Uma carta que acaba de ser publicada em JAMA Psychiatry sugere que “a psiquiatria exata” não é a mudança de paradigma tal como é o pretendido pelo establishment psiquiátrico.
A carta foi escrita por Ana Gómez-Carrillo, MD, Dr Med; Timothé Langlois-Thérien, BSc, e Laurence J. Kirmayer, MD, FRCPC, FCAHS, FRSC, da McGill University e do Hospital Geral Judaico de Montreal, Québec.
Em um ‘ponto de vista’ anterior, apresentado igualmente na mesma JAMA Psychiatry, foi sugerida a necessidade de uma ‘mudança de paradigma’ na psiquiatria, desde que tome como foco a ‘medicina genômica’, como se essa fosse a tal mudança pretendida. A pretenção é que a ‘Medicina genômica’ se constituiria como base da chamada ‘psiquiatria exata’. Tal psiquiatria estaria assim baseada na noção de que, se variantes genéticas suficientes forem descobertas, os fármacos poderiam ser direcionados a pessoas específicas conforme tais variantes ‘biológica’- o tratamento supostamente visando apenas aqueles que teriam uma reação positiva a esses produtos químicos que são os psicofármacos.
No entanto, como Gómez-Carrillo e os outros autores apontam em sua carta, isso dificilmente pode ser considerado como sendo uma mudança de paradigma. Afinal, a psiquiatria predominante já opera supondo que os problemas em saúde mental são um distúrbio cerebral que pode ser consertado por agentes farmacêuticos. Essa suposta ‘mudança de paradigma’ é simplesmente dizer que ‘os psiquiatras precisam direcionar melhor esses produtos farmacêuticos’ – o que é, na melhor das hipóteses, uma pequena extensão do paradigma atual, não uma mudança de fato.
De acordo com Gómez-Carrillo, “a visão dos autores perpetua as atuais abordagens explicativas reducionistas e, como tal, não pode tal visão ser considerada uma mudança de paradigma”.
Embora a psiquiatria neurobiológica tenha identificado numerosas variantes genéticas teoricamente associadas a problemas de saúde mental, nenhuma dessas variantes é útil para que seja dita haver diferença entre indivíduos com e sem problemas de saúde mental (além de marcadores de doenças físicas, como doenças da tireoide ou doenças metabólicas, que podem levar a problemas de saúde mental).
Por exemplo, um estudo relatado no Mad in America descobriu que, de 7.849 pessoas com um diagnóstico de saúde mental, 32 pessoas tinham uma variante genética específica. Das 10.799 pessoas do grupo de controle “saudável”, 9 tinham a mesma variante genética. Ou seja, em ambos os grupos, um número minúsculo de pessoas tinha essa variante genética, sendo que mais de 99,5% das pessoas em ambos os grupos não tinham essa variante genética. No entanto, este estudo foi apresentado como se fosse uma evidência científica de que uma variante genética tenha sido descoberta relacionada a problemas com a saúde mental. A respeito, confira um outro estudo apresentado aqui no Mad in Brasil, onde se analisa essa busca da psiquiatria por marcadores genéticos, como se aí estivesse guardado algo como o Santo Graal.
Assim, Gómez-Carrillo argumenta que a ‘psiquiatria exata’, como é apresentada na literatura, é uma pista falsa, continuando a dominação do paradigma reducionista neurobiológico que repetidamente não encontrou, até hoje, nenhum biomarcador identificável para explicar os problemas de saúde mental.
Em vez disso, escreve Gómez-Carrillo, a psiquiatria deveria estar se concentrando em entender melhor os correlatos sociais, ambientais e psicológicos dos problemas de saúde mental. Afinal de contas, trauma, pobreza, identidade marginalizada e a vida urbana, são fenômenos muito mais correlacionados com problemas de saúde mental do que fatores biológicos. Isso, como o artigo sugere, seria sim uma verdadeira mudança de paradigma.
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Confira → Gómez-Carrillo, A., Langlois-Thérien, T., Kirmayer, L. J. (2018). Precision psychiatry—Yes, but precisely what? JAMA Psychiatry, e1. Published online October 17, 2018. doi:10.1001/jamapsychiatry.2018.2651 (Link)