COVID-19 está deixando todo mundo louco?

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A pandemia de coronavírus tem oferecido uma oportunidade de ouro para alguns psicoterapeutas, para entidades financiadas pelas grandes empresas farmacêuticas e outros que soaram um alarme, afirmando que um grande número de pessoas está “mentalmente doente” por causa do medo do vírus e das reações ao distanciamento social.

Os produtores de mídia promoveram esses avisos em maio, que foi considerado o mês da conscientização em saúde mental. Um artigo recente do Washington Post intitulado “Um terço dos americanos agora mostra sinais de ansiedade clínica ou depressão, Census Bureau descobre em meio à pandemia do coronavírus”, fez essa afirmação. E em um artigo recente do New York Times, o psicólogo Andrew Solomon, relatando dados de que quase metade dos entrevistados disse que a pandemia prejudicou a “saúde mental” deles, chocantemente equiparou isso a doenças mentais que se tornaram uma “realidade universal”.

Em um comunicado de imprensa de 5 de junho, a Associação Psiquiátrica Americana (APA), um grupo de lobby dos psiquiatras, relatou um aumento de transtornos psiquiátricos durante a pandemia, com base em uma ferramenta de triagem anônima on-line. Sem qualquer base científica, as ferramentas de triagem que supostamente informam ao participante do teste se ele tem uma “doença mental”, incluindo esta outra Mental Health America (MHA) tool, geralmente são baseadas em uma lista de sentimentos e dificuldades que a maioria das pessoas sente às vezes, e nos pontos de corte que eles fornecem para quando se deve procurar uma ajuda profissional.

Esta ferramenta inclui instruções para se fazer o teste deles de Depressão, quando se está a sentir uma tristeza avassaladora. Queremos realmente chamar de doença mental à tristeza avassaladora em resposta ao isolamento, ao medo e ao futuro desconhecido ocasionados pela pandemia? Eles dizem para se fazer o teste deles de Ansiedade, se a preocupação e o medo estiverem afetando o seu funcionamento diário. Quem hoje em dia não se preocupa se a máscara está adequada, se lavou o suficiente as mãos várias vezes e em água quente, se deve ficar longe de um parente idoso e querido por medo de comunicar o vírus e, assim, aumentar a solidão ou ir embora vê-los usando máscara e luvas e mantendo um metro e meio de distância, mas ainda preocupados, porque descobriremos mais tarde que um metro e meio de distância não foi suficiente?

Tais afirmações prometem uma vasta expansão do mercado para os terapeutas, mas carregam um grande potencial de dano, aumentando os fardos das pessoas com sentimentos profundamente perturbadores, mas compreensíveis e essencialmente humanos, informando-os de que o que têm são transtornos psiquiátricos. Qualquer pessoa que tenha sentimentos perturbadores merece amor, ajuda, compreensão e apoio, seja da família e dos amigos ou, se preferir, do clero ou dos terapeutas. Mas as pessoas também merecem saber sobre os perigos de classificar todos os transtornos como ‘doença mental’.

Existem dois significados comuns para o termo “caixa preta” e ambos se aplicam aqui. Um significado vem dos avisos da Food and Drug Administration (FDA) para alertar os consumidores sobre os perigos em potencial de um produto, porém as pessoas deveriam igualmente ser alertadas para não se apressarem em chamar o seu transtorno de  “doença mental”.

Quando as pessoas estão lutando, sofrendo ou respondendo de maneiras incomuns, frequentemente temem que os seus sentimentos signifiquem que estão “doentes mentais” e que deveriam estar “se saindo melhor” do que estão. Uma das coisas mais úteis que os terapeutas podem fazer é que eles saibam que seus sentimentos são reações profundamente humanas, não sinais de doença.

Uma análise cuidadosa de quatro fatos deixa claro que é necessária cautela antes de patologizar as reações à pandemia atual:

  • Pouco se sabe sobre o COVID-19 ou sobre como se proteger dele, e seus efeitos podem ser fatais; portanto, sentir-se confuso, assustado – mesmo aterrorizado, impotente e desamparado – não deve ser classificado como transtornos psiquiátricos, mas como reações normais e compreensíveis a eventos extremamente incomuns.
  • Como observa a poeta Heather McHugh, em nossas vidas diárias, em circunstâncias comuns, tendemos a evitar “o nosso terror fundamental com as nossas próprias mortes”, mas a concentração com a pandemia de tantas mortes ao mesmo tempo e o fato de que nossa própria morte é agora mais provável que seja iminente “pesa sobre nós o fardo do conhecimento da mortalidade”. McHugh cita o poema de Audre Lorde, “Uma ladainha pela sobrevivência”, que termina com a frase “nunca fomos destinados a sobreviver”. De repente, ser confrontado com algo tão aterrorizante para muitas pessoas, que frequentemente é um choque para a consciência, isso é por si próprio muito desorientador: a fuga não funciona tão bem agora, então como começar a encontrar outras maneiras de lidar com a nossa mortalidade?
  • O isolamento físico de outras pessoas interrompe a participação na comunidade que comprovadamente é curativa; e as políticas de distanciamento social e permanência em casa reduzem drasticamente a participação na comunidade. As conexões por meio de chamadas de zoom dispararam e podem ser úteis, mas têm desvantagens. Muitas incluem inúmeros participantes, que podem inibir conversas profundas sobre sentimentos e criação / manutenção de relacionamentos significativos. Além disso, há alguma tensão envolvida no monitoramento de quem está falando e quando é que é para entrar em ação, e isso exige energia extra para lembrar-se de ficar dentro do alcance da câmera, monitorar quando silenciar e ativar o som e projetar o suficiente para ser ouvido. Nenhuma chamada de zoom pode substituir o toque humano, o que promove segurança, felicidade e pertença. Ser incapaz de abraçar um ente querido sem medo de se contagiar ou transmitir o vírus interfere quando queremos ver pessoas com quem não vivemos – avós, pais idosos, netos, amigos, vizinhos.
  • Muitas pessoas estão lidando com o aumento da solidão, o alarme sobre a perda de empregos e a identidade do trabalho, novas crises financeiras e abuso de crianças ou cônjuges. Asiáticos e asiático-americanos têm sido alvo de discriminação e abuso por causa de alegações de que o COVID-19 se originou na China. Muitos afro-americanos e latino-americanXs e as pessoas em lares, prisões e hospitais psiquiátricos sabem que o risco de contrair o vírus é maior que o de outros, agravando o medo, o sofrimento e a raiva pelas razões do aumento do risco. O transtorno causado por qualquer uma dessas causas não deve ser chamado de doença mental. O mesmo se aplica aos profissionais de saúde que estão na linha de frente e a outros trabalhadores essenciais e pessoas que, de repente, tiveram que prestar cuidados constantes a famílias de todas as idades e educação para os filhos ou para aqueles que sofrem a morte de entes queridos. Assim como os veteranos militares traumatizados pela guerra ou vítimas de todas as formas de opressão e violência, a última coisa que essas pessoas precisam é que as suas reações sejam uma prova de que são psiquiatricamente transtornadas; e a mensagem de que elas deveriam saber como “lidar melhor” apenas aumenta o seu ônus.

Não é de admirar que tantas pessoas estejam se sentindo esgotadas!

As pessoas que sofrem emocionalmente com os efeitos do COVID-19 merecem ajuda, mas deve ser uma ajuda real, como aliviar os seus encargos econômicos, protegê-las da violência e aumentar o apoio da comunidade, incluindo todos nós, mostrando que estamos dispostos a ouvir o que elas estão passando e reconhecendo o quanto essas lutas são comuns. É importante ressaltar que devemos saber que o seu sofrimento não garante classificá-las como doentes mentais (como observa o psiquiatra Dainius Puras, relator especial da ONU).

Um padrão cada vez mais difundido é o salto para recomendar “terapia” ou “serviços de saúde mental” quando se chama atenção para o sofrimento humano. Isso se refere ao significado antigo de “caixa preta” como algo cujas entradas e saídas podem ser visualizadas, mas cujo funcionamento interno é desconhecido. Os termos “terapia” e “serviços” são caixas pretas, tão vagos que podem incluir toda a gama de bons e maus terapeutas e abordagens. Frequentemente, amigos e familiares bem-intencionados, e certamente legisladores, sentem que fizeram a sua parte enviando alguém para terapia ou votando para aumentar o financiamento de tais serviços, sem garantir que os terapeutas sejam atenciosos e eficazes ou que os serviços realmente ajudem. Alguns terapeutas são ótimos, e algumas abordagens classificadas como “serviços de saúde mental” ajudam algumas pessoas, mas alguns terapeutas causam danos.

Da mesma forma, as drogas psiquiátricas às vezes ajudam, mas muitas vezes prejudicam, e o seu uso rapidamente disparou na pandemia, talvez devido às pessoas que supõem que precisariam delas, mas que agora declinou para níveis pré-pandêmicos. Outras abordagens podem causar danos e alguns serviços realmente aumentam os suicídios. Além disso, assim que uma pessoa é diagnosticada como “doente mental”, seu próprio foco e o dos profissionais tendem a se desviar bastante das abordagens não patológicas, de baixo risco e sem risco, conhecidas por serem eficazes.

Mais de duas dúzias destes últimos recursos, como envolvimento nas artes, exercício físico, meditação, ter um animal doméstico, realizar trabalhos voluntários e ter um ouvinte, podem ser vistos aqui (estes são de uma conferência sobre veteranos, mas podem ser úteis para qualquer um) (veja também aqui). Mas entidades como a APA não tendem a mencionar essas abordagens, mas se concentram apenas na terapia e nos medicamentos, e a ferramenta de triagem do MHA que eles citam exorta as pessoas a procurar um profissional de saúde mental.

Lauren Tenney, Ph.D., psicóloga com experiência em trauma e violações de direitos humanos, diz que “as respostas emocionais que as pessoas estão tendo com as circunstâncias não naturais e traumáticas criadas pela pandemia não são sinais de suposta ‘doença mental’”. Ela enfatiza que as pessoas que estão “experimentando uma série de emoções fora de sua zona de conforto devem ver esses transtornos emocionais como reações naturais ao que se passa e tentar abraçar as profundezas dos sentimentos que o isolamento social pode criar”. Ela pede aos que estão sofrendo: “Trabalhe ativamente para se conectar com outras pessoas que estão tendo experiências semelhantes” e sugere que “as pessoas devem ser apoiadas na busca de resiliência diante das adversidades ambientais”.

Até o Google está entrando em ação, fazendo parceria com a Aliança Nacional para Doenças Mentais (NAMI) para publicar uma ferramenta de “auto-avaliação da ansiedade”. O anúncio da parceria incluiu a descrição do NAMI, que é fortemente financiado pela Big Pharma, como uma organização “de base”, e eles usam uma ferramenta baseada diretamente em uma descrição psiquiátrica da ansiedade e intitulada com o nome de um transtorno psiquiátrico. Além disso, eles “fornecerão acesso a recursos” – novamente a palavra caixa preta “recursos”, desenvolvida pela NAMI.

Uma fonte importante de confusão é que, quando os termos “problemas de saúde mental” ou “condições de saúde mental” são usados – em vez de, por exemplo, “transtorno emocional” ou “sofrimento” -, muitas vezes, eles são considerados “doença mental”. ” Como resultado, relatos da mídia de aumentos nos quais reações compreensíveis à pandemia são descritas como “problemas de saúde mental” são facilmente assumidas como indicativas de aumentos nos transtornos psiquiátricos. Para agravar a confusão, os transtornos psiquiátricos são amplamente – mas erroneamente – assumidos como entidades cientificamente validadas; portanto, diante das alegações de aumento da doença mental, raramente é feita a pergunta básica: “Mas a ‘doença mental’ não é definida cientificamente? e por quem tem o poder de defini-lo?” Em vez disso, é assumido que fica claro o que são “doenças mentais” e que elas estão surgindo.

Um exemplo é um anúncio recente de que a pandemia aumentará a “depressão pós-parto” e os “transtornos perinatais de humor e ansiedade”. A autora, psiquiatra, não chega nem perto de questionar a validade dessas categorias e simplesmente alega que elas são parcialmente causadas neurobiologicamente, e ela patologiza os medos totalmente razoáveis das gestantes que a pandemia provoca, apesar de reconhecer que os apoios sociais (mais difíceis de obter no era do coronavírus) são cruciais para prevenir o que seria chamado mais apropriadamente de isolamento, medo e tristeza pós-parto, em vez de transtornos psiquiátricos.

Curiosamente, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, alerta que a “pandemia está destacando a necessidade de aumentar urgentemente o investimento em serviços de saúde mental ou há o risco de um aumento maciço nas condições psiquiátricas nos próximos meses”, apesar de notar que fatores pandêmicos como “isolamento social, medo de contágio e perda de membros da família são agravados pelo sofrimento causado pela perda de renda e, muitas vezes, por perda do emprego”.

A psiquiatria da América tem sido tão eficaz que muitos profissionais e leigos assumem prontamente que o sistema tradicional de saúde mental pode e deve resolver todos os problemas emocionais. As evidências das limitações desse sistema incluem altas e crescentes taxas de suicídio e morte e altas e crescentes taxas de incapacidade a longo prazo das pessoas tratadas nesse sistema. Bons terapeutas – e leigos – podem ajudar a normalizar sentimentos e explorar maneiras úteis de lidar.

Mas a terapia não deve ser vista como a única opção ou como a que definitivamente ajudará. O que se provou útil para as pessoas que sofreram incluiu estar livre das pressões econômicas, pobreza, violência, opressão e atendimento médico inadequado; um lugar seguro para morar; e conexões humanas significativas. Até mesmo os autores de um artigo recente do British Medical Journal advertindo sobre um “tsunami” de “casos de saúde mental” observam que as pessoas mais em risco são aquelas com “meios de subsistência precários” e “saúde mais pobre” e, felizmente, alguns grupos estão assegurando às pessoas que sua perturbação é compreensível à luz das circunstâncias estranhas, novas, maciças e abruptamente alteradas e de ser arrancada de suas comunidades e fontes de apoio habituais.

Estudos controlados de abordagens destinadas a reduzir o sofrimento emocional são quase impossíveis de se  criar, mas um contraste interessante dos efeitos de uma abordagem tradicional e patológica e dos não patológicos é relatado em um artigo recente sobre duas regiões vizinhas de Ohio. Embora sejam necessárias mais informações a partir de contrastes semelhantes, o relatório desses dois é de interesse.

O Conselho de Saúde Mental do Condado de Richland, que incentivou o uso tradicional de linhas diretas de aconselhamento e crise, relata um aumento recente de suicídios. Nas proximidades, o diretor executivo do Conselho de Recuperação e Saúde Mental de Ashland, Steve Stone, cujo Conselho defende abordagens não patológicas, ou o que ele chama de “autocuidado” e “sistemas de apoio natural”, relata que seus serviços de crise não aumentaram e, em alguns aspectos, diminuíram ligeiramente , e não houve suicídios nem aumento de novas pessoas que procuram ajuda. Ele citou os programas de apoio de colegas como cruciais para manter seus números baixos, incluindo um grupo de costura, no qual os membros da comunidade fizeram centenas de máscaras faciais, e um grupo de redação que escreverá cartas para pacientes em hospitais estaduais durante a pandemia. Stone é citado como tendo dito que eles dependem muito pouco de programas estaduais e hospitalares, e ele “acha que a necessidade de serviços profissionais de saúde mental permanecerá baixa com base em abordagens de bom senso de pessoas que cuidam de si mesmas e umas das outras”.

Isso aumentará as tragédias causadas pela pandemia atual, se toda a esperança estiver focada no sistema de saúde mental e for desviada de muitas coisas que reduzem o sofrimento e o fazem sem chamar a atenção de todos que sofrem de doença mental.

Para pessoas “em risco de psicose”, antipsicóticos associados a piores resultados

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Os tranquilizantes neurolépticos comumente chamados de “antipsicóticos” são frequentemente usados como tratamento de primeira linha para aqueles considerados “em risco de psicose”, pois os prestadores de tratamento tentam evitar o agravamento dos sintomas psicóticos associados à esquizofrenia. No entanto, existem poucas evidências de que essa abordagem seja eficaz, e os medicamentos estão associados a muitos efeitos nocivos.

Em um novo estudo, publicado no Australian & New Zealand Journal of Psychiatry, os pesquisadores investigaram se os antipsicóticos poderiam impedir a “conversão à psicose” em pessoas identificadas como “clinicamente de alto risco (CHR) da psicose”.

Os pesquisadores descobriram que os antipsicóticos estavam consistentemente associados a piores resultados – taxas mais altas de “conversão à psicose” foram encontradas naqueles que tomaram os medicamentos, naqueles que tinham várias prescrições e naqueles que tomaram uma dose mais alta.

“A administração de antipsicóticos em pacientes com CHR é potencialmente prejudicial, sem benefícios preventivos. Não recomendamos tratamento antipsicótico para indivíduos com CHR, praticado amplamente na China, e aconselhamos cautela se esses medicamentos forem usados. ”

TianHong Zhang liderou a pesquisa na Faculdade de Medicina da Universidade Jiaotong de Xangai, na China.

O estudo

A pesquisa foi parte do julgamento do SHARP (ShangHai em risco de psicose). Quinhentos e dezessete participantes entre 13 e 45 anos foram identificados como “CHR” com base em critérios clínicos, a Entrevista Estruturada para Síndromes Prodrômicas (SIPS). Quatrocentos e cinquenta dos participantes completaram um estudo de follow-up de 2 ou 3 anos.

Nenhum dos participantes jamais havia recebido medicação psiquiátrica ou psicoterapia antes.

Este não foi um estudo controlado e randomizado, mas um estudo da vida real – projetado para ver como as pessoas se saíram na prática real, e não em uma pesquisa de laboratório controlada.

Os pesquisadores argumentam que os médicos geralmente desconsideram os resultados dos ensaios clínicos randomizados com a desculpa de que as situações do mundo real são mais complexas, e o julgamento clínico não pode ser vinculado a estudos controlados. Portanto, essa avaliação do mundo real foi projetada para mostrar resultados reais para os clínicos levarem em consideração em sua prática.

Os participantes receberam antipsicóticos com base no julgamento do seu médico pessoal. No entanto, os pesquisadores foram capazes de estratificar seus resultados por várias medidas, inclusive pela gravidade dos sintomas. Isso significa que eles poderam comparar aqueles com CHR leve que tomaram e não tomaram antipsicóticos, aqueles com CHR grave que tomaram e não tomaram antipsicóticos, e aqueles em doses diferentes e mais prescrições de antipsicóticos.

Resultados

Para aqueles com CHR leve, o tratamento antipsicótico foi associado a piores resultados – taxas mais altas de “conversão à psicose”.

Para aqueles com CHR mais grave, o tratamento com antipsicótico ainda não resultou em melhora. Em vez disso, as taxas de “conversão à psicose” foram as mesmas, em média, do que se alguém tomava um antipsicótico ou não.

Entre aqueles que tomaram antipsicóticos, aqueles que tomaram uma única droga e aqueles que tomaram uma dose mais baixa tiveram menos probabilidade de se “converter em psicose” do que aqueles a quem foram prescritas várias drogas e doses mais altas.

Foram utilizados muitos antipsicóticos diferentes, incluindo aripiprazol, olanzapina, risperidona, amisulprida e quetiapina. Os pesquisadores escrevem que “seus resultados não favoreceram nenhum tipo específico de antipsicótico”.

Em resumo, os pesquisadores escrevem,

“Quando foi considerada a gravidade inicial dos sintomas, nenhuma diferença significativa foi detectada no grupo CHR grave em termos de taxa de conversão, entretanto bem diferente entre aqueles no grupo CHR leve que foram tratados com antipsicóticos, pois estes estiveram em maior risco de psicose”.

É importante notar que nenhum dos participantes recebeu psicoterapia – portanto, essa foi uma comparação entre pessoas que receberam antipsicóticos e pessoas que não receberam tratamento.

Os pesquisadores escrevem que as pessoas que não recebem tratamento podem se sair melhor devido à vida normal sem o estigma de sofrimento médico e os efeitos adversos dos tranquilizantes neurolépticos:

“Vale ressaltar que os pacientes não tratados com antipsicóticos podem ter se beneficiado funcionalmente pelo menor estresse estigmatizado, pelos efeitos adversos e viver em um ambiente mais ‘normal’ e relaxado”.

Pesquisas anteriores descobriram que cerca de 73% das pessoas com o rótulo CHR nunca desenvolvem uma “psicose” completa. Outra pesquisa descobriu que apenas receber o rótulo de CHR leva a efeitos estigmatizantes. Os pesquisadores também criticaram todo o paradigma do uso do rótulo CHR.

Mesmo na psicose total do primeiro episódio, os pesquisadores descobriram que a TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental) sem antipsicóticos é tão eficaz quanto a adição de medicamentos, sem nenhuma melhora adicional.

A evidência contra o uso de antipsicóticos para psicose precoce e estados de risco é clara. As diretrizes recomendam contra o seu uso nessas situações, e um corpo substancial de estudos não encontrou melhora – ou encontrou resultados ainda piores – para aqueles que tomam antipsicóticos.

No entanto, de acordo com os autores do presente estudo, os médicos tendem a ignorar essas evidências.

“Embora os ECRs e diretrizes tenham recomendado contra o uso de antipsicóticos para indivíduos com CHR, os médicos geralmente não seguem as diretrizes. A complexidade da prática clínica diária tem sido frequentemente usada como desculpa para os médicos oferecerem terapia fácil em vez de terapia adequada. ”

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Zhang, T., Xu, L., Tang, X., Wei, Y., Hu, Q., Hu, Y., . . . & Wang, J. (2020). Real-world effectiveness of antipsychotic treatment in psychosis prevention in a 3-year cohort of 517 individuals at clinical high risk from the SHARP (ShangHai At Risk for Psychosis). Australian & New Zealand Journal of Psychiatry, 54(7), 696-706. https://doi.org/10.1177/0004867420917449 (Link)

Profissionais e usuários da ECT solicitam a sua suspensão na Saúde Pública (NHS) do Reino Unido

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Da Universidade de East London: “A terapia eletroconvulsiva (ECT) ainda é administrada a cerca de um milhão de pessoas anualmente, incluindo cerca de 2.500 pessoas no Reino Unido, predominantemente mulheres acima de 60 anos.

Na quinta-feira, 2 de julho, 40 profissionais e pesquisadores em saúde mental, e quem recebeu ECT e seus familiares, estão escrevendo para Peter Wyman, Presidente da Comissão de Qualidade da Assistência [Chair of the Care Quality Commision], para ‘solicitar que a ECT seja imediatamente suspensa em todo o Serviço Nacional de Saúde [NHS], aguardando pesquisas para determinar a sua eficácia e a sua segurança’.

A carta, copiada para os Ministros, CEOs e Diretores Médicos de todos os fundos de saúde mental do NHS, está respondendo a uma recente revisão de 40 páginas da pesquisa em ECT *, em coautoria do professor Irving Kirsch, da Harvard Medical School (anexo). A revisão não encontrou evidências de que a ECT seja superior ao placebo e concluiu:

Dado o alto risco de perda permanente de memória e o pequeno risco de mortalidade, a falha antiga em determinar se a ECT funciona ou não significa que seu uso deve ser imediatamente suspenso até que uma série de estudos bem projetados, randomizados e controlados por placebo investiguem se realmente Existem benefícios significativos contra os quais os riscos significativos comprovados podem ser pesados. »

O dia 2 de julho foi escolhido para enviar a carta porque é o 59º aniversário da morte de Ernest Hemingway, o mais famoso dos milhões de vítimas da ECT desde a sua invenção em 1938. Hemingway se matou logo após 20 ECTs, tendo escrito ‘O que é a sensação de arruinar a minha cabeça e apagar minha memória, qual é o meu negócio? Foi uma cura brilhante, mas perdemos o paciente ‘

O principal autor da revisão e carta, o Dr. John Read (Professor de Psicologia Clínica da Universidade de East London) disse:

‘Esperamos que, no 60º aniversário da morte de Hemingway, desta vez no próximo ano, possamos anunciar ao mundo que o Reino Unido foi o primeiro país a finalmente pôr fim a esse erro bem-intencionado, mas calamitoso, na história da medicina.’

O Dr. Irving Kirsch (Diretor Associado de Estudos Placebo, Harvard Medical School) disse:

“Eu não acho que muitos defensores da ECT entendam quão fortes são os efeitos do placebo para um procedimento importante como a ECT.

A falha em encontrar benefícios significativos nos resultados a longo prazo em comparação com os grupos placebo é particularmente angustiante. Com base nos dados dos ensaios clínicos, a ECT não deve ser usada para indivíduos deprimidos. ‘

Uma das usuárias da ECT que assinou a carta, a Dra. Sue Cunliffe, pediatra até que os danos cerebrais causados ​​pela ECT impossibilitassem seu trabalho, acrescentou:

Como médico, fiquei horrorizada ao descobrir as falhas na regulamentação da ECT pelo Royal College of Psychiatrists, que permite a perpetuação de más práticas e falha na proteção dos pacientes contra os danos. Quanto mais cedo a ECT for suspensa, melhor. ‘

O professor Peter Kinderman, Universidade de Liverpool, ex-presidente da British Psychological Society, acrescentou:

“A ausência de evidência de eficácia, em conjunto com o alto risco de dano cerebral, significa que a relação custo-benefício é tão terrível que continuar a usá-la coloca a psiquiatria fora dos limites da medicina baseada em evidências”.

Relatando a crise COVID em hospitais psiquiátricos: uma oportunidade perdida

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Lonely patient in hospital corridor.

Desde o advento do novo coronavírus nos Estados Unidos, no final de fevereiro, a mídia concentrou a atenção nos maiores riscos de se contrair a doença em instalações que juntam muitas pessoas, incluindo prisões e casas de repouso, onde populações em cativeiro que moram muito próximas umas às outras facilitam a sua rápida disseminação.  No final de março, surgiu uma crise semelhante entre funcionários e pacientes de hospitais psiquiátricos, com relatos de grupos com COVID – e até mortes – encontrados no Western State Hospital, perto de Tacoma, Washington (The Seattle Times, 26 de março), St. Elizabeth’s  em Washington , DC (The Washington Post, 1º de abril), quatro instalações em Nova Jersey (The Trentonian, 7 de abril) e muitas outras instituições em todo o país. Em 16 de abril,  NBC News informou que cerca de 1.500 pacientes internados em hospitais psiquiátricos dos EUA haviam sido infectados; até o momento, dezenas de pessoas que vivem nessas instalações morreram.

Ao longo de abril, vimos relatórios quase diários rastreando essas histórias, o que puxou a cortina da negligência, a burocracia e os fortes efeitos emocionais diante de uma situação sem precedentes. Essas histórias relatam “a falta de protocolos de teste, EPI e isolamento [que] estavam dificultando a tarefa – manter a segurança de uma população altamente vulnerável e de seus profissionais durante uma pandemia – tornando-a praticamente impossível” (The New Yorker, 21 de abril). ) Eles também exploraram os desafios únicos de tentar prevenir e tratar uma doença altamente contagiosa entre os “doentes mentais graves” em um ambiente em que o tratamento padrão é o fornecimento de drogas que alteram a mente combinadas com atividades em grupo.

Esses relatos das lutas para combater o COVID em hospitais psiquiátricos foram solidamente relatados e frequentemente solidários com a grave situação. Mas, com muita frequência, essas histórias atribuíam a dificuldade de proteger pacientes e funcionários às doenças desses pacientes. Descrita como desorientada, autodestrutiva e, às vezes, violenta, foi dito que essa população era incapaz e / ou não estava disposta a cumprir práticas de segurança como distanciamento social, uso de máscaras e lavagem das mãos. Além disso, foi relatado que o modelo tradicional de tratamento hospitalar considerado necessário para ajudar essa população está em desacordo com o que é necessário para impedir a propagação do vírus nessas instalações, fornecendo uma mensagem contraditória.

Essa cobertura revelou muitas pressuposições sobre os residentes de hospitais psiquiátricos e as próprias instituições. Em sua cobertura, a mídia perdeu duas oportunidades: desafiar estereótipos sobre pacientes em hospitais psiquiátricos e interrogar os problemas com as atuais abordagens carcerárias ao tratamento de saúde mental que a crise do COVID colocou em evidência.

Pacientes problemáticos

Todos os artigos estudados durante esse período apontam a “loucura” do paciente como um fator significativo nas dificuldades das instalações em controlar a propagação da doença. Raramente representados como fontes nesses relatórios, os residentes e seus comportamentos, atitudes, capacidades e necessidades eram normalmente descritos pelos profissionais de saúde mental. Os repórteres citaram ou parafrasearam enfermeiras, assistentes sociais, administradores e psiquiatras de hospitais, juntamente com “especialistas” externos, que apresentaram os internados não apenas como vítimas indefesas, mas também como autores inconscientes da propagação da doença – obstáculos ao tipo de intervenções que poderiam ajudar a salvar a si próprios e as vidas dos trabalhadores em saúde mental.

Essa tendência foi expressa suscintamente em uma matéria da NBC News (17 de abril). “O coronavírus em um hospital psiquiátrico: ‘É o pior de todos os mundos’ ” destacou as estatísticas sombrias e a má administração institucional em seu relatório sobre a crescente carga de COVID no Western State Hospital. A reportagem explicou que “o distanciamento social em uma unidade psiquiátrica é mais fácil se dizer do que se fazer” e cita o Dr. Jeffrey Lieberman, presidente do departamento de psiquiatria da Universidade Columbia, sobre o motivo:

“As pessoas que sofrem de depressão e suicídio graves podem estar tão desanimadas e com a intenção de acabar com a vida que talvez não se importem com as consequências. A situação mais comum é que alguém está no hospital por causa de um transtorno psicótico. Elas estão literalmente fora de si. Elas não são necessariamente coerentes, não são necessariamente racionais e não são necessariamente capazes de seguir instruções. ” (Itálico adicionado.)

Uma reportagem da Associated Press sobre o Western State, publicada no ABC News (28 de abril) e no Lewiston Tribune(29 de abril), afirma: “No hospital de Washington, a maioria dos pacientes está gravemente doente mental. Eles são um perigo para si ou para os outros ou cometeram um crime e estão sendo tratados para restaurar a sua competência mental para enfrentar acusações. Alguns são antigos e muitos comprometeram o sistema imunológico por causa de seus medicamentos, colocando-os em maior risco se pegarem o vírus. Mas eles não estão inclinados a usar máscaras ou a tomar outras precauções. ”

E continua: “Se você der aos pacientes álcool em gel, eles beberão”, disse Ben LaLiberte, avaliador forense. As máscaras poderiam ser usadas para se sufocar, por isso serem distribuídas com cuidado e geralmente ignoradas.

Isso ocorre porque, de acordo com o The New Yorker, “A própria doença que leva [pacientes] a um hospital psiquiátrico pode dificultar o cumprimento de orientações de higiene, distanciamento e outras diretrizes preventivas, o que aumenta o risco para eles e para todos os que estão em volta deles.”

Da mesma forma, Newsday (27 de abril), relatando a erupção de mortes de pacientes com COVID no Pilgrim Psychiatric Center e 22 outras unidades de saúde mental no estado de Nova York, cita a psiquiatra acadêmica Dinah Miller: “Pacientes que estão muito doentes com transtornos psiquiátricos podem resistir às medidas de higiene , e eles podem se intrometer no espaço pessoal de outras pessoas. ”

A história do Trentonian de 7 de abril parecia atribuir a morte de um paciente por causa desses maus hábitos de saúde. Ao discutir o escândalo, a matéria se concentrou na caracterização de uma fonte anônima:

“As fontes identificaram o paciente como Ed Gorecki, dizendo que ele era esquizofrênico, mas não tinha antecedentes criminais, e estava na Trenton Psych por décadas.

‘Se alguém seria morto pelo vírus, eu pensaria que ele seria o principal candidato’, de acordo com um ex-funcionário … ‘Ele era fumante há anos e anos e anos’, disse o ex-funcionário. ”

A culpa não deixou de ser refletida na manchete: “Funcionários de saúde de NJ: quatro pacientes mortos, dezenas de doentes com COVID-19 em hospitais psiquiátricos, lembrou o paciente de Trenton como ‘fumante em cadeia’ ” .

Em particular, as histórias retratam os residentes de hospitais psiquiátricos como agressivos, suas ações hostis e imprevisíveis que ameaçam a segurança dos cuidadores. Newsday observou: “As autoridades dizem que a equipe geralmente enfrenta resistência de pacientes que podem se tornar agressivos quando forçados a usar máscaras, manusear com segurança o desinfetante e aderir a outras precauções contra a propagação do vírus em instalações densamente povoadas, atrás de portas trancadas”.

E dois veículos diferentes (Newsday e The Seattle Times, 14 de abril) citaram novamente a psiquiatra Dinah Miller, que afirmou: “Alguns pacientes em uma unidade psiquiátrica aguda podem ser agitados, não cooperativos ou até violentos, e não é difícil imaginar a angústia de qualquer um que tenha um paciente a cuspir neles, na medida em que todos tentamos nos lembrar de não apertar as mãos. ”

Resumiu um trabalhador para a CBS News (20 de abril): “Acho que o que temos é pior do que um hospital tradicional, porque os nossos pacientes podem a qualquer momento se tornar violentos. Você sabe, temos pacientes que não entendem nem conseguem tossir em seu braço ou espirrar em seu braço. ”

Essa foi a apresentação estereotipada dos pacientes hospitalizados. Uma imagem única feita dessa população, como se a maioria dos residentes de hospitais psiquiátricos fosse “louca” e agressiva.

Uma ameaça para a Psiquiatria?

De acordo com a mídia, obter cooperação de pacientes hostis e sem compreensão não seria o único desafio para hospitais psiquiátricos carentes de recursos e sem precedentes para lidar com a crise do COVID. O mesmo aconteceu com as mudanças drásticas nos procedimentos operacionais considerados padrão que as instalações teriam que implementar para impedir a transmissão do vírus de residente para residente. Isso incluiu colocar em quarentena os doentes, mantê-los em seus quartos e eliminar as atividades em grupo.

Como explicou o New York Times em matéria de 12 de abril sobre os muitos casos e mortes nos hospitais estaduais de Rockland e Pilgrim, em Nova York: “Os hospitais psiquiátricos apresentam desafios especiais às restrições do distanciamento social, uma vez que muitos pacientes podem entrar e sair do centro “, para diferentes partes do campus” e, uma vez dentro, não são enclausurados “.

No entanto, de acordo com as fontes entrevistadas nessas peças, os esforços para segregar as pessoas não são o melhor para elas. Aqui, como a NBC News coloca, saúde mental e saúde física são “interesses concorrentes”:

“Tanto a administração do hospital quanto os trabalhadores [no Western State] expressaram preocupação de que as precauções devidas ao COVID-19 possam interromper o tratamento de doenças mentais. … em hospitais psiquiátricos o isolamento pode ser perigoso, muito mais do que em dormitórios de faculdades ou em outras instituições onde as pessoas vivem em grupos. A interação social não é um luxo; é uma terapia e ajuda a salvar vidas. ”

A matéria retrata uma rotina agradável de “café da manhã comum, possivelmente seguido de jardinagem, clube do livro ou música”, onde os moradores “participam de terapia e aulas em grupo no ‘centro de tratamento’ e aguardam ansiosamente as visitas dos entes queridos”. Agora, “quase tudo isso se foi ou mudou significativamente. A terapia e as aulas em grupo foram canceladas, e há um impulso para a terapia pelo bate-papo por vídeo e pela alta dos pacientes. ”

Esse aspecto da reportagem, por outro lado, retrata os hospitais como verdadeiros asilos preenchidos com “pacientes solitários e confusos que geralmente não conseguem comunicar sintomas e não conseguem prescindir da socialização diária e do tratamento em grupo que é a base de seus cuidados”. como diz o Newsday. Essas pobres almas confiam no tratamento e na segurança que encontram ali, foi relatado. De acordo com o funcionário anônimo citado no The Trentonian, “eu sei que o hospital tentou alta [o paciente que morreu de COVID] várias vezes e ele não queria ir. Lá era a casa dele.

No entanto, a preocupação com mudanças na rotina hospitalar parece centrar-se tanto na ameaça às normas institucionais quanto na segurança da equipe e do paciente. Como observa o New Yorker, “o coronavírus e as medidas de saúde pública adotadas para retardar a sua disseminação são particularmente hostis aos cuidados psiquiátricos”. No artigo de 27 de abril em The Hill, os psiquiatras Brian Barnett e Jack Turban escrevem:

“Embora muitas vezes fora da vista e da mente, as instalações psiquiátricas são essenciais para o bem-estar emocional da nossa nação. Embora o coronavírus tenha fechado muitas instituições, elas não têm a opção de fechar suas portas, mesmo que temporariamente. ”

Perspectivas em falta

Assim como as manchetes recentes sobre a violência policial levaram a se repensar socialmente a aplicação da lei, a pandemia oferece à mídia a oportunidade de ir além das imagens unidimensionais de pacientes psiquiátricos paranoicos e ilusórios que tendem a aparecer a qualquer momento. Embora a violência nas enfermarias dos hospitais estaduais seja bem documentada e perigosa, nem todo residente é incorrigível ou mesmo “gravemente enfermo”. As pessoas são admitidas por vários motivos, incluindo a falta de leitos nas alas hospitalares regulares para pessoas que se apresentam nos pronto-socorro para crises de curto prazo e para serem avaliadas quanto à culpabilidade quando acusadas de um crime (como algumas agências de notícias apontaram). Uma pessoa pode ser involuntariamente internada se um médico ou juiz decidir que uma pessoa está “em risco de prejudicar a si mesma ou a outros” – um status sem critérios objetivos. Assim, a capacidade de autocontrole e autoconsciência dos residentes de hospitais psiquiátricos varia de acordo com o indivíduo; muitos são coerentes e também desejam evitar colegas agressivos.

De fato, pesquisas sobre violência em instituições mentais descobriram que a grande maioria dos incidentes violentos é iniciada por alguns indivíduos (geralmente mais jovens, homens e com histórico de violência). Outra pesquisa, do Instituto de Pesquisa dos Diretores do Programa Estadual de Saúde Mental da Associação Nacional, concluiu que as políticas hospitalares e as medidas proativas e individuais dos funcionários podem prevenir a violência, identificando os sinais precoces de alerta e diminuindo os conflitos.

Um ambiente opressivo

A imprensa também não questionou as normas e os possíveis danos do tratamento carcerário para “doenças mentais”. Por exemplo, essas instalações psiquiátricas podem agravar ou até criar alguns dos problemas problemáticos de comportamento do paciente que interferem na luta contra o COVID? O que pode ser mais seguro, alternativas mais terapêuticas?

Enquanto os profissionais citados nessas histórias falam do valor da conexão social em um ambiente psiquiátrico, enfermarias trancadas e hospitais estaduais são, por definição, isolados do resto da sociedade. Além disso, muitos residentes de hospitais psiquiátricos são involuntariamente comprometidos e medicados contra a sua vontade. Procedimentos desmoralizantes e aterrorizantes, incluindo isolamento, restrição e injeções forçadas são usados para “gerenciar” indivíduos indisciplinados ou agitados. E quando podem obter privilégios, os pacientes internados são proibidos de sair (receber alta muitas vezes requer enfrentar um tribunal).

Enquanto descrições de artigos sobre arte-terapia e as oportunidades de socialização asseguram ao público que os hospitais psiquiátricos são ambientes favoráveis e benignos, o Relator Especial da ONU sobre Tortura este ano apresentou um relatório especial ao Conselho de Direitos Humanos desse órgão, que conclui que “Intervenções psiquiátricas involuntárias com base em ‘necessidade médica’ ou ‘melhores interesses’ podem resultar em tortura ”.

Em suma, os pacientes raramente são considerados parceiros em seu próprio tratamento; eles devem seguir um plano de assistência criado por médicos e aplicado pela equipe. Em tais instituições, é surpreendente que os residentes possam não cooperar ou mesmo resistir veementemente – especialmente diante de uma doença assustadora sobre a qual até os especialistas sabem relativamente pouco?

O papel das drogas

Outra questão inexplorada pela imprensa: o quanto do problema de lidar com o vírus e obter a cooperação do paciente se deve aos medicamentos psiquiátricos que os residentes são inevitavelmente prescritos e instados (ou forçados) a tomar? Medicamentos para “doenças mentais graves”, como neurolépticos e antidepressivos, podem ser muito sedativos. Eles também podem servir para tornar alguém mais dócil. Como o artigo da New Yorker observou secamente: “Se o desregramento está impedindo o paciente de observar o distanciamento social, o trabalho do médico é encontrar o medicamento certo até que ele possa ter uma conversa bem-sucedida”. Teoricamente, esperaríamos que esses pacientes fossem estabilizados o suficiente para participar de práticas vitais de higiene.

Muitas vezes, o oposto é o verdadeiro. Conforme numerosos estudos e aqueles com experiência vivida relatam, medicações psiquiátricas podem desencadear agressão e acatisia, uma intensa agitação interna que está associada a um aumento no comportamento homicida e suicida. Uma revisão da literatura de 2015 documentou vários casos de “violência emergente do tratamento” devido a reações adversas a medicamentos. O livro Medication Madness, do psiquiatra Peter Breggin, descreve casos de homicídio, suicídio e outros crimes violentos a essas reações tóxicas.

Se as pessoas fortemente medicadas são incapazes de governar as suas próprias ações e autocuidado ou de serem controladas por profissionais de saúde mental, o que isso diz sobre a eficácia dessas drogas nesses ambientes?

Vozes não ouvidas

O que os próprios residentes de hospitais psiquiátricos pensam e sentem sobre uma doença mortal nas enfermarias, como essas instalações estão lidando com ela e as mudanças em seu tratamento? A quem ou o que eles culpam ou creditam? É difícil saber: com poucas exceções (incluindo a peça de 13 de abril da Rolling Stone), nunca ouvimos falar delas nessas histórias. Os repórteres parecem não ter procurado a opinião daqueles que vivem dentro dos muros do hospital (ou talvez não tenham permissão para solicitar entrevistas). Em vez disso, a realidade dos pacientes foi definida por outros.

Conversar com atuais e ex-residentes conta uma história diferente (ou pelo menos mais sutil) sobre a conscientização, competência e preferências do paciente. Em um artigo de 20 de junho, a Healthline citou entrevistas com vários pacientes internados recentemente em hospitais psiquiátricos que mantiveram “a qualidade do atendimento inferior e as precauções COVID-19 não foram tomadas”. Lindsay Romain, hospitalizada em Austin, Texas, lembrou que “Eles geralmente apenas nos medicaram e depois nos deixaram sozinhos até a hora das refeições. Foi bastante traumatizante. Uma de suas grandes preocupações, relatou Healthline, era “que não havia nenhuma discussão sobre o COVID-19 ou os protestos que haviam acabado de começar naquela semana e como isso poderia estar afetando as situações de saúde mental”.

Além disso, enquanto a maioria da imprensa revelava quão pouco estava sendo feito para proteger trabalhadores e pacientes em muitos hospitais, apenas veículos de comunicação relataram que alguns moradores atuais – longe de resistir às precauções de segurança da COVID – estão exigindo ações do governo para obtê-la. Respondendo à rápida inspeção da doença em tais instalações, os residentes de Connecticut e do Distrito de Columbia instauraram ações em defesa de medidas que garantam a segurança deles nos hospitais onde estão, essencialmente, os mantidos em cativeiro.

Conforme relatado pela WAMU (16 de abril), os quatro demandantes de St. Elizabeth, em Washington, DC afirmam que “o hospital da cidade está colocando os pacientes em risco de contrair o coronavírus por não isolar as pessoas com sintomas. Eles também argumentam que é impossível que os pacientes sigam o distanciamento social e alegam que os pacientes com a doença não recebem cuidados adequados ”ou equipamento de proteção. E como a Mad in America relatou recentemente, ex-residentes dos hospitais públicos de Massachusetts estão em campanha para responsabilizar o Departamento de Saúde Mental do estado por sua resposta inadequada à pandemia nessas instituições.

Movendo-se para alternativas

Além disso, tanto profissionais quanto pessoas com experiência vivida estão trabalhando para encontrar alternativas apropriadas ao tratamento padrão durante a pandemia. Por exemplo, como noticiou o Tacoma News Tribune em 5 de abril, os defensores dos direitos das pessoas com deficiência visam reduzir o número de internações involuntárias usando “métodos não tradicionais”. Isso inclui a organização da alta precoce, a transferência para locais na comunidade, como lares protegidos e o retorno para as suas próprias famílias. Dessa forma, os ativistas esperavam “reduzir a população de ambos os hospitais imediatamente, a fim de proteger com mais eficácia a equipe e os pacientes do COVID-19”.

Essas solicitações estão alinhadas às recomendações dos autores de um artigo de abril de 2020 na revista Psychiatric Services, onde é afirmado:

“Os pacientes que desenvolvem sintomas do COVID-19 devem ser monitorados de perto quanto ao risco iminente de suicídio, homicídio e incapacidade grave. Se o paciente for considerado psiquiatricamente estável, ele deve receber alta para atendimento ambulatorial e auto-quarentena. Considerações adicionais devem ser feitas em relação ao limiar para hospitalização. As hospitalizações psiquiátricas que não são absolutamente necessárias por preocupações agudas de segurança devem ser minimizadas. ”

Também estão surgindo esforços para afastar as pessoas em crise de saúde mental de serem admitidas em “cuidados” congregados em primeiro lugar. Healthline citou o trabalho do psiquiatra Dr. Scott Zeller na construção de “melhores unidades psiquiátricas que são verdadeiramente reabilitadoras”. De acordo com Zeller, “há muito tempo se reconhece que o cenário padrão de DE pode exacerbar os sintomas de uma crise psiquiátrica”. Portanto, ele “está trabalhando ao máximo para tornar as unidades emPATH [avaliação psiquiátrica de emergência, tratamento e cura] – que são ambientes mais calmantes e de apoio com pessoal psiquiátrico treinado – uma realidade e também priorizaria as necessidades de segurança dos pacientes em torno do COVID-19. ” Com essas intervenções proativas, ele afirma, “a grande maioria das emergências psiquiátricas pode ser resolvida em menos de 24 horas”.

Mesmo nas unidades assistenciais atuais, são possíveis medidas para proteger os residentes (e funcionários) da infecção pelo vírus. Em uma entrevista por e-mail, Mad in America conversou com Katy M., 20, uma paciente internada no hospital público Worcester Recovery Center em Massachusetts. (Fundado em um modelo comunitário centrado no paciente, a instituição recentemente restringiu as restrições depois que a mídia local informou sobre overdoses e agressões por drogas de rua por pacientes forenses tratados lá.) Ela residiu no WRCH nos últimos nove meses, depois de ter sido enviada para se tratar lá por tentativa de suicídio.

De acordo com Katy, o hospital teve apenas alguns casos de COVID e nenhuma morte, graças em parte a uma ala de quarentena com trabalhadores com “equipamentos de proteção completa”, uma enfermaria e funcionários de EPI em todas as unidades. Os pacientes são testados na admissão, recebem e são incentivados a usar máscaras quando estão fora de seus quartos individuais e têm acesso ao desinfetante para as mãos, diz ela. Os residentes não podem ir nos quartos um do outro – embora visitantes portando máscaras e com distanciamento social agora sejam permitidos no hospital.

Na observação de Katy, a resposta dos pacientes à pandemia variou, mas ela diz que o esquecimento é mais comum do que a resistência. “Tivemos alguns pacientes com medo, alguns que não, alguns que acham legal usar máscaras e alguns que se importam menos. Acho que a maioria das pessoas está extremamente entediada, pois não há nada a fazer. ” Ela acrescenta: “Eu gostaria que as pessoas soubessem que não somos todos violentos, e mesmo que sejamos, isso não é a única coisa sobre nós e que muitos de nós podem e continuarão a viver vidas produtivas e bem-sucedidas”.

Até o momento, a crise do COVID não mostrava sinais de diminuição nos hospitais psiquiátricos, como demonstra este artigo de 3 de julho da KSAT, afiliada da ABC. À medida que essa história continua evoluindo, os jornalistas devem aproveitar esta oportunidade para explorar as questões mais amplas de direitos humanos (e senso comum) que ela levanta sobre a institucionalização.

  Manicomializações e Pandemia: as Instituições Psiquiátricas no contexto do COVID-19

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Basaglia (2010) nomeou de instituições de violência os espaços de asilamento psiquiátrico, entre outros motivos, pela concretização daquilo que considerou a construção e oficialização de “reservas psiquiátricas” a partir da medicalização de pessoas que, consideradas loucas, atualizam as relações de opressão e exploração na sociedade capitalista. Os manicômios, como destacou o autor, são espaços eminentemente marcados pela presença de pessoas negras ou de minorias étnicas e mais pauperizadas que passaram a ser consideradas como improdutivas. A quem o Estado faltou em termos de politicas publicas e ações, rapidamente se apresentam os espaços de encarceramento prisional e psiquiátrico.

Ao lado de todas as problemáticas envolvidas no asilamento enquanto estratégia junto a pessoas em sofrimento psíquico ou com demandas decorrentes do uso de álcool e outras drogas somam-se, no momento atual, os riscos à contaminação por COVID-19. A partir da aproximação com a realidade de instituições psiquiátricas no Brasil e em países como China, Estados Unidos e Itália, o cenário parece ser de aprofundamento das manicomializações e de seu caráter segregador e medicalizante e que podem reforçar as relações de classe e raça na sociedade atual. Vejamos.

Antes mesmo da pandemia notificar casos no Brasil, em fevereiro deste ano, a Comissão Nacional de Saúde da China já notificava a contaminação de 323 pessoas com transtornos mentais por COVID-19. Segundo o estudo de Xiang et al (2020) o número considerado alarmante pelas autoridades e pesquisadores chineses se relacionaria com a insuficiente oferta de Equipamento de Proteção Individual (EPI’S) e a não atenção às especificidades dos cuidados relacionados às pessoas internadas em decorrência de sofrimentos psíquicos graves. Como pontuaram os autores, nestes espaços, as pessoas passam a estar mais expostas a possíveis surtos virais uma vez que compartilham espaços como banheiro, dormitórios e mesmo espaços de tratamento em momentos subjetivos e objetivos nos quais contam com menos recursos pessoais, sociais e comunitários de cuidado e prevenção.

Em artigo sobre a assistência psiquiátrica no contexto do COVID-19 nos Estados Unidos, Bojdani et al (2020) descreveram, nos contextos asilares, a construção de alternativas por meio de telefones ou video-chamadas, mas sublinharam a possibilidade de assistência presencial com uso de EPI’s. Os autores localizaram a realização de testes rápidos em pessoas antes de serem admitidas para internação, assim como descrito por Xiang et al (2020) na China, mesmo não sendo explicitado quais seriam as diretrizes e estratégias junto a pessoas já contaminadas e internadas nestes espaços.  Ainda no país, fizeram-se presentes modificações na estrutura física e organização da instituição psiquiátrica, assim como suspensões de visitas e atividades em grupo e a inclusão de atendimentos remotos a pessoas internadas em hospitais psiquiátricos (BOJDANI, 2020; LI, 2020). Outras medidas se voltaram para a diminuição de contatos considerados não essenciais – incluindo estagiários e pesquisadores– a redistribuição e reorganização de tarefas entre médicos e outros profissionais, contando com a criação de pools de reserva, assim como a construção de critérios mais rígidos de internação psiquiátrica (LI, 2020).

Na Itália, as indicações do Ministério da Saúde acompanharam a dos países anteriores,  envolvendo a utilização do mais alto nível possível de EPI’S e a substituição de visitas por telefonemas e videochamadas nos espaços de assistência de pernoite e acolhimento psiquiátricos, assim como enfermarias específicas para pessoas com COVID-19 e outras áreas de isolamento interno nestes estabelecimentos. Na cidade de Ligúria, houve a abertura de um espaço específico para pessoas com transtorno mental contagiadas pelo vírus: a Villa Danilo, com 18 leitos [1].

No Brasil, em abril, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão solicitou à a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendações e medidas específicas aos hospitais psiquiátricos, clínicas psiquiátricas e comunidades terapêuticas nacionais durante a pandemia de COVID-19. Foram incluídos nos estabelecimentos que deveriam receber atenção também os CAPS, Residências Terapêuticas e Unidades de Acolhimento (MINISTÉRIO PUBLICO, 2020). No Rio de Janeiro, a Secretaria de Saúde do Estado (SES) publicou, também nas primeiras semanas de isolamento social, a ‘Nota Técnica sobre cuidados para usuários de Saúde Mental internados em Hospital Psiquiátrico durante a pandemia de COVID-19’. O documento orientava a diminuição das visitas e organização de um cronograma para presença de amigos e familiares, além da proibição das mesmas realizadas por pessoas do grupo de risco [2]. Além disso, incentivava-se a construção de alternativas como telefonemas ou vídeo chamadas; a diminuição das internações e o aumento de altas assim como a aceleração de processos de desinstitucionalização; escalonamento de horários de refeição e suspensão de atividades coletivas em espaços fechados; adaptação e reorganização dos espaços e infra estrutura hospitalar, além da realização de práticas educativas com as pessoas internadas (Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2020).

Hospitais psiquiátricos privados, como o Hospital Santa Mônica, localizado em Itapecerica da Serra, São Paulo, anunciaram a suspensão de licenças terapêuticas e visitas por prazo indeterminado e chamadas de vídeo e telefone apenas podendo se realizadas na companhia de psicólogos e enfermeiros em ‘viva voz’ e após recomendação do grupo terapêutico. Segundo site da instituição também seriam tomadas medidas mais rígidas e ficariam suspensos ‘atos de cordialidade como aperto de mãos e abraços’ entre pessoas internadas e ‘pacientes fumantes que tem o hábito de acender o cigarro no resíduo do cigarro do colega, devem abandonar essa prática’ [3].

No Brasil, algumas notícias de surto de COVID-19 em espaços asilares psiquiátricos ganharam os noticiários. Um deles foi o caso do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Fortaleza, no Ceará. Recebendo um número importante de casos de emergência psiquiátrica (a unidade relatou 4.383 casos apenas entre os meses de março a maio) e sendo a única referência pública do estado, o hospital notificou diversos casos de pacientes internados e que foram testados positivos para COVID-19. Segundo o diretor médico da unidade foram criadas duas alas específica considerando esta problemática, sendo uma para pacientes em investigação e outra para casos confirmados [4].

Um cenário que superou em muito o hospital cearense foi o do Hospital Psiquiátrico de Maringá, no Paraná, com grande cobertura pela mídia. Segundo a direção da instituição, a contaminação teria se iniciado a partir de uma paciente transferida de Cascavel. Os casos que, no início do mês de maio, contabilizavam 6 chegaram a 85 em poucas semanas do mesmo mês, entre pacientes e profissionais [5]. Entre as medidas publicizadas, estavam a reavaliação do plano de contingenciamento para a COVID-19, a contratação de uma médica infectologista, o treinamento para uso de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs) em vídeo, reestruturação das alas de isolamento e monitoramento de pacientes e funcionários. Não encontramos notícias sobre o controle do número de internações ou incentivo à alta[6]

Nesse contexto, talvez um dos espaços mais preocupantes sejam as Comunidades Terapêuticas, espaços que centram seu tratamento no asilamento de pessoas com demandas decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Apesar de reconhecidas pelas falhas de estrutura e já denunciadas por torturas e maus tratos por diversas entidades (CFP, 2011; CRPSP, 2015; IPEA, 2017) e pesquisas atuais (PACHECO e SCISLEKI , 2013; PEREIRA e PASSOS, 2017), a fiscalização das medidas de prevenção no momento do COVID-19 se dão simplesmente por auto declaração. Ou seja: pelo comunicado das próprias unidades, por meio do Sistema Eletrônico de Gestão das Comunidades Terapêuticas, através da Secretaria Nacional de Cuidados e de Prevenção às Drogas (SENAPRED), sem nenhuma visita ou acompanhamento do Ministério da Saúde ou de qualquer outro órgão [7].

Apesar de em março deste ano, durante as primeiras semanas de medidas de isolamento social, a própria Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT, 2020) ter pontuado a ‘indicação de não realizar mais acolhimentos’ (p.12), no mesmo mês, o Ministério da Cidadania considerou seus serviços enquanto essenciais, a partir da portaria 340 (BRASIL, 2020).  A FEBRACT (2020) chegou a avaliar a possibilidade de disponibilização de quarto exclusivo para os ‘recém chegados’ por 15 dias e a identificação de casos suspeitos, a partir de perguntas sobre contato com pessoas contaminadas ou identificação de sintomas pela própria pessoa. Seguindo estas orientações, muitos estabelecimentos deste tipo não paralisaram seus serviços e não havendo recomendação de encerramento de recepção de novos pacientes, continuam de portas abertas para a entrada de novas pessoas e, inclusive, são orientadas a não realizarem altas neste período, como proposta do próprio Ministério. Apenas a Fazenda da Esperança, em São Paulo, revelou em maio ter recebido mais de 3 mil pessoas desde o início da pandemia [8].

Se é certa a dificuldade imposta em acompanharmos a real situação das pessoas internadas e dos profissionais desses espaços, a cidade de Jaci, em São Paulo, talvez revele algumas dimensões importantes. No município de apenas 7. 293 habitantes, metade das pessoas contaminadas no início de maio estavam internadas ou trabalhavam na Comunidade Terapêutica São Francisco de Assis. Entre todos os pacientes, menos da metade teve seus exames negativados para a COVID-19 [9].

De maneira nenhuma podemos deixar de salientar que, se em nosso país, quem mais morre de COVID-19 são os homens pobres e negros [10], não coincidentemente são estes os mesmos que são maioria nas instituições psiquiátricas como hospitais (BARROS et al, 2020) ou Comunidades Terapêuticas (IPEA, 2017), e que passam a estar mais expostos aos surtos virais e ao aprofundamento dos asilamentos e isolamentos de manicômios ainda mais duros e severos em tempos de pandemia. Corona vírus e medicalização acabam por formar uma, dentre tantas outras, duplas de sustentação de genocídio da população negra e mais pauperizada, devendo a saúde mental estar atenta para a rigorosidade das violências nos momentos atuais, fazendo-se urgente a adoção de medidas em atenção psicossocial fortes e adaptáveis e que se voltem para os territórios e suas realidades na evitação dos asilamentos psiquiátricos.

Referências Bibliográficas

BARROS, S; BATISTA, L. E.; DELLOIS, E.; ESCUDER, M. M. Censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial. In: Saúde soc. 23 (4) Oct-Dec 2014.

BASAGLIA, F. As instituições de violência. In: BASAGLIA, F. Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. AMARANTE, P. (org.), Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

BOJDANI E, RAJAGOPLAN A, CHEN A, GEARIN A, OLCOTT W, SHANKAR V, CLOUTIER A, SOLOMON H, NAQVI NZ, FESTIN FE, TAHERA D, CHANG G, DELISI L. P .  COVID-19 Pandemic: Impact on psychiatric care in the United States. Psychiatry Research 289 (2020) 113069. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0165178120312269. Acessado em 08 de julho de 2020.

CFP. Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas.Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2011.

CRP/SP. Dossiê: Relatório de Inspeção de Comunidades Terapêuticas e Clínicas para Usuárias(os) de Drogas no Estado de São Paulo – Mapeamento das Violações de Direitos Humanos. São Paulo: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2016.

FEBRACT. Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas. Informações Gerais sobre o Coronavírus e Informações específicas para as Comunidades Terapêuticas.  Março de 2020. Disponível em: https://febract.org.br/portal/wp-content/uploads/2020/04/MANUAL-FEBRACT-COVID-3.pdf. Acessado em 04 de julho de 2020.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Saúde Superintendência de Atenção Psicossocial e Populações em Situação de Vulnerabilidade. Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Nota Técnica sobre cuidados para usuários de Saúde Mental internados em Hospital Psiquiátrico durante  pandemia de COVID-19 . Abril de 2020.  Disponível em: https://coronavirus.rj.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/NT-COVID-19-e-Hosp-Psiq_final.pdf. Acessado em 04 de julho de 2020.

IPEA. Nota Técnica nº21. Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras. Brasília: IPEA, 2017.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Ofício nº130/2020. Brasília, 14 de abril de 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/oficios/oficio-130-2020-pfdc-mpf. Acessado em 04 de julho de 2020.

LI L. Challenges and priorities in responding to COVID-19 in inpatient psychiatry. Psychiatric Services 71:6, June 2020. Disponível em: https://ps.psychiatryonline.org/doi/pdf/10.1176/appi.ps.202000166. Acessado em 09 de julho de 2020.

PACHECO AL, SCISLEKI A. Vivências em uma comunidade terapêutica. Revista Psicologia e Saúde, v. 5, n. 2, jul. /dez. 2013, p. 165-173. Disponível em: https://www.pssa.ucdb.br/pssa/article/view/285/350. Acessado em 08 de julho de 2020.

PEREIRA MO, PASSOS RG. Desafios Contemporâneos na Luta Antimanicomial: comunidades terapêuticas, gênero e sexualidade In: PEREIRA MO, PASSOS RG. Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2012.

XIANG YT, ZHAO YJ, LIU ZH, LI XH, ZHAO N, CHEUGN T, NG CH. The COVID-19 outbreak and psychiatric hospitals in China: managing challenges through mental health service reform. International Journal of Biological Sciences 2020; 16(10): 1741-1744. Disponível em: https://www.ijbs.com/v16p1741.pdf. Acessado em 04 de julho de 2020.

Notas:

[1]Informações em: https://www.repubblica.it/economia/rapporti/osserva-italia/cibamente/2020/04/10/news/covid_19_nasce_una_struttura_per_i_malati_psichiatrici-253629345/. Acessado em 08 de julho de 2020.

[2]     A nota lista: pessoas maiores de 60 anos; menores de 60 anos com pneumopatia, diabetes, doença oncológica, doença cardiovascular, imunodeficiência, entre outras; crianças (0 a 12 anos)

[3] ‘Comunicado aos pacientes e familiares: medidas de contingência ao Coronavírus’. Informações disponíveis em: https://hospitalsantamonica.com.br/a-pandemia-covid-19-e-a-saude-mental-nos-estados-unidos/. Acessado em 04 de julho de 2020.

[4]     Informações disponíveis em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/06/02/hospital-de-saude-mental-em-fortaleza-confirma-pacientes-psiquiatricos-internados-com-a-covid-19.ghtml. Acessado em 04 de julho de 2020.

[5]     Informações disponíveis em: https://www.radioculturafoz.com.br/2020/05/29/hospital-psiquiatrico-de-maringa-confirma-novos-47-casos-da-covid-19/ e https://ricmais.com.br/videos/hospital-psiquiatrico-de-maringa-sobe-numero-de-casos-de-covid-19/. Acessado em 04 de julho de 2020.

[6]     Boletim do Hospital Psiquiátrico de Maringá. Disponível em http://www.femipa.org.br/noticias/covid-19-atualizacao-boletim-hospital-psiquiatrico-de-maringa/. Acessado em 04 de julho de 2020.

[7]     Informações disponíveis em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/covid-19-avanca-nas-comunidades-terapeuticas/. Acessado em 04 de julho de 2020.

[8]     Informações disponíveis em: https://www.spdm.org.br/saude/coronavirus/item/3355-coronavirus-comunidades-terapeuticas-sao-consideradas-prestadoras-de-servicos-essenciais. Acessado em 04 de julho de 2020.

[9]     Informações disponíveis em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/02/comunidade-terapeutica-coronavirus-jaci.htm. Acessado em 04 de julho de 2020.

[10]    Informação disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/dados-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-homem-pobre-negro-24513414. Acessado em 08 de julho de 2020.

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Agradecimentos: Gostaria de agradecer imensamente a Ernesto Venturini pela leitura atenta e observações preciosas sobre os serviços de saúde mental italianos e a Fernando Freitas por possibilitar este diálogo.

Democratização do debate sobre saúde mental: por que precisamos falar sobre o assunto?

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Meu interesse pelo campo da saúde mental se deu por meio do trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo, no ano de 2011. Aflita e com muitas dúvidas, caiu no meu colo contar a história de um hospital psiquiátrico de Goiânia. O tema me comoveu de tal forma que passei a ser voluntária nesse mesmo hospital e fiz o mestrado sobre representação da loucura na televisão. Durante muito tempo eu fui a única aluna a falar sobre o assunto no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Faculdade de Informação e Comunicação (FIC), da Universidade Federal de Goiás.

Percebi que se quisesse me aprofundar no tema apenas o campo da comunicação não atenderia aos meus anseios. Hoje desenvolvo uma pesquisa de doutorado sobre a inclusão digital de usuários de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) na Fundação Oswaldo Cruz. Já se passaram quase 10 anos que pesquiso saúde mental e durante todo esse tempo foram inúmeras as vezes em que me perguntaram o porquê dessa escolha, ao que se seguiam questionamentos sobre a sanidade mental dos meus familiares e até a minha própria. Isso ocorre unicamente porque eu não pertenço aos espaços psiquiátricos.

 

Para a maioria da população não é compreensível que uma pessoa sem uma conexão profissional ou pessoal com o campo da saúde mental se dedique a estudar e a trabalhar com o tema, que ainda parece muito restrito. Quando se é um estrangeiro na terra da saúde mental, falar sobre o tema provoca um ar de admiração e surpresa, como se lidar com o assunto sendo um “leigo” fosse algo que ficasse entre o divino e o profano.

Na última década muita coisa mudou no debate público sobre minorias no Brasil. A partir da década de 1990 em nível mundial e 2000 no Brasil, os movimentos sociais se fizeram ouvidos e passaram a pautar a agenda pública com questões identitárias de populações vulneráveis. Esses movimentos pelos direitos civis fizeram com que questões importantes como racismo, feminismo, direitos de povos originários, população LGBTQI+ etc. passassem a ocupar um espaço maior nos debates da sociedade de uma forma geral, inclusive na mídia. Entretanto, mesmo com esse cenário cada vez mais favorável, quando tratamos da loucura os muros mentais deixados pelos séculos de internação ainda impedem grandes saltos. Isso tem uma forte relação com um imaginário popular sobre a loucura, no qual saúde mental é coisa de médico e de doido.

Essa ideia acaba por ter algumas consequências sérias: a falta de informação geral sobre o assunto; a manutenção de estereótipos e preconceitos; a dificuldade de pessoas comuns assumirem que precisam de ajuda e buscarem tratamento; uma maior susceptibilidade à medicalização em saúde mental; a limitação em se discutir políticas públicas e o constante risco de retrocesso nos processos da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Um novo debate à luz da Reforma Psiquiátrica

A partir desse movimento muitos avanços foram possíveis, um deles é a instituição de 18 de maio como dia Nacional da Luta Antimanicomial e a posterior ampliação para o mês da pauta. Durante todo o mês de maio são realizadas em todo o Brasil ações que trazem luz à discussão, que apesar de não atingir toda a população, ganha maior visibilidade na mídia promovendo uma ampliação do debate.

Nos últimos anos outros focos de discussão tomaram forma independentes do movimento da Reforma Psiquiátrica através de campanhas como o Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio, e o Janeiro Branco, de promoção da saúde mental. Se por um lado essas campanhas colocam o tema em pauta na mídia e na sociedade, por outro, dão destaque a um viés medicalizante tendo psicopatologias como questões centrais do debate.

Para a psiquiatra, Professora e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Fundação Oswaldo Cruz, Ana Paula Freitas Guljor, essa ainda é uma questão complexa. “O acesso ao tema se dá por uma perspectiva de agravo e doença com receitas de tratamentos psicoterápicos e medicamentosos e não a partir da transformação do lugar social da loucura por uma vertente emancipatória”, afirma a profissional. A realidade é que mesmo com grandes esforços, a ampliação e o aprofundamento do debate com a sociedade ainda é um desafio para o movimento.

Como falar sobre saúde mental fora dos espaços psiquiátricos?

Tendo como base os movimentos em saúde mental, que há quatro décadas encabeçam as discussões e ações acerca do tema no Brasil e que hoje contabilizam muitas conquistas, é necessário repensar os espaços de debate. Ana Paula Guljor acredita que apesar de importante para o movimento da Reforma Psiquiátrica, a democratização do debate ainda é um aspecto menos valorizado no cotidiano de trabalhadores em saúde mental.

Nesse sentido, mais do que apontar os problemas na perpetuação do modelo institucional da discussão sobre saúde mental, cabe pensar junto com os movimentos de profissionais, pessoas em sofrimento mental e familiares a democratização e propor soluções. É aí que fica evidente uma questão fundamental: como superar o cenário que está posto? Um primeiro passo está em tirar o debate acerca do sofrimento mental das mãos de profissionais de saúde, de dentro dos hospitais, Caps, consultórios etc. e levá-lo para outros espaços e pessoas. Precisamos ouvir mais vozes e nos fazer ouvidos e isso pode se dar principalmente por meio da arte, da comunicação e da educação.

Expressões artísticas produzidas por pessoas em sofrimento mental têm sido efetivas em construir canais de troca entre esses indivíduos e a sociedade, além de levar a temática a outros espaços. As produções artísticas vão de encontro com a dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica, promovendo uma maior integração entre o campo da saúde mental e a sociedade. Obras que carregam sentidos extravasam os muros do hospital e têm grande potencial para abrir espaços de diálogo e mostrar que existem subjetividades fora da doença. O trabalho desenvolvido pela psiquiatra Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Nacional, que em 1999 passou a receber o nome da médica, é um exemplo. Iniciado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente mostra o poder das expressões artísticas no cuidado com pessoas em sofrimento mental e na abertura de espaços de fala.

Mais à frente, os novos dispositivos que surgiram com a Reforma Psiquiátrica foram terreno para emergência de inúmeras iniciativas que promovem e ampliam o debate sobre saúde mental através de diferentes manifestações artísticas. Formando em 2000, o grupo Harmonia Enlouquece une usuários e profissionais do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ). Com músicas que falam da realidade de pessoas em sofrimento, em 2009 a banda chegou a ter uma música, Sufoco da vida na trilha sonora da novela Caminho das Índias, da Rede Globo.

No carnaval a loucura ganha as ruas do Rio de Janeiro e atrai foliões para festejar e divulgar as pautas da saúde mental através dos blocos Tá Pirando, Pirado, Pirou!, que existe desde 2005, e Loucura Suburbana, formado em 2001 e que em 2010 tornou-se o primeiro Ponto de Cultura em saúde mental da cidade. Esses projetos impulsionam a discussão para fora das instituições psiquiátricas de forma leve e descontraída, promovendo a interação com a sociedade.  Esses são apenas alguns exemplos de iniciativas que vão se espalhar pela música, teatro, artes plásticas, etc.

Tratando especificamente da comunicação, a democratização do debate passa por duas questões: a simplificação do discurso profissional e a emancipação de pessoas em sofrimento mental e amplificações de suas vozes. Simplificar o discurso médico e profissional no geral é uma forma de fazer com que informações seguras e de qualidade sejam divulgadas e mais facilmente absorvidas pelas pessoas comuns. O profissional de saúde não deve ter medo de se comunicar de forma simples e objetiva, nem de compartilhar espaços de fala e conhecimento com o outro, especialmente com pessoas em sofrimento mental. É papel desses profissionais promover um debate aberto, plural e democrático que leve mais informação à sociedade e fomente a emancipação de pessoas sofrimento mental.

No caso do Brasil, em que séculos de reclusão afastaram essas pessoas do convívio em sociedade, não é possível falar em democratizar o debate da saúde mental se não pensamos a emancipação desses indivíduos. O sequestro institucional foi também um sequestro discursivo. Promover a integração social passa pela retomada das narrativas por parte das pessoas em sofrimento mental. A construção de canais e redes prioritariamente autônomas é uma forma de cortar mediadores e criar pontos de encontro e troca de conhecimento entre usuários e a sociedade, inclusive na grande mídia. Em um cenário de multiplicação de tecnologias da informação e comunicação (TICs), desenvolver habilidades tecnológicas e facilitar o acesso são formas de promoção da inclusão social.

Nesse sentido, o trabalho desenvolvido desde 2018 com usuários do Caps Magal no Blogue Libertando a Mente tem mostrado o potencial do uso das TICs para popularizar o tema e promover a inclusão digital e social de pessoas em sofrimento mental. Outro exemplo de maior alcance é o Podcast Esquizofrenoias, da jornalista Amanda Ramalho, que convive com a depressão e a ansiedade desde a adolescência. O programa começou a ser produzido em 2018 e trata do assunto de forma natural, trazendo as experiências da jornalista e de convidados, além de posicionamentos de especialistas.

Já na área da educação, pensar os processos e espaços de ensino e aprendizagem também é uma forma de promover o debate. Isso pode se dar tanto na formação profissional em diversas áreas do conhecimento no ensino técnico e superior, como na formação de crianças e jovens em idade escolar. Para uns, esse debate pode ocorrer na formação e na atuação profissional. Para outros, ainda há tempo de promover uma educação básica que amplie as noções de saúde mental e a liberdade para falar sobre o assunto.

O livro infantil Paulinho e a pílula anti-pulo, de Clara D’ávila e Lucas Gonçalves, com ilustrações de Marcos Chica Díaz, mostra como é possível levar a discussão para crianças. Com um texto simples e curto, em português e espanhol, e imagens coloridas e lúdicas, o livro fala sobre a medicalização infantil por meio da história do menino Paulinho e de sua incontrolável mania de pular. Sem adultos que falem abertamente e de forma fundamentada sobre saúde mental, dificilmente teremos próximas gerações que o farão e estaremos fadados à perpetuação dos preconceitos e do debate institucionalizado.

Por fim, a questão é complexa e deve ser pensada coletivamente: profissionais da saúde mental, usuários, familiares, sociedade civil e entidades governamentais. A discussão restrita produz uma população desinformada sobre o tema e alheia aos processos civilizatórios – direitos, cidadania, inclusão social e diversidade – ligados à saúde mental. Isso reduz a possibilidade de um debate rico e democrático sobre saúde pública no Brasil. Sem debate democrático não há ampliação e defesa de direitos.

Referências bibliográficas:

AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

AMARANTE, Paulo . Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1995.

Os impactos negativos das crenças dos médicos não-psiquiátricos sobre o tratamento da esquizofrenia

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Um estudo em Psychology and Psychotherapy: Theory, Research, and Practice investiga as crenças causais de médicos não psiquiátricos sobre as origens de um diagnóstico de esquizofrenia. Os autores, uma equipe de pesquisa liderada por Lorenza Magliano, do Departamento de Psicologia da Universidade Campania, na Itália, revelam como essas crenças influenciam o tratamento e o prognóstico entre médicos que apoiam causas biogenéticas versus causas psicossociais.

Dos 264 participantes que expressaram a sua opinião sobre as causas mais importantes de “esquizofrenia”, 54% indicaram acreditar em uma causa biogenética. Os pesquisadores fornecem aos profissionais pontos-chave de consideração para entender como os seus sistemas de crenças afetam os pacientes que recebem o diagnóstico de esquizofrenia. Magliano e coautores explicam:

“Apresentar a esquizofrenia como uma ‘doença como qualquer outra’, ou seja, equiparar a experiência da psicose com a de ter uma doença física, teve a pretensão de melhorar a aceitação social dos  ‘esquizofrênicos’, a reduzir a culpa por essa condição. Porém, na verdade, explicar a esquizofrenia como causada por fatores genéticos, desequilíbrios químicos e anomalias cerebrais causa um prognóstico pessimista, percepções de periculosidade e imprevisibilidade e desejo de distância social dessas pessoas.”

A esquizofrenia é um diagnóstico contestado que captura uma gama diversificada de experiências, geralmente caracterizadas por sintomas psicóticos, como paranoia, delírios ou alucinações. Apesar da falta de evidências conclusivas, a psiquiatria promoveu a ideia de que a esquizofrenia é uma doença do cérebro. Essa abordagem biológica para entender a ‘esquizofrenia’ tem sido o ponto de vista dominante entre os profissionais médicos há décadas, apesar do público (incluindo aqueles com experiência vivida e suas famílias) que têm mais probabilidade de apoiar causas psicossociais do que as biogenéticas.

Embora tenha havido um grande número de estudos documentando a influência das crenças causais nas atitudes públicas em relação às pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, poucos estudos investigaram as explicações etiológicas dos médicos não-psiquiátricos e como isso afeta a sua prática clínica. Devido à alta prevalência de problemas de saúde física em que as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia costumam sofrer e os cuidados médicos abaixo do ideal que costumam receber, são necessárias pesquisas entre profissionais médicos não psiquiátricos.

Crenças sobre as causas da psicose e da esquizofrenia podem influenciar significativamente as escolhas terapêuticas e as abordagens clínicas dos profissionais médicos, incluindo a empatia dos médicos por seus pacientes. Notavelmente, um estudo descobriu que os psiquiatras que explicaram os sintomas em termos de fatores biológicos, em vez de psicossociais, mostraram menos empatia com os seus pacientes e menos ênfase na psicoterapia. Houve achados semelhantes entre a equipe de saúde mental, mostrando também que o sistema de crenças do modelo biogenético atribui maior utilidade aos medicamentos. Por outro lado, aqueles que apoiam os sistemas de crenças psicossociais tendem a classificar as psicoterapias como mais eficazes.

Os pesquisadores investigaram o impacto das explicações causais da esquizofrenia no tratamento de uma amostra de 192 médicos generalistas e 114 médicos especialistas em psiquiatria que trabalhavam em centros comunitários ambulatoriais. O participante completou o “Questionário de Opiniões sobre Transtornos Mentais” (QO) revisado.

As questões de QO foram dicotomizadas como causas biogenéticas (hereditariedade, desequilíbrio químico, doença durante a gravidez, uso de álcool e drogas de rua) e causas psicossociais (estresse, dificuldades no trabalho, conflitos familiares, experiências adversas na infância, incluindo abuso sexual, físico e psicológico ou violência). As respostas que incluíram explicações biogenéticas e psicossociais foram consideradas biopsicossociais. Uma análise mais aprofundada foi feita sobre as crenças dos entrevistados sobre a utilidade dos medicamentos e das terapias psicológicas, a necessidade de tratamentos com medicamentos a longo prazo e o prognóstico da recuperação.

Os resultados constataram que 16% dos profissionais médicos apoiavam apenas causas biogenéticas, 75% apoiavam tanto biológicas quanto psicossociais e 9% apoiavam apenas causas psicossociais. Enquanto a maioria dos participantes endossou causas biológicas e psicossociais, a maioria enfatizou mais os fatores biológicos e a genética (65%).

Embora tenha sido positivo constatar que a maioria dos médicos não psiquiátricos tem uma interpretação biopsicossocial equilibrada do diagnóstico de esquizofrenia, ainda há evidências alarmantes da crença de que a causa mais importante é a biológica e principalmente hereditária. Esse resultado sugere que muitos entrevistados podem considerar as causas psicossociais como meros fatores desencadeantes, e não como verdadeiros fatores causais.

Além disso, esses achados indicam a difusão de uma percepção hereditária do diagnóstico controverso, apesar de inúmeras revisões e críticas que demonstram que os estudos sobre o papel da genética no desenvolvimento da psicose não foram apenas muito exagerados, mas são dificultados por métodos metodológicos.

“Os resultados deste estudo confirmam achados anteriores de que ver a esquizofrenia principalmente devido a uma causa biológica está associado à maior confiança nos medicamentos, maior convicção da necessidade de tratamentos farmacológicos ao longo da vida e ao pessimismo no prognóstico. Além disso, a adesão a um modelo de esquizofrenia biologicamente orientado pode levar a uma subestimação do valor dos psicólogos. ”

Notavelmente, apesar da crescente preocupação com a eficácia e segurança a longo prazo da medicação antipsicótica, esses resultados destacam a crença continuada em tratamentos farmacológicos entre profissionais médicos. Setenta e cinco da amostra acreditavam que as pessoas com o diagnóstico de esquizofrenia devem tomar medicamentos psicotrópicos por toda a vida e 64% pensaram que esses indivíduos se tornariam perigosos se parassem de usar medicamentos psiquiátricos.

Essa crença contradiz um crescente corpo de evidências sobre os fatores de risco para violência em pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e distúrbios relacionados. Enquanto 56% dos médicos consideram as intervenções psicológicas úteis, apenas 29% do total de participantes acredita que as pessoas “com o transtorno” podem se recuperar.

Os resultados deste estudo sugerem a importância de esforços para fornecer aos médicos não psiquiátricos treinamento sobre as diversas causas de interação dos sintomas que provocam o diagnóstico de “esquizofrenia”, incluindo a educação sobre fatores psicossociais, eficácia e segurança de uma ampla variedade de evidências com base em tratamentos, informações sobre taxas reais de recuperação e os riscos reais de comportamentos perigosos entre aqueles diagnosticados com esquizofrenia.

Os autores concluem com os seguintes pontos-chave a serem considerados pelos profissionais:

  1. Ver a esquizofrenia como tendo principalmente uma causa biológica está associado a uma maior confiança na utilidade dos medicamentos, uma crença mais firme na necessidade vitalícia de medicamentos e um maior pessimismo de prognóstico.
  2. Um modelo de crença biologicamente orientado pode levar os médicos a subestimar o valor dos psicólogos.
  3. O pessimismo prognóstico entre os médicos pode influenciar negativamente as decisões clínicas, as informações fornecidas pelos médicos e as crenças dos clientes sobre as suas chances de recuperação.
  4. A crença na necessidade de tratamentos farmacológicos ao longo da vida pode levar os médicos a resistir à retirada do medicamento em caso de efeitos colaterais graves.

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Magliano, L., Citarelli, G., & Read, J. (2019). The beliefs of non‐psychiatric doctors about the causes, treatments, and prognosis of schizophrenia. Psychology and Psychotherapy: Theory, Research, and Practice. https://doi.org/10.1111/papt.12252 (Link) 

Estudo controlado randomizado confirma que antipsicóticos danificam o cérebro

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Em um novo estudo publicado na JAMA Psychiatry, o uso de antipsicóticos (neste caso, olanzapina) foi associado a danos ao cérebro em várias áreas. Os pesquisadores usaram um projeto de ensaio controlado e randomizado (ECR), o que lhes permite sugerir que os medicamentos causam o efeito observado no cérebro. Os pesquisadores descobriram desbaste cortical “generalizado” naqueles que tomaram o medicamento versus aqueles que tomaram um placebo.

“Ao contrário dos estudos não controlados, nosso projeto de ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo fornece evidências potenciais de causa: a administração de olanzapina pode causar uma diminuição na espessura cortical em humanos”, escrevem os pesquisadores.

A exposição à olanzapina por apenas 36 semanas resultou em uma perda de espessura cortical igual a até quatro vezes a perda, em média, durante toda a vida útil de alguém que não tomou o medicamento.

Pesquisas anteriores apoiam essa descoberta. Os pesquisadores citam estudos em roedores e macacos que descobriram que o uso de antipsicóticos resultou em uma perda de 10% do volume cortical. Atrofia cerebral foi relatada em crianças em uso de antipsicóticos, e o uso de antipsicóticos está associado ao aumento do risco de morte em crianças. Antidepressivos e antipsicóticos têm sido associados a um risco aumentado de desenvolver demência.

Melhores resultados também foram relatados para aqueles que param de tomar antipsicóticos. Um estudo recente mostrou que a adição de antipsicóticos à psicoterapia para a psicose do primeiro episódio não resultou em melhorias. A interrupção do uso de antipsicóticos também foi associada à melhora da cognição.

Detalhes do Estudo

Aristóteles Voineskos liderou a pesquisa no Centro de Dependência e Saúde Mental [Centre for Addiction and Mental Health], Toronto, Canadá. O estudo foi uma continuação do estudo  Farmacoterapia da Depressão Psicótica II (STOP-PDII). Os participantes desse estudo eram pessoas com diagnóstico de “depressão psicótica”. Eles receberam olanzapina (Zyprexa, um “antipsicótico”) e sertralina (Zoloft, um “antidepressivo”) durante todo o teste inicial.

Aqueles que responderam ao tratamento foram randomizados para esta segunda parte do teste (aqueles que não apresentaram mais sintomas psicóticos e quase ou totalmente se recuperaram da depressão). Todos continuaram recebendo sertralina, mas metade foi designada aleatoriamente para continuar a olanzapina, enquanto que a outra metade recebeu um placebo. Os participantes fizeram uma ressonância magnética cerebral realizada no início deste segundo estudo e no final, 36 semanas depois.

Resultados

Ao comparar aqueles que tomavam olanzapina com aqueles que receberam placebo, os do grupo olanzapina tiveram mais afinamento cortical – o que significa que o medicamento foi responsável. Quando os pesquisadores se concentraram apenas naqueles que experimentaram remissão da depressão, os do grupo olanzapina ainda tiveram mais afinamento cortical – o que significa que a remissão não pode ser responsável pelo efeito. Segundo os pesquisadores:

“Este estudo randomizado em humanos controla fatores de confusão presentes em estudos observacionais anteriores, como gravidade da doença ou outros fatores associados à doença que influenciam a estrutura do cérebro (por exemplo, status socioeconômico, estresse e uso de substâncias).”

Os pesquisadores observam que os antipsicóticos estão sendo cada vez mais prescritos para pessoas com diagnóstico como autismo e depressão. Eles também confirmam que os antipsicóticos apresentam uma série de efeitos colaterais perigosos, entre os quais o risco de morte súbita – “com risco de morte inesperada substancialmente maior em crianças e idosos”.

Os pesquisadores confirmaram que, neste estudo, os efeitos da olanzapina na estrutura cerebral foram mais pronunciados para os participantes mais velhos.

As Outras Análises

Os pesquisadores também conduziram várias análises “exploratórias”, que compararam subgrupos dentro de seus estudos. Elas devem ser vistos com ceticismo, pois as análises exploratórias exigem confirmação de estudos projetados para testá-los.

Os achados exploratórios foram os seguintes:

  • Dos que recaíram, aqueles que receberam placebo tiveram mais afinamento cortical.
  • Dos que tomaram placebo, os que tiveram recidiva tiveram mais afinamento cortical.
  • Dos que tomaram olanzapina, aqueles que remeteram tiveram mais afinamento cortical do que aqueles que recidivaram

É difícil saber como interpretar essas descobertas, especialmente a última, que indica que não ter mais sintomas depressivos na olanzapina pode ser pior para o cérebro do que continuar tendo sintomas depressivos enquanto estiver na olanzapina. Também é possível que o afinamento cortical seja uma má proxy para a saúde geral do cérebro e outros efeitos.

Além disso, todos os participantes tomaram sertralina e olanzapina e melhoraram antes de serem randomizados para continuar o antipsicótico ou receber o placebo. Isso pode confundir os resultados, já que todos os participantes foram expostos a medicamentos potencialmente danosos ao cérebro em algum momento.

No geral, porém, os pesquisadores recomendam cautela na prescrição de antipsicóticos:

“Dado que as reduções na espessura cortical são tipicamente interpretadas em transtornos psiquiátricos e neurológicos como indesejáveis, nossos resultados podem apoiar a consideração dos riscos e benefícios dos antipsicóticos.”

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Voineskos, A. N., Mulsant, B. H., Dickie, E. W., Neufeld, N. H., Rothschild, A. J., Whyte, E. M., Flint, A. J. (2020). Effects of antipsychotic medication on brain structure in patients with major depressive disorder and psychotic features: Neuroimaging findings in the context of a randomized placebo-controlled clinical trial. JAMA Psychiatry. Published online, February 26, 2020. DOI: 10.1001/jamapsychiatry.2020.0036. (Link)

O que implica chamar de ‘heróis’ aos profissionais de saúde

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A pandemia do COVID-19 desencadeou uma narrativa da mídia sobre os profissionais de saúde como os ‘heróis’. Embora bem-intencionada, chamar os profissionais de saúde de ‘heroicos’ pode ter consequências negativas não intencionais. Em um novo artigo, apresentado no Journal of Medical Ethics, Caitríona L. Cox, do Healthcare Improvement Studies Institute (THIS), examina algumas dessas consequências.

Cox explora como essa narrativa leva ao fracasso em reconhecer os limites dos deveres dos trabalhadores da área de saúde, à falta de reconhecimento do papel que as instituições públicas e governamentais têm no combate à pandemia e aos impactos psicológicos negativos sobre os trabalhadores da área de saúde. Cox escreve:

“O heroísmo individual não fornece uma base firme para se construir uma resposta sistemática a uma pandemia: deve haver o reconhecimento das responsabilidades das instituições de saúde e do público em geral”.

Os heróis são amplamente entendidos como indivíduos que se engajam em ações a serviço do bem maior, ou algo maior que eles, também chamados de “ação supererrogatória” na literatura de pesquisa. O heroísmo vai além desses atos; no entanto, como a ação supererrogatória inclui coisas como doar dinheiro para caridade, o que normalmente não é considerado heroico. Critérios adicionais para o heroísmo incluem ser um ato voluntário, e geralmente envolve algum grau de risco ou sacrifício pessoal a serviço do outro.

As tarefas diárias dos profissionais de saúde podem ser consideradas heroicas fora de uma pandemia, pois são rotineiramente confrontadas com situações em que ajudam outras pessoas, apesar dos riscos pessoais, como a exposição a doenças infecciosas como hepatite ou tuberculose. Os profissionais de saúde estão cientes e aceitam esses riscos como parte do trabalho – ainda assim, eles não eram amplamente elogiados como heróis na mídia antes da pandemia.

Analisando o que mudou, que deu origem a um reconhecimento mais amplo dos profissionais de saúde como heróis, Cox aponta para os riscos crescentes que os profissionais de saúde enfrentam durante a pandemia. Ela também destaca outros custos além do risco de infecção, como encontrar dilemas éticos desafiadores, o custo físico e psicológico de lidar com a pandemia, perder pacientes e colegas para o COVID-19 e, para alguns, ter que viver à parte dos entes vulneráveis por períodos prolongados.

A experiência vivida de muitos profissionais de saúde que precisam sair de casa para trabalhar difere drasticamente das mensagens para ficar em casa que o público em geral recebeu sobre como lidar com a pandemia. Isso, juntamente com o uso de linguagem no estilo militar para descrever os profissionais de saúde como ‘combatentes’ e ‘combatendo’ o vírus, deixa claro como a narrativa do profissional de saúde como herói se tornou tão proeminente.

Embora os profissionais de saúde realmente se encaixem no papel do herói, existem vários problemas em vê-los dessa maneira. Cox descreve como rotular os profissionais de saúde como heróis impede a discussão significativa sobre os limites de seu dever de cuidar dos pacientes. Não permite explorar as expectativas e obrigações dos profissionais de saúde durante uma pandemia.

Ela argumenta que é necessário haver um consenso sobre qual o nível de risco dos profissionais de saúde que estão sendo solicitados a se submeter. Embora esse tópico não tenha sido totalmente ignorado – por exemplo, profissionais de saúde vulneráveis ​​e com condições médicas subjacentes foram alertados para evitar o contato cara a cara com os pacientes – é preciso haver uma exploração adicional sobre como podemos negociar os limites da assistência médica dos trabalhadores em face do COVID-19.

Além disso, elogiar os profissionais de saúde como heróis ignora os papéis vitais que o público, as instituições de saúde e o governo têm na abordagem da pandemia – não é uma luta unilateral. O objetivo das instituições de saúde é proteger e apoiar aos seus funcionários, adotando ações como o fornecimento de equipamento de proteção individual (EPI) adequado, comunicando claramente riscos e expectativas a seus funcionários, fornecendo treinamento e outros recursos necessários, fornecendo acesso ao tratamento se os trabalhadores forem infectados , disponibilizando terapia e apoio psicológico e fornecendo apoio, incluindo compensação financeira, aos membros da família se os trabalhadores morrerem.

A responsabilidade do público em geral consiste em tomar medidas para reduzir a disseminação, como ficar em casa, seguir diretrizes de distanciamento social e usar coberturas de rosto quando em público, mas também fora de tempos de crise, como pagar impostos e votar em funcionários eleitos que apoiarão o sistema de saúde.

A ênfase da mídia nos profissionais de saúde como heróis afasta o foco das responsabilidades cruciais do público, e as instituições governamentais e de saúde precisam apoiar os profissionais de saúde. Isso, por sua vez, impede que as necessidades dos profissionais de saúde sejam atendidas. Vimos isso em gritos repetidos por equipamentos de proteção individual (EPI) adequados por profissionais de saúde em toda a pandemia. Cox escreve:

“A cobertura da mídia que elogia o heroísmo entre os profissionais de saúde desvia a atenção da importância crítica de garantir que as obrigações sociais recíprocas com os profissionais de saúde sejam cumpridas; como observa Reid, ‘a obrigação de nobre sacrifício parece incompatível com a insistência em equipamentos de proteção adequados’. “

Ela destaca como, durante a epidemia de SARS, a narrativa do herói foi usada como uma ferramenta política para desviar a atenção dos erros cometidos pelo governo em sua resposta ao surto. O foco no sacrifício abnegado dos profissionais de saúde negligencia enfatizar os deveres morais que o público e as instituições têm para apoiar esses trabalhadores, nem reconhece que essas obrigações sociais são cruciais para que os profissionais de saúde possam cumprir com os seus deveres.

Esses deveres morais não pertencem apenas ao apoio dos trabalhadores da saúde, mas também às nossas populações vulneráveis, como os sem-teto, os que estão em prisões e instituições psiquiátricas e outros indivíduos marginalizados. Todos eles experimentam maiores desafios e riscos de infecção devido à pandemia.

Cox também direciona a atenção para o efeito psicológico negativo que ser chamado de herói pode ter sobre os profissionais de saúde:

“Não podemos pedir a todos os profissionais de saúde que vão trabalhar a aceitar riscos pessoais além do que é razoavelmente esperado deles, pois é simplesmente muito exigente; em suma, não podemos esperar heroísmo. ”

Um estudo envolvendo médicos americanos descobriu que apenas 55% deles concordaram que são obrigados a colocar a sua saúde em risco durante uma epidemia, e um estudo que incluiu profissionais de saúde britânicos descobriu que 26% discordavam que deveriam ter o dever de trabalhar, mesmo quando confrontado com alto risco. Portanto, é crucial reconhecer que alguns profissionais de saúde podem sentir que estão sendo empurrados para além dos limites do que concordaram quando entraram nessa linha de trabalho. É injusto e irracional esperar heroísmo.

Além disso, esperar por heroísmo deixa de reconhecer e atender aos medos e ansiedades genuínas enfrentadas pelos profissionais de saúde. Os profissionais de saúde são psicologicamente impactados negativamente pelo COVID-19, e devemos reconhecer seu sofrimento e fornecer-lhes o apoio de que precisam.

Outros destacaram como os profissionais de saúde têm um risco aumentado de sofrimento emocional de longo prazo após a quarentena devido ao aumento da exposição ao COVID-19 e pediram maior disponibilidade de cuidados de saúde mental para esses indivíduos.

Demonstrando ainda mais o impacto negativo de ser chamado de herói pode ter sobre os profissionais de saúde, os profissionais do setor de saúde expressaram sentir-se desconfortáveis ​​com esse rótulo. As expectativas irreais de todos os profissionais de saúde como heróis e a pressão indevida que isso exerce sobre os que trabalham no campo traz à tona a necessidade de a mídia reconsiderar fazer uso desse termo.

Cox termina a sua revisão com um pedido para que sejam tomadas medidas significativas para apoiar melhor os nossos profissionais de saúde:

“Em vez de elogiar todos os profissionais de saúde como heróis e aplaudi-los toda quinta-feira, precisamos examinar criticamente, como sociedade, quais deveres achamos que os profissionais de saúde precisam para trabalhar nessa pandemia, quais são os limites razoáveis ​​para esses deveres e como podemos apoie-os reciprocamente.”

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Cox, C.L. (2020). ‘Healthcare Heroes’: problems with media focus on heroism from healthcare workers during the COVID-19 pandemic. Journal of Medical Ethics, 0, 1-4. (Link)

A oposição à corrupção na ciência psiquiátrica é um imperativo dos direitos humanos

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Um artigo recente publicado em Health and Human Rights explora como o relacionamento entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria prejudica uma abordagem baseada em direitos humanos para os cuidados de saúde mental. Os autores, Lisa Cosgrove e Allen F. Shaughnessy, argumentam que a “ciência comercializada”, com vínculos com a indústria farmacêutica, leva a intervenções individualizadas que são rentáveis para as empresas e que impede mudanças sociais e estruturais que levem à justiça social. Eles propõem que se avance em direção a um entendimento “moral” do sofrimento humano, em vez de econômico.

“A hegemonia do modelo médico e a dependência excessiva da psiquiatria organizada como principal formulador de políticas prejudicaram o desenvolvimento da política de saúde mental ‘como uma questão intersetorial robusta’. Como resultado, tem havido uma ênfase excessiva nas intervenções biomédicas voltadas para o indivíduo, e não para a promoção da saúde de base populacional, embora esta último seja tão importante quanto o tratamento da saúde individual ”, escrevem Cosgrove e Shaughnessy.

“O foco nas intervenções biomédicas é particularmente desconcertante devido às maneiras pelas quais a influência da indústria comprometeu a base de evidências científicas na medicina”.

Nos últimos anos, pesquisadores, usuários de serviços e defensores dos direitos dos usuários têm defendido uma mudança em direção a uma abordagem baseada em direitos humanos aos cuidados de saúde mental, criticando, em particular, a dependência à “coerção” e à “supermedicalização” em psiquiatria.

O argumento do relator especial das Nações Unidas, Dainius Pūras, é que a psiquiatria convencional muitas vezes favorece essas abordagens médicas individualistas, deixando de levar em conta os determinantes sociais da saúde mental, como pobreza, discriminação e violência.

A autora Lisa Cosgrove, em colaboração com Robert Whitaker, da Mad in America, documentou que a “corrupção institucional” na psiquiatria vem desempenhando um papel muito significativo na visualização e no tratamento desses problemas sistêmicos como sendo problemas individuais.

O artigo atual explora como a “ciência comercializada” prejudica uma abordagem baseada em direitos humanos para os cuidados de saúde mental. Cosgrove e Shaughnessy argumentam que existe um viés significativo e um conflito econômico de interesse nas ciências psiquiátricas, na educação médica e na prática clínica, com os seus laços antiéticos com a indústria farmacêutica. Eles discutem a extensão desse viés e propõem uma “quadro de referência moral” para se entender o sofrimento humano.

Cosgrove e Shaughnessy afirmam que os vínculos antiéticos entre a academia e a indústria médica resultaram em corrupção “impressionante” que se manifesta em vários níveis, incluindo “práticas de prescrição, educação médica, recomendações de diretrizes e decisões editoriais”, além das evidências de pesquisa.

Os autores discutem quatro dimensões do viés comercial na pesquisa, na prática e na educação em psiquiatria: 1) taxonomia psiquiátrica, 2) ensaios com drogas psicotrópicas, 3) diretrizes de atendimento clínico e 4) educação médica.

Eles argumentam que a maneira como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) foi criado, começando com a mudança da psicanálise para a psiquiatria médica na terceira edição, incentivou uma lógica de “uma pílula para todos os males”. Isso ocorreu devido à ênfase do DSM-III em diagnósticos quantificáveis com base em lista de sintomas, imitando a medicina convencional.

Os autores esclarecem que não era intenção da Associação Americana de Psiquiatria (APA) criar um sistema de diagnóstico que se prestasse ao tratamento farmacêutico, citando o presidente do DSM-III, Robert Spitzer, dizendo que “[os] farmacêuticos ficaram encantados” com a nova taxonomia de diagnóstico. Cosgrove e Shaughnessy explicam:

“O fato de a maioria dos membros do painel do DSM IV e do DSM 5 terem laços financeiros com os fabricantes de medicamentos psicotrópicos usados para tratar os transtornos descritos no Manual levantou preocupações sobre a indústria exercer uma influência indevida sobre eles”.

Segundo, Cosgrove e Shaughnessy discutem a relação entre a ciência médica e a indústria. Por exemplo, pesquisas descobriram que estudos patrocinados pelo setor, sem surpresa, tendem a apoiar os seus produtos, criando o que é conhecido como “viés de patrocínio”.

Na pesquisa psiquiátrica, os estudos farmacêuticos com conflitos de interesse relatados tiveram quase cinco vezes mais chances de relatar resultados positivos. Os ensaios clínicos aleatorizados de drogas psicotrópicas de fase III com financiamento da indústria “resultam consistentemente na publicação de resultados pró-indústria, superestimação da eficácia e subnotificação de danos”.

O desenvolvimento de diretrizes de atendimento clínico é outra área em que surgem conflitos de interesse. 90% dos autores responsáveis pelas três principais diretrizes clínicas da Associação Americana de Psiquiatria – para transtorno depressivo maior, transtorno bipolar e esquizofrenia – tinham laços financeiros com as empresas que criaram os medicamentos mencionados nos tratamentos recomendados nesses guias. Outra pesquisa citada pelos autores mostra anexos antiéticos semelhantes.

Finalmente, Cosgrove e Shaughnessy apontam para a educação médica como submetida ao domínio dos interesses da indústria. Isso varia desde estudantes de medicina recebendo “de refeições a presentes, livros ou material didático” por empresas farmacêuticas, até o apoio comercial de créditos de educação médica continuada (EMC) para médicos psiquiátricos. Segundo os autores: “quase três quartos dos 500 principais fornecedores de CME recebem suporte comercial”.

Esses programas de CME financiados pelo setor foram criticados por “conter mensagens de marketing que não são equilibradas nem precisas”. Apesar dos apelos da Academia Nacional de Medicina para acabar com o relacionamento entre a indústria e a CME, pouco tem mudado.

Contrariando as soluções burocráticas e tecnocráticas, Cosgrove e Shaughnessy defendem uma solução moral para essas questões. Eles sugerem várias possibilidades, como:

  • Incluir as perspectivas dos usuários de serviços com experiência vivida de sofrimento psíquico no desenvolvimento de “políticas, programas e diretrizes clínicas de atendimento”.
  • Desafiar a estigmatização institucional dos usuários do serviço para evitar a “troca de benevolência”.
  • Enfatizar a “saúde de base populacional” psicossocial, em vez de tratamentos exclusivamente “intraindividuais” com base biomédica.
  • Examinar as assimetrias de poder – uma mudança “de falar sobre desequilíbrios químicos para tratar de desequilíbrios de poder”.

Os autores concluem:

“Quais são as condições para a possibilidade de uma abordagem robusta dos direitos humanos à saúde mental? Embora essa pergunta evite respostas fáceis, um ponto de partida necessário é reconhecer que os precários fundamentos epistemológicos da psiquiatria permitem que o campo da saúde mental seja manipulado pela indústria.

Portanto, embora esteja claro que muitas pessoas em todo o mundo não estão recebendo os cuidados de saúde de que precisam e merecem, também é evidente que a exportação acrítica do modelo de doença biomédica não fornecerá intervenções de saúde mental de maneira ideal para o nível indivíduo ou da população.”

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Cosgrove, L. & Shaughnessy, A. F. (2020). Mental health as a basic human right and the interference of commercialized science. Health and Human Rights, 22(1), 61-68. (Link)

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