Disco criado por pacientes de hospitais psiquiátricos reverbera vozes manicomializadas: Álbum é documento artístico de realidade manicomial ainda presente
Como a Psiquiatria Perpetua uma Cultura de Exclusão
Em um novo artigo publicado na Cultural Reflections, Chloe Beale explora a linguagem e os sistemas de exclusão difundidos na psiquiatria moderna. A autora argumenta que a linguagem que usamos na psiquiatria, em especial em torno do suicídio, aponta para uma disciplina que se concentra mais no risco do que na recuperação. Ela escreve:
“A escolha de palavras no trabalho clínico e na documentação pode revelar atitudes perturbadoras, valores pessoais e medos. Considerando que a teoria psicanalítica continua sendo um componente central do treinamento psiquiátrico, poderíamos fazer melhor se reconhecemos as nossas próprias defesas”. Desenvolvemos todo um léxico de palavras evasivas e pensamento mágico que transmitimos entre gerações e entre disciplinas. Seria difícil chegar a uma lista exaustiva de mentiras que contamos a nós mesmos na prática psiquiátrica”.
O trabalho em tela também investiga os sistemas de exclusão em vigor dentro da psiquiatria. Por exemplo, os usuários de serviços podem ver negado o acesso aos serviços devido ao código postal, exibindo ‘muita’ ou ‘pouca necessidade’, ‘muito risco’, etc. Para combater estas atitudes e valores que impactam negativamente a cura e a recuperação, a autora argumenta que tanto o treinamento quanto o desenvolvimento de serviços devem ser verdadeiramente co-produzidos e mais atenciosos da história humana por trás dos males que a disciplina visa tratar.
Pesquisas anteriores têm detalhado problemas sistemáticos dentro da disciplina da psiquiatria. Os sociólogos têm relatado a falência da psiquiatria americana, com os pesquisadores apontando a menor expectativa e trajetórias de vida das pessoas que experimentam a psicose como exemplo de uma disciplina que não pode ajudar as pessoas a quem ela diz respeito. Algumas vozes dentro da profissão observaram que a psiquiatria é freqüentemente a causa de, e não a solução para, doenças mentais. Outros autores caracterizaram a psiquiatria como excessivamente medicante, estigmatizante e causadora de muitos dos próprios problemas nas reivindicações a serem resolvidos.
O uso problemático da linguagem pela psiquiatria é um tema que no passado muitos pesquisadores já exploraram. De acordo com alguns autores, a linguagem usada na psiquiatria pode ter impacto nas percepções, tratamento e consentimento informado do usuário de um serviço, com linguagem negativa causando danos reais através da condescendência, isolamento e estigmatização. Os pesquisadores têm até mesmo contestado o uso de termos como “doença mental” para descrever o sofrimento psicológico.
Um autor chegou ao ponto de chamar a linguagem da psiquiatria de “violação dos direitos humanos” devido à sua tendência à alienar os “doentes mentais” do resto da população e as conseqüências enfrentadas pelos usuários dos serviços como resultado. Outros escreveram sobre a tendência dos usuários de serviços de internalizar a linguagem negativa e, portanto, tornarem-se complacentes em sua própria opressão.
Pesquisas demonstraram que a linguagem estigmatizante no prontuário médico de uma pessoa afeta negativamente o atendimento ao paciente. Esta linguagem estigmatizante pode levar a um preconceito implícito, uma situação em que o prestador de serviços faz julgamentos e decisões sobre um usuário de serviços com base em estereótipos e não na experiência real vivida pelo usuário do serviço. Da mesma forma, pesquisas têm mostrado que a linguagem usada no prontuário médico de um paciente pode determinar como um paciente é tratado e como sua dor é tratada agressivamente durante anos após a criação do prontuário.
O trabalho em tela examina a linguagem de exclusão tão comumente usada dentro da psiquiatria, analisando as palavras que a disciplina usa em torno do risco de suicídio. De acordo com a autora, a psiquiatria usa listas de controle de suicídios e avaliações de risco profundamente errôneas para determinar quem pode estar em risco de suicídio. A confiança contínua da disciplina nestes instrumentos duvidosos aponta para o risco de ser a principal preocupação dos prestadores de serviços em vez da recuperação.
Por exemplo, um prestador de serviços pode rotular uma pessoa como tendo “nenhum plano ou intenção” de cometer suicídio com base em medidas errôneas. A linguagem de “sem planos ou intenção” exclui essa pessoa de receber serviços psiquiátricos destinados a ajudar pessoas suicidas. Enquanto a linguagem de “sem planos ou intenção” muitas vezes não reflete a realidade e certamente não protege uma pessoa contra o suicídio, ela permite que o prestador de serviços se sinta melhor sobre a natureza imprevisível das tentativas de suicídio.
A autora também chama a atenção para a linguagem que os prestadores de serviços usam para pedir aos possíveis usuários de serviços suicidas para ” garantir a sua segurança”. Segundo a autora, os usuários de serviços não devem ser solicitados a garantir nada aos clínicos. Em vez de se concentrar no risco, a autora argumenta que os clínicos deveriam “sustentar a esperança” e iniciar a terapia a partir de um lugar de reconhecimento da angústia e do desejo de ajudar. Ela escreve:
“É quase como se pegássemos o pior cenário e trabalhássemos para trás a partir daí, começando por ‘esta pessoa pode se matar, seguido por ‘como posso provar que a culpa disso não é minha’? Nosso ponto de partida deveria ser o simples reconhecimento da angústia e do desejo de ajudar. É essa conexão em nível humano que muitas vezes faz a diferença para as pessoas em crise. Ninguém nunca diz que foi salvo por uma avaliação minuciosa dos riscos, e certamente não se trata de uma lista autônoma de perguntas entregues sem empatia. A gente se pergunta se existe outra especialidade médica na qual existe tal devoção obstinada a uma prática não baseada em eventos”.
O trabalho corrente examina então a exclusão sistemática de certas pessoas dos serviços psiquiátricos por vários motivos, incluindo o código postal, diagnóstico, complexidade, comorbidade, demasiada necessidade, necessidade insuficiente, risco, falta de motivação, prontidão para mudanças, etc. O termo utilizado dentro da psiquiatria para estas exclusões é “gatekeeping“. Para o autor, o uso deste tipo de linguagem cria um ambiente no qual os serviços psiquiátricos se tornam uma “fortaleza” e os usuários de serviços são vistos como “intrusos”. O primeiro pensamento dos clínicos neste ambiente torna-se “como podemos proteger estes recursos contra intrusos” em vez de “como posso ajudar esta pessoa na minha frente”.
A fim de corrigir a cultura de exclusão na psiquiatria moderna e assim melhorar significativamente a utilidade destes serviços, os autores sugerem que a disciplina precisa se concentrar na verdadeira co-criação do conhecimento. O treinamento e os serviços psiquiátricos deveriamm basear-se tanto na compreensão especializada da doença mental quanto na experiência vivida por aqueles que utilizam os serviços psiquiátricos. A disciplina também deve reconhecer de forma honesta que os recursos são limitados, em vez de fingir que estamos excluindo pessoas dos serviços por razões clínicas. A autora conclui:
“Décadas de danos exigem tempo para reparar, sem mencionar a participação de todas as partes. O treinamento tem um papel, desde a graduação até o nível superior para todos os grupos profissionais, mas as organizações devem ter a coragem de implementar uma mudança de cultura em vez de uma série de caixas de seleção levemente alteradas. Quanto mais os clínicos trabalham lado a lado com as pessoas que utilizam serviços de saúde mental (e aqueles que foram excluídos deles), mais eficaz será a mensagem. O treinamento significativo e o desenvolvimento de serviços devem ser verdadeiramente co-produzidos”.
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Beale, C. (2021). Magical thinking and moral injury: Exclusion culture in psychiatry. BJPsych Bulletin, 46(1), 16–19. https://doi.org/10.1192/bjb.2021.86 (Link)
A agressão sexual em qualquer idade é um Fator de Risco para a Psicose

Existe uma ligação estatisticamente significativa entre psicose e experiências adversas, incluindo abuso sexual. Novos trabalhos de uma equipe de pesquisadores da University College Dublin School of Medicine procuraram determinar se havia uma janela específica de desenvolvimento de sensibilidade (às vezes referida como um “período crítico”) ao abuso sexual que estaria mais fortemente associado a sintomas psicóticos mais tarde na vida.
Os pesquisadores, liderados pela Professora Kathryn Yates, colocaram a hipótese de que a exposição precoce a traumas sexuais na infância levaria a um risco maior de alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos relativamente aos sobreviventes de traumas sexuais que ocorreram mais tarde na vida. Pelo contrário, eles descobriram que a agressão sexual em qualquer idade estaria associada ao aumento das chances de alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos.
Pesquisas recentes conjecturam que a exposição desproporcional a estressores, adversidades e traumas pode explicar a incidência de psicose em adultos. A violência contra as mulheres e sua normalização dentro da “cultura do estupro” tem mostrado ter impacto na saúde mental das sobreviventes de abuso e agressão sexual, e alguns estudiosos têm até argumentado que a psicose ou audição de voz nas mulheres não é um sintoma de loucura ou doença, mas um resultado inevitável da cultura do estupro.
Quando o trauma sexual ocorre durante a infância, há uma clara ligação com o desenvolvimento de sintomas psicóticos mais tarde na vida. De fato, um estudo de 2015 da Nova Zelândia sugere que o abuso sexual causa esquizofrenia.
Os pesquisadores do University College Dublin revisaram quase 15.000 pesquisas de Morbidade Psiquiátrica Adulta realizadas em 2007 e 2014 para calcular a prevalência de abuso sexual, alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos dentro dos entrevistados.
Usando regressão logística, eles examinaram então a relação entre a idade de exposição à agressão sexual e os sintomas decorrentes da psicose. Dividindo os entrevistados agredidos sexualmente em dois grupos, aqueles abusados antes dos 16 anos de idade e aqueles abusados aos 16 anos de idade ou mais, eles foram capazes de testar sua hipótese de que a exposição anterior a traumas sexuais era mais provável de causar sintomas psicóticos, alucinações e crenças ilusórias.
Esta hipótese não foi confirmada. Na verdade, os pesquisadores descobriram que o momento de uma agressão sexual não era relevante para o eventual aparecimento de alucinações, crenças ilusórias e transtornos psicóticos. Eles escrevem:
“Descobrimos que a agressão sexual estaria associada ao aumento das chances de experimentar [sintomas psicóticos] mas, ao contrário de nossa hipótese, não encontramos uma diferença na força da associação, dependendo se este abuso ocorre antes ou depois dos 16 anos de idade. Nossas descobertas não apoiam a ideia de infância e início da adolescência como uma janela de desenvolvimento de particular sensibilidade ao trauma sexual em termos de risco de transtorno psicótico ou experiências psicóticas”.
Embora os autores concluam pedindo mais pesquisas sobre o impacto de outros fatores de risco, isto é claro: os danos que alteram a vida da agressão sexual transcendem os simples marcadores de desenvolvimento.
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Yates, K., et al. (2022). Sexual assault and psychosis in two large general populations samples: is childhood and adolescence a developmental window of sensitivity? Schizophrenia Research 241: 78-82. (Link)
Diretrizes oficiais sobre a descontinuação da utilização de antidepressivos não são adequadas para os profissionais e pacientes
Um artigo recentemente publicado na revista Therapeutic Advances in Psychopharmacology revela que as Diretrizes de Prática Clínica (CPGs) atualmente disponíveis para antidepressivos afilados falham para os profissionais que desejam ajudar os seus pacientes a descontinuar a medicação.
Os pesquisadores dinamarqueses Anders Sørensen, Karsten Juhl Jørgensen e Klaus Munkholm conduziram uma revisão sistemática das CPGs dos países de língua inglesa de alta renda. Seus resultados destacam graves deficiências nas diretrizes que podem enganar os profissionais e colocar os pacientes em risco. Eles escrevem:
“Cerca da metade dos pacientes que tomam antidepressivos que tentam descontinuar ou reduzir a dose experimentam sintomas de abstinência, incluindo sintomas semelhantes aos da gripe, ansiedade, instabilidade emocional, diminuição do humor, irritabilidade, crises de choro, tonturas, tremores, fadiga e sensações de choque elétrico. Os sintomas geralmente persistem por semanas, mas podem durar meses ou até anos, e metade dos pacientes que os experimentam classificam-nos como graves”.
“Além da abstinência, descontinuar os antidepressivos pode ser difícil por razões psicológicas. Estes incluem a preocupação de recaída, a percepção de uma causa bioquímica de depressão, habilidades insuficientes de regulação emocional e de estratégias de enfrentamento, necessidade de apoio social, dependência psicológica e experiência de tentativas anteriores de descontinuação sem sucesso”.
Descontinuar os antidepressivos é um processo notoriamente desafiador e longo. O processo de baixar uma dosagem, afilar e descontinuar completamente não é fácil sozinho – muitas vezes exigindo um contato próximo e apoio com uma equipe de atendimento e prescritores, para não mencionar uma rede robusta de apoio entre pares e comunidade. Apesar disso, as diretrizes atuais para afilar ou descontinuar são frequentemente vagas e imprecisas, não apenas para os usuários dos serviços, mas também para os profissionais.
A coletânea inicial de diretrizes resultou em 21 Diretrizes de Prática Clínica não-replicáveis (CPGs) propostas pelas principais autoridades de saúde nacionais ou internacionais e organizações profissionais. As CPGs foram publicadas há mais de 20 anos (1998-2020). Das 21 diretrizes: sete eram dos Estados Unidos, cinco do Reino Unido, uma era do Canadá, Nova Zelândia, Escócia, Cingapura e Austrália, respectivamente. Além disso, três CPGs adicionais foram emitidos por organizações internacionais.
Estas diretrizes foram então examinadas de forma independente por Munkholm e Sørensen para extração de dados. Elas foram avaliadas e apreciadas quanto à qualidade, ou seja, se as diretrizes vigentes são suficientemente abrangentes e relevantes para que os profissionais possam ajudar seus pacientes a administrar e descontinuar os seus antidepressivos.
Após uma profunda revisão de seus dados extraídos e uma triagem de avaliação, os autores encontraram o seguinte:
“A descontinuação dos antidepressivos através da redução gradual da dose foi recomendada em 15 (71%) dos CPGs. Nove (43%) dos CPGs recomendaram um certo período de tempo para a afinação, variando de pelo menos quatro semanas a seis meses, seis (29%) dos CPGs não especificaram a duração da afinação, mas recomendaram que os antidepressivos fossem “afilados/descontinuados lentamente durante um longo período de tempo”, ou “afilados durante pelo menos várias semanas”, e os seis CPGs restantes não forneceram nenhuma orientação relacionada à afilação”.
“A descontinuação rápida ou abrupta foi sugerida em dois (10%) dos CPGs, seja quando ocorreram eventos adversos graves ou para pacientes com sintomas de descontinuação, apesar de um tratamento antidepressivo de manutenção lento…o tratamento antidepressivo de manutenção após a remissão sintomática foi recomendado em 17 (81%) dos CPGs…os CPGs restantes não forneceram nenhuma orientação direta sobre o que fazer quando o tratamento de manutenção terminar”.
Os resultados revelaram que a maioria dos CPGs recomendou que os antidepressivos fossem afilados lenta e gradualmente, mas muito poucos CPGs especificaram o que significava “gradual” e “lento”.
Nenhum dos CPGs recomendou explicitamente a descontinuação ou um afilamento, e nenhum discutiu como poderiam ser os sintomas de abstinência durante todo o afilamento/descontinuação.
Os autores sentem que a implicação clínica da pesquisa é importante, em particular:
“… a orientação limitada e vaga sobre a afilação e descontinuação nas CPGs atuais, que era difícil de encontrar em muitos casos, significa que elas fornecem pouco apoio aos clínicos que procuram ajudar os pacientes a parar ou afilar os antidepressivos. Isto pode ter como consequência que os clínicos hesitam em apoiar os pacientes no processo de descontinuidade….”.
“…a sobreposição sintomática entre sintomas potenciais de abstinência e sintomas depressivos foi reconhecida em pouquíssimos CPGs, e não foram fornecidas orientações sobre como discernir entre essas duas situações clínicas fundamentalmente diferentes. A falta de tais orientações pode ter como consequência que o tratamento medicamentoso seja continuado desnecessariamente em alguns pacientes se as reações de abstinência forem mal diagnosticadas como recaídas, levando potencialmente à retomada do tratamento medicamentoso sob a falsa suposição de que o antidepressivo era necessário para evitar recaídas”.
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Sørensen, A., Juhl Jørgensen, K., & Munkholm, K. (2022). Clinical practice guideline recommendations on tapering and discontinuing antidepressants for depression: a systematic review. Therapeutic Advances in Psychopharmacology, 12, 20451253211067656. (Link)
O seu pensamento é importante quando você medita
Se você foi à terapia nos últimos 10 ou 15 anos, é provável que lhe tenham dito para meditar quando você começar a se sentir aflito. Talvez você tenha tentado se concentrar em sua respiração, mas se viu ficando cada vez mais nervoso. Talvez você tenha começado a ficar bravo com o terapeuta – ou amigo, ou membro da família – que jura que essa prática é boa. Você conclui que isso simplesmente não funciona para você. Talvez até o tenha feito sentir-se pior.
Agora, os pesquisadores podem ter descoberto o porquê.
Em um novo estudo, pesquisadores liderados por Eric Tifft na Universidade de Albany descobriram que a razão pela qual as pessoas escolheram meditar – a intenção por trás de sua prática – predizia se elas sentiam alívio de sua angústia ou não.
“As práticas de meditação têm sido amplamente comercializadas para amenizar o sofrimento humano. Como tal, os indivíduos podem buscar e usar a meditação para controlar ou administrar pensamentos e emoções desagradáveis. A pesquisa sobre o controle de emoções e pensamentos sugere que a meditação usada desta forma pode potencializar experiências privadas desagradáveis e contribuir para resultados negativos”, escrevem os pesquisadores.
De acordo com Tifft e seus coautores, há duas intenções principais que as pessoas têm quando decidem meditar. A primeira decorre das origens espirituais da meditação, como o budismo, e envolve uma aceitação consciente – pensamentos e sentimentos, mesmo negativos, sem julgamento e sem tentar controlá-los. A segunda é o oposto: meditar para tentar fazer desaparecer a ansiedade, a depressão, ou outros sentimentos negativos.
Esta é a compreensão popular da meditação no mundo ocidental, que divorciou a prática de suas raízes espirituais e a tratou como uma intervenção adicional à saúde mental – algo que ajudará a melhorar seus “sintomas”. Em muitos casos, métodos de meditação são ensinados às pessoas – como observar sua respiração, por exemplo – mas seu objetivo para fazer isso é reduzir sua ansiedade, depressão, estresse etc.
No estudo presente, Tifft e seus colegas descobriram que este foco na redução dos sintomas prejudica o sucesso da prática. E, ao contrário, estar aberto a esses sentimentos negativos e aceitá-los – como no contexto da prática de meditação budista – acaba por reduzir a angústia.
O estudo incluiu 103 estudantes universitários que tinham experiência anterior com meditação. A amostra foi mais diversificada do que a normalmente encontrada nos estudos psicológicos: menos da metade (45,9%) eram brancos. Um pouco mais da metade (58,2%) tinha usado meditação para tentar controlar suas emoções; os outros 42,8% tinham se envolvido em meditação com uma mentalidade de abertura/aceitação. (Apenas cinco estudantes não se enquadravam nestas categorias, relatando que tinham ambas as intenções; eles não foram incluídos na análise).
Os pesquisadores compararam os dois grupos e descobriram que aqueles que estavam tentando controlar suas emoções tinham maior angústia:
“Os indivíduos que endossaram o uso da meditação para controle da experiência relataram maior ansiedade, preocupação, depressão e afeto negativo, e menor cuidado com a meditação guiada por sua aceitação”.
Os pesquisadores também descobriram que a percepção de angústia – não a gravidade da ansiedade ou depressão em si – previa a intenção de controlar em vez de aceitar.
Os pesquisadores concluíram isso porque os resultados do State-Trait Inventory for Cognitive and Somatic Anxiety e Beck Depression Inventory não previam se as pessoas estavam tentando controlar sua angústia ou aceitá-la – somente porque sua percepção de como era problemático ter emoções desagradáveis foi adicionada à equação.
Devido ao desenho do estudo (transversal), não é possível inferir a causalidade. Os pesquisadores reconhecem esta limitação e são bastante claros sobre as três interpretações possíveis de seus resultados.
Uma explicação é que as pessoas que acreditam que a angústia é um problema se voltam para a meditação baseada no controle, em vez de se concentrarem na aceitação. Não parece funcionar, no entanto, já que estes participantes ainda relataram uma angústia ainda pior.
A segunda explicação é que a meditação focalizada no controle na verdade torna a angústia pior, porque faz com que as pessoas se concentrem no problema e se sintam desesperadas quando a meditação não o resolve.
A terceira explicação combina as duas: as pessoas que percebem experiências negativas como foco problemático no controle desses sentimentos, o que as torna piores.
Os pesquisadores acrescentam que “estas descobertas são consistentes com pesquisas que sugerem que o controle deliberado e eficaz de eventos privados desagradáveis pode ser ineficaz e está associado a um maior sofrimento psicológico”.
Uma implicação: Os terapeutas deveriam se concentrar no ensino da aceitação antes de introduzir técnicas de meditação.
Em um post no blog sobre o estudo, Steven Hayes – psicólogo e criador da Terapia de Aceitação e Compromisso – chama a atenção para a noção superficial de meditação que prevalece e reorienta a atenção para o contexto espiritual da prática:
Observe o maravilhoso mundo da meditação de fast-food: a prática contemplativa NÃO tem a ver com se livrar de suas experiências. Trata-se de se ancorar para que você não seja varrido, e permanecer firme e presente mesmo na presença de chuva, trovões e ondas que se chocam. Como disse recentemente o monge e ativista da paz Thích Nhất Hạnh, “Com a mente atenta, não se está apenas descansado e feliz, mas alerta e desperto. A meditação não é evasão; é um encontro
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Tifft, E. D., Underwood, S. B., Roberts, M. Z., & Forsyth, J. P. (2022). Using meditation in a control vs. acceptance context: A preliminary evaluation of relations with anxiety, depression, and indices of well‐being. Journal of Clinical Psychology, 1-15. https://doi.org/10.1002/jclp.23313 (Link)
Robert Spitzer no DSM-III: Uma Entrevista Recentemente Recuperada
Nesta entrevista de uma hora, gravada a convite em sua casa em Nova York em 22 de fevereiro de 2006, Robert Spitzer, presidente da força-tarefa para as duas grandes atualizações do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), discute longamente as suas razões para acrescentar mais de 100 novos transtornos, incluindo 7 novos transtornos de ansiedade, ao DSM-III em 1980.
O psiquiatra da Universidade de Columbia mostra como os críticos podem ter desacreditado estas e outras mudanças; suas decisões sobre inclusão, exclusão, expansão e renomeação; as controvérsias que se acumularam sobre a psicanálise e abordagens psicodinâmicas; a relação da homossexualidade com o desenvolvimento normal; o risco de falsos positivos e de patologizar as reações normais; e o papel que as empresas farmacêuticas desempenharam no patrocínio de pesquisas e conferências-chave utilizadas para justificar alguns dos novos transtornos.
Há muito tempo se acreditava haver estado perdida, a entrevista é publicada na íntegra pela primeira vez após ter sido recuperada recentemente.
A entrevista abaixo foi editada por tempo e clareza, para evitar repetições.
Christopher Lane: Vários artigos a seu respeito mencionam que antes de você desenvolver um interesse pela biometria, a sua carreira na verdade começou com as teorias psicanalíticas de Wilhelm Reich. Estou curioso, como foi que isso aconteceu?
Robert Spitzer: Acho que quando eu tinha nove ou dez anos, a minha mãe me mandou para um psicanalista porque eu a havia esbofeteado. Mas eu realmente não fiz terapia. Quando eu tinha 15 anos, eu tive um professor de inglês que tinha tido um treinamento com o Reich. Ele era um aluno do Reich e fazia terapia Reichiana. Fiquei intrigado com a sua abordagem. Eu era um tanto quanto radical, o que fez essa abordagem me atrair.
Lane: Com o trabalho de diagnóstico que você ajudou a desenvolver a partir do grupo da Universidade de Washington em St. Louis e seu enfoque em regras “consistentes e confiáveis” para o diagnóstico, o que aconteceu com o seu interesse clínico?
Spitzer: Eu tive um treinamento psicanalítico e me formei na Columbia, mas não me formei. Acho que eu era um pouco encrenqueiro. Quando eu era um pesquisador, fiz alguma psicanálise. Mas nunca me senti muito à vontade para fazer isso. Eu não tinha certeza se estava ajudando alguém e muitas vezes não sabia o que estava fazendo.
Lane: Gostaria de me concentrar esta tarde em algumas questões relacionadas: a questão da validade do diagnóstico e da sua importância central para o DSM-III. E a classificação de novos transtornos de ansiedade em 1980, tais como transtorno de ansiedade generalizada, fobia social (mais tarde renomeado transtorno de ansiedade social), e transtorno de pânico. Em um artigo em coautoria com Ronald Bayer sobre a história imediata do DSM-III, você escreveu que a Força Tarefa a que presidiu por vários anos “teve as suas raízes intelectuais em St. Louis ao invés de Viena. E derivou a sua integração intelectual a partir de Kraepelin, não de Freud”. Dada sua formação na Columbia, você estava preocupado com as discrepâncias entre as duas abordagens – que ao seguir Kraepelin, digamos, as dimensões inconscientes da formação de sintomas cairiam fora de cena?
Spitzer: Acho que a maneira como vimos isso … A abordagem Kraepelin só significava que estávamos interessados em uma descrição. Estávamos interessados no curso da doença e evitávamos teorias sobre ideologia.
Lane: Podemos voltar à questão da ideologia, mas do ponto de vista do tratamento, isso não ignora ou diminui um outro conjunto de preocupações sobre o significado dos sintomas e as questões subjacentes que podem ser ditas que os produzem?
Spitzer: Bem, claro que sim. O DSM os deixou todos de fora! De uma perspectiva psicanalítica, se você olhar para algo como transtorno de pânico, há um impulso e há algo que é inconscientemente afastado. Sentimos: ‘Essa era uma teoria interessante, mas não saberíamos o que fazer com ela’. Então …
Toda a abordagem que adotamos com o DSM-III foi desenvolver um sistema de diagnóstico que as pessoas que tinham orientações totalmente diferentes ainda assim poderiam utilizá-lo. Assim, se um psicanalista pensasse que o transtorno de pânico se baseava em impulsos que eram recalcados, ele ou ela ainda poderia usar este sistema. Os terapeutas comportamentais também … Se você está perguntando se é uma abordagem diferente: Claro, é uma abordagem diferente.
Lane: Como você pessoalmente negociou as tensões entre estas abordagens?
Spitzer: Eu negociei a discrepância ao retirar a minha catarse da psicanálise. Quero dizer, eu suponho que poderia ter sido que de dia eu era um DSM [sic] e de noite eu era um psicanalista, mas não foi assim que funcionou na prática, em parte por razões intelectuais e em parte por razões pessoais. Minha experiência com a psicanálise – e eu tive muitas tentativas diferentes para isso – foi em grande parte mal sucedida. Portanto …
Durante os primeiros anos enquanto eu comecei a trabalhar no DSM em 1974, eu ainda estava vendo pacientes e isso parou. Eu costumava fazer uma piada de que o meu consultório particular se tornava cada vez mais privado a tal ponto que não havia ninguém lá [Risos]. Acho que o máximo que eu fazia eram 15 horas por semana.
Lane: E se movendo entre estes mundos diferentes?
Spitzer: Sim, eles são mundos muito diferentes. Acho que muito do meu sucesso no DSM foi poder negociar com diferentes grupos. Ter um treinamento analítico certamente me permitiu lidar melhor com as pessoas, embora … isso tenha se tornado um verdadeiro conflito na época.
Lane: Você fez comparações sérias entre o tratado de paz negociado entre o Egito e Israel, o que iria colocar os riscos em alta de fato. O que estava motivando a frustração dos analistas com o processo DSM?
Spitzer: Eu acho que eles podem ter se sentido traídos. Bem, a primeira traição foi com a coisa da homossexualidade [a sua retirada da lista como um transtorno mental e a sua retirada do DSM em 1973, um desenvolvimento que Spitzer ajudou a negociar]. Particularmente o grupo analítico da Columbia se sentiu muito traído e zangado comigo por isso.
Lane: A posição deles na época era tão retrógrada e não-psicanalítica – até mesmo bastante anti-freudiana …
Spitzer: Você quer dizer que Freud não considerava a homossexualidade como uma doença? É verdade. Mas ele também não a considerava como parte de um desenvolvimento normal. Bem, eu não a considero como um desenvolvimento normal.
Lane: No final de sua carreira, com certeza Freud havia abandonado completamente a idéia de um desenvolvimento normal …
Spitzer: [Aparentemente não ouvindo.] Sabe, na verdade eu escrevi para o Reich uma vez e ele me escreveu de volta. Quando fiz as minhas experiências e todas elas saíram negativas, escrevi para perguntar por que não estava obtendo bons resultados. Isto deve ter sido em 1952, suponho eu. E recebi de volta uma resposta dele dizendo que a razão era por causa dos testes com bombas atômicas. [Risos.] Infelizmente eu não guardei a carta – teria ficado bem em um quadro.
Lane: Voltemos à questão chave da patologização e da despatologização. Voltando a 1968, se me permite, com a publicação do DSM-II, você co-editou com Paul Wilson “A Guide to the APA’s New Diagnostic Nomenclature” (Um Guia para a Nova Nomenclatura Diagnóstica da APA). O artigo é de grande interesse para mim porque nele você discute “a eliminação da palavra ‘reação’ dos rótulos como ‘reação esquizofrênica’, ‘reação paranóica'”, e assim por diante – um grande desenvolvimento, certamente, em como conceitualizamos e descrevemos o diagnóstico psiquiátrico. Houve uma longa discussão na época sobre a realização dessa mudança?
Spitzer: Sobre como fazer isso? Não, não houve nenhuma discussão. Não, não. Você tem que entender: a APA tinha decidido com o DSM-II usar o CID-8. O CID-8 foi escrito por uma pessoa, [Senhor] Aubrey Lewis no Maudsley [Instituto de Psiquiatria, Londres], e ele não apresentou a palavra reação, então, para nós, nunca houve nenhuma discussão.
Lane: Em uma visão a posteriori, como a força-tarefa DSM-III acabou discutindo sobre vírgulas, parênteses, e um pouco mais, certamente isso foi uma grande redefinição …
Spitzer: Bem, o DSM-II adotou o CID-8 com apenas algumas pequenas e minúsculas mudanças. Você poderia fazer uma comparação. Havia alguns subtipos e transtornos de conversão – esqueci o que eram… mudanças muito triviais.
Lane: Mas apagar a palavra reação de alguns tipos designados de doenças mentais – em um manual de diagnóstico que também pretende defini-los e para que os clínicos os reconheçam – ainda é uma mudança importante porque está alterando o status ontológico da condição …
Spitzer: Sim. Sim, é uma grande mudança. Acho que se houvesse alguma discussão, ela seria na ordem de “Não acrescentamos nada, apenas colocando a palavra reação a tudo”. Você ainda pode acreditar na psicobiologia sem ter a palavra [reação] ali. Esse teria sido o argumento. Mas duvido que houvesse qualquer argumento, porque, naquela época, apenas ter a palavra reação não significava muito.
Lane: Exceto que removê-la significava que se estava de fato transformando uma reação a algo como mais como um estado duradouro, possivelmente vitalício. Sem uma causa óbvia, na medida em que vocês também eliminaram os fatores de estresse que poderiam estar ligados ao meio ambiente, status econômico, dinâmica familiar e assim por diante …
Spitzer: Bem, o que estávamos dizendo é: “Deixar cair a palavra reação não significa realmente nada”. Acho que isso provavelmente é verdade – não acho que tenha significado muito. Com o DSM-III houve enormes controvérsias sobre este e outros desenvolvimentos quando ele foi lançado. Mas com o DSM-II, acho que houve um artigo, possivelmente em um jornal, onde William Menninger sugeriu que ao adotar o CID-8 [baseado na Europa], estaríamos perdendo a contribuição da psiquiatria americana. Agora se ele estava respondendo à questão da reação eu não me lembro. Eu sei que houve essa única reclamação.
Lane: Eu li diferentes relatos de como a Força Tarefa DSM-III começou e como você foi nomeado, dado o seu histórico e trabalho na edição anterior. Se você olhar para trás agora em meses como abril de 1979, quando a questão sobre a neurose da ansiedade, já há algum tempo, claramente …
Spitzer: … sim, chegou-se a uma conclusão, então …
Lane: Como você caracterizaria esses meses agora?
Spitzer: Eu não me lembro bem deles. Lembro-me da reunião final da assembléia onde eles me aplaudiram de pé. Porque, naquele momento, o grupo analítico estava realmente tentando derrotar tudo. E havia a possibilidade de que eles pudessem ser bem sucedidos. Estava tudo sobre a distimia versus a depressão neurótica. Além disso, o meu casamento estava caindo aos pedaços ao mesmo tempo. Portanto, havia muita coisa acontecendo.
Lane: Se pudermos recorrer a um artigo de novembro de 1975, você escreveu em conjunto com Endicott e Robins, “Clinical Criteria for Psychiatric Diagnosis in DSM-III” (Critérios Clínicos para Diagnóstico Psiquiátrico em DSM-III), sua razão de ser claramente afirmada era reduzir a variabilidade e, ao mesmo tempo, aumentar a confiabilidade no diagnóstico psiquiátrico. No entanto, o artigo discute variáveis que complicam esses fins, tais como ‘variantes do caso’ – presumivelmente, como uma doença pode ter diferentes cursos e crises em diferentes momentos – e uma questão interpretativa contínua sobre se dois ou mais diagnosticadores realmente vêem as coisas da mesma maneira. Ambos vão ao âmago da confiabilidade entre os participantes.
Spitzer: Um paciente diz algo: como você sabe que encontra-se…? Duas pessoas podem dizer: “Bem, isso preenche esse critério” e alguém diz: “Não, não preenche”. Isso é um grande problema. Ainda é um grande problema.
Lane: Tanto quanto posso dizer da correspondência sobre o DSM-III, sua perspectiva na época era …
Spitzer: … que a variação que envolve a falta de confiabilidade do diagnóstico seria minimizada.
Lane: … ou possivelmente até mesmo resolvida para sempre…
Spitzer: Bem, ainda está lá. Fomos acusados de exagerar quanto à melhora da confiabilidade. Não sei se você está familiarizado com o trabalho de Herb Kutchins e Stuart Kirk. Eles escreveram vários livros críticos do DSM-III e -IV. E o argumento deles foi que nós exageramos na melhoria da confiabilidade. Como parte disso, eles citam Gerald Klerman [colega do Spitzer], que em um debate sobre o DSM-III disse: “O problema da confiabilidade [de diagnóstico] ter sido resolvido. O que é lamentável, pois não foi resolvido de forma alguma. Eu acho que há alguma verdade …. Se você perguntar agora aos clínicos o quanto o DSM é confiável ou quanto o melhorou, não sei o que eles diriam, mas é uma modesta melhoria”.
Depende também das configurações. Em ambientes especializados, como se você for a uma clínica de transtornos alimentares ou de ansiedade, você pode – especialmente se você usar a estrutura com cuidado – obter muito boa confiabilidade, do tipo 0,8. Mas, se você apenas atende pacientes em ambiente ambulatorial, você está falando 0,6, o que é … muito pobre – muito modesto.
Lane: Isso o leva a repensar o foco no Kraepelin?
Spitzer: Eu não sei o que se vai repensar. Para onde se vai? [Risos].
Lane: Talvez repensar alguma de sua ênfase em categorias e comportamento observável? Afinal de contas, todo o ímpeto era minimizar a sua falta de confiabilidade.
Spitzer: O que se pode fazer se você achar que não pode minimizar isso na medida do que gostaria? Quero dizer, o que você faz nesse ponto? Existe outra abordagem que você vai adotar? Houve um artigo no New York Times há cerca de um mês sobre este novo sistema de diagnóstico psicanalítico. Há um grupo analítico que produziu um sistema de diagnóstico psicodinâmico que é suposto ser um complemento do DSM, não em concorrência com ele… É uma abordagem interessante, para se afastar do comportamento observável. Como eles serão bem sucedidos, não sei.
Lane: De certa forma, isto se liga de volta ao grupo St. Louis, onde começamos. Em seu ensaio “Diagnostic Criteria for Use in Psychiatric Research”, de 1972, Feighner reconhece: “Os resultados consistentes e confiáveis do laboratório ainda não foram demonstrados nos transtornos psiquiátricos mais comuns”.
Spitzer: Isso é certo.
Lane: Ainda é esse o caso, depois de algumas atualizações do DSM?
Spitzer: Oh, eu acho que é absolutamente o caso. É interessante, ao falar do DSM-5, sobre o qual eu não tenho nenhum papel, algumas pessoas na APA disseram: “O que vamos tentar fazer no DSM-5 é trazer a etiologia biológica para dentro dele”, e eu acho que isso é simplesmente bobo e prematuro. Não há maneira de fazer isso na melhor das hipóteses.
Lane: Somente a etiologia biológica, não a da psicologia ou dos determinantes sociais…?
Spitzer: Não, não era sobre isso que eles estavam falando.
Lane: Com Feighner, ele foi o seu critério para neurose de ansiedade [incluída no DSM-II]. É claro que ele não tem subtipos para o diagnóstico, mas ele é muito preciso quanto aos seus limiares. Ele diz: “deve ter havido pelo menos 6 ataques de ansiedade, cada um separado por pelo menos 1 semana dos outros”, e assim por diante. Como os vários subtipos e formas de transtorno de ansiedade foram considerados o foco de sua força-tarefa, você acreditava que poderia manter o mesmo grau de precisão e consistência ou chegou a pensar que Feighner estava estabelecendo uma barra muito alta para que o diagnóstico ocorresse?
Spitzer: Simplesmente esqueci o critério Feighner para a ansiedade. Acho que era realmente apenas pânico, dada a sua menção de “ataques”. Então ele não reconheceu o Transtorno de Ansiedade Generalizada [listado pela primeira vez no DSM-III 8 anos depois, em 1980]. Bem, nós criamos esse nome depois que tivemos neurose de ansiedade em DSM-II e se você tivesse pânico, teria que haver algo que sobrou, de modo que se tornou um transtorno generalizado de ansiedade. E depois houve a discussão das fobias sociais. Bem, havia sempre a noção de que existiam fobias. Então, a noção comum de fobias era a de fobias específicas. E então as pessoas diziam: ‘Bem, mas algumas fobias são mais generalizadas’, e isso se tornou a fobia generalizada. E mais tarde, isso se tornou fobia social. E agora, com o DSM-IV, é um transtorno de ansiedade social, que é um termo melhor do que fobia social.
Lane: Podemos voltar ao momento em que o transtorno de ansiedade generalizada e o transtorno de pânico estavam começando a ser diferenciados, porque este é certamente um passo bastante complicado.
Spitzer: Bem, as fobias geralmente não levam a ataques de pânico. Portanto, não creio que tenha havido muita discussão sobre a separação do transtorno de pânico das fobias.
Lane: Eu estava me referindo ao que você disse que o transtorno de ansiedade generalizada tinha que ser distinguido dos transtornos de pânico porque “tinha que haver algo que sobrou…”.
Spitzer: Bem, veja, nós começamos com a neurose da ansiedade, DSM-II. Vem Don Klein [um colega na Columbia] e diz que há uma coisa chamada transtorno de pânico, que Feighner havia chamado de neurose de ansiedade. Se é para reconhecer o transtorno de pânico, nosso pensamento era, claramente, a neurose de ansiedade do DSM-II era uma categoria mais ampla, então precisávamos de um nome para essa outra parte, e isso era transtorno de ansiedade generalizada.
Lane: Certo. Mas o que é tão complicado sobre fobia social – uma fobia de pessoas, um objeto diverso e imensamente variado – é que não parece funcionar como uma fobia convencional, que eu acho que é por isso que foi renomeada …
Spitzer: Não, não é uma fobia convencional.
Lane: Então como se distinguiu de uma fobia específica, que tem um alvo mais estreito?
Spitzer: Bem, eu acho, você sabe, que com uma fobia específica há coisas que assustam as pessoas e elas as evitam: alturas, túneis, cobras, cães, coisas desse tipo. E então as pessoas diziam: ‘Bem, algumas pessoas evitam as pessoas, então vamos chamar isso de fobia social’. Quero dizer, vamos chamar isso de fobia generalizada.
Lane: OK, mas você vê como separá-los fica tão complicado? Quero dizer, também foi evitada o transtorno de personalidade [introduzido de forma semelhante pelo DSM-III em 1980] …
Spitzer: Bem, evitar transtornos de personalidade [risos] é basicamente idêntico à fobia social. Isso se desenvolveu a partir das pessoas de personalidade, que queriam evitar o transtorno de personalidade, e realmente era embaraçoso que estava claro que era a mesma coisa que fobia social.
Lane: Eu estava discutindo isso recentemente com Michael Liebowitz e Richard Heimberg, que acho que estavam no grupo de Transtornos de Ansiedade do DSM-IV. A preferência deles era pensar na fobia social como um continuum com formas crônicas e mais brandas, com subtipos que eles conceberam, com base em ansiedades situacionais como ansiedade de fala pública e constrangimento em relação a comer sozinho em um restaurante. Obviamente, sou um outsider nesse assunto, mas quando vejo estes e outros transtornos tão manifestamente se proliferando, com seus subtipos tão obviamente sobrepostos, ainda que o diagnóstico duplo não seja apenas permitido, mas freqüentemente encorajado, há sinais claros de redundância e um grande risco de sobrediagnóstico. É realmente necessário voltar a um momento anterior para ver como estas coisas foram criadas e porque pareciam tão cruciais na época, quando pessoas como Feighner pareciam bem em representar a neurose da ansiedade por si só, como uma categoria genérica para todos os tipos.
Spitzer: Bem, em relação à minha memória, lembro-me muito claramente de como surgiu o transtorno de ansiedade generalizada. Minha memória das fobias específicas mudando para fobias sociais não é tão clara. Essencialmente, sempre se tratava de pessoas do Grupo de Trabalho, e elas reconheciam clinicamente um subgrupo que elas achavam que deveria ter um nome diferente.
Lane: Então, eles estavam chegando a critérios que eles acreditavam poder operacionalizar com você – essa era a maneira de iniciar a discussão em torno da inclusão?
Spitzer: Certo.
Lane: Deixe-me citar este interessante relato da Força Tarefa, que remonta ao início da entrevista: “A Força Tarefa acreditava que o grande conjunto de evidências etiológicas apresentadas por aqueles comprometidos com uma perspectiva psicodinâmica não poderia servir como base para definir as categorias de diagnóstico”. Já cobrimos um pouco disto e sei que você queria consistência, uma abordagem multiaxial e uma teórica. Também fica claro da leitura de perspectivas alternativas sobre este processo, inclusive pela comunidade psicodinâmica, que eles realmente sentiram que tinham um conjunto de categorias diagnósticas a oferecer. Também é o caso de que há sempre alguma etiologia no DSM-III – não falta completamente e, portanto, teórica – mesmo na forma como as coisas são denominadas, tais como fobias e transtornos.
Spitzer: Bem, a única etiologia é uma por definição. Você sabe, transtornos de pânico ou transtornos de angústia. Transtornos de estresse pós-traumático: pode-se dizer que a etiologia está lá. Transtorno de ajuste. Mas além desses transtornos, onde por definição há um transtorno de estresse, não há etiologia.
Lane: Presumivelmente também, fobia social …
Spitzer: Certo. A crítica analítica do DSM-III como estava se desenvolvendo não era: “Nós temos outra maneira de classificar”. Eles não diziam: “Aqui está o nosso sistema de categorias”. A principal queixa deles foi que na descrição dos transtornos deixamos de fora os fatores psicodinâmicos.
Agora há uma história interessante sobre isso. A Associação Psicanalítica Americana tinha um comitê de contato que se reunia comigo. E o presidente do comitê disse: “O problema é que sabemos muito mais sobre esses transtornos do que o DSM-III coloca lá dentro”. Bem, o que ele queria dizer era o [lado] psicodinâmico. Então eu disse: ‘Por que você não pega um transtorno e o escreve da maneira que você pensa, com as coisas que você acha que não temos lá dentro’. Então eles o deram a Larry Rockland, que por acaso era um amigo meu. Ele pegou o TOC e escreveu a sua psicodinâmica. E foi embaraçoso. Ele tinha incluído “conflitos anais” e outras coisas. E então eu disse: “Isto não vai dar certo”. Isto não é algo que possamos usar”.
[Chistopher Lane procura esclarecer, em 2022: a proposta de Rockland não fez tal caracterização. Em vez disso, ele escreveu a Spitzer: “Parece ser parte do argumento geral em todo o DSM III que listas de sintomas são, de alguma forma, fatos mais científicos e ‘mais difíceis’ do que teorias psicodinâmicas confusas e fantasmagóricas. Eu acho que esta é uma caracterização muito injusta do pensamento psicológico”. Rockland acrescentou que ele queria que fosse dada mais atenção às “tonalidades e variedades particulares do conflito intrapsíquico, que existe em toda psicopatologia e em todas as pessoas”. Daí sua “tentativa de um diagnóstico positivo de transtorno de ansiedade baseado em uma compreensão psicodinâmica do paciente, dos conflitos do paciente e das tensões psicossociais operantes, o que se soma a uma imagem coerente da razão pela qual o paciente desenvolveu uma neurose de ansiedade neste momento”. Rockland para Spitzer, “Some Thoughts on the Subject”: Should Psychodynamics Be Included in the DSM III”, memorando inédito c. Janeiro de 1978, citado com permissão da APA em Lane, Shyness: How Normal Behavior Became a Sickness, p. 54].
Lane: Há um paradoxo interessante em que quando a psicanálise tenta ser precisa no diagnóstico ou estabelecer critérios rigorosos de inclusão e exclusão, as pessoas se rebelam imediatamente contra ela. Pode ser algo sobre a própria abordagem que precisa ser menos esquemática ou formulada.
Spitzer: Você próprio já teve um treinamento analítico?
Lane: Não, embora eu já o tenha contemplado muitas vezes. Tenho bons laços com o Instituto Psicanalítico de Chicago e trabalhei com um teórico psicanalítico durante toda a pós-graduação [Jacqueline Rose], focalizando principalmente a história da psicanálise e da psiquiatria. Sob essa perspectiva, esta parece ser uma questão recorrente para o campo sobre definição e reducionismo, embora seja também uma dinâmica na cultura em geral, com cuidados administrados e as seguradoras querendo critérios limitados de reembolso para qualquer tipo de psicoterapia.
Spitzer: Bem, o conjunto … Há um livro muito interessante chamado The Fall of an Icon: Psychoanalysis and Academic Psychiatry [A Queda de um Ícono: Psicanálise e Psiquiatria Acadêmica], de Joel Paris (2005]). É uma história da ascensão e queda da psicanálise dentro da psiquiatria acadêmica americana. É realmente muito bom. E não é anti-analítica. É crítica, mas diz que a razão pela qual a psicanálise declinou foi porque não produziu dados de eficácia. Não é uma crítica da análise em si.
Com o comitê de contato, eles não estavam criando critérios. Eles estavam fazendo formulações psicodinâmicas etiológicas.
Lane: É também o meu entendimento pela correspondência do DSM que os psicanalistas John e William Frosch foram trazidos, seguindo o comitê de contato, para ajudar a representar o lado psicodinâmico, embora isso tenha sido certamente alguns anos depois de as coisas já terem sido concluídas …
Spitzer: Bem, primeiro foi John, e depois John desistiu …
Lane: Sim. Há alguns detalhes sobre isto no artigo da Bayer, com John Frosch solicitando que a neurose de ansiedade permanecesse no DSM-III e que “um esforço fosse feito para definir quadros descritivos de referências para neurose antes de pendurar o termo …” Isso é do artigo. “Nada surgiu desta proposta”, continua o Bayer, “embora um ano e meio depois o argumento tenha sido mais bem sucedido”. Acho que naquele momento havia o ‘Tratado de Paz Neurótica’, como você o havia chamado, com algum tipo de compromisso.
Spitzer: Nossa, eu esqueci totalmente isso. Por isso, Frosch havia sugerido: “Não desista da neurose, vamos tentar criar um conjunto de quadros de referência”? Eu não sei o que isso teria significado. É interessante que a psiquiatria europeia também usava o termo “neurose”. Está lá no CID. Então quando eu disse, “No DSM-III temos que nos livrar da palavra ‘neurose’ porque tem um significado psicanalítico”, a resposta a isso teria sido, “Não necessariamente”, dada a classificação internacional. Portanto, poderíamos ter desenvolvido critérios para neurose que não seriam psicodinâmicos. Mas teria sido muito difícil.
Don Klein afirmou que o problema da neurose não era o critério de exclusão, mas o critério de inclusão. Em outras palavras, você não sabia se deveria incluir, digamos, os transtornos alimentares. Isso é neurose ou não? Você deveria incluir algum transtorno somatoforme?
Lane: O termo pode não excluir o suficiente …
Spitzer: Certo.
Lane: Mas você acabou de dizer – estou impressionado com isso – que a força-tarefa precisava “se livrar da palavra porque ela tem um significado psicanalítico”. Em vez de, digamos, porque tem uma etiologia pouco clara ou critérios pouco claros de exclusão.
Spitzer: Eu quis dizer que poderíamos ter feito uma tentativa de manter o termo ‘neurose’, mas teria sido …. Quero dizer, não sei qual teria sido o limite. Poderíamos ter mantido o DSM tradicional e ter tido, você sabe, um Transtorno de Humor Dissociativo. Mas isso teria feito… Queríamos manter todos os transtornos de humor juntos, fossem eles psicóticos ou não. Então, o que você teria feito? Teria que haver Depressão Neurotica, Depressão Psicótica, e essa distinção tinha meio que caído no esquecimento.
Lane: Então ninguém disse: “Bem, veja, se a gente se voltar para o CID-8 a gente verá de fato que os europeus mantêm o termo …”.
Spitzer: Não, ninguém fez isso.
Lane: Teria sido interessante se eles o tivessem feito. O que você teria feito?
Spitzer: Bem, teria sido um argumento difícil. Eu teria dito: “Seria difícil definir quais seriam os limites dessa categoria”. Agora é verdade que os europeus a usam e eles não significam conflito inconsciente. Suponho que a razão pela qual eles a usam é da história de Freud e das categorias que ele reconheceu e desenvolveu. Freud não reconheceu os transtornos alimentares. Se o tivesse feito, ele poderia tê-lo considerado uma neurose.
Lane: Possivelmente. Em seus estudos de caso há várias referências a não comer , e assim por diante, mas sim, não enquanto transtornos de pleno direito.
Spitzer: Mas falando sério, Bill Frosch foi o único membro da Força Tarefa que levantou a questão “Devemos ter critérios de diagnósticos no DSM-III? Ele disse que deveríamos ter dois manuais: um para pesquisadores, que teria critérios diagnósticos, e o outro não, para clínicos. E nós rejeitamos isso. Queríamos ter um sistema semelhante. Mas falando sério, o único membro psicanalítico da Força Tarefa …!
Lane: Então ele continuou a trabalhar com Bill …?
Spitzer: Não, Bill substituiu John. Eu não sei por que John partiu. Não sei se ele partiu porque sentiu que não estávamos utilizando os seus talentos ou talvez porque ele tivesse outras coisas a fazer. Mas ele foi embora.
[Christopher Lane em 2022: A enigmática carta dele de demissão é reproduzida em Shyness, p. 60: “Respeito os esforços e a energia dos participantes, mas não posso deixar de me perguntar às vezes —-“].
Lane: Mas então, novamente, eu acho que ele também não conseguiu …
Spitzer: …. a comunidade psicanalítica a bordo?
Lane: Não, as perspectivas psicanalítica e psicodinâmica representadas no manual…
Spitzer: Não, não. Antes de mais nada, ele estava sozinha. Acho que eles nunca esperaram que ele fizesse muito. Ele era praticamente uma figura simbólica.
Lane: Hmm. Mais algumas perguntas, se não se importa. Eu queria perguntar sobre alguns diagnósticos que você descreveu como promissores, mas que não foram incluídos no DSM-III porque os critérios não foram “desenvolvidos o suficiente”. Um deles foi ” Transtorno Disfórico de Fase Lútea Tardia”, finalmente renomeado Transtorno Disfórico Premenstrual.
Spitzer: Bem, quando surgiu o DSM-IIIR [7 anos mais tarde, em 1987], nós o propusemos e ele acabou indo para o Apêndice.
Lane: Eu gostaria de perguntar sobre este padrão mais amplo – o processo pelo qual alguns transtornos foram descartados, como o Transtorno de Personalidade Introvertida, mas outros pareceram suficientemente encorajadores para você incluir ou colocar no Apêndice para possível inclusão futura. Estas decisões foram vinculadas à preocupação com falsos positivos?
Spitzer: [Rindo] Bem, eu não sei se Introvertido foi além de uma simples carta minha. Não me lembro de nenhuma discussão em que… Eu escreveria todas estas cartas novamente às pessoas, e se houvesse algum ponto que eu achasse simpático ou que muitas outras pessoas achassem, eu as traria de volta, se fosse apenas uma ideia. Você sabe que alguns junguianos disseram: “Se deveria ter um transtorno de personalidade introvertido”, e eu achei que não era uma idéia promissora. Portanto, o Comitê de Personalidade nunca ouviria falar disso. Ou eu poderia enviar-lhes uma carta, eu não sei.
Nós não pensamos muito em falsos positivos. Você está familiarizado com Jerry Wakefield e sua crítica? Ele escreveu “Transtorno como Disfunção Prejudicial”: A Conceptual Critique of DSM”, “Definindo Transtorno Mental”, e outros. Ele estava muito preocupado com falsos positivos e achava que a definição do DSM de transtorno mental era muito ampla a respeito de muitos transtornos situacionais que são essencialmente uma reação normal a esse contexto. Portanto, ele estava muito preocupado com os falsos positivos, mas isso não era algo em que estivéssemos de forma alguma preocupados.
Lane: Houve alguma discussão, também, sobre o papel das empresas farmacêuticas em ajudar a empurrar e popularizar os novos transtornos incluídos no DSM-III – por exemplo, Upjohn, fabricante de Xanax, sobre a inclusão dos transtornos de pânico. Isaac Marks me contou recentemente sobre uma conferência-chave em Boston sobre pânico que a Upjohn havia patrocinado e que estava tentando “operacionalizar” seus critérios.
Spitzer: O que ele disse?
Lane: Ele disse que o CEO tinha se levantado para falar e declarou que havia três razões pelas quais Upjohn estava lá, interessando-se pelo assunto e por sua potencial inclusão no DSM: a primeira era dinheiro. A segunda era o dinheiro. E a terceira era dinheiro. As marcas eram maravilhosas por serem ostensivas – por nem sequer tentarem mascará-las.
Spitzer: O que aconteceu: durante o desenvolvimento do DSM, Upjohn estava fazendo marketing e estudos sobre Xanax. Houve uma reunião do comitê para a qual eles pagaram – acho que doaram – um lugar, um local onde nos reunimos para a Convenção, e eles pagaram por isso, o que foi um erro de nossa parte. Nós nunca deveríamos ter feito isso.
Mas eles não tiveram influência sobre nenhum critério ou sobre o nome. Portanto, esta coisa de termos sido influenciados por produtos farmacêuticos é algo que eu apenas, digo, é simplesmente um absurdo. Nunca houve qualquer discussão. Eles nunca fizeram nenhuma tentativa, sabe, “gostaríamos que vocês a definissem de forma mais ampla” ou qualquer outra coisa. Isso nunca aconteceu.
Eles ficaram encantados por termos tido a categoria transtorno de pânico, porque sentiram que tinham uma droga para isso. Mas eles nunca tentaram influenciar como os critérios foram desenvolvidos ou qualquer outra coisa.
Lane: Eu destacaria vários artigos na imprensa detalhando percentagens muito altas de membros do comitê DSM que também recebem dólares da indústria farmacêutica para as suas pesquisas. Quando eu também vejo, digamos, GlaxoSmithKline citando vários líderes-chave de opinião em psiquiatria sobre transtornos de ansiedade social – por exemplo Murray Stein, também um representate da Indústria Farmacêutica – dizendo que há uma severidade contínua de 2% a cerca de 18% de uma população, quase um em cada cinco, dependendo do cenário, a GSK sempre anunciará: ‘Especialistas como o Dr. Stein dizem que até 18% podem ser afetados’. Dessa forma, um transtorno que era em grande medida clinicamente invisível alguns anos antes, porque não estava no DSM, de repente se torna o terceiro transtorno mais diagnosticado nos EUA, após a depressão e o alcoolismo. Isso levanta muitas bandeiras sobre a inclusão no DSM, bem como sobre as decisões de sua força-tarefa de incluir, e como, e que conflitos de interesse estavam operando.
Spitzer: Você está dizendo que as empresas farmacêuticas têm tendência a aumentar a prevalência de transtornos para os quais têm um tratamento? Com certeza. Há outro fenômeno interessante: os pesquisadores também dão prevalência máxima aos transtornos pelos quais eles têm um interesse particular. Em outras palavras, se você está realmente interessado nos transtornos de pânico, você terá a tendência a dizer que é muito comum. Você nunca ouve um especialista dizer: “Meu transtorno é muito raro”. Nunca. Eles sempre tendem a ver isso como mais comum.
Lane: Por outro lado, é difícil quando as ramificações culturais de tal maximalismo são extensas ...
Spitzer: Mas eu não vejo como isso é um problema do DSM.
Lane: Bem, na medida em que a inclusão, digamos, do Transtorno Disfórico da Fase Lútea Tardia no Apêndice DSM apresenta oportunidades para uma maior pesquisa …
Spitzer: Na verdade, essa é a única categoria no Anexo para a qual a FDA aprovou um tratamento [Sarafem/Prozac], o que é um tanto quanto interessante. Antes, a FDA só aprovava tratamentos para doenças reconhecidas.
Lane: Então, como isso aconteceu?
Spitzer: Bem, havia provas suficientes de pesquisa sugerindo que era uma categoria válida, o que eu acho que é. Então eu acho que Eli Lilly [fabricante de Prozac e Sarafem] os convenceu de que, embora esteja apenas no Apêndice, uh, nós temos um medicamento para isso. Quero dizer, a única razão pela qual está apenas no Apêndice é a oposição feminista a ela. Caso contrário … E estará no DSM-5 ou algo parecido.
Lane: Poderíamos fechar com o DSM-5 e a futura trajetória do campo? Que outras categorias e condições você acha que provavelmente serão incluídas, ou deveriam ser?
Spitzer: Bem, eu acho que o Transtorno Disfórico Premenstrual certamente será. O Transtorno Alimentar certamente será como uma categoria oficial. Há interesse em comportamento sexual compulsivo. Há até mesmo algum interesse em compras compulsivas. Acho que isso será problemático porque as pessoas dirão: “Você sabe, você está apenas expandindo para qualquer coisa que seja considerada excessiva”. Há até mesmo o vício da Internet. Bem, quero dizer que as pessoas têm falado sobre isso. Elas escreveram sobre isso. Eu não acho que isso irá acontecer, mas…
Lane: Qual o seu senso, então, de pontos de corte viáveis ou aceitáveis para estas propostas?
Spitzer: Acho que em parte é uma questão de quão incapacitante … Existe realmente uma condição? Há pessoas que realmente são viciadas em coisas da Internet, análogas a outros tipos de dependência. Provavelmente há. Em que ponto você coloca o limite, não sei. Além disso, é uma função de “Há um tratamento?”. Se há um tratamento, a gente está mais interessada em obter a categoria. Se não há tratamento para a condição de saúde, não há tanta pressão para colocar a coisa em …
Você está perguntando: “Em que ponto se coloca uma nova categoria que parece estar em um continuum e parece ser uma forma exagerada de algo que é normal”? Eu não sei a resposta a isso.
Mas você sabe que nós tivemos o mesmo problema com o jogo. Jogar é um pouco mais fácil, porque se tornou tão obviamente prejudicial e incapacitante. Eu não sei o que vai acontecer com o computador ou com o vício sexual.
Lane: Existe algum momento em que estes vários subconjuntos de um transtorno voltem a cair em seu comportamento central, obsessivo-compulsivo? Não precisamos definir as várias formas que ela tomará, em suma, porque isso já está incluído …
Spitzer: Bem, eu acho que é diferente da TOC. É compulsivo, mas não tem a qualidade ego-alienígena. Quero dizer, a pessoa com TOC não gosta de lavar as mãos, porque tem medo de que, se não lavar as mãos, venha a sofrer de uma doença. Isso é muito diferente da pessoa que quer fazer qualquer uma dessas outras coisas: jogar ou … [perda da gravação].
Lane: Sim, a dinâmica do prazer-desprazer pode ser mais difícil de estabelecer lá … Eu li que em NeuroPsychiatry Reviews houve uma discussão sobre se a apatia deveria ser incluída …
Spitzer: Bem, por quê? Se existe um transtorno de apatia?
Lane: Sim, em grande parte devido aos efeitos colaterais dos ISRS. Isto me parece tautológico. Se as drogas estão criando efeitos colaterais, isso não deveria ser motivo para inclusão como um novo transtorno.
Spitzer: Sim, não é um transtorno, é um efeito colateral.
Lane: É também um problema médico. Existem claras razões médicas pelas quais os sistemas colinérgico e serotonérgico seriam fortemente afetados, especialmente após uma rápida retirada… Fico alarmado quando ouço efeitos colaterais…
Spitzer: … confundido com um transtorno? Eu concordaria… eu concordo com isso. Acho que há pessoas que pensam que existem transtornos de apatia primária. Talvez alguma coisa neurológica, eu não sei.
A única coisa que eu sei sobre o DSM-5 é que não terei nada a ver com isso. O que é algo que eu espero ansiosamente. [Risos].
Lane: Obrigado pelo seu tempo.
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Mad in America recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão-psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.
Trad. Fernando Freitas
Sobre a herança psíquica e as patologias da herança: o pensamento de Freud como ruptura a perspectiva biologicista
Os efeitos da herança psíquica podem ser devastadores quando transmitidos transgeracionalmente, pois guardam um intenso potencial patológico muitas vezes classificado equivocadamente enquanto categoria nosológica psiquiátrica ou disfunção na bioquímica cerebral. Em função disso, torna-se necessário esclarecermos alguns pontos sobre a herança psíquica e enfatizarmos as contribuições de Freud. Tais contribuições são prévias à medicalização da própria psicanálise ocorrida nos EUA e com estudos subsequentes da psicologia do ego.
Freud propôs uma reflexão ética, política e cultural contra-hegemônica que precisa ser retomada. O pensamento de Freud sobre a hereditariedade apareceu como ruptura às teorias da degenerescência que ele combateu em várias oportunidades. A teoria da degenerescência foi introduzida por Buffon (1749) e desenvolvida por Morel (1857) com o objetivo de criar uma classificação consistente das patologias mentais que não fosse apoiada somente na diferenciação dos sintomas ou nas manifestações corporais. Morel (1857) desejava substituir uma classificação dos sintomas por uma classificação etiológica das doenças mentais, pois, somente com a determinação das causas, ele poderia associar um sistema classificatório a uma terapêutica apropriada.
A medicina do século XIX buscava comprovações materiais para
os fenômenos que estudava. Tal compreensão implicava em que o sintoma deixasse uma marca no corpo biológico, alvo do olhar de uma medicina que se esforçava para incluir-se no campo das ciências exatas. Daí, dentro de uma perspectiva organicista, o grande louvor concedido à anatomia patológica, na medida em que, supostamente, permitiria ao médico prever uma regularidade em termos de sintomatologia.
Contudo, a loucura era uma doença que não deixava marcas anatomopatológicas, tornando-se necessária uma busca de marcas concretas para justificá-la como doença. Nesse momento histórico, o interrogatório exercia uma importância fundamental na busca de dados sobre a loucura do indivíduo, pois se a marca de sua realidade não se inscrevia no corpo, deveria aparecer sob a forma de predisposições que se revelariam através de lembranças, indicando os antecedentes da doença pertencentes à família.
Portanto, a loucura seria um mal hereditário e a “família”, a loucura hipostasiada (Garcia-Roza, 2000).
A técnica do interrogatório visava, por fim, a obtenção de uma confissão, isto é, o reconhecimento, por parte do paciente, de sua própria loucura. Nesse contexto, a herança e a hereditariedade apareceriam como o grande marco explicativo das patologias mentais. As circunstâncias externas seriam simples “atualizadores” de uma predisposição mórbida transmitida por gerações (Caponi, 2012).
O modelo de contágio e a psicologia das multidões
A noção de contágio mental, desenvolvida por Le Bon (1895), é exemplar da epistemologia social fundada no pensamento médico do século XIX. O autor caracteriza a multidão pelos traços de impulsividade, a irritabilidade, dificuldade para raciocinar, ausência de juízo e espírito crítico e exagero nos sentimentos. Kaës (2001) enfatiza o quanto uma sugestão pode ser contagiosa em aglomerações humanas. Assim, muitas vezes o que é metáfora ou símbolo torna-se, para a multidão, realidade concreta.
A influência das multidões pode transtornar ou arrastar a personalidade do
sujeito. Logo, sem mediação, o contágio se dissemina em um fluxo irrefreável.
As noções de contágio estavam ligadas às duas diferentes concepções de doença que eram
coexistentes: uma concepção ontológica, que esteve presente no imaginário de praticamente todas as culturas desde o mundo antigo, e uma concepção dinâmica, formulada no mundo grego em conformidade com a ideia de physis e que, por intermédio das teorias hipocráticas e galênicas, constituiu o pensamento médico erudito até o século XVI (Czeresnia, 1997).
A concepção ontológica compreendia a doença como um ser com existência própria, uma entidade concreta que vem do exterior – tanto do ar, como de outros indivíduos e objetos – e que não fazia parte da natureza do homem. Era associada a algo que entra no corpo, como espíritos, possessões demoníacas ou flechas lançadas pelos deuses. A cura seria, neste caso, um esforço de expulsão da doença por meio de tratamentos mágicos (Canguilhem, 1978).
A concepção dinâmica, presente nas teorias hipocráticas, compreendia a doença como perturbação do equilíbrio e da harmonia da physis. A doença não era entendida como algo que se localizaria em alguma parte; ela era uma totalidade. Não viria do exterior e sim faria parte da natureza do homem, da sua constituição, ou seja, não era uma entidade que existiria por si só, mas um processo que ocorreria dentro do indivíduo (Czeresnia, 1997).
De acordo com Kaës (2001), Freud se apoiou nesses modelos de pensamentos que circulavam à época, ainda que em oposição, para desenvolver as bases do conceito de transmissão psíquica e a noção de hereditariedade. Kaës localiza o início da noção de transmissão psíquica em diversos apontamentos de Freud em relação às questões da hereditariedade, como será descrito a seguir.
A hereditariedade nos textos de Freud
Um dos primeiros textos de Freud centrados na questão da hereditariedade é o artigo “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (1976/1896), onde ele inicia suas formulações e algumas objeções à teoria etiológica das neuroses que foi legada aos discípulos de Charcot. O papel atribuído por Charcot à hereditariedade em sua teoria é conhecido: trata-se da única causa verdadeira e indispensável das afecções neuróticas.
Não obstante as inúmeras contribuições de Charcot, reconhecidas e estimadas por Freud,
inclusive no que tange aos estudos sobre a histeria, o criador da psicanálise discordava do mestre Charcot ao tratar tanto da histeria, como mais um tópico da neuropatologia, quanto considerar a hereditariedade como causa única. Dessa forma, a histeria poderia ser concebida como uma forma de degeneração, um membro da “famille névropathique”. Para Freud, Charcot superestimou a hereditariedade como agente causativo da histeria, e não deixou espaço algum para a possibilidade da aquisição da denominada “doença nervosa”. Outras considerações formuladas por Freud à teoria de Charcot
apontavam para o papel atribuído à sífilis apenas como “agent provocateur” e a ausência da distinção entre afecções nervosas orgânicas e as neuroses, tanto no que tange à sua etiologia como a outros aspectos (Freud, 1976/1893).
Freud apresentou mais algumas objeções à teoria proposta por Charcot e elencou outras possíveis influências etiológicas da neurose. Para Freud (1976/1896) na patogênese das denominadas “neuroses maiores”, a hereditariedade preencheria o papel de uma precondição poderosa em todos os casos sendo mesmo indispensável na maioria deles. Freud reconheceu a relevância da predisposição hereditária na medida em que as mesmas causas específicas, agindo em um indivíduo saudável, não produzem nenhum efeito patológico manifesto, ao passo que, numa pessoa predisposta, sua ação provoca a emergência da neurose cujo desenvolvimento seria proporcional em intensidade e extensão ao grau da precondição hereditária. Todavia, ele acreditava que certas perturbações nervosas podem desenvolver-se em pessoas perfeitamente saudáveis e em
cujas famílias nada se pode reprovar. Em face dessa etiologia, a ação da hereditariedade é comparável à ação de um multiplicador num circuito elétrico, multiplicador este que exagera o desvio visível da agulha, mas não pode determinar a sua direção (Freud, 1976/1896). Essa metáfora é interessante, tendo em vista que alude às possibilidades de transformação do destino do sujeito. Caso contrário, o sujeito estaria fadado a
repetir desoladamente.
No artigo “A etiologia da histeria” (1976/1896), Freud continuou com as suas objeções em relação à formulação de Charcot de que somente a hereditariedade mereceria ser reconhecida como a verdadeira causa da histeria. Freud (1976/1896) preocupou-se em não determinar a hereditariedade como evidência conclusiva da origem da neurose e, nesse sentido, destacou que a existência de perturbações nervosas adquiridas é tão provável quanto a existência de perturbações hereditárias. Assim, considerou que as experiências infantis deveriam ser consideradas como traumas que levam tanto a uma reação histérica nos eventos da puberdade quanto ao desenvolvimento de sintomas histéricos. Dito de outro modo, os sintomas histéricos seriam decorrentes de reminiscências que se ligariam a algum evento traumático através de cadeias
associativas. Entretanto, vale dizer que se Freud desloca a importância atribuída à hereditariedade para as experiências infantis, ele não dispensa de modo absoluto o papel da primeira, contudo, compreendendo-a para além do determinismo biológico defendido por Charcot.
Freud propunha, ao criar a psicanálise, algo muito diferente da ciência cujo caráter eugênico avançava cada vez mais. Contudo, ele não conseguiu impedir a marcha
desse projeto de erradicação das anomalias que se mantém até os dias de hoje. Atualmente, a ciência tem, de modo geral, a proposta de intervenção de purificar a matriz biológica das futuras gerações, promovendo ingerências antes mesmo da fecundação. Nesse caso, a herança é compreendida como uma herança genética na qual a subjetividade não é levada em conta.
Embora Freud nunca tivesse descartado a influência de fatores hereditários, o que lhe interessava era a genealogia do sujeito na relação com o outro no campo da linguagem. Na teoria freudiana, a genealogia do sujeito se apoia na construção de um aparelho psíquico, constituído na, e pela linguagem, a partir da relação com o Outro. A partir da teoria psicanalítica, ser herdeiro é uma condição constitutiva de todo sujeito. Cada pessoa tem como tarefa – nada trivial, diga-se de passagem – organizar e transformar a herança psíquica. Este árduo processo não pode ser desconsiderado.
Referências:
Canguilhem, G. (1978). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Caponi, S. (2012). Loucos e degenerados: Uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.
Czeresnia, D. (1997). Do contágio à transmissão: Ciência e cultura na gênese do conhecimento epidemiológico. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.
Freud, S. (1976). Charcot (vol III). Edição Standard brasileira das obras completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1893)
Freud, S. (1976). A hereditariedade e a etiologia da neurose (vol. V). Edição Standard brasileira das obras completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1896).
Freud, S. (1976). A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna (vol. VII). Edição Standard brasileira das obras completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1908).
Freud, S. (1976). Totem e Tabu (vol. XIII). Edição Standard brasileira das obras completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1913)
Garcia-Roza, L. (2000). Introdução à metapsicologia freudiana: Artigos de metapsicologia: Narcisismo, pulsão, recalque, inconsciente (1914-1917). Vol. 3. Rio de Janeiro: Zahar.
Le Bon, G. (2005). Psicologia das massas. Lisboa: Esquilo. (Texto original publicado em 1895).
Morel, J. (1857). Traité des Dégénérescences Physiques, Intellectuelles et Morales de lÉspèce Humaine et des Causes qui Produisent ces Variétés Maladives. Paris: Bailliére.
Pesquisa Esclarece que Acesso ao Serviço de Saúde não Significa Acesso ao Cuidado
A pesquisa “Relações de poder entre profissionais e usuários da Atenção Primária à Saúde: implicações para o cuidado em saúde mental” realizada no Ceará e publicada pela revista Saúde Debate, investigou a influência da herança autoritária brasileira na relação entre profissionais e usuários do sistema de saúde. Os autores chamam a atenção para a longa e cruel história escravagista do Brasil como uma experiência que permeou as relações sociais e nossa cultura, naturalizando práticas autoritárias e excludentes.
Com o surgimento do SUS e da reforma psiquiátrica, os princípios e diretrizes norteadoras do cuidado em saúde baseiam-se e asseguram o respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, a pesquisa busca contribuir com a qualificação e aperfeiçoamento do trabalho realizado nas redes de saúde e garantir os direitos humanos dos usuários dos serviços, procurando entender como as relações de poder se manifestam no cenário da atenção básica.
Para tal, os pesquisadores resolveram realizar entrevistas semiestruturadas com uma amostra de dez pessoas de uma Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS) presente em Fortaleza, capital do Ceará. Dos entrevistados cinco eram profissionais de saúde e as outras cinco eram usuários do serviço. O critério de escolha para os profissionais foi estar trabalhando no serviço há pelo menos um ano, e para os usuários o critério foi estar se tratando há pelo menos seis meses na unidade e em uso de psicofármacos.
A entrevista aos profissionais privilegiou os questionamentos acerca dos aspectos relacionados ao manejo clínico, atividades de saúde mental desenvolvidas pelos profissionais no serviço e quais os desafios para se ofertar cuidado em saúde mental. Aos usuários, perguntou-se sobre as ações de cuidado ofertadas, como se davam as relações junto aos profissionais e quais os desafios para se ofertar cuidado em saúde mental.
“Não tem jeito! Quem quer ser atendido tem que chegar cedo. O Doutor não espera por ninguém, a gente é que espera por ele. (U1). Se não conseguir ficha [para atendimento], o negócio fica pior. Porque fica dependendo da boa vontade dele [médico] querer atender. (U3)”
A pesquisa identificou três aspectos ligados ao poder exercido pelos profissionais de saúde na relação com os usuários dos serviços. O primeiro aspecto se refere a consideração do trabalho em saúde como um ato de benevolência e caridade: “A gente tenta, na medida do possível, ajudar, porque eles já são tão necessitados… que a gente se sente até mal” (E2). O segundo aspecto diz respeito à centralidade do cuidado do médico, em um contexto de supervalorização do uso de medicamentos: “Os pacientes de saúde mental, geralmente, são vistos pelo médico, porque eles querem renovar a receita, então acaba ficando a cargo deles [médicos]” . E, por fim, o terceiro aspecto se relaciona à desqualificação do sujeito enquanto portador de direitos, saberes e desejos, como consequência se observam diálogos unilaterais e incompreensíveis para o sujeito que procura cuidado.
Nas falas dos profissionais e dos usuários aparece a dominação dos profissionais através do poder de escolher quem merece ser atendido e a que horas.
“Tal fato fortalece um poder que se firma na noção de que o tempo do profissional tem mais valor que o tempo do usuário, assegurando e legitimando a premissa de que este deve esperar por aquele, embora o inverso não deva jamais ocorrer.”
Também foi possível observar com a pesquisa que as práticas norteadoras do cuidado estão centradas no processo de medicalização.
“Eu tomo fluoxetina faz um ano. E de dois em dois meses venho no posto pra renovar [a receita]” (U2)
Dessa forma, o cuidado em saúde foca em um processo automatizado, em que a escuta do sujeito não é possível, indo em direção oposta ao atendimento integral proposto pelas diretrizes do sistema de saúde. Os autores destacam que quando o usuário só tem acesso à prescrição de psicofármacos, ele alcança o serviço de saúde, mas não necessariamente o cuidado.
“Observa-se que a hegemonia do poder biomédico e a cultura autoritária da sociedade brasileira, que tem a escravidão como uma marca negativa, trazem repercussões sobre as relações entre profissionais e usuários de modo que o lado mais fraco, no caso, os usuários, tende a se submeter a essa dinâmica de dominação como meio para acessar o serviço, contudo, não tem acesso ao cuidado.”
Como conclusão, os autores defendem que é necessário recuperar dispositivos de reflexão das equipes de saúde, como as reuniões de equipe, formação permanente e supervisão clínico-institucional para a conscientização e responsabilização da reprodução das relações de poder e seus efeitos negativos para a saúde dos usuários dos serviços.
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Caminha, Emília Cristina Carvalho Rocha et al. Relações de poder entre profissionais e usuários da Atenção Primária à Saúde: implicações para o cuidado em saúde mental. Saúde em Debate, v. 45, n. 128, 2021. (Link)
O ‘Psiquiatra da Nação’ Faz o seu Balanço, Com Frustração

Acaba de ser lançado o mais recente livro de Thomas P. Insel, Healing. Our Path From Mental Illness to Mental Health.
Quem é o Dr. Insel? É neurocientista e psiquiatra estadunidense, que dirigiu o National Institute of Mental Health (NIMH) durante 13 anos, de 2002 até 2015.
Ellen Barry, na edição do New York Times de 22 de fevereiro de 2022, faz uma apresentação do livro e entrevista o autor. Eis alguns trechos:
“Durante seu mandato como ‘psiquiatra da nação’, Dr. Insel ajudou a atribuir 20 mil milhões de dólares em fundos federais para o Instituto Nacional de Saúde Mental e a deslocar acentuadamente o foco da investigação comportamental para a neurociência e a genética.”
“Ele faz a seguinte confissão:’Eu deveria ter sido capaz de nos ajudar a inclinar as curvas da morte e da deficiência, mas eu não o fiz’ “.
“A ascensão do Dr. Insel ocorreu em uma época de otimismo de que os avanços na neurobiologia levariam a novos tratamentos, e como chefe da N.I.M.H., como disse, ele ‘apostou muito na genômica’. Mas 20 anos depois, diz ele que o papel que os genes desempenham na esquizofrenia e no transtorno bipolar provou ser extraordinariamente complexo.”
O livro com 306 páginas apresenta a sua leitura dos principais problemas enfrentados pela sociedade estadunidense no campo da assistência em saúde mental.
“Não é uma acusação da ciência à qual ele dedicou grande parte de sua vida adulta. Em vez disso, ele registra falhas em praticamente todos os diferentes elementos do nosso sistema de saúde mental, incluindo a prestação ineficaz de cuidados, as entranhas dos serviços de saúde da comunidade e a utilização da polícia e das prisões para serviços de crise.”
“Ele direcionou o orçamento de pesquisa da agência com o montante de US$ 1,3 bilhão para a biologia das doenças. Isso atraiu críticas de alguns no campo, que argumentam que o financiamento deveria ser dividido mais uniformemente entre a neurociência e a pesquisa clínica em tratamentos, como medicação e terapia, que poderiam ser usados no futuro próximo.”
“O Dr. Allen Frances, professor emérito de psiquiatria da Duke University School of Medicine, advertiu em 2014 que o instituto estava ‘levando a se apostar em um tiro dado no escuro de que a neurociência encontraria respostas para ajudar as pessoas com doenças mentais graves’ “.
“No livro, descreve uma ‘epifania’ durante o seu último ano no N.I.M.H., depois de ter feito uma apresentação em PowerPoint a um grupo de defensores, relatando o progresso dos investigadores em matéria de marcadores genéticos.”
“Um homem com uma camisa de flanela levantou-se e recuperou a história do seu filho de 23 anos, que tem esquizofrenia – um ciclo de hospitalizações, tentativas de suicídio e desalojamento. ‘A nossa casa está em chamas’, disse o homem, ‘e você está falando da química da tinta. O que é que vocês estão fazendo para apagar este fogo?” “
” ‘Naquele momento, eu sabia que ele estava certo’, escreve o Dr. Insel. ‘Nada que meus colegas e eu estávamos fazendo abordava a sempre crescente urgência ou magnitude do sofrimento pelo qual milhões de americanos estão vivendo – e morrendo’.”
“Como diretor do N.I.M.H., o Dr. Insel foi um campeão da pesquisa básica, confiante de que a compreensão dos genes e da neurobiologia ajudariam a desvendar alguns dos transtornos mentais mais complexos.”
” ‘Tenho uma vida feliz e não passo cada minuto da minha vida me sentindo culpado, mas se olho para trás em minha carreira, é com pesar, não com satisfação’, disse ele.”
Veja a matéria na íntegra→

Medicando os pré-escolares para TDAH: Como a Psiquiatria “Baseada em Evidências” Chegou a um Fim Trágico
Em sua edição de 25 de maio de 2021, a JAMA publicou um relatório sobre a eficácia comparativa de dois medicamentos para o tratamento de crianças em idade pré-escolar diagnosticadas com TDAH. Tanto o metilfenidato quanto a guanfacina foram considerados benéficos e, em um editorial anexo, a JAMA contou como esta revisão retrospectiva dos prontuários dos pacientes foi acrescentada à base de evidências para esta prática.
O primeiro parágrafo do editorial, que foi escrito por Tanya Froehlich, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Cincinnati, apresentou o contexto médico para o estudo:
“O reconhecimento do transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) na faixa etária pré-escolar está crescendo, com um aumento nas taxas de TDAH pré-escolar em amostras representativas nacionalmente nos EUA de 1,0% em 2007 a 2008 para 2,4% em 2016. Ter uma criança em idade pré-escolar (ou seja, 3-5 anos) com TDAH está associado a numerosos resultados negativos em casa (por exemplo, desordens nas relações pai-filho, estresse familiar elevado), bem como fora de casa (por exemplo, deficiências nas habilidades pré-acadêmicas, dificuldades de interação entre colegas, expulsão de estabelecimentos pré-escolares e de cuidado infantil), ressaltando a importância da identificação e do tratamento. As diretrizes da American Academy of Pediatrics e da Society for Developmental-Behavioral Pediatrics (SDBP) recomendam intervenções comportamentais como tratamento de primeira linha para crianças em idade pré-escolar com TDAH. Entretanto, as intervenções comportamentais por si só não melhoram suficientemente os sintomas e a deficiência relacionados ao TDAH em uma grande porcentagem (>80%) de crianças”.
Esse parágrafo inicial faz uma série de afirmações “baseadas em evidências”: que TDAH é um transtorno válido; que ele pode ser diagnosticado de forma confiável em pré-escolares; que há progresso sendo feito no reconhecimento desse transtorno nessa faixa etária; que o TDAH não tratado em pré-escolares leva a maus resultados em ambientes domésticos e de cuidado infantil; e que o tratamento comportamental não resolve os sintomas de TDAH na maioria dos pré-escolares. Há razões científicas para concluir que há uma necessidade premente de estudar os medicamentos que estão sendo prescritos para os pré-escolares assim diagnosticados.
O segundo parágrafo do editorial afirma que os ensaios clínicos já demonstraram que o metilfenidato é um tratamento eficaz. A diretriz da Academia Americana de Pediatria, escreve Froehlich, recomenda “o estimulante metilfenidato como farmacoterapia inicial para crianças em idade pré-escolar com TDAH, porque é o medicamento com maior evidência de eficácia e segurança nesta faixa etária”.
A necessidade de que este medicamento eficaz seja comparado à guanfacina é que “às vezes são necessárias opções alternativas de medicamentos, dada a diminuição da eficácia e as taxas mais altas de efeitos adversos associados ao metilfenidato em crianças em idade pré-escolar, em comparação com crianças em idade escolar”. Organizações como a SDBP e a Academia Americana de Psiquiatria Infantil e Adolescente (American Academy of Child and Adolescent Psychiatry’s Preschool Psychopharmacology Working Group) recomendam um agonista 2-adrenérgico como a guanfacina quando um pré-escolar não tolera bem o metilfenidato, mesmo que a “base de evidência seja notavelmente limitada no que diz respeito ao manejo do TDAH” com esses medicamentos nessa faixa etária.
Em resumo, o editorial está promovendo a noção de que prescrever metilfenidato a pré-escolares diagnosticados com TDAH é uma prática baseada em evidências, e agora, com esta revisão retrospectiva dos gráficos para crianças pequenas tratadas com metilfenidato ou guanfacina, há evidências sendo coletadas para apoiar o uso de guanfacina também nesta faixa etária.
No entanto, imagine esta experiência de pensamento. Se as afirmações “baseadas em evidências” fossem retiradas da discussão, o que a maioria das pessoas pensaria sobre dar a uma criança de três anos que “fala demais” ou “se distrai facilmente” uma dose de 5 mg de metilfenidato três vezes ao dia, que é uma dosagem considerada “ótima” em bebês?
Eles provavelmente pensariam que se trata de uma forma de abuso contra crianças. De fato, um adulto que dá metilfenidato a uma criança de dois anos sem receita médica é entendido como tendo cometido um crime federal.
Esse é o poder de uma afirmação de que seja uma prática “baseada em evidências”. Inverte-se esse pensamento intuitivo. Um ato que parece ser uma forma de abuso infantil, fazendo dano evidente à criança, é entendido como um tratamento médico útil.
Base de Evidência da Psiquiatria para o TDAH pré-escolar
Recue o tempo para 1979, e haveria muito poucos pediatras ou psiquiatras infantis que teriam prescrito estimulantes a crianças em idade pré-escolar. A construção pela psiquiatria de uma base de provas para esta prática, que começou a decolar nos anos 90, consiste em três reivindicações:
- O TDAH é um transtorno neurológico caracterizado por anormalidades genéticas e do volume cerebral.
- O TDAH pode ser diagnosticado de forma confiável.
- O metilfenidato é um tratamento seguro e eficaz para pré-escolares “com TDAH”.
Se há uma boa ciência por trás dessas afirmações, então poderia ser argumentado que medicar os pré-escolares diagnosticados com TDAH seja um tratamento útil. Se as alegações forem baseadas em interpretações tendenciosas e enganosas dos resultados da pesquisa, então esta é uma prática sem uma justificativa científica, e o espectro do abuso infantil vem à tona.
Anormalidades Genéticas e de Volume Cerebral na TDAH
O diagnóstico de “transtorno de déficit de atenção” foi criado em 1980, quando a Associação Psiquiátrica Americana (APA) publicou a terceira edição de seu Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM-III). Nas duas edições anteriores do DSM não havia tal diagnóstico, e quando a APA publicou o DSM-III, ela adotou um modelo de doença para diagnóstico e tratamento de transtornos mentais. Em seu livro The Broken Brain [Cérebro Danificado ] de 1984, Nancy Andreasen – a editora-chefe de longa data do American Psychiatric Journal – apresentou esta nova concepção: “As principais doenças psiquiátricas são doenças. Elas devem ser consideradas doenças médicas da mesma forma que diabetes, doenças cardíacas e câncer”. A idéia era que “cada doença distinta tem uma causa específica distinta”.
Esta concepção de transtornos psiquiátricos significava que o “transtorno de déficit de atenção”, desde o início, seria conceitualizado – e tratado – como um problema médico/biológico, com o pensamento que se poderia traçar uma linha que separasse a criança com DAH da criança normal. Esse diagnóstico logo se transformou em Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Entretanto, tendo a APA adotado este modelo de doença, a pesquisa sobre a biologia do TDAH foi manchada desde o início. Os pesquisadores psiquiátricos não projetaram os seus estudos para avaliar se aqueles diagnosticados com TDAH sofriam de uma doença cerebral (ou anormalidade). Eles passaram a procurar encontrar tais anormalidades para validar o transtorno que a APA havia criado. Os pesquisadores se concentraram em três dessas possibilidades: desequilíbrios químicos, associações genéticas e anormalidades nas estruturas (ou tamanho) do cérebro.
Nos anos 80 e 90, a teoria do desequilíbrio químico dos transtornos mentais estava em agitação, uma teoria nascida das descobertas de como as drogas psiquiátricas atuavam sobre o cérebro. Os antipsicóticos bloqueiam os receptores de dopamina no cérebro, e por isso os pesquisadores passaram a supor que a esquizofrenia se deva a um excesso de dopamina no cérebro. Os antidepressivos aumentam a atividade serotonérgica e, por conseguinte, os pesquisadores passam a supor que a depressão é devida a muito pouca serotonina. A ritalina (metilfenidato) aumenta a atividade dopaminérgica e, portanto, foi levantada a hipótese de que a TDAH se devia a muito pouca dopamina.
Hoje, a teoria do desequilíbrio químico dos transtornos mentais tem sido descartada em sua maioria. Como Kenneth Kendler, coeditor chefe da Psychological Medicine escreveu em 2005, “Temos procurado grandes explicações neuroquímicas simples para os transtornos psiquiátricos e não as encontramos”. Embora organizações de defesa, como a Crianças e Adultos com Desordem de Déficit de Atenção/ Hiperatividade (CHADD), ainda possam informar ao público que “pessoas com transtorno de hiperatividade com déficit de atenção podem ter níveis diferentes de dopamina do que pessoas neurotípicas”, esta patologia não é mais considerada como sendo uma característica primária da TDAH na literatura médica.
Embora nenhum gene (ou genes) específico para o TDAH tenha sido encontrado, os especialistas em TDAH agora informam regularmente sobre como existe um elemento genético que contribui para sua “hereditariedade”. A Declaração de Consenso Internacional da Federação Mundial de TDAH, que foi publicada em setembro de 2021, afirmou que existe uma “causa poligênica para a maioria dos casos de TDAH, o que significa que muitas variantes genéticas, cada uma tendo um efeito muito pequeno, se combinam para aumentar o risco do transtorno. O risco poligênico para TDAH está associado à psicopatologia geral e a vários transtornos psiquiátricos”.
Um estudo de 2010 publicado na The Lancet é frequentemente citado como prova deste componente “poligênico”. O estudo comparou os exames de genoma inteiro de 366 crianças diagnosticadas com TDAH com os de 1047 crianças não portadoras de TDAH. Em um comunicado de imprensa, os autores do estudo afirmaram “agora podemos dizer com confiança que a TDAH é uma doença genética e que os cérebros de crianças com esta condição se desenvolvem de forma diferente dos de outras crianças”.
Crianças portadoras de TDAH, se o comunicado à imprensa for para acreditar, tinham sido encontradas com anormalidades genéticas que não estavam presentes em crianças “normais”. Mas, como o psiquiatra britânico Sami Timimi escreveu em seu livro Insane Medicine, que foi serializado no Mad in America [igualmente no MIB], os dados reais não sustentavam essa conclusão.
Os pesquisadores relataram que 15,7% do grupo TDAH tinham “variantes do número de cópias” – partes anormais do código genético conhecido como CNV – em seus genomas, em comparação com 7,5% do grupo de controle. Isto significa que 84% do grupo TDAH não possuía esta anormalidade poligênica, quer dizer que esta anormalidade, na verdade, não era característica daqueles assim diagnosticados.
Um artigo de 2017 em Genoma Medicine é exemplar de pesquisa que levou à segunda parte da alegação genética, que é a de que existe uma anormalidade poligênica comum aos transtornos neuropsiquiátricos. No estudo, um grupo internacional de investigadores relatou ter encontrado CNVs em dois genes (DOCK8/KANK1) de modo significativo mais frequentemente naqueles diagnosticados com TDAH e quatro outros transtornos psiquiátricos do que nos controles saudáveis. Isto era uma evidência, escreveram, de um “componente genético comum envolvido na patogênese dos distúrbios neuropsiquiátricos”.
Aqui estão os dados para o grupo de TDAH. Dos 1.241 jovens da coorte do TDAH, quatro a 0,32% tinham CNVs nestes dois genes. Isso significou que 99,7% do grupo TDAH não apresentavam essa anormalidade genética. Entretanto, como apenas 0,1% do grupo de controle tinha esta anormalidade, os autores concluíram que os pacientes com TDAH tinham três vezes mais probabilidade de tê-la do que os controles saudáveis.
Os dados eram semelhantes para os outros quatro transtornos psiquiátricos. No total, apenas 32 das 7.849 pessoas com diagnóstico psiquiátrico tinham uma anormalidade CNV em seus genes DOCK8/KANK1 (0,4%). Havia um “odds ratio” aumentado de que esta anormalidade ocorria naqueles diagnosticados com transtornos psiquiátricos, mas que ocorria tão raramente que esta diferença não tinha sentido. Os cálculos da “odds ratio” foram um exemplo da ciência empregada para enganar, ao invés de informar.
As falhas com a pesquisa do volume cerebral são muito semelhantes. Os estudos envolvem a média de volumes em um grupo com TDAH em comparação com controles sem TDAH, e enquanto as diferenças de tamanho do efeito nestas comparações compostas são bastante pequenas, o que significa que há uma grande sobreposição nas curvas de distribuição de volumes para ambos os grupos, a pesquisa é citada como evidência de diferenças cerebrais em indivíduos com TDAH.
Em 2017, a Lancet publicou uma “meganálise” de tais estudos. Os 82 autores declararam que o maior conjunto de dados do gênero era o deles. A pesquisa foi composta de exames de ressonância magnética que mediram volumes cerebrais em 1.713 pessoas diagnosticadas com TDAH e 1.529 controles, tendo esta pesquisa sido realizada em 23 locais ao redor do mundo. Foi um estudo definitivo e eles declararam que os indivíduos com TDAH tinham cérebros menores do que o normal.
“Os dados de nossa análise altamente potente confirmam que os pacientes com TDAH têm cérebros alterados e, portanto, que o TDAH é uma desordem do cérebro”, escreveram eles. “Esta mensagem é clara para os clínicos transmitirem aos pais e pacientes, o que pode ajudar a reduzir o estigma de que o TDAH é apenas um rótulo para crianças difíceis e causado por uma paternidade incompetente”.
As manchetes na CNN, Newsweek, WebMD e outros meios de comunicação fizeram eco desta afirmação. “O estudo descobre que os cérebros dos portadores de TDAH são menores”, escreveu a Newsweek.
Entretanto, esta conclusão foi desmentida pelos tamanhos de efeito que os pesquisadores relataram para as várias comparações de volume cerebral. O tamanho do efeito D do Cohen variou de 0,01 a 0,19, o que significa que a distribuição dos volumes cerebrais nos dois grupos, em comparação após a comparação, foi quase idêntica. O tamanho do efeito para “volume intracraniano” foi de 0,1, o que está representado no gráfico abaixo:
Com um tamanho de efeito de 0,1, há uma sobreposição de 96% entre os dois grupos. Escolha um indivíduo aleatório diagnosticado com TDAH no estudo, e haveria 47% de chance de ele ou ela ter um cérebro maior do que a mediana do grupo de controle (e 53% de chance de ter um cérebro menor do que a mediana).
Embora tal pesquisa seja facilmente desconstruída, é a conclusão tirada pelos autores o que entra na base de evidências da TDAH. Estas conclusões são então incorporadas em declarações de consenso, livros didáticos médicos, diretrizes clínicas e informações fornecidas ao público leigo.
Aqui está uma amostra deste processo:
A Declaração de Consenso Internacional da Federação Mundial de TDAH: “Descobertas da genética ou imagens do cérebro . . indicam um conjunto consistente de causas para o transtorno”.
A Academia Americana de Psiquiatria da Criança e do Adolescente: “O TDAH é um distúrbio cerebral. Os cientistas demonstraram que existem diferenças no cérebro das crianças com TDAH . . Pesquisas têm mostrado que algumas estruturas no cérebro de crianças com TDAH podem ser menores que aquelas áreas do cérebro de crianças sem TDAH”.
Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças: “Embora as causas exatas do TDAH não sejam conhecidas, as pesquisas mostram que os genes desempenham um papel”.
WebMD: “Os especialistas não têm certeza do que causa o TDAH”. Várias coisas podem levar a ele, incluindo . . . genes, produtos químicos, alterações cerebrais” (e mais).
A causa principal desta desinformação é que desde que o DSM-III foi publicado, os pesquisadores psiquiátricos têm procurado identificar causas biológicas para TDAH, e com este impulso em jogo, eles têm regularmente deturpado os seus próprios dados. Diferenças de grupos muito pequenas em comparação aos controles são representadas como anormalidades encontradas em indivíduos diagnosticados com TDAH, embora os dados do estudo, quando analisados corretamente, mostrem que isso não é verdade.
De fato, uma vez analisados os dados, eis a constatação que fica clara: Décadas de pesquisa sobre a “biologia” da TDAH não conseguiram encontrar nenhuma patologia que fosse característica de crianças individuais assim diagnosticadas. A busca por desequilíbrios químicos, genes de TDAH e anormalidades de volume cerebral, tudo isso se revelou negativo. Quaisquer diferenças de grupo relatadas nos estudos genéticos e de volume cerebral foram bastante pequenas e mostraram que a maioria das crianças com TDAH estava dentro dos limites “normais”.
O TDAH pode ser diagnosticado de forma confiável
A declaração da psiquiatria de que o TDAH tem fundamentos genéticos e biológicos leva à conclusão de que é um transtorno distinto que pode existir em crianças em idade pré-escolar (ou é um transtorno presente no nascimento que se manifestará à medida que a criança se desenvolve). Entretanto, para que a prescrição de metilfenidato seja considerada “baseada em evidências”, uma segunda conclusão deve ser tirada, que é que esta doença distinta pode ser diagnosticada de forma confiável em pré-escolares. Caso contrário, tais práticas de prescrição não teriam uma justificativa médica e o tratamento de crianças pequenas que poderiam não ter esta condição com um estimulante poderia ser visto como causando grandes danos.
O National Drug Intelligence Center [Centro Nacional de Inteligência sobre Drogas] até mesmo faz esta observação: o metilfenidato só é seguro quando prescrito “para uma condição médica legítima”. Caso contrário, deve ser considerado uma droga de abuso, que pode causar “episódios psicóticos, complicações cardiovasculares e grave vício psicológico”.
Como é sabido, não há marcador biológico para o diagnóstico de TDAH. Desde o seu início, o diagnóstico tem sido feito com base em uma avaliação do comportamento – desatenção, impulsividade e hiperatividade – dito como sendo sintomas do transtorno. Os critérios específicos para o diagnóstico foram alterados a cada nova versão do DSM, com cada volume atualizado facilitando a realização do diagnóstico. Os estudo de prevalência refletem esta expansão, com a porcentagem de jovens que dizem ter TDAH aumentando de 3% no início dos anos 80 para 5% após a publicação do DSM-IV em 1994, e para 10% na era DSM-5.
Enquanto os novos critérios e estudos de prevalência falam de um diagnóstico que é um constructo social, ao contrário de uma doença encontrada na natureza, a comunidade profissional de TDAH tem mantido firmemente que é um transtorno “real” que pode ser diagnosticado de forma confiável. O campo criou uma base de evidência para esta crença, em grande parte através do uso de escalas de classificação para medir os sintomas estabelecidos no DSM.
A psiquiatria, naturalmente, criou escalas de classificação para todos os seus principais transtornos, que quantificam a pontuação dos sintomas e, assim, emprestam uma aura de objetividade científica aos diagnósticos. As escalas de classificação também podem ser usadas para traçar uma linha teórica separando aqueles que atendem aos critérios para o transtorno e aqueles que não atendem, que é como as escalas de classificação do TDAH são usadas.
Uma dessas ferramentas é a escala de classificação SNAP-IV Teacher and Parent Rating Scale, que foi criada depois que o DSM-IV foi publicado. O questionário TDAH lista nove comportamentos relacionados ao domínio “desatenção” e nove comportamentos relacionados ao domínio “hiperatividade impulsiva”, com o pai ou professor classificando a presença do comportamento em uma escala de 0 a 3 (0 = nada, 1 = um pouco, 2 = bastante, 3 = muito).
A escala possível de pontuação é de 0 a 27 para cada um dos dois subtipos. As diretrizes da SNAP definem pontuações inferiores a 13 como “não clinicamente significativas” e as pontuações acima dessa linha de demarcação são categorizadas como sintomas leves, moderados ou graves de TDAH. Aqui está a tabela de pontuação do SNAP:
- Não clinicamente significante: < 13
- Sintomas suaves: 13 – 17
- Sintomas moderados: 18 – 22
- Sintomas graves: 23 – 27
Outra ferramenta desse tipo é a escala de avaliação Vanderbilt. Hoje, um pai ou professor pode ir online, responder perguntas relacionadas à freqüência dos sintomas e desempenho de uma criança na escola, apertar o botão “calcular” e imediatamente saber se a criança “atende aos critérios” para o transtorno e os seus vários subtipos. É um “sim” ou “não”.
Quando a SNAP, o Vanderbilt e outras escalas de classificação TDAH foram introduzidas, outros pesquisadores avaliaram então a sua “confiabilidade” e “validade”. Estas avaliações são difíceis de entender, mas as metodologias são discutidas, os números são reunidos, tabelas de estatísticas são publicadas, e uma conclusão é tirada sobre os méritos das escalas. Uma revisão de 2003 publicada no Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry deu a todos elas excelentes notas: TDAH “as escalas de classificação podem medir de forma confiável, válida e eficiente os sintomas de TDAH baseados no DSM-IV em jovens”, escreveram os autores. “Elas têm grande utilidade na pesquisa e no trabalho clínico”.
As escalas de classificação desenvolvidas após a publicação do DSM-IV, em 1994, foram consideradas úteis para medir os sintomas em crianças em idade escolar. O pensamento naquela época no final dos anos 90, início dos anos 2000 – era que o TDAH não podia ser diagnosticado de forma confiável em crianças em idade pré-escolar, pois mesmo crianças de três anos “normais” eram frequentemente desatentas, impulsivas e corriam como se tivessem motores dentro delas. Mas então os médicos começaram a receitar medicamentos estimulantes para crianças com problemas de comportamento, e isso levou ao lançamento da Escala de Classificação de TDAH IV, Versão Pré-escolar.
Esta escala é semelhante em espécie ao SNAP-IV, com 18 questões pontuadas em uma escala de 0 a 3. As pontuações são compiladas para o subtipo desatenção, subtipo hiperatividade/impulsividade e tipo composto. O corte para sintomas “sugestivos” de TDAH é a marca do percentil 93%, ou seja, as pontuações nos primeiros 7% são vistas como preenchendo os critérios para um diagnóstico.
Embora as escalas de classificação não devam ser usadas para se fazer um diagnóstico, é dito que elas identificam crianças que precisam ser encaminhadas a um psiquiatra para uma avaliação diagnóstica. As escalas numéricas promovem um entendimento, que permeia a literatura médica, de que há crianças “com TDAH” e crianças “sem TDAH”, uma descrição que sinaliza que não há espaço entre elas. Uma criança ou tem o transtorno “neurológico” ou não tem.
Em 2002, Russell Barkley e outras figuras proeminentes no mundo do TDAH publicaram uma “Declaração de Consenso Internacional sobre TDAH” que deixou este ponto claro. As evidências de que a TDAH era uma “condição médica real”, escreveram, eram tão abundantes que questionar a sua validade equivalia a “declarar a terra plana, as leis da gravidade discutíveis, e a tabela periódica em química uma fraude”.
A Declaração de Consenso da Federação Mundial Internacional, recentemente publicada, fez uma afirmação semelhante, embora em linguagem mais moderada. O TDAH é um ” transtorno válido” e o fato de poder ser diagnosticado de forma confiável é parte essencial da evidência que estabelece a sua validade. “Profissionais bem treinados em diversos ambientes e culturas concordam sobre sua presença ou ausência usando critérios bem definidos”, escreveram eles.
Entretanto, assim como a pesquisa genética e de volume cerebral pode ser facilmente desconstruída, também esta afirmação de que o TDAH é uma doença distinta que pode ser diagnosticada de forma confiável. A pretensão é evidente por si mesma.
Enquanto as escalas podem gerar uma pontuação final, a avaliação dos sintomas é um exercício subjetivo. Quando é que a “dificuldade de organizar tarefas e atividades” de uma criança cai na categoria “muitas vezes”, em oposição à categoria “muito frequentemente”? Quando a categoria “fala excessivamente” passa da categoria “às vezes” para a categoria “muitas vezes”? A pontuação muda dependendo da caixa que os pais ou professores verificam.
Mais ainda, as pontuações caem em um espectro, e então os números de corte são arbitrariamente traçados para distinguir aqueles que “têm” sintomas sugestivos de TDAH e aqueles que não têm. O corte deve ser um desvio padrão acima da média? Se sim, isto significará que 16% de todas as crianças terão pontuações no limite extremo do espectro, e assim terão sintomas sugestivos de TDAH. Ou o corte deve ser de 1,5 desvios padrão acima da média? Se assim for, isto resultará em 6,5% de todas as crianças “atendendo aos critérios” para TDAH. As linhas de corte utilizadas nas escalas de classificação de TDAH variam, com a maioria das crianças desenhando um corte dentro desta faixa de 1 a 1,5 desvios padrão acima da média.
Nada disso diz respeito a uma doença encontrada na natureza. A avaliação dos sintomas é um exercício subjetivo, as pontuações dos sintomas caem na curva de distribuição, e então uma linha – em algum lugar ao longo dessa curva de distribuição – é arbitrariamente definida para identificar aqueles que atendem aos critérios para o transtorno.
No entanto, é o pretexto – de que o TDAH é um transtorno neurológico distinto que pode ser diagnosticado de forma confiável – que rege a literatura médica e a mente do público. Artigos em revistas médicas falam regularmente de “crianças com TDAH” e crianças “sem TDAH”.
Esta mentalidade está em exibição no editorial da JAMA. O título é “Comparação de tratamentos medicamentosos para crianças em idade pré-escolar com TDAH”. A primeira palavra no editorial reifica então esse entendimento. A autora não fala de um aumento no diagnóstico de TDAH em pré-escolares, mas sim de como o reconhecimento da TDAH em pré-escolares tem aumentado.
Essa é uma diferença na escolha de palavras que revela tudo. E estabelece a tabela para que o campo declare que a prescrição de estimulantes para crianças em idade pré-escolar é uma coisa útil a ser feita.
O Estudo de Tratamento de TDAH na Pré-escola (PATS)
A ciência analisada acima, se interpretada de forma imparcial, conta como o TDAH é um constructo social de diagnóstico que agrupa crianças com certos comportamentos que comprometem a sua capacidade de funcionar em certos ambientes (pelo menos aos olhos dos professores e dos pais). A biologia que pode estar associada a tais comportamentos é desconhecida, e nenhuma anomalia biológica específica – genética ou cerebral – foi encontrada que seja comum a todos aqueles assim diagnosticados. Há uma curva de distribuição nas classificações de comportamentos que dizem ser característicos da TDAH, e aqueles assim diagnosticados caem no extremo oposto dessa curva.
Com essa concepção, decorrente de quarenta anos de pesquisa, uma possível resposta da sociedade seria ver se a mudança do ambiente da criança poderia ser útil, o que poderia incluir a criação pela sociedade de ambientes mais estimulantes para todas as crianças. O problema não está necessariamente dentro da criança, mas surge da resposta da criança ao seu ambiente. A sociedade poderia ver a “prevalência” do transtorno como um marcador de angústia na sociedade. Entretanto, o entendimento de que o TDAH é um transtorno distinto, caracterizado por anormalidades genéticas e cerebrais, e que este transtorno pode ser diagnosticado de forma confiável, leva à conclusão de que uma intervenção médica é justificada.
Embora o tratamento comportamental possa ser a intervenção inicial oferecida aos pré-escolares, quando se diz que um transtorno está dentro do indivíduo, o tratamento medicamentoso rapidamente se torna uma intervenção, particularmente quando um medicamento é considerado “seguro e eficaz”. O Estudo de Tratamento TDAH pré-escolar (PATS) do NIMH, que foi realizado no início dos anos 2000, é citado como fornecendo evidências para prescrição de metilfenidato a esta faixa etária.
Os critérios de inclusão exigiriam que os bebês tivessem uma pontuação acima do percentil 93 na escala de classificação Conners Parent e Teaching para TDAH (1,5 desvios padrão acima da média). Havia 303 pré-escolares matriculados no estudo, que tinha um projeto complicado de várias fases.
Aqui estão os resultados de cada fase do estudo:
- Treinamento de pais e mães: Antes das 303 crianças terem sido expostas ao metilfenidato, os pais receberam um curso de 10 semanas de treinamento de pais, e se uma criança melhorasse significativamente durante este período, a criança não continuaria para a próxima etapa do estudo. Muitos pais também abandonaram o estudo durante este período. Restaram 183 pré-escolares que entraram nas fases de teste de drogas do estudo.
- Teste de tolerabilidade: As 183 crianças passaram por quatro semanas de tratamento com rótulo aberto para ver se podiam tolerar a droga, e aquelas que não podiam, como evidenciado por seus efeitos adversos, foram retiradas do estudo. Catorze crianças foram descontinuadas durante esta fase.
- Avaliação de uma resposta de “melhor dose”: 165 crianças iniciaram um estudo de “titulação” de cinco semanas. Cada semana, uma criança receberia uma dose diferente de metilfenidato administrada três vezes por dia (1,25 mg, 2,5 mg, 5 mg e 7,5 mg), com a quinta semana uma dose de placebo. Ao final de cada semana, pais e professores avaliaram os sintomas das crianças em duas escalas de classificação para verificar como elas haviam se saído durante os sete dias daquele tratamento em particular.
Os pesquisadores relataram que houve diminuições significativas nos sintomas de TDAH durante as semanas em que os bebês estavam em uma dose de 2,5 mg, 5 mg, ou 7,5 mg de metilfenidato, em comparação com a semana em que receberam placebo. Apenas a dose de 1,25 não proporcionou este benefício. Os tamanhos de efeito para as três doses “eficazes” foram pequenos, com um tamanho de efeito de 0,43 para a dose diária de 15 mg considerada a “dose ideal” de metilfenidato para esta faixa etária.
Durante as cinco semanas, os cinco principais eventos adversos relatados espontaneamente pelos pais foram: diminuição do apetite, explosões emocionais, dificuldade em adormecer, irritabilidade e comportamentos ou pensamentos repetitivos. Estes eventos adversos ocorreram com mais frequência durante as semanas em que elas tomaram metilfenidato do que durante a semana em que tomaram placebo.
- 4. Fase de aleatorização: Após o ensaio de titulação, o cego foi quebrado para identificar a dose específica de metilfenidato que a criança tinha feito melhor (ou se a criança tinha melhorado acentuadamente durante a semana de tratamento com placebo). Então, após uma interrupção de 24 horas, as 114 crianças ainda no ensaio foram aleatorizadas para sua “melhor dose” de metilfenidato ou para placebo. O resultado primário foi “excelente resposta” ao final de quatro semanas, conforme medido na escala SNAP. Vinte e um por cento da coorte de metilfenidato obteve essa resposta em comparação com 13% do grupo de placebo, uma diferença que não foi estatisticamente significativa. Apenas 77 dos 114 terminaram as quatro semanas de tratamento.
- Manutenção do rótulo aberto: Todas as crianças inscritas nas fases de metilfenidato do estudo foram elegíveis para 10 meses de tratamento com rótulo aberto, com esta fase destinada a avaliar a “segurança e tolerabilidade” a longo prazo do metilfenidato. Cento e quarenta crianças entraram neste estudo, com a porcentagem sofrendo vários eventos adversos mapeados no início dos 10 meses e novamente no final, com o pensamento de que a porcentagem diminuiria à medida que os pré-escolares se acostumassem mais com o medicamento. A tabela abaixo detalha os resultados:
Além disso, das 95 crianças que permaneceram com metilfenidato durante os 10 meses, as taxas de crescimento anual foram 20% menores do que o esperado, e o ganho de peso foi 52% menor do que o esperado.
Desconstruindo o PATS
Uma vez que o julgamento PATS é detalhado desta forma, que conclusões podem ser tiradas? A primeira é que os pais de 120 dos 303 pré-escolares matriculados no ensaio clínico decidiram – após a fase de treinamento dos pais – não expor os seus filhos ao metilfenidato. Isso é 40% de todos os pais. A segunda é que a eficácia do metilfenidato, em uma medida de resultado primário, só aparece durante o ensaio de titulação de cinco semanas, que envolvia a comparação da redução dos sintomas de TDAH durante as semanas em que as crianças estavam em uso de metilfenidato com a semana em que elas foram trocados para placebo.
A terceira é que o ensaio de titulação foi tendencioso pelo desenho do projeto contra placebo. O período de placebo começou com a retirada abrupta dos bebês de qualquer dose de metilfenidato que estivessem tomando, e dado que estudos de descontinuação do metilfenidato descobriram que os sintomas comportamentais frequentemente pioram rapidamente após a retirada abrupta, era de se esperar que o comportamento de muitos dos bebês se deteriorasse durante os seus sete dias de uso do placebo.
No entanto, mesmo com este desenho tendencioso, na dose diária de 15 mg que foi considerada ótima, o “tamanho do efeito” foi de apenas 0,43. Com este tamanho de efeito, o número necessário para tratar é 7. Seria necessário tratar sete pré-escolares com metilfenidato para produzir um resultado favorável adicional (em termos de redução dos sintomas.) Os outros seis foram expostos aos perigos do medicamento sem nenhum benefício além do placebo.
A quarta é que não há evidência em nenhum lugar neste ensaio dos pré-escolares tratados com metilfenidato funcionando melhor. No estudo da fase paralela, o resultado primário foi alcançar uma “excelente resposta”, o que presumivelmente levaria a um melhor funcionamento, mas não houve diferença estatisticamente significativa entre a “melhor dose” do medicamento e o placebo. De fato, dos 183 bebês que foram expostos ao metilfenidato, havia apenas 13 já descritos como tendo uma “excelente resposta” enquanto estavam usando a droga.
Enquanto isso, os bebês que tomavam metilfenidato frequentemente sofriam de eventos adversos moderados a severos, e a fase de manutenção de 10 meses contou sobre os bebês que, apesar de serem tratados com metilfenidato, eram muitas vezes carentes, propensos a chorar, a grudar na pele, tendo dificuldade para dormir, preocupados e sem muito apetite. Ao final de 10 meses, eles estavam notoriamente com menor tamanho e mais leves do que normalmente teria sido.
A falha na medicina baseada em evidências
A linha de base – conclusão retirada deste estudo – que o metilfenidato é um tratamento seguro e eficaz para pré-escolares diagnosticados com TDAH, revela uma falha que é alimentada na prescrição “baseada em evidências” de medicamentos. Se um estudo descobrir que um medicamento produz uma redução maior dos sintomas do que placebo, com a diferença “estatisticamente significativa”, então é considerado um tratamento eficaz para a doença relacionada, e regularmente prescrito a todos aqueles assim diagnosticados. Mas esse ponto final – redução de sintomas melhor que placebo – é apenas um ponto de dados entre muitos produzidos em um ensaio de um medicamento, e um exame dessa coleta mais ampla de dados é necessário para avaliar seu provável impacto geral sobre um grupo de diagnóstico.
O que você encontra no ensaio PATS é o seguinte:
- Muitos bebês aparentemente melhoraram com o treinamento dos pais como uma primeira intervenção.
- Das 183 crianças expostas ao metilfenidato em algum momento durante o estudo, 21 “interromperam o tratamento por causa de eventos adversos intoleráveis ao metilfenidato”.
- O tamanho do efeito na redução dos sintomas durante a fase de titulação foi pequeno, de tal forma que a uma dose diária ótima de 15 mg, seis de sete crianças de colo tratadas com metilfenidato sofreram os efeitos adversos do medicamento sem nenhum benefício adicional além do placebo na redução dos sintomas de ADHD.
- No ensaio aleatório de quatro semanas, apenas 21% tiveram uma excelente resposta ao medicamento, em comparação com 13% no grupo de placebo. Isto significa que se você medicasse 100 pré-escolares com metilfenidato, haveria apenas oito “excelentes respondedores” adicionais do que teria havido de outra forma.
- Efeitos adversos sobre o metilfenidato foram frequentes e informados de deterioração comportamental, particularmente na fase de manutenção de 10 meses.
- Ao final dos 10 meses, os bebês eram mais curtos e pesavam menos do que o normal.
Esta é a imagem que emerge de uma recapitulação de todos os dados. Se a gente fizer as contas, há apenas uma pequena porcentagem de pré-escolares – 10% a 15% – que poderia ser considerada como beneficiada pelo tratamento em termos de redução dos sintomas a curto prazo. Isso significa que 85% de todos os bebês tratados com metilfenidato experimentaram os efeitos adversos desse medicamento sem receber qualquer benefício adicional, um resultado líquido que informa sobre os danos causados.
No entanto, na medicina baseada em evidências, há um hiperfoco na redução dos sintomas, com até mesmo um pequeno tamanho de efeito considerado prova de eficácia, e foi assim que o ensaio PATS levou à conclusão de que o metilfenidato é um tratamento seguro e eficaz para crianças pequenas diagnosticadas “com TDAH”. Como afirma o editorial da JAMA, a Academia Americana de Pediatria recomenda o metilfenidato como “farmacoterapia inicial para crianças em idade pré-escolar porque é o medicamento com maior evidência de eficácia e segurança nesta faixa etária”.
Uma nota final sobre o ensaio PATS: no relatório publicado sobre os resultados da segurança e eficácia, os autores revelaram coletivamente 72 “relações” com empresas farmacêuticas, com os fabricantes de medicamentos TDAH de destaque na lista de revelações.
O acompanhamento do PATS: Uma Infância sobre Drogas
Mesmo com a fase de manutenção de 10 meses, o ensaio PATS não forneceu informações sobre como a vida dessas crianças se desenvolveu a longo prazo, uma vez que elas foram diagnosticadas como “tendo TDAH”. Entretanto, os investigadores do PATS realizaram duas avaliações de acompanhamento do uso contínuo de medicamentos, aos três e seis anos, e os resultados são desoladores.
Aqui estão os resultados:
Os resultados falam de infância roubada. Essas crianças foram diagnosticadas com TDAH quando eram pré-escolares e isso transformou dois terços delas em pacientes mentais persistentes que cresceram constantemente com medicamentos psiquiátricos. Em seus dez aniversários, este grupo não teria memória de estar vivo sem os efeitos de alteração mental das drogas psiquiátricas.
O que nos leva à próxima pergunta: Que destino as aguarda na adolescência e na vida adulta? Embora existam longas listas de efeitos adversos associados ao uso a longo prazo de estimulantes e outras drogas psiquiátricas, que coletivamente falam de saúde física e desenvolvimento social prejudicados, há uma ausência de uma boa pesquisa sobre como tais drogas podem alterar fundamentalmente o desenvolvimento cerebral ao longo do tempo. Entretanto, houve estudos com animais estudando os efeitos e esses estudos soaram como um alarme.
Por exemplo, descobriu-se que a exposição repetida a estimulantes fez com que os macacos rhesus exibissem “comportamentos aberrantes” muito depois que a exposição às drogas havia parado. Ratos pré-adolescentes tratados com estimulantes se movimentavam menos quando adultos, eram menos sensíveis a ambientes novos e mostravam um “déficit no comportamento sexual“. Tais descobertas levaram pelo menos alguns investigadores a concluir que os estimulantes podem danificar o “sistema de recompensa” do cérebro e, portanto, a uma preocupação de que medicar uma criança pode produzir um adulto com uma “capacidade reduzida de experimentar prazer“.
Comportamentos aberrantes, um déficit no comportamento sexual, uma capacidade reduzida de experimentar o prazer … se estes estudos com animais forem algum guia, os pré-escolares prescritos com estimulantes para TDAH, que então permanecem com este medicamento à medida que crescem, terão vidas nitidamente diminuídas como adultos devido a esta “intervenção médica”.
O resultado final
O editorial JAMA foi ocasionado por um relatório, baseado em uma revisão retrospectiva dos registros de saúde pediátrica, que comparou os riscos e benefícios da guanfacina com o metilfenidato quando prescrito a pré-escolares diagnosticados com TDAH. Os autores relataram que ambos os medicamentos levaram a melhorias na maioria das crianças “com diferentes perfis de efeitos adversos”.
O editorial que acompanhou o artigo relata como este foi um “primeiro passo para abordar uma lacuna crítica” na base de evidências para o tratamento de TDAH na pré-escola. Ambos os medicamentos estão agora sendo prescritos rotineiramente para crianças pequenas e, argumentou o editorial, seria importante determinar qual classe de medicamentos deveria ser a preferida para o tratamento desta faixa etária. Ensaios clínicos aleatórios comparando guanfacina com metilfenidato seriam um próximo passo vital na base de evidências que suportam tal prescrição.
O editorial suscitou uma questão diferente, investigada neste relatório Mad in America: Como a comunidade médica chegou a pensar que prescrever estimulantes aos pré-escolares diariamente seria uma coisa útil a fazer? Qual é a composição da “base de provas” que poderia levar a tal prática? Embora se possa ser cético quanto às motivações daqueles que constroem a base de evidências, a motivação dos pediatras que a seguem, prescrevendo metilfenidato de maneiras recomendadas pelas diretrizes de cuidados clínicos, não está sujeita a tal ceticismo. Os pediatras escolhem essa especialidade porque querem ser promotores da saúde dos recém-nascidos e dos jovens.
Assim, o foco deste relatório MIA é como a medicina “baseada em evidências”, particularmente quando construída no domínio científico da psiquiatria, pode fazer mal. Neste caso, se encontra uma história de pesquisadores que procuram encontrar evidências de uma doença, que poderiam então ser usadas para validar uma construção de diagnóstico elaborada por uma corporação médica, tirando conclusões que não foram apoiadas pelos dados. Entrou-se na “base de evidências”, e então veio a falha fatal regularmente preparada por conclusões tiradas de ensaios clínicos, que é que uma leve redução dos sintomas se traduz em evidência de um medicamento “seguro e eficaz”, mesmo que a maioria dos pacientes possa não estar recebendo nenhum benefício. Dessa forma, se acaba tendo uma “base de provas” para prescrever estimulantes diariamente a uma criança de três anos de idade.
Há uma outra forma de o medicamento “baseado em evidências” falhar neste caso. Nunca há qualquer consideração sobre uma questão fundamental: Que direitos tem a criança? Os pré-escolares estão na primeira etapa de sua viagem ao misterioso mundo da vida, e se existe um aspecto existencial essencial para crescer, é a experiência de lutar para conhecer a sua própria mente, a sua própria composição essencial, e como parte dessa luta, de ganhar algum controle sobre o seu comportamento. Como diz o ditado, a gente quer ver o que a gente pode fazer de si próprio. A medicamentação dos pré-escolares, com essa medicamentação se tornando uma constante e muitas vezes evoluindo para a polifarmácia quando eles estão na escola elementar, rouba a eles esse futuro.
Essa é uma história de uma grande tragédia, de perda existencial, e ainda hoje, na medicina americana, é recomendado como um tratamento baseado em evidências para os 2,6% dos pré-escolares – isto é, um em cada 38 – que dizem “ter TDAH”. Os leitores podem decidir se esta é uma história de medicina “baseada em evidências”, permitindo uma prática que, sem esse brilho da ciência, poderia legitimamente ser descrita como abuso infantil.