopolítica surge como uma necessidade de controlar as pessoas, evitar fugas do que se considera normalidade, patológico e desviante. Orquestrando assim um conjunto de práticas que tem como objetivo adestrar corpos, a fim de torna-los produtivos e dóceis para a produção no capitalismo; uma vez que ocorre a medicalização da vida se encontra também a disciplina onde as pessoas se “encaixam” a lógica de produção, sendo adestradas e deixa-se ser adestrado em nome de uma racionalidade produtiva, geradora de riqueza, através do trabalho.

No início do texto foi utilizada a frase ─ desde uma criança “levada” ser um problema psiquiátrico/comportamental. Frase essa que aponta questões como que são chamados de “comportamento hiperativo” de crianças em escolas, ações violentas (seja no plano individual ou coletivo), questões até mesmo ligadas à religiosidade (como a mediunidade), que passam a ser estudadas pela medicina partindo de uma concepção de caráter desviante dessas ações (anômalos, estranhos, anormais). A criança passa a ser objeto de estudo se ela se apresenta muito agitada na escola; o sofrimento psicológico é “abafado” a partir da prescrição farmacológica, entre outros. A medicina (porém, não somente está), então, ganha status de ciência do social, classificando e categorizando condutas e servindo para a definição e implementação de políticas públicas: é o governo dos vivos.

Com isso, numa sociedade que preza pelo controle a partir da implementação de regras de conduta, padrões normativos, maneiras de como as pessoas devem agir e crianças se desenvolver, tudo passa a ser diagnosticável e rotulável. Consequência disto é o crescente número de diagnósticos médicos sobre características do ser humano que até bem pouco tempo eram vistas como normais. A tristeza passa a ter uma descrição bastante acurada e é chamada de depressão; a insônia, que inclusive é bastante relacionada ao processo criativo das pessoas, passa a ser tratada como distúrbio do sono, além de outros descritores que surgem a partir da verificação e matematização da existência. Problemas que são eminentemente sociais passam a possuir status biológico/patológico, esquadrinhando diversos “métodos de tratamento”, que prezam por uma “cura” baseada nas análises de causa-efeito, desconsiderando o caráter cultural, social, do ser humano (Lima & Lima, 2010).

Dessa forma o artigo aponta que a criação, então, de diagnósticos e normas passa a ter repercussões sobre os diversos campos da seguridade social, por exemplo a saúde e a educação. Esta última, apresentando diversas problemáticas, passa a ser atravessada pelos diagnósticos e patologias, definindo a capacidade dos alunos para o processo escolar. Surge, então, a ideia de fracasso escolar, entretanto, não como resultante de forças que atravessam a instituição escola, mas como uma atribuição específica e exclusivamente dado ao aluno. O aluno fracassado passa a ser entendido como um sujeito com problemas de saúde, logo, devendo ser tratado. O artigo ainda cita um exemplo dentro dessa fala.

“Alunos que apresentam problemas na escrita, na leitura, na concentração das aulas e atividades, acabam rapidamente sendo diagnosticados pela ótica medicalizante do professor, como sendo alunos portadores de algum transtorno de aprendizagem (doenças do não-aprender), logo, esses alunos precisam de tratamento para evitar o fracasso escolar, imediatamente são encaminhados a profissionais que são habilitados a constatarem tais transtornos. Problemas de tal ordem, eram interpretados apenas como desinteresse ou dificuldade a ser superada, hoje, são vistos como patologias (Lima & Lima, 2010, p. 2).”

Surgindo assim o nascimento de um conjunto de saberes e poderes em torno da medicalização da vida, presente assim nas transformações de diversos campos do saber, as práticas de atualização da medicina, da psiquiatria e ainda algumas vertentes da psicologia. Possibilitando a crítica severa a aspectos como a patologização de algumas condutas e relevando a necessidade de um olhar mais sistêmico sobre tal acontecimento. De qualquer forma, fica denotada a necessidade ainda de realizar estudos sobre o discurso da medicalização a fim de desconstruir práticas biologizantes/medicalizante tidas como normais. Entretanto, vale ressaltar que, diferente do que se via a séculos atrás, o controle atualmente é realizado de forma mais sutil (ou sofisticado, podemos dizer).

A ideia de anormal passa a atravessar o saber da medicina: ideias como de tristeza, angústia, passam a ter status de adoecimento (depressão), com classificação e descrição bastante definida. Sendo a preocupação, então, com a descrição do comportamento, a preocupação com o status social, antropológico, perde sentido na linha de análise ou é relegado à “menos científico”, já que não se pode prever, mensurar, atuar sobre (Foucault, 2008).

O artigo buscou pensar as práticas de medicalização da vida e da existência por meio da captura histórico-genealógica da promoção da saúde por meio da lógica preventivista. Um conjunto de mudanças e transformações na concepção de saúde permitiu acirrar processos medicalizantes em função da ampliação das práticas biomédicas no cotidiano das experiências de cuidado à população brasileira.

A existência humana passa a ser alvo de uma política (Foucault, 2015). E o poder sobre a vida da população estará normatizado, apenas necessitando de mecanismos corretivos e reguladores para operar. Dessa forma as tecnologias de poder que visam o controle da vida se expressarão nesse contexto social normalizador. Conforme cita Danner:

Foi a norma que conseguiu estabelecer um elo entre o elemento disciplinar do corpo individual (disciplinas) e o elemento regulamentador de uma multiplicidade biológica (biopoder). A norma é tanto aquilo que se pode aplicar a um corpo que se deseja disciplinar como a uma população que se deseja regulamentar. A sociedade de normalização é uma sociedade onde se cruzam a norma disciplinar e a norma da regulamentação. (Danner, 2010, p. 155)

É possível observar uma inversão no papel do Estado, este passa a operar para o mercado. E dessa maneira a economia, o capital e o próprio mercado passam a ser o principal propósito de existência do Estado.

 

•••

Medicalização, sociedade e a lógica preventivista. (2023). Revista Psicologia, Diversidade E Saúde12, e4151. 

Maioria dos médicos desconhece potencial de dependência de remédios que prescrevem, alerta psiquiatra americana

0

Saiu na BBC News Brasil (29/11/2023), a matéria sobre o novo livro da psiquiatra norte-americana Anna Lembke, em que alerta para os perigos do uso indiscriminado e sem o devido acompanhamento de medicamentos psiquiátricos.

Anna Lembke tem mais de 10 anos de prática clínica e percebeu o aumento de pacientes que chegavam com quadro de dependência dos medicamentos que haviam sido prescritos para tratar suas dores físicas ou sofrimento mental.

Os dois livros lançados por Lembke são: Nação Dopamina e o recente Nação Tarja Preta que nasceram a partir de relatos de pacientes e de seus familiares, pesquisas científicas e entrevistas com profissionais de saúde, administradores de hospitais, jornalistas e farmacêuticos, entre outros.

“A escolha da prescrição não é motivada principalmente pela ciência médica, mas, sim, pela influência da indústria, muitas vezes de forma oculta”, diz ela, em entrevista à BBC News Brasil.

 

Usuários de antidepressivos sentem redução na libido após uso dos medicamentos

0

Saiu no jornal Folha de São Paulo (25/11/2023), matéria sobre a redução da libido causada por antidepressivos. Usuários reclamam que os remédios dificultam até mesmo manter relações românticas.

“Médicos e pacientes há muito tempo sabem que os antidepressivos podem causar problemas sexuais. Falta de libido. Orgasmos sem prazer. Genitais insensíveis. Bem mais da metade das pessoas que tomam esses medicamentos relatam tais efeitos colaterais.”

A novidade é que agora, um grupo de pacientes, vêm relatando que esses problemas parecem persistir até mesmo após interromperem o uso de antidepressivos. Autoridades de saúde da Europa e do Canadá já reconheceram que tais medicamentos podem levar a problemas sexuais duradouros.

Ainda não existem muitos estudos que analisam o que acontece quando as pessoas param de tomar tais medicamentos, além disso, uma dificuldade é que muitas pessoas nunca param de tomar antidepressivos. Porém, um estudo recente em Israel mostrou que 1 a cada 216 homens que interromperam o uso de antidepressivos, receberam prescrição para o uso de medicamentos para disfunção erétil. Uma taxa cerca de três vezes maior que a população em geral.

“Acredito que mal começamos a apreciar a abrangência e a complexidade do impacto desses medicamentos na sexualidade”, escreveu Audrey Bahrick, na época psicóloga da Universidade de Iowa (EUA).”

 

Nasce em Copenhague a rede Mad in the World para fortalecer nossa comunidade internacional de desmedicalização da vida

0

Em outubro deste ano, foi realizado o encontro da rede “Mad in”. Pela primeira vez desde a criação da rede, representantes de todos os países participantes da comunidade se reuniram na cidade de Copenhague, na Dinamarca, durante três dias. A comissão brasileira foi formada por Paulo Amarante, Leandra Brasil e Camila Motta, e contou com o apoio do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz) e do Mad in América.

Os membros da rede se conheciam apenas através de encontros virtuais, realizados uma vez por mês pela equipe do Mad in América. Ou de forma individual, como é o caso de Robert Whitaker  que participou de todos as edições do Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas”, e Olga Runciman que já visitou algumas vezes o Brasil para participar de eventos como palestrante. O objetivo principal do encontro foi possibilitar o encontro de toda a rede para que se conhecessem pessoalmente.

Os participantes ficaram hospedados no Hotel Phoenix, um lindo hotel no estilo clássico, próximo ao canal de Nyhavn, um charmoso ponto turístico de Copenhague, onde barcos a vela descansam e formam a linda paisagem, cercada de bares e restaurantes ao redor do canal. Foi nesse ambiente encantador que reunião se deu. Pessoas de diferentes culturas, etnias, idiomas, reunidos na luta pela desmedicalização da vida e pelos direitos humanos, em prol das pessoas em sofrimento psíquico. Ali havia pesquisadores, professores, profissionais de saúde, sobreviventes da psiquiatria, familiares. Todos muito animados e curiosos com o que iria ser produzido ali.

Organizada pela equipe do Mad in América, estiveram reunidos colaboradores do Mad in Finlândia, Noruega, Suécia, Dinamarca, Itália, Reino Unido, Irlanda, Holanda, Brasil, México, índia, Canadá, EUA e os ainda estão em desenvolvimento: Mad in Portugal e Mad in Grécia. Os únicos que infelizmente não puderam estar presentes foram Mad in Espanha e Locos em Argentina.

A reunião teve seu início na sexta-feira, dia 20 de outubro. No primeiro dia cada participante se apresentou e um integrante de cada “Mad in” falou sobre o trabalho, desafios, contexto cultural do Mad em seu país. Nesse momento, já foi possível perceber a diversidade que havia daquele encontro, ao mesmo tempo em que também havia similaridades entre todos. Apesar das diferenças culturais, políticas, jurídicas, todos citaram como a influência da narrativa norte americana do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) havia colonizado nossas culturas e influenciado no processo de medicalização da vida e das nossas sociedades.

A equipe do Brasil ganhou espaço para apresentar aos demais participantes o material que foi preparado sobre a reforma psiquiátrica brasileira, os projetos de arte e cultura, os projetos desenvolvidos a partir do Mad in Brasil e os desafios que a medicalização da vida apresenta para o contexto brasileiro. Chamou a atenção de todos que o Mad in Brasil esteja vinculado a Fiocruz, uma instituição pública de saúde, com uma equipe profissional não voluntária, ao contrário dos outros “Mad in” que não estão ligados a instituições e que possuem equipes voluntárias (menos o Mad in América, que tem uma equipe grande assalariada trabalhando com eles). O Brasil virou uma referência de como mudar as coisas por dentro das instituições e serviços, com políticas públicas e leis específicas em defesa das pessoas em sofrimento psíquico. Mas apesar de todo os avanços no contexto brasileiro, assim como os demais “Mad in”, a narrativa da patologização e do reducionismo neuroquímico está fortemente introduzidas na sociedade, e muitas vezes, nos serviços de saúde mental.

Nos outros dias debateu-se sobre possibilidades de financiamento da rede “Mad in”, conteúdos, público, demandas, parcerias e questões internas do site.

Foi um encontro muito potente. Novos amigos foram feitos, houve celebração, risos, emoção e muito trabalho! E como resultado desse encontro, nasceu o Mad in The World, que se propõem estruturar a rede “Mad in”, possibilitando maiores parcerias, trocas e projetos em comum entre os diferentes países. Com isso, o Mad in Brasil e os demais “Mad in” se fortalecem, num apoio mútuo e solidário. Ninguém está sozinhos nessa luta, existe uma rede espalhada pelo mundo, construindo uma sociedade mais respeitosa e humana. Que venham outros encontros do Mad in the World!

 

 

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 7: Psicose (Parte dois)

0
Human skull on multicolored of drug and capsule is on the black background. Close up. We are against drugs (anti drugs), cure in container for health.Heap of green blue white round capsule pills

 

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute as evidências de que as pílulas para psicose aumentam substancialmente a mortalidade.A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

Pílulas para psicose aumentam substancialmente a mortalidade

Os psiquiatras apresentaram muitos argumentos sobre a importância do uso de pílulas para a psicose, mas todos eram insustentáveis. Um deles era que os pacientes com esquizofrenia vivem de 15 a 20 anos a menos do que outros cidadãos,[18:288] e entre as causas mencionadas estão o suicídio, acidentes, doenças cardiovasculares, síndrome metabólica, estilo de vida, subtratamento de doenças somáticas e danos causados por drogas.[16:628] O tratamento com pílulas para a psicose não foi mencionado.[17:308]

Um manual observou que a mortalidade aumenta se a psicose aparecer precocemente na vida,[19:239] mas não ocorreu aos autores que quanto mais longa a duração da psicose maior o tratamento com pílulas para a psicose e, portanto, também maior a mortalidade, pois as drogas aumentam a mortalidade.

Dois manuais didáticos levantaram a alegação altamente implausível de que as pílulas para a psicose reduzem a mortalidade nos transtornos psicóticos.[16:222,18:101,18:236] Elas não reduzem; elas aumentam substancialmente a mortalidade.

 

Não é possível utilizar ensaios controlados por placebo em esquizofrenia para estimar o efeito das pílulas para a psicose na mortalidade, porque o desenho de retirada da droga aumenta a mortalidade no grupo do placebo. A taxa de suicídio nesses ensaios antiéticos era de 2-5 vezes maior do que a norma.[1:269,161] Um em cada 145 pacientes que participaram dos ensaios para risperidona, olanzapina, quetiapina e sertindol morreu, mas nenhuma dessas mortes foi mencionada na literatura científica, e a FDA não exigiu que fossem mencionadas.

Quando decidi descobrir o quão letais são as pílulas para a psicose, concentrei-me em pacientes com demência, assumindo que poucos deles estariam em tratamento antes da randomização. Uma meta-análise de ensaios controlados por placebo com 5.000 pacientes mostrou que, após apenas 10 semanas, 3,5% haviam morrido enquanto recebiam olanzapina, risperidona, quetiapina ou aripiprazol, e 2,3% haviam morrido com o placebo.[162] Assim, para cada 100 pessoas tratadas por 10 semanas, um paciente foi morto com pílula para a psicose. Essa é uma taxa de mortalidade extremamente alta para qualquer droga.

Como metade dos suicídios e outras mortes estão ausentes, em média, nos ensaios clínicos de drogas psiquiátricas publicados,[125] eu verifiquei os dados correspondentes da FDA com base nas mesmas drogas e ensaios. Como esperado, algumas mortes foram omitidas das publicações, e as taxas de mortalidade eram agora de 4,5% versus 2,6%, o que significa que as pílulas para a psicose matam dois pacientes em cem em apenas dez semanas,[163] ou o dobro do que indicam os relatórios dos ensaios publicados.

Também encontrei um estudo finlandês com 70.718 residentes na comunidade recém-diagnosticados com doença de Alzheimer, que relatou que as pílulas para a psicose matam 4-5 pessoas a mais a cada cem por ano em comparação com pacientes não tratados.[164] Se os pacientes recebessem mais de uma droga, o risco de morte aumentava em 57%. Como este não foi um ensaio randomizado, os resultados não são totalmente confiáveis, mas são plausíveis, visto os dados dos ensaios randomizados. Assim, as drogas podem matar quatro vezes mais pacientes do que os relatórios publicados indicam, ou até mais, se estendermos o período de observação para além de um ano.

Um manual didático observou que as pílulas para a psicose podem aumentar a mortalidade em pacientes com doença de Alzheimer.[18:49] Isso é uma diminuição do problema. Essas drogas não apenas podem aumentar a mortalidade, elas aumentam a mortalidade e em grande medida, algo sobre o qual o manual didático nada disse.

Esse fenômeno é observado em todos os lugares, em manuais didáticos, artigos científicos, em sites, em palestras e em entrevistas na mídia. Há uma enorme assimetria na forma como os psiquiatras descrevem os benefícios e os danos. Raramente há ressalvas quando os benefícios das drogas são comentados, e seus efeitos são muito exagerados, o que exemplificarei ao longo deste livro.

Outro manual didático foi ainda pior. Observou que meta-análises em grandes conjuntos de dados de pacientes sugeriam uma pequena mortalidade excessiva em pacientes com demência tratados com pílulas para a psicose em comparação com o placebo, mas que era incerto o que causava essa mortalidade excessiva.[17:243]

Isso beira a fraude. Não houve referência, mas as meta-análises não apenas sugeriram, mas comprovaram a mortalidade excessiva; não foi pequena, mas enorme; e a FDA explicou o que a causa: a maioria das mortes em pacientes dementes foi por causas cardiovasculares (por exemplo, insuficiência cardíaca, morte súbita) ou infecciosas (por exemplo, pneumonia).[163]

A pergunta importante então é: Podemos extrapolar esses resultados para jovens com esquizofrenia?

Não temos outra escolha. Na assistência à saúde baseada em evidências, fundamentamos nossas decisões na melhor evidência disponível. Isso significa a evidência mais confiável, que são os dados apresentados logo acima, duas mortes por cem pessoas tratadas por dez semanas. Assim, na ausência de outras evidências confiáveis, precisaremos assumir que as pílulas para a psicose também são altamente letais para jovens.

Jovens que fazem uso de pílulas para a psicose também frequentemente morrem de causas cardiovasculares e subitamente,[8:40] e esperaríamos que alguns deles morressem de pneumonia. Pílulas para a psicose e internação compulsória em uma ala fechada tornam as pessoas inativas, e quando ficam deitadas em suas camas, o risco de pneumonia e embolia pulmonar de uma trombose venosa aumenta, o que pode passar despercebido antes que seja tarde demais. Pílulas para a psicose também matam pacientes devido a ganhos de peso enormes, hipertensão e diabetes.

Considerando que essas drogas não têm um efeito clinicamente relevante na psicose e que os benzodiazepínicos são muito menos perigosos e parecem funcionar melhor para pacientes agudamente perturbados,[165] a conclusão deve ser que as pílulas para a psicose não devem ser usados para ninguém. Eles deveriam ser retirados do mercado.

Os psiquiatras não culpam suas drogas ou a si mesmos pela vida consideravelmente mais curta dos pacientes com esquizofrenia, mas sim os pacientes. É verdade que os pacientes têm estilos de vida pouco saudáveis e podem abusar de substâncias, especialmente tabaco. Mas também é verdade que parte disso é uma consequência das drogas que recebem e da maneira como são tratados. Alguns pacientes dizem que fumam porque isso contrabalanceia alguns dos danos das pílulas para a psicose, o que está correto, pois o tabaco aumenta a dopamina enquanto as pílulas a diminuem. E quando as pessoas ficam trancadas por semanas ou meses a fio e não têm nada para fazer, é estranho que elas fumem? Ou bebam? Ou comam demais? Ou se matem? Eu não acho.

Quando tentei descobrir por que jovens com esquizofrenia morrem, deparei-me com uma barreira, cuidadosamente guardada pela guilda psiquiátrica. É um dos segredos mais bem guardados que os psiquiatras matam muitos de seus pacientes, também os jovens, com pílulas para a psicose. Descrevi minhas experiências com essa barreira em 2017, ‘A Psiquiatria Ignora um Elefante na Sala,'[166] mas eventos subsequentes foram ainda piores. Este é um resumo de um relato mais abrangente.[8:40]

Estudos de coorte extensos em pessoas com um primeiro episódio psicótico oferecem uma oportunidade única para descobrir por que as pessoas morrem. No entanto, há pouca informação nesses estudos, ou nenhuma informação, sobre as causas da morte. Em 2012, Wenche ten Velden Hegelstad e 16 colegas publicaram dados de acompanhamento de 10 anos para 281 pacientes com um primeiro episódio psicótico (o estudo TIPS). Embora a idade média de entrada no estudo fosse apenas 29 anos, 31 pacientes (12%) morreram em menos de 10 anos.[167] Mas o artigo detalhado dos autores era todo sobre recuperação e pontuações de sintomas. Eles não mostraram nenhum interesse em todas essas mortes.

Escrevi três vezes para Hegelstad, mas não obtive os dados ausentes. Na terceira vez, ela respondeu que seriam publicados em breve, mas o novo artigo não apresentava os dados que eu havia solicitado.[168] Dois meses depois, Robert Whitaker e eu escrevemos ao editor da revista World Psychiatry, o professor Mario Maj, pedindo sua ajuda. Ele também não quis nos ajudar a descobrir por que os jovens morreram tão rapidamente.

Escrevemos novamente, explicando que pessoas com as quais conversei em vários países sobre mortes em jovens com esquizofrenia – psiquiatras, especialistas forenses e pacientes – todos concordaram que precisamos desesperadamente do tipo de informação que pedimos a Maj para garantir que fosse conhecida. Pedimos a ele que fizesse isso como seu dever ético, tanto como editor de revista quanto como médico em vez de nos dizer que não tinha espaço para nossa carta sobre isso em sua revista. Não tivemos mais notícias de Maj.

Ao contrário dos autores do estudo TIPS, a professora de psiquiatria dinamarquesa Merete Nordentoft foi proativa quando perguntei sobre as causas de morte de 33 pacientes após 10 anos de acompanhamento no estudo OPUS, também de pacientes com um primeiro episódio psicótico.[169] Eu mencionei especificamente que suicídios, acidentes e mortes súbitas poderiam estar relacionados as pílulas.

Nordentoft enviou uma lista das mortes e explicou que a razão pela qual as mortes cardíacas não estavam na lista era provavelmente porque os pacientes haviam morrido tão jovens. Mas nos atestados de óbito, ela viu alguns pacientes que haviam morrido subitamente, um deles enquanto estava sentado em uma cadeira, o que chamamos de mortes cardíacas.

É assim que deveria ser. A transparência é necessária se quisermos reduzir as muitas mortes que ocorrem em pacientes jovens de saúde mental, mas muito poucos psiquiatras são tão abertos quanto Nordentoft.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

***

Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Um Cérebro para nos Emancipar

0

As perguntas sobre “O que compõe a natureza humana?” ou “Que tipo de seres somos?” foram respondidas ao longo da história por diversas narrativas, as quais determinaram, e determinam ainda hoje, nosso comportamento individual e coletivo, desde a política econômica até como educamos nossos filhos. Estas narrativas sobre nossa natureza são reflexos das diferentes formas de vida, suas culturas e cosmovisões. No caso particular da sociedade moderna, o lugar privilegiado a partir do qual são respondidas essas perguntas é a ciência moderna. Ao interior desta, disciplinas das ciências sociais, humanas e biológicas, disputam para colocar sua narrativa no topo desse lugar de privilégio epistêmico. Nas últimas décadas, surge um novo ator nesta disputa, o cérebro, e a disciplina que o estuda, a neurociência.

Apoiada em novas tecnologias de genética, computação e neuroimagem, a neurociência se apresenta como chave para entender os processos que tornam possível o humano e a humanidade. Produto de sua interação com outras disciplinas científicas, a neurociência apresenta várias abordagens metodológicas e níveis de análise, do molecular ao social e cultural. O cérebro como objeto de estudo, agora aparece como horizonte para responder perguntas sobre a natureza humana dentro do regime de verdade da ciência moderna.

Antes da neurociência, outros paradigmas e disciplinas cientificas foram os que dominaram esta narrativa, influenciando o jeito como nós pensávamos como humanos. O jeito como o conhecimento cientifico intervém na nossa construção como atores sociais e políticos é composta por fragmentos destas narrativas e o contexto aonde estão inseridas. Em palavras do filosofo da ciência Ian Hacking, a ciência teria a capacidade para “criar tipos de seres humanos”, os quais explicam-se a sim mesmos ao interior destas narrativas. O conhecimento sobre o humano determina a subjetividade deste, indo do epistemológico para o ontológico. O que um ser humano pode ou não pode fazer depende do conhecimento sobre as potencialidades que o constroem.

A seguinte pergunta seria: Qual é o papel da neurociência nesta “criação de seres humanos”? Como as teorias neuroquímicas dos transtornos psiquiátricos afetam a subjetividade dos pacientes? A retórica subjetivadora começa pelo ideal de que “nós somos nosso cérebro”, e isto, segundo os pesquisados Francisco Ortega e Fernando Vidal, provocaria em quem incorpora simbolicamente este conhecimento o nascimento de um “eu cerebralizado”.

Por uma parte, o sujeito que incorpora a narrativa neurocientífica também é atravessado por outras narrativas, não necessariamente cientificas, que também aspiram a explicar sua experiência como humano. Por outra parte, os conceitos produzidos pela neurociência têm origens e trajetórias diversas, contribuindo de maneira diferente ao fenômeno da criação de sujeitos. Aqui, colocaremos o foco e situaremos um destes conceitos, o de plasticidade, com o fim de reorientá-lo para um fim emancipatório.

A plasticidade é a capacidade do sistema nervoso para se modificar funcional e estruturalmente em resposta à estímulos. Esta capacidade de adaptação é chave no desenvolvimento, numa lesão, na aprendizagem ou na consolidação da memória. Biologicamente, os mecanismos por trás do conceito de plasticidade seriam a reorganização das sinapses ou conexões neurais, a criação de novos neurônios e processos moleculares de depressão e potenciação sináptica. Este conceito, transversal a toda a neurociência, é o ponto de partida da filosofa francesa Catherine Malabou, no livro “O que devemos fazer com o nosso cérebro?”[1]. Malabou vê na plasticidade a possibilidade de uma dimensão histórica do nosso cérebro. Frente a ideia, já abandonada, de um cérebro geneticamente determinado e rígido a plasticidade oferece a possibilidade de um cérebro com história.

A autora convida-nos a tomar consciência desta historicidade para instrumentalizá-la apoiando-se em sua semântica. Em primeiro lugar, nosso cérebro é plástico porque recebe uma forma (como uma sacola plástica), porém, também tem a capacidade de dar forma (como nas artes ou cirurgia plástica). Por último, a plasticidade também teria a capacidade de aniquilar ou destruir qualquer forma (explosivos plásticos)[2]. Temos um cérebro que não só cria e recebe, como também destrói e desafia qualquer forma ou modelo. Malabou coloca como, no capitalismo, esta potencialidade que a plasticidade invoca é substituída, na pratica, por uma flexibilidade. Enquanto a plasticidade permite uma adaptação e adequação ao meio ao mesmo tempo que nós mesmos transformamos esse meio, o que experimentamos no capitalismo é uma flexibilidade pela qual nos adaptamos a um meio imutável e previamente definido.

Se a ideia de plasticidade é sequestrada pelo capitalismo na sua face mais radical, o neoliberalismo, deveríamos então nos reapropriar dessa categoria e exteriorizá-la para que o nosso cérebro plástico dê forma a uma realidade digna, ao contrário do que acontece no capitalismo, aonde é uma realidade miserável a que dá forma ao nosso cérebro flexível. Malabou demonstra que é possível pegar um conceito neurocientífico e reorientá-lo estrategicamente. Não poderíamos fazer isto com outros conceitos neurocientíficos? Não poderíamos fazer isto com toda a disciplina, chave na compreensão da natureza humana? É possível imaginar outro jeito de entender o nosso cérebro e nossa humanidade a partir de valores como a cooperação, interdependência e solidariedade. Não seria nosso cérebro plástico capaz disso?

A modernidade capitalista, além de relações de poder, cria o tipo de ser humano que acredita que estas relações de poder são naturais e imutáveis. A construção deste ser humano é conduzida pelo conhecimento que ele tem sobre ele mesmo. Para reverter isto, será necessária uma revisão crítica do conhecimento humano que guia nosso ser e estar no mundo. A procura pelo conhecimento universal e objetivo gera um tipo de humano concreto, idealizado e limitado, além do qual são produzidas ausências e injustiças, pois o que não é pensado não existe. A neurociência e a ideia de que “somos o nosso cérebro” também sofrem estas limitações e na sua incapacidade para abranger com a sua teoria todas as formas de vida do planeta, as oculta e margina. Precisamos desvendar as dimensões sociais e políticas do marco conceitual das ciências naturais, algo fundamental para estruturar a luta contra as injustiças cognitivas. Na procura de uma descolonização epistêmica e cognitiva, devemos descolonizar o conhecimento sobre o cérebro que define nossa humanidade, dando lugar a outras formas de conhecer e outras formas de humanidades além do modelo eurocêntrico, moderno e capitalista.

O que é então que devemos fazer com o nosso cérebro? Como podemos criar uma nova forma de entendê-lo que seja libertadora? Precisamos, não só de uma nova ideia do cérebro que nos permita superar as opressões capitalistas, coloniais e patriarcais, como também uma epistemologia que permita construir este novo cérebro. A justiça cognitiva passa pela crítica de como é articulada a relação entre cognição e cérebro. O conhecimento que articula esta relação é moderno e capitalista, portanto, orienta nosso cérebro a aceitar com flexibilidade as relações de poder que nos subjugam. Precisamos de uma neurociência em diálogo com outros saberes e afastada das hierarquias epistêmicas da ciência moderna e seu regime de verdade. Nesta linha, recorremos à proposta do sociólogo Boaventura de Sousa Santos das Epistemologias do Sul, dado que precisamos uma crítica e diálogo desde posições externas a própria ciência moderna. Neste processo, podemos reapropriarmos de forma estratégica de conceitos neurocientíficos, com o fim de reorientá-los e dotá-los de um novo sentido contra hegemônico, tendo cautela para não nos manter presos ao interior do marco categorial moderno. A proposta de Malabou com o conceito de plasticidade poderia ser a primeira de muitas reapropriações contra hegemônicas possíveis que nos ajudem a construir uma nova neurociência e uma nova ideia do cérebro humano que seja emancipatória.

 

[1] O título original é “What should we do with our brains?” e não foi traduzido ao português ainda.

[2] Em francês, as palavras ‘plastiquage’ e ‘plastiquer’ denominam substâncias explosivas formadas por nitroglicerina e nitrocelulose.


Tradução de Thamyres T. Choji: é estudante de doutorado na Universidade de Cádiz (Espanha) e participa do grupo de pesquisa & quot: Intelligent Social Knowledge-Based Systems&quot (IntellSOK). Ela possui uma formação multidisciplinar em engenharia química e ciência da computação, hoje seu foco está centrado em estudar a interseção entre a tecnologia e seu impacto na sociedade utilizando análise de redes e bibliometria. Email: [email protected] / Twitter: @ThamyChoji


 

A medicalização das emoções: “é normal ou é transtorno?”, eis a questão do século

0

No dia 30 de outubro de 2023, o jornal Estadão publicou uma matéria relatando como as pessoas, e principalmente os jovens, procuram as soluções para sanar as suas tristezas e angustias através da medicação.

A matéria aponta que para cada tristeza ou angústia que o adolescente apresenta, a solução parece estar em uma pílula. Talvez pela falta de habilidade em lidar com as emoções ou dificuldade em discernir entre uma tristeza temporária e uma condição patológica, muitos pais têm recorrido aos consultórios médicos em busca de soluções rápidas para aliviar os conflitos internos de seus filhos.

Como destaque a reportagem ainda aponta o crescimento da patologização e medicalização da vida, sendo reproduzido assim, com estereótipo artificial e “maquiado” que a medicalização é vista como a solução dos problemas.

“A medicalização dos sentimentos, das emoções, tem sido um dos grandes desafios da vida moderna. Quando a gente coloca rótulos de transtornos mentais em fatores biológicos ou situacionais que nem sempre precisam de ajuda profissional, perdemos a chance de deixar que os filhos entendam suas próprias subjetividades para lidarem com seus problemas de um jeito mais tranquilo e natural.”

Em contrapartida a reportagem destaca a importante do suporte emocional que o jovem necessita, suporte esse que está longe de ser um suporte que medicaliza todo e qualquer sentimento. Até onde se sabe os adolescentes e jovens precisam revisitar os sentimentos, tentando entender o que eles significam, o que eles provocam e como podem lidar com as sensações que são despertadas.

Um estudo publicado em 2020 na revista científica Pediatrics trouxe à tona uma descoberta preocupante: mais de 40,7% dos pacientes entre 2 e 24 anos que receberam prescrições para tratar o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) também receberam antidepressivos, resultando em mais de 50 tipos distintos de medicamentos psicotrópicos usados em conjunto.

Segundo o Conselho Federal de Farmácia, o Brasil viu um aumento notável de cerca de 58% nas vendas desses medicamentos entre 2017 e 2021. No Reino Unido, o censo demográfico mais recente de 2021 revela que 14,7% dos jovens de 18 anos fazem uso de algum antidepressivo. Já nos Estados Unidos, de acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), esse índice é de 13%.

Conforme a própria reportagem aponta, existe uma tentativa por parte das industrias e laboratórios farmacêuticos em transformar o ser humano em uma fonte constante de felicidade. Exemplo como o documentário Painkiller que aborda a dependência de medicamentos, que retrata a epidemia de opioides, ou até mesmo o livro “A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos” da Médica Marcia Angell.

“É preciso ter coragem de permitir que os jovens vivenciem emoções como tristeza, a perda, a frustração, pois a diversidade emocional é uma parte fundamental na jornada de qualquer pessoa. E é ela quem vai garantir o desenvolvimento de habilidades e capacidades para que este ser seja capaz de superar momentos não tão bons na vida.”

A matéria ainda destaca que a cura nem sempre está nos medicamentos, mas sim na liberdade de discutir com serenidade sobre suas emoções, lembrando assim que a vida não segue uma trajetória linear.

 

O que as Comunidades Terapêuticas no Brasil revelam sobre o processo de luta por direitos à saúde mental em uma perspectiva antimanicomial?

Tortura, violência, subtração de direitos humanos fundamentais. Estas expressões são comumente relacionadas à realidade vivida por sujeitos inseridos nas pretensas propostas de cuidado ofertadas pelas instituições denominadas Comunidades Terapêuticas no Brasil.

Orientadas pelo discurso de oferecer acolhimento em regime residencial temporário destinado a pessoas em consumo prejudicial de substancia psicoativa, a partir de uma suposta desassistência originada pela insuficiência das políticas públicas de saúde enfraquecidas pelo subfinanciamento oriundo da política de austeridade fiscal no Brasil, detêm a maior parte dos investimentos públicos destinados aos cuidados desta população e atualmente compõem a Rede de Atenção Psicossocial.

Os Conselhos Federais de Psicologia e Assistência Social, juntamente com o Ministério Público Federal e o Mecanismo de Combate a Tortura fizeram no ano de 2018 uma série de inspeções nestas instituições que resultaram no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas. A partir de então tornaram-se evidenciadas severas críticas de trabalhadores, atores sociais e da comunidade acadêmica e, embora sejam alvo de recorrentes denúncias, a baixa ou nenhuma efetividade destas ações pode ser observada. Desta forma, o que o silêncio diante destas denúncias pode vir a nos dizer?

As garantias de melhores condições de saúde e de proteção de direitos fundamentais aos sujeitos em sofrimento psicossocial relacionados ou não ao consumo de substâncias psicoativas faz parte de um campo de luta e reforma de um paradigma de cuidado que atravessa saberes e práticas no âmbito da saúde pública, saúde coletiva e da saúde mental. No território brasileiro, a consagração destes movimentos é correlato ao processo de redemocratização e da contemplação dos direitos em saúde como direitos fundamentais assegurado pela constituição e 1988. Sob influência dos demais processos de reforma ao redor do mundo que passam a combater ferramentas de segregação e isolamento social de pessoas indesejadas pela sociedade a partir da sustentação do princípio da dignidade humana, a história das politicas publicas de saúde mental no Brasil desenovela o agora.

Na contemporaneidade, este movimento é deflagrado como resposta às atrocidades cometidas ao longo da Segunda Guerra Mundial. A discussão acerca do movimento de internacionalização dos direitos humanos consagrada com a Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948 começa a delinear importantes tratados de proteção dos direitos humanos com o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, propondo em um alcance global (Organização das Nações Unidas – ONU) e em um alcance regional (sistemas europeu, interamericano e africano) uma composição de um universo instrumental com a finalidade de proporcionar maior efetividade na proteção e promoção dos direitos humanos.

Neste mesmo contexto histórico, movimentos que propunham mudança aos modelos de cuidado em saúde destinados sobretudo àqueles em sofrimento psíquico, começaram a emergir em países europeus e logo deixaram de ser movimentos locais e passaram a compor intenções mudanças paradigmáticas. Dentre os processos de reforma dos cuidados em saúde, o movimento da Comunidade Terapêutica no território Inglês, liderado pelo médico militar Maxwell Jones, deixou de ser um modelo local de cuidado e passou a ser uma política de Estado, servindo de inspiração para muitos outros processos de reforma como, por exemplo, o norte americano e o brasileiro.

O Brasil começa a se inserir no cenário de proteção internacional dos direitos humanos apenas com o processo de democratização iniciado em 1985, consagrando os princípios da prevalência dos direitos humanos e da dignidade humana a partir da Constituição de 1988. A responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos reafirma a judicialidade de um conjunto de normas voltadas para a proteção do indivíduo e para a afirmação da dignidade humana. Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passa a julgar casos de violação de direitos humanos e, tais julgamentos, começam a promover mudanças institucionais no âmbito dos sistemas de justiça nacionais, dando relevo ao monitoramento, a implementação efetiva das decisões e as recomendações direcionadas aos sistemas e mecanismos internacionais e regionais de direitos humanos.

A partir do ponto que se objetiva a obrigatoriedade do Estado na proteção dos direitos humanos, consagrando o indivíduo como principal preocupação desta responsabilidade, a inobservância por parte do Estado de suas obrigações de forma direta ou por sujeitos com o apoio do poder público prevê consequências jurídicas e responsabilização pela violação destes direitos e consequente reparação dos danos causados. Um exemplo da implementação destas recomendações expressas e de seus desdobramentos e repercussão das políticas públicas de um país através de sentenças condenatórias se dá no julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos em decorrência da morte de Damião Ximenes Lopes, mantido sob tortura em uma clínica psiquiátrica em Sobral, no Ceará.

A primeira condenação do Estado brasileiro a ofensas de obrigações internacionalmente assumidas foi referente a prática de sujeição presente na realidade das instituições que oferecem uma proposta de cuidado sob a orientação do paradigma psiquiátrico tradicional a indivíduos em sofrimento psicossocial acrescido ou não ao uso de substancias psicoativas. O caso possui reflexos até os dias atuais referenciando decisões do Conselho Nacional de Justiça na instituição da Política Antimanicomial do Poder Judiciário no âmbito do processo penal e da execução de medidas de segurança em consonância com a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e com a Lei nº 10.216/0.

Embora o caso seja considerado encerrado, a partir da resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 487/2023, que em seu artigo 2º considera a Rede de Atenção Psicossocial uma ferramenta para assegurar a singularidade, autonomia e dignidade humana em proscrição à prática de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a inclusão das instituições intituladas Comunidades Terapêuticas nesta rede de cuidados contraria os pressupostos de tal decisão.

As Comunidades Terapêuticas representam atualmente, no cenário brasileiro, a manutenção de lógicas manicomiais, em total desacordo com a utilização original do termo estabelecido por Jones nos idos de 1940. Configuram hoje um dispositivo que consolida, mesmo contrariando pactos internacionais de proteção da dignidade humana, um modelo de tratamento asilar, punitivo e fundamentado na correção moral, favorecendo políticas que elegem estas instituições como equipamento prioritário na atual política de drogas, tendo apoio da pasta do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Embora existam avanços no âmbito dos Direitos Humanos, da Saúde Mental, Atenção Psicossocial, Álcool e Outras Drogas em consonância com políticas antimanicomiais, com propostas que favoreçam uma recomposição das condições sociais, políticas, econômicas, culturais e discursivas dos sujeitos vulnerabilizados e suscetíveis a tais violências, o silencio diante das denúncias às violências praticadas no interior das instituições intituladas Comunidades Terapêuticas desnuda, aos berros, a perpetuação do apoio por parte do Estado brasileiro às práticas combatidas através de pactos internacionais de proteção de direitos humanos fundamentais.

Um Olhar Crítico sobre a Patologização do Sofrimento Psíquico

0

Saiu no dia 16 de novembro de 2023, matéria com Paulo Amarante e Robert Whitaker no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz).

Paulo Amarante, militante histórico do movimento da reforma psiquiátrica brasileira e professor e pesquisador da Fiocruz, critica o uso cada vez maior de remédios psiquiátricos, assim como do crescente aumento de diagnósticos psiquiátricos. Paulo chama a atenção para o fato de que a experiência psíquica deve ser abordada em toda a sua complexidade. É preciso discutir outras formas de tratamento e de relação das pessoas com a sociedade, apontando caminhos inovadores.

“Remédio tarja preta não dá pra ser consumido como se fosse bala.”

— Paulo Amarante

Robert Whitaker, jornalista e escritor, criador da rede Mad in the World, ressaltou o papel da indústria farmacêutica no marketing das drogas psiquiátricas, visando dar a credibilidade que a psiquiatria vinha perdendo. Robert, também destaca o papel do Brasil na luta contra a medicalização e patologização do sofrimento, levada à frente com suporte de instituições como a Fiocruz.

“O país em que a rebelião contra o modelo medicalizado está mais forte é o Brasil, e o que acontece aqui é muito importante para ampliar a luta contra essa filosofia danosa que nos foi imposta.”

— Robert Whitaker

Veja a matéria completa aqui → “Paulo Amarante e Robert Whitaker: um olhar crítico sobre a patologização do sofrimento psíquico.”

Noticias

Blogues