O uso do lítio leva à doença crônica dos rins

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O lítio é normalmente prescrito a pessoas diagnosticadas com transtorno bipolar. O medicamento é freqüentemente mantido indefinidamente como um tratamento de “manutenção” porque é teorizado para ter efeito preventivo enquanto “estabilizador do humor”. Entretanto, requer monitoramento constante porque a toxicidade do lítio pode danificar vários sistemas corporais e até mesmo levar à morte.

Agora, um novo estudo demonstrou que o uso do lítio causa doenças renais crônicas a uma taxa maior, particularmente naqueles que usaram a droga a longo prazo.

“Os pacientes tratados com lítio correm maior risco de doença renal crônica após exposição a longo prazo”, escrevem os pesquisadores.

Os pesquisadores observam que mais da metade daqueles que começam a tomar lítio interrompem o uso da droga por causa de seus efeitos adversos. Os níveis de lítio devem ser medidos a cada três a seis meses porque a droga pode se acumular no cérebro e causar danos permanentes ao cérebro (“toxicidade neural”). Além disso, o dano à tireóide é comum, com aqueles que tomam lítio com cerca de seis vezes mais probabilidade de ter hipotiroidismo do que a população em geral. Outra preocupação de nota é o risco de danos renais graves. Cerca de 20% das pessoas que tomam lítio sofrem de diabetes nefrogênico insípido e, em alguns casos, os danos renais podem ser irreversíveis.

O estudo atual foi publicado na revista psiquiátrica de ponta Lancet Psychiatry, e a pesquisa foi conduzida por Filip Fransson na Universidade de Umeå, na Suécia.

Os pesquisadores mediram a taxa de filtração glomerular estimada (eGFR), que é a quantidade de sangue que os rins são capazes de limpar dentro de um determinado período de tempo. medida que aponta que a função renal piora, a taxa de filtração glomerular diminui (já que os rins trabalham mais e mais lentamente para limpar a mesma quantidade de sangue).

Os dados vieram de duas fontes: Lithium-Study into Effects and Side-effects (LiSIE) e Northern Sweden WHO Monitoring of Trends and Determinants in Cardiovascular Disease (MONICA). LiSIE é um grande estudo de coorte de pacientes com diagnóstico de transtorno bipolar ou esquizoafetivo, projetado para avaliar a eficácia e os efeitos adversos do lítio. MONICA é uma pesquisa destinada a avaliar a saúde do coração de uma amostra representativa da população sueca. No total, o estudo incluiu dados de 2.334 pacientes.

Quando os pesquisadores compararam pessoas com os mesmos diagnósticos (transtorno bipolar e transtorno esquizoafetivo), aqueles que tomaram lítio por mais de dez anos experimentaram um declínio significativamente maior na função renal do que aqueles que não tomaram a droga ou que tomaram a droga por um período mais curto.

Aqueles com diagnóstico de transtorno bipolar ou esquizoafetivo tiveram o mesmo declínio no eGFR que aqueles sem o diagnóstico. Mesmo aqueles que tinham usado lítio por menos de dez anos tiveram aproximadamente o mesmo declínio que o grupo de controle. Todos os grupos experimentaram uma queda de cerca de 0,57 mL/min/1,73 m² por ano (o que é normal já que a função decresce com a idade).

Entretanto, para cada ano no lítio, as pessoas experimentaram, em média, uma queda adicional de 0,54 mL/min/1,73 m² no eGFR. No ponto de 10 anos, esta foi uma diferença estatisticamente significativa.

“Não encontramos nenhuma diferença significativa no declínio da taxa de filtração glomerular entre pacientes com transtorno bipolar ou transtorno esquizoafetivo com nenhum ou apenas curto prazo de uso de lítio e a população de referência”, escrevem os pesquisadores. “O subgrupo que utilizou lítio por mais de 10 anos teve um declínio significativamente mais acentuado em comparação com todos os outros grupos, incluindo a população de referência”.

Dos 24 pacientes com um eGFR de menos de 45 mL/min/1,73 m² (considerado “doença renal crônica”), 20 tinham sido expostos ao lítio. Os pesquisadores concluíram que o lítio foi o “principal fator contribuinte” em 10 casos, mas provavelmente contribuiu (além de outros fatores) para muitos dos outros.

Em conclusão, eles escrevem:

“Todos os pacientes tratados com lítio devem ser considerados com alto risco de complicações renais. Outros possíveis fatores de risco de doença renal crônica, tais como hipertensão, fumo, diabetes ou uso de drogas nefrotóxicas, devem ser minimizados. A pressão arterial deve ser monitorada regularmente e a hipertensão deve ser tratada de forma assertiva. O peso corporal e os parâmetros metabólicos devem tornar-se parte do acompanhamento de rotina dos pacientes tratados com lítio. Pacientes em uma trajetória rápida devem ser encaminhados a um nefrologista cedo para descartar outras causas tratáveis de doenças renais. A tomada de decisão compartilhada entre nefrologistas e psiquiatras é fundamental para alcançar o melhor resultado para o paciente afetado individualmente”.

Este estudo é de especial importância, pois a utilidade do lítio como medicina preventiva foi recentemente posta em questão. Uma meta-análise importante de todos os ensaios modernos da droga não encontrou nenhuma evidência de que o lítio impedisse o suicídio ou comportamentos suicidas não-fatais. Além disso, um grande RCT recente de lítio para prevenção de suicídios em veteranos foi terminado cedo porque a droga não era melhor do que um placebo.

Estas descobertas lançam um balde de água fria sobre a noção, ainda hoje proposta ocasionalmente, de que o lítio deve ser adicionado à bebida.

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Fransson, F., Werneke, U., Harju, V., Öhlund, L., Lapidoth, J., Jonsson, P. A., . . . & Ott, M. (2022). Kidney function in patients with bipolar disorder with and without lithium treatment compared with the general population in northern Sweden: results from the LiSIE and MONICA cohorts. Lancet Psychiatry, 9, 804-814. (Link)

[trad. e editado por Fernando Freitas]

‘Atenção Plena’ é tão eficaz quanto Lexapro para a Ansiedade

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A redução do estresse baseada na “atenção plena” (mindfulness) pode ser tão eficaz quanto o popular medicamento para ansiedade de primeira linha Escitalopram, comumente conhecido como Lexapro. O estudo, publicado na JAMA Psychiatry no início de novembro, está nas manchetes dos principais veículos da grande midia, por ser a primeira vez que se compara diretamente o treinamento da “atenção plena” com um antidepressivo. Além disso, os resultados sugerem que os antidepressivos não precisam ser a única intervenção de primeira linha para a ansiedade.

Os autores, Elizabeth A. Hoge, Eric Bui, Mihriye Mete, Mary Ann Dutton, Amanda W. Baker e Naomi M. Simon, em seu ensaio de controle aleatório, encontraram uma redução não-inferior nos sintomas de ansiedade dos participantes que foram ensinados à “atenção plena” e meditação em comparação com os participantes a quem foi dado Escitalopram.

“Os transtornos de ansiedade são o tipo mais comum de transtorno mental, afetando atualmente cerca de 301 milhões de pessoas globalmente”, escrevem os autores.

“Foi constatado que a meditação baseada na “atenção plena” ajuda a reduzir a ansiedade; uma meta-análise recente de ensaios com transtornos de ansiedade havendo encontrado um benefício significativo com a meditação baseada na ‘atenção plena’ em comparação com o tratamento habitual… A redução do estresse baseada na atenção plena investigada é a mais ampla pesquisa feita (mais de 1000 citações no PubMed e está disponível internacionalmente). Pelo nosso conhecimento, é o primeiro ensaio clínico comparando redução do estresse com a ‘atenção plena’ baseada em evidências com um tratamento farmacológico de primeira linha para distúrbios de ansiedade até hoje publicado”.

Os autores sediados nos EUA procuraram preencher esta lacuna. Este ensaio clínico randomizado, “Tratamentos para a Ansiedade: Meditação e Escitalopram” , foi realizado em três grandes cidades dos EUA (Boston, Washington DC e Nova Iorque) de junho de 2018 a fevereiro de 2020.

Após o recrutamento, 208 participantes completaram o ensaio clínico. Para serem elegíveis para o ensaio, os participantes tiveram que estar entre 18 e 75 anos com um diagnóstico atual e primário de transtorno de ansiedade generalizada (GAD), transtorno de ansiedade social, transtorno de pânico ou agorafobia. Considerando que indivíduos com diagnóstico de transtorno bipolar vitalício, transtorno psicótico, transtorno obsessivo-compulsivo ou diagnóstico atual de anorexia ou bulimia nervosa, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de abuso de substâncias e ou suicídio ativo significativo não foram elegíveis.

Notavelmente, pacientes que tomavam medicamentos psiquiátricos foram excluídos, a menos que os medicamentos fossem trazodona (menos de 100 mg), certos medicamentos para dormir e qualquer benzodiazepina, desde que uma dose estável tenha sido estabelecida um mês antes.

Depois que os requisitos de elegibilidade foram cumpridos, os participantes foram entrevistados por um clínico em um dos três hospitais da Costa Leste dos Estados Unidos. O clínico do estudo foi designado a cada paciente de forma aleatória através de um programa de aleatorização em bloco gerado por computador. Esta aleatorização foi para assegurar que a gravidade básica da ansiedade do paciente fosse distribuída aleatoriamente entre os locais, clínicos e intervenções. A gravidade da ansiedade de linha de base foi medida pela escala Impressão Global Clínica de Gravidade (CGI-S), sendo a ansiedade de linha de base baixa menor ou igual a 4 e a ansiedade de linha de base alta maior que 4. As duas intervenções foram designadas para o grupo de redução do estresse baseado na atenção (MBSR) ou o grupo escitalopram (Lexapro).

O grupo Redução do Estresse com Atenção Plena participou de uma aula de 2,5 horas de Meditação com Atenção Plenaa uma vez por semana durante 8 semanas, ministrada por um instrutor qualificado em “atenção plena”. Algumas práticas na aula foram: concentrar a atenção na respiração, exame do corpo inteiro e movimento consciente. Os participantes designados para o grupo também participaram de uma aula de fim de semana de retiro de um dia na quinta ou sexta semana e receberam 45 minutos de exercícios práticos em casa.

O grupo escitalopram recebeu 10mg de Escitalopram driamente e, se bem tolerado, aumentou para 20mg na segunda semana. Os participantes fizeram o check in com seu médico de estudo durante todo o ensaio. Ao final da intervenção, os autores realizaram múltiplas análises estatísticas para determinar as diferenças entre os grupos de tratamento. Além disso, um modelo de regressão linear da pontuação CGI-S de cada paciente foi usado para discernir a diferença na redução/gestão dos sintomas de ansiedade entre os grupos de intervenção.

Os autores resumem seus resultados.

As análises dos resultados primários naqueles que completaram o ensaio na semana 8 mostraram não-inferioridade para a melhora da pontuação do CGI-S com Redução do Estresse com Atenção Plena em comparação com o escitalopram”.

Em outras palavras, os autores descobriram que a redução da gravidade da ansiedade nos grupos Redução da Ansiedade com Atenção Plena não foi significativamente diferente da do grupo Lexapro.

É claro que, como todos os estudos, este estudo tem sua parcela razoável de limitações. Em particular, a taxa de conclusão do grupo de intervenção com “atenção plena” foi de 75% e 76% para o grupo escitalopram, respectivamente. Entretanto, com um acompanhamento de 12 semanas, apenas 49% do grupo de intervenção consciente continuou sua prática de meditação, enquanto 78% do grupo Lexapro continuou seu regime de medicamentos. A adesão à intervenção piora com o tempo: com 24 semanas, apenas 28% do grupo Redução do Estresse com Atenção Plena continuou praticando a meditação, e 52% continuou a tomar Lexapro. Outras limitações incluem a população estudada – mulheres brancas mais bem instruídas. Além disso, dado que os locais do estudo são as principais áreas metropolitanas dos EUA, é um desafio generalizar essas descobertas para diversos grupos de pessoas e diferentes regiões geográficas.

Além disso, os autores observam que “a Meditação com Atenção Plena”neste estudo foi fornecida pessoalmente, com professores de meditação treinados disponíveis semanalmente para responder perguntas e orientar práticas, limitando qualquer extrapolação em apoio a aplicações ou programas de atenção plena que são entregues através da Internet”.

Embora vários outros estudos no passado tenham mostrado que a “atenção plena”pode levar à diminuição da ansiedade e depressão, este estudo ganhou atenção nacional, pois compara diretamente a eficácia de uma terapia de atenção baseada em evidências com a de um ISRS popular, o Escitalopram.

O estudo científico das práticas contemplativas está ganhando cada vez mais força nos Estados Unidos e pode proporcionar um caminho para reduzir as práticas de polifarmácia e o uso de drogas psicotrópicas a longo prazo.

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Hoge, E. A., Bui, E., Mete, M., Dutton, M. A., Baker, A. W., & Simon, N. M. Mindfulness-Based Stress Reduction vs. Escitalopram for the Treatment of Adults With Anxiety         Disorders: A Randomized Clinical Trial. JAMA psychiatry. (Link)

6 Coisas boas que aconteceram quando eu parei de acreditar na “Saúde Mental

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Nota do editor: Este blog foi originalmente publicado em nosso site afiliado, Mad in the UK.

A psiquiatria moderna transformou o sofrimento em um problema de saúde. Dá nomes que soam como doenças a sentimentos e comportamentos angustiantes (‘transtorno de ansiedade generalizada’, ‘transtorno alimentar’, ‘transtorno de déficit de atenção e hiperatividade’), para legitimar a ideia de que são doenças. Não há evidências científicas para apoiar essa hipótese, apesar de várias décadas e bilhões de dólares de pesquisa. O cérebro de uma pessoa que se sente deprimida não é diferente do cérebro de alguém que não se sente.

Essa abordagem, conhecida como modelo médico, tem várias consequências. Em primeiro lugar, apresenta-se como justificativa para a prescrição de medicamentos, que a psiquiatria chama de ‘medicação’, para anular os sintomas de angústia. Em segundo lugar, cria um desequilíbrio de poder, pelo qual o paciente é informado de que médicos, psiquiatras e terapeutas têm conhecimento especializado sobre seu sofrimento e autoridade sobre seu tratamento. Terceiro, leva as pessoas que sofrem a acreditar que têm um distúrbio, que sua dor é o sinal de uma disfunção dentro delas e que ser “saudável” é não ter sofrimento. O objetivo final do modelo médico para o sofredor (o ‘paciente’, em termos psiquiátricos) é a ‘saúde mental’, um padrão que se apresenta como uma ordem natural do ser, mas na verdade é um conceito normativo.

Durante os doze anos em que recebi terapia psicodinâmica ambulatorial para um “distúrbio alimentar”, juntamente com uma dose diária de Prozac, eu achava que ser saudável seria minha estrela do norte. Eu tive que organizar minha vida para que parecesse, para minha terapeuta, que eu entendia o que era saúde mental. Alterar meu comportamento seria essencial para superar o ‘transtorno alimentar’; apenas comendo certas combinações de alimentos, em certos momentos, em certas condições, que eu conseguiria me recuperar. Como o “distúrbio alimentar” distorcia meus pensamentos, me disseram, era importante monitorá-los também. A ruminação – insistir em um assunto – foi desencorajada; se eu permitisse que meus pensamentos vagassem livremente, como eu poderia reclamar de estar deprimido?

No final dos meus vinte anos, tive uma série de crises. Percebi que estava muito mais infeliz do que tinha sido aos dezessete anos, quando procurei tratamento pela primeira vez. A busca pela saúde mental me havia deixado louca. Por sorte, alguém que eu conhecia me explicou o modelo médico. Ele me disse que era uma teoria não comprovada, impulsionada em grande parte pelo lucro. O sistema em que eu confiava como a única maneira de receber ajuda era, na verdade, uma construção cientificamente corrupta e eticamente problemática, que me havia convencido e a incontáveis ​​milhões de outras pessoas de que nosso sofrimento era uma doença – uma doença que não realmente existem.

Os eventos ao meu redor estavam causando uma enorme dor emocional e eu queria alívio. Mas a psiquiatria havia se revelado como a nova roupagem do imperador. Eu me via através dela; não havia nada de mim. Abandonei o Prozac e a terapia psicodinâmica. Encontrei o Site de Psicanálise Contemporânea e comecei a ver um psicanalista três dias por semana. Ele havia sido treinado na Philadelphia Association, criada por R.D. Laing em 1965, que aborda o sofrimento em todas as suas formas como uma resposta inteligível a relacionamentos, circunstâncias e normas sociais.

A vida mudou, quase da noite para o dia. Antes, a terapia havia sito sentar na frente de um “especialista” e discutir as últimas evidências da minha doença – o almoço que eu não queria ou as lágrimas que não paravam. Agora, era uma conversa, com alguém que se recusava a se contentar com a noção de que eu estava desordenada.

Em uma de nossas primeiras sessões, eu disse ao meu novo psicanalista que era minha culpa estar tão deprimido, porque estava tendo pensamentos errados. Eu estava sentado de frente para ele; isso foi um ano antes de me deitar no sofá. Ele jogou a cabeça para trás e caiu na gargalhada. Ele continuou rindo e rindo e rindo. Nenhum terapeuta jamais riu na minha presença. Eu não tinha certeza do que fazer. Por fim, eu não pude deixar de sorrir.

O que é tão engraçado? Eu perguntei, hesitante.

Aquilo! ele exclamou. O que você acabou de dizer!

Que eu tenho os pensamentos errados?

Charlotte, disse ele, lutando para manter uma cara séria. Não há nada de errado com seus pensamentos.

A mais ridícula mentira do modelo médico foi derrubada rapidamente – que eu tinha pensamentos errados; que sentir-se deprimido era uma falha biológica; que eu era um perigo para mim mesmo sem ‘antidepressivos’. Mas outras implicações flagrantes persistiram – que meu sofrimento era um sinal de que eu não era normal; que enquanto estou com dor emocional, devo fazer algo para eliminá-la; e que como eu gostava de passar meu tempo estava errado. Essas ideias levaram anos para serem desalojadas de mim. Eis várias coisas que aconteceram durante esse processo.

  1. Eu leio mais do que nunca

Meu psicanalista ajudou a tirar a minha ressaca da psiquiatria. Mas eu só o via três ou quatro horas por semana. O resto do tempo, os livros foram essenciais. Li todos os escritores que pude encontrar que desafiaram o edifício pseudocientífico sobre o qual oscila o modelo médico. Uma lista inexaurível inclui Michel Foucault, R.D. Laing, David Cooper, Thomas Szasz, Sigmund Freud, Jacques Lacan, Donald Winnicott, Slavoj Zizek, Marion Milner, John Heaton, Robert Whitaker, Richard Bentall, James Davies, Jacqueline Rose, Adam Phillips, Darian Leader, Jessica Taylor, Lucy Johnstone, Joanna Moncrieff e dezenas mais.

Li sobre o Marco de Referência Poder Ameaça e Sentido; sobre os esforços do Relator Especial das Nações Unidas para desafiar a medicalização do sofrimento; e sobre as experiências de pessoas como Laura Delano, que, como eu, confiara na psiquiatria para ajudar, apenas para descobrir que causava sérios danos.

Anteriormente, o terapeuta de distúrbios alimentares havia me feito entender que a minha dor era um problema médico e, portanto, questões filosóficas não eram relevantes. A sala de terapia não era um espaço para discussão intelectual. De fato, quando aos dezoito anos, li que um sintoma comum de “distúrbios alimentares” era o excesso de intelectualização, disse a mim mesmo que intelectualizar não era saudável e perpetuaria minha doença. Nas raras ocasiões em que mencionei ao terapeuta de distúrbios alimentares o que estava lendo no meu curso de inglês, pedi desculpas. A literatura não era tão séria quanto a psiquiatria; o que era importante na sala de terapia era a minha doença, não meus interesses. Em retrospectiva, acho que me senti arrependida por ter levado a conversa para um campo no qual ela não estava confiante; eu havia desafiado a sua autoridade e a extensão de seu conhecimento, e isso, em psiquiatria, é algo que o paciente nunca deveria fazer.

Na psicanálise, porém, discuti tudo. Meu analista me disse para parar de pedir desculpas por citar quem eu estava lendo. Ele me deixou falar. Comecei a entender que não precisava trazer a ele provas dos meus problemas toda vez que nos encontrávamos. Eu poderia falar com ele sobre o que eu gostava. Na análise, a questão não era como ser saudável, mas a quem e o que amar, como viver e, de fato, como sofrer.

Enquanto lia mais livros, parei de ler a maioria dos artigos da mídia sobre saúde mental, a não ser para rir deles. Com exceção de uma enxurrada muito recente de artigos que desafiam o domínio da psiquiatria biomédica, a maioria das reportagens dos principais meios de comunicação reafirmam acriticamente as afirmações e suposições do modelo médico. Conceitos como ‘transtorno mental’ são apresentados como fato médico, e os falsos méritos dos ‘antidepressivos’, mesmo para crianças, se repetem. Enquanto isso, a mídia não relata estudos como este, que mostraram que as crianças que disseram ter TDAH (a psiquiatria chama isso de ‘diagnóstico’) tinham 2,5 vezes mais chances de se machucar do que aquelas com exatamente os mesmos sintomas, mas que não foram informadas de que eram desordenadas. .

2. Andei muito

Quando parei de acreditar na noção de saúde mental, comecei a andar – em todos os lugares. eu não conseguia parar. Perambulei por Londres, a cidade em que morei por dez anos, mas que nunca havia explorado  a pé. Caminhei duas horas do meu apartamento para o Soho. Certo domingo, caminhei três horas para almoçar com um amigo no sul de Londres.

Na terapia do transtorno alimentar, eu havia me negado o prazer de caminhar. Exercitar-se em excesso era, eu aprendi, mais uma evidência de um “distúrbio alimentar”. Para me recuperar, deveria limitar minha atividade física. Eu fiz como me foi dito. Tentei imaginar o que uma pessoa normal consideraria uma distância normal para caminhar. Decidi meia hora. Qualquer distância maior do que isso, e eu deveria fazer o contrário do distúrbio alimentar – a coisa ‘saudável’ – e pegar o ônibus ou o metrô. Durante anos, mesmo quando queria esticar as pernas, forçava-me a usar o transporte público. Escrevendo isso agora, estou ciente de que isso soa muito louco. Era. Mas eu estava simplesmente me limitando aos parâmetros de “comportamento saudável” que me foram dados. O olhar psiquiátrico me levou para fora da calçada e para o ônibus.

 

Depois que deixei o modelo médico para trás, o desejo de andar por toda parte foi, eu acho, uma recuperação de muitas coisas: minhas pernas, meu corpo, minha cidade e o poder de gastar meu tempo e energia da maneira que eu escolhesse.

  1. Deixei de viver sob o ‘olhar psiquiátrico’

Passei toda a minha juventude vivendo sob o “olhar psiquiátrico”. Tudo o que fazia, dizia e pensava era julgado e avaliado pelo prisma do sistema de valores do modelo médico. Pior, eu mesma havia adotado aquele olhar. Aprendi a monitorar e alterar meus pensamentos e ações de acordo com o que a psiquiatria considerava apropriado e correto – ou, para usar sua própria linguagem, “saudável”.

Para dar um exemplo, meu terapeuta de distúrbios alimentares me pressionou com a ideia de relaxamento. Eu não relaxava o suficiente, aparentemente. Este era um sintoma comum de “distúrbios alimentares”. Portanto, se eu aprendesse a relaxar, diminuiria a desordem. Eu nunca tinha pensado em relaxar. Mas levei a sério o que ela disse. Eu me forçava a assistir televisão à noite, porque aparentemente era assim que muitas pessoas gostavam de se relaxar. A maioria do que aparecia na TV me entediava, mas eu achava que esse era o ponto. Manter-me estimulada era sinônimo de não me desligar  e era essa recusa em desligar que fazia parte da minha doença. Quando lia entrevistas no jornal com pessoas – escritores, artistas, especialistas – que diziam que não havia fronteira entre a vida e o trabalho, que estavam sempre trabalhando de uma forma ou de outra, julgava a essas pessoas pelas lentes do meu terapeuta e desagradava-ne a sua ignorância por não saber o comportamento saudável. Eles estavam claramente obcecados por seu trabalho, e obsessão é um palavrão em psiquiatria.

Levei vários anos para perceber que não acho relaxante o tipo de relaxamento que o terapeuta de transtorno alimentar defendia. Eu também estou agora felizmente obcecado por tudo o que estou trabalhando a qualquer momento. Não quero me desligar disso, por uma questão de ‘saúde’. Outros fins além da noção de “saúde” da psiquiatria tornaram-se muito mais interessantes para mim, de qualquer maneira; Prefiro ficar obcecada.

  1. Comecei a escrever

O ano em que deixei o modelo médico para trás foi o ano em que comecei a escrever, seriamente. Desde criança eu queria escrever um livro. Mas durante os anos de terapia de transtorno alimentar, toda vez que eu me sentava para escrever, o que saía eram palavras furiosas, tristes e solitárias. Editando-os através do olhar psiquiátrico, me obrigava a parar depois de alguns parágrafos, porque o que eu havia escrito era uma evidência clara de que meus pensamentos estavam errados. Essas palavras apresentavam um problema; eu deveria estar em recuperação – na verdade, eu acreditava estar lutando por uma vida de saúde – mas quando dava rédea solta à minha caneta por apenas alguns minutos, o que surgia eram gritos e desespero. Sob a pressão combinada tanto do olhar psiquiátrico, em nome do qual tentava filtrar os maus pensamentos, quanto da minha depressão ao ver o mais estridente desses maus pensamentos se transformar em tinta, a escrita não era possível de ser sustentada. Eu me recusava a expandir o que eu tinha a dizer, que é que eu estava sofrendo. Via o que escrevia apenas como algo desordenado, negativo. Declarar no papel que eu estava sofrendo era, na lógica da psiquiatria, auto-realizável; isto é, falar de sofrimento é assegurar sua continuação. A busca pela saúde mental estava me deixando louca. A expressão era impossível.

Em um belo ensaio sobre o livro Sanity, Madness and the Family, de 1964, de R.D. Laing e Aaron Esterson, Hilary Mantel relata como a recusa da descrição de si mesma pela psiquiatria a levou a escrever:

A questão se eu estava ou não fisicamente doente ainda estava em aberto, mas a questão se eu estava mentalmente doente estava encerrada. Era uma não-pergunta. Não estava em discussão. Isso pode soar arrogante. Mas acredito que foi necessário traçar uma grande linha preta entre meu passado e meu futuro. Eu tinha que salvar minha vida, eu sentia. Eu não tinha uma solução para meus problemas, mas as soluções oferecidas por outros me levaram a problemas mais profundos. Eu havia assumido a visão de outras pessoas sobre mim não apenas como um sofredor, mas como um paciente. Eu tinha tomado as drogas que eles me deram e eles produziram em mim sintomas que pareciam e mostravam loucura. Uma vez que experimentei a acatisia, sabia como era a loucura. Então não se tratava de minimizar, disfarçar, encobrir minha angústia; era uma questão de redefini-la.

Ao mesmo tempo, comecei a escrever. Esta foi a minha maneira de me redefinir. Senti que os insights que tive do livro me capacitaram a escrever de muitas maneiras; Eu tinha mais fé em meu próprio julgamento e poderes de observação e, de fato, se pode dizer que por um tempo eram as únicas coisas em que eu confiava.

  1. Parei de me sentir menos sã do que todo mundo

Na terapia de transtorno alimentar, o mundo era dividido em dois tipos de pessoas: aqueles com transtornos e aqueles sem. Este último grupo consegue viver uma vida mentalmente saudável, aprende-se, por si só. O primeiro grupo só pode fazê-lo com as ferramentas e drogas da psiquiatria. Durante anos, desejei estar no último grupo. Eu ansiava por ser normal. Eu me sentia menor, embora não fosse.

Fora dos constructos de “saúde mental”, me sinto muito mais em casa no mundo. O fundamento do modelo médico é a estigmatização: classificar certos comportamentos como normais e os desvios deles como anormais. Esses desvios, como explicado anteriormente, recebem nomes que soam como doenças, como “transtorno alimentar”. A noção de “desestigmatização da doença mental”, que é cogitada nos círculos psiquiátricos, é ridiculamente incoerente. Não é logicamente possível “desestigmatizar” um status que nasce da estigmatização.

  1. Fiquei furiosa

Um modelo de pensamento pseudocientífico, falido ética, intelectual e filosoficamente, roubou doze anos da minha vida. De certa forma, tenho sorte de ter escapado quando o fiz, aos 29 anos. Outros tiveram muito mais tempo roubado. Mas eu invejo alguém como Hilary Mantel, que chegou a “um momento de decisão interior, “o renascimento do conhecimento” aos 21 anos, à beira da idade adulta. É impossível saber o que nove anos de Prozac fizeram ao meu cérebro e ao cérebro de milhões de outras pessoas. Essas drogas são neurotoxinas, não ‘medicação.

A sátira ajuda. Eu me pego rindo alto de interações como essa, que mostram quão frágeis são os fundamentos da psiquiatria biomédica. Quando abro os manuais de auto-ajuda sobre “transtorno alimentar” que eu costumava ler, percebo que eles são melhor lidos como ficção distópica. O ridículo, dirigido pelos sistemas opressivos e coercitivos, é algo poderoso. Subversão funciona. Todo sistema contém as sementes de sua própria destruição, e poucos são mais transparentes do que o modelo médico de sofrimento.

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Mad hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

O Zumbi da Serotonina: Autores de Novo Estudo Tentam Dar Nova Vida aos Mortos

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Em junho, Joanna Moncrieff e outros apareceram para colocar a punhalada final na teoria da depressão de baixa serotonina (a chamada teoria do “desequilíbrio químico”). Reviram cinquenta anos de investigação sobre a teoria e não encontraram boas provas para a apoiar. Muitos psiquiatras proeminentes responderam, mesmo notando que isto não era nada de novo; essa hipótese já tinha sido posta de lado há muito tempo.

Mas como um fantasma que simplesmente não desaparece, um novo estudo afirma ter “provas claras” de que a baixa serotonina está ligada à depressão. No The Guardian, os autores principais tocaram na natureza revolucionária da sua descoberta:

“Esta é a primeira prova direta de que a liberação de serotonina é algo que confunde o cérebro das pessoas com depressão”, disse o Prof. Oliver Homes, um psiquiatra consultor baseado no Imperial College e Kings Colige London, e um coautor. “Há 60 anos que as pessoas debatem esta questão, mas tudo tem sido baseado em medidas indiretas”. Portanto, este é um passo realmente importante”.

Uma vez analisados os dados do estudo, esta é uma declaração que pode ser melhor descrita como tendo sido arrancada do ar. Ou, em termos científicos, a partir de um único dado proveniente de um doente deprimido em contradição com o resto dos dados que não encontraram quaisquer anomalias de serotonina nos 11 doentes deprimidos. Esse único dado está sendo utilizado para afirmar falsamente que a liberação de serotonina está enfraquecida no cérebro de pessoas com depressão, como se isso fosse uma anormalidade característica da desordem psiquiátrica. (Se incluir mais cinco doentes deprimidos com doença de Parkinson, então se pode dizer que os investigadores confiaram em dois dados – de um grupo de 16 doentes deprimidos – para fazer a sua falsa alegação).

As Hipóteses dos Investigadores

Havia três grupos inscritos no estudo. 12 doentes com diagnóstico de depressão grave, cinco doentes com Parkinson que também tinham um diagnóstico de depressão grave e 20 controles saudáveis. Todos os 17 dos dois grupos de depressão estavam sofrendo um episódio atual de depressão, e não tinham sido expostos a um antidepressivo nos seis meses anteriores. No entanto, os investigadores reportaram dados de apenas 11 dos doentes deprimidos sem a doença de Parkinson, uma vez que a medida para um dos doentes não era considerada confiável.

Os investigadores tinham três hipóteses:

  • As pessoas com depressão teriam menos serotonina na linha de base do que os controles saudáveis.
  • As pessoas com grandes transtornos depressivos teriam uma alteração menor nos níveis de serotonina depois de serem dosadas com uma anfetamina.
  • Tanto a serotonina de base como a mudança nos níveis de serotonina após a dosagem de anfetaminas estariam relacionadas com a gravidade da depressão.

Hipótese 1

Esta primeira hipótese é a mais relevante para a questão de fundo: as pessoas com depressão têm níveis mais baixos de serotonina do que as pessoas sem depressão?

Para testar isto, os investigadores realizaram um exame PET no cérebro das pessoas com depressão e controles saudáveis. Determinaram que tanto o grupo com depressão como os grupos de controle tinham níveis semelhantes de serotonina, e ambos os grupos eram consistentes com níveis “saudáveis”, que é o que estudos anteriores tinham encontrado. Os autores escreveram:

“A distribuição local [serotonina] para ambos os grupos foi consistente com relatórios anteriores para indivíduos saudáveis com elevada ligação através de áreas corticais”.

Os investigadores realizaram então uma série de testes estatísticos adicionais sobre estes mesmos dados (testes para incluir outros fatores, tais como idade, e depois decompor os dados em regiões específicas e voltar a executar os testes – um processo estatístico controverso conhecido como p-hacking porque aumenta a probabilidade de encontrar um resultado estatisticamente significativo por acaso). Mesmo depois de tudo isto, os investigadores descobriram que o grupo de depressão e o grupo de controle saudável continuavam a ter níveis de serotonina que não eram diferentes, exceto por uma ligeira diferença média numa região cerebral (o córtex temporal). Mesmo nesta área, os dados mostram uma sobreposição quase completa entre os dois grupos.

Conclusão número um: Não houve diferença nos níveis de serotonina entre os que têm depressão e os que não têm. A sua primeira hipótese foi demonstrada como sendo falsa.

Hipótese 2

O segundo elemento do estudo foi um teste para ver se uma dose de anfetamina, conhecida por desencadear a libertação de serotonina, produziria menos resposta em doentes deprimidos do que nos controles.

Os investigadores dosaram todos os participantes com 0,5 mg/kg de d-anfetamina, e mediram quanto, em média, os níveis de serotonina de cada grupo haviam mudado. Isto foi feito medindo o potencial de ligação da serotonina no córtex frontal, para estimar a capacidade de libertação de serotonina.

Encontraram um efeito estatisticamente significativo: em média, os níveis de serotonina do grupo de controle saudável mudaram mais do que os níveis de serotonina das pessoas com um diagnóstico de depressão grave após terem sido dosadas com uma anfetamina. Este foi o resultado que levou os investigadores a escrever que o seu estudo “fornece provas claras de serotonérgica disfuncional na depressão, demonstrando uma capacidade reduzida de libertação de 5-HT em pacientes submetidos a um episódio depressivo importante”.

De fato, houve uma grande variação na libertação de serotonina, tanto nos doentes deprimidos como nos controles. E se a resposta da serotonina para cada um dos indivíduos for traçada num gráfico, como foi feito no papel, torna-se imediatamente aparente que o efeito “estatisticamente significativo” surge de dois indivíduos: um no grupo deprimido sem Parkinson, e um no grupo deprimido com Parkinson.

No gráfico abaixo (da publicação do estudo, barras vermelhas adicionadas), as pontuações do grupo de depressão estão à esquerda, enquanto as pontuações do grupo de controle estão à direita. As caixas pretas no grupo de depressão são para quem não tem Parkinson; as caixas brancas são para quem tem Parkinson.

Como se pode ver, há dois pontos fora da curva (uma caixa preta e uma branca), e exceto para esses dois, a pontuação de cada pessoa deprimida, detalhando o quanto os seus níveis de serotonina mudaram, sobrepõe-se à pontuação de uma pessoa saudável.

Uma vez que a doença de Parkinson é uma confusão óbvia, existe apenas um ponto fora da curva no grupo dos deprimidos, em 11.

Os investigadores, ao relatarem os seus resultados, ignoraram este fato. Em vez disso, calcularam a variação média da pontuação da liberação de serotonina para os 20 controles saudáveis e 16 doentes deprimidos, e concluíram que havia uma ligeira diferença “estatisticamente significativa” (valor de p = 0,041). Sem o anterior, esta descoberta estatisticamente significativa teria desaparecido.

Estes são os dados relacionados com a hipótese número dois. E aqui está a conclusão relevante a tirar: Em 10 dos 11 pacientes deprimidos sem Parkinson, os seus resultados de libertação de serotonina sobrepuseram-se aos dos controles saudáveis, e assim estavam numa faixa normal. Quatro em cada cinco do grupo de Parkinson encontravam-se dentro desta mesma faixa de normalidade.

Hipótese 3

Para testar a sua terceira hipótese, os investigadores fizeram uma análise para testar se os níveis de serotonina estavam relacionados com a gravidade da depressão, medida pela Escala de Depressão de Hamilton (HAM-D), tanto nas pessoas com depressão como nas pessoas com depressão e doença de Parkinson. Descobriram que a gravidade da depressão em ambos os grupos não estava de modo algum relacionada com os níveis de serotonina.

Depois realizaram uma análise semelhante para testar se a alteração nos níveis de serotonina em resposta à dosagem de anfetaminas estava relacionada com a gravidade da depressão. Verificaram que a gravidade da depressão também não estava relacionada com a mudança nos níveis de serotonina.

“Não havia correlação significativa entre os resultados da depressão HAM-D e a linha de base [serotonina]”, escreveram os investigadores. Acrescentaram: “Não havia associações estatisticamente significativas entre os escores de depressão HAM-D e [mudança na serotonina]”.

Assim, a sua terceira hipótese – que os níveis de serotonina ou mudança na serotonina estariam relacionados com a gravidade da depressão – também se revelou falsa.

Escrevem: “Não encontramos qualquer relação entre a gravidade da depressão (avaliada por uma escala HAM-D) e a magnitude da libertação induzida de 5-HT. Nesta fase, não temos qualquer explicação para a falta de tal relação”.

Enviesamentos de estudo

O estudo foi publicado em Biological Psychiatry e foi dirigido por David Erritzoe no Imperial Colige, Londres. Vários outros investigadores não afiliados ao estudo rapidamente apontaram várias falhas no estudo, a começar pelo fato de ser bastante pequeno, o que aumenta a probabilidade de qualquer descoberta ser devida ao acaso. Num tópico do Twitter, o investigador Eiko Fried comparou o estudo a uma sondagem presidencial. Confiaria numa sondagem de 37 pessoas (31 homens) para estimar quem tem mais probabilidades de ganhar uma eleição presidencial? Há uma razão pela qual as sondagens tentam atingir um quórum de vários milhares e uma amostra representativa de toda a população.

Além disso, 14 dos 17 do grupo de depressão – e 17 dos 20 do grupo de controlo sanitário – eram do sexo masculino. A inclusão de apenas três mulheres no grupo da depressão (embora seja mais provável que as mulheres sejam diagnosticadas com depressão), a inclusão de cinco pessoas com doença de Parkinson (o que poderia criar um efeito neurobiológico diferente), a inclusão de duas pessoas que tomam um medicamento para a doença de Parkinson (o que poderia criar maiores alterações na química cerebral), e o fato de os antidepressivos terem sido utilizados por seis pessoas no passado (o que poderia ter levado a adaptações cerebrais duradouras) são todos fatores de confusão significativos.

Vale também a pena notar que o estudo foi pago pela Imanova Ltd (agora Invicro), cujo lucro depende da demonstração do sucesso das técnicas de imagem, tais como o PET, para “desenvolvimento de medicamentos e diagnósticos”. Em reconhecimento, os investigadores expressam apreço pelo trabalho dos empregados da empresa “pelo seu excelente apoio técnico”. Não é claro quanto input a empresa teve no desenvolvimento do estudo, na realização da análise e na redação do trabalho.

O resultado final

Eis a conclusão que pode ser extraída dos dados. Duas das três hipóteses falharam completamente, e enquanto a terceira hipótese levou a uma descoberta “estatisticamente significativa”, os dados individuais dos doentes mostraram que a liberação de serotonina em 10 dos 11 doentes deprimidos – aqueles sem a doença de Parkinson – era normal. O estudo confirmou que não havia anormalidade nos níveis de serotonina em doentes deprimidos; confirmou que não havia associação entre os níveis de serotonina e a gravidade da depressão; e confirmou que a libertação de serotonina em resposta a uma injeção de anfetamina era normal em todos os doentes exceto um.

Os investigadores tinham simplesmente um ponto de dados no seu estudo que estava fora da norma para doentes deprimidos sem doença de Parkinson, e mesmo assim utilizaram esse ponto de dados para afirmar que o seu estudo “fornece um paradigma inestimável para a investigação da fisiopatologia e tratamento de perturbações depressivas, e outras condições caracterizadas por neurotransmissão serotonérgica perturbada”.

É assim que uma alegação-zumbi  na investigação psiquiátrica é ressuscitada dos mortos.

[trad. e edição Fernando Freitas]

Sem Psicologia da Libertação, Terapia Reforça o Status Quo

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Enquanto abordagem radical da psicologia e da psicoterapia, a Psicologia da Libertação visa afastar o campo de métodos que simplesmente ajudam as pessoas a se adaptarem às injustiças atuais e, em vez disso, recusa a cumplicidade com práticas social e moralmente injustas.

Um artigo publicado em Psychology from the Margins examina a história e as idéias de psicólogos da Libertação como Ignacio Martín-Baró. A autora, Hannah Heitz, expõe algumas de suas ferramentas mais eficazes para combater o status quo sociopolítico dentro da psiquiatria e da psicologia (e da sociedade de forma mais ampla). Ao lado de Martín-Baró, Heitz sugere vários caminhos que profissionais com espírito crítico poderiam tomar para ajustar as balanças da justiça.

“Alinhado com a importância da consciência crítica, Martín-Baró observou que a psicologia deve considerar o indivíduo dentro do sistema social. Sem considerar o contexto sociopolítico e histórico do indivíduo, a opressão e as barreiras para o desenvolvimento da identidade histórica se perpetuam”, explica Heitz.

“Como tal, a psicologia da libertação requer consciência crítica, consciência das desigualdades sociais e práticas que desmantelem os fatores sociais e psicológicos que sustentam a opressão – incluindo tanto a opressão institucional quanto a opressão internalizada. A libertação pessoal é parte do processo de libertação coletiva. Quando aqueles que são oprimidos iniciam o processo de libertação, torna-se possível para todos experimentar a emancipação e a cura”.

A disciplina da psicologia da libertação, inspirada em parte pelo educador e revolucionário brasileiro Paulo Freire, assim como pelo padre e psicólogo jesuíta Ignacio Martín-Baró de El Salvador, defende o bem-estar do “povo comum” contra os interesses das elites e os padrões de dominação social.

Inspirada na teologia da libertação latino-americana, a psicologia da libertação enfatiza a necessidade de se tratar a saúde mental como uma questão social, política e econômica, em vez de através de uma lente convencional individualista.

Isto inclui, às vezes, conflitos com os paradigmas predominantes dentro da psiquiatria e da psicologia, que muitos psicólogos da libertação vêem como cúmplices do status quo sociopolítico, a despeito de sua professada ahistoricidade e apoliticismo.

Por exemplo, este conflito chegou a El Salvador, onde Martín-Baró foi assassinado pelos militares salvadorenhos, presumivelmente por suas idéias radicais (e ameaçadoras do status quo). Deve-se notar que o batalhão de elite que executou o assassinato de Martín-Baró foi uma unidade de contra insurgência treinada pela Escola das Américas do Exército dos Estados Unidos em 1980.

O artigo atual traça as origens da psicologia da libertação. Ele delineia algumas de suas principais ferramentas conceituais a serem mobilizadas para uma crítica da psicologia dominante e para desenvolver uma estrutura para uma psicologia alternativa que leve a sério o contexto social e as questões de poder.

Heitz observa, antes de tudo, que a psiquiatria convencional e a psicologia têm entendido a individualidade como sendo a primeira pessoa – um paciente identificado na linguagem dos sistemas familiares.

Pelo contrário, a psicologia da libertação “identifica os sistemas sociopolíticos opressivos como a origem do sofrimento”. Heitz explica:

“…a psicologia da libertação sugere que um indivíduo com uma identidade marginalizada pode experimentar ansiedade em resposta a suas experiências de discriminação e opressão, com ênfase no papel que estruturas maiores e fatores sociopolíticos desempenham na perpetuação de sua experiência de opressão em nível individual e coletivo…

…De acordo com a psicologia da libertação, indivíduos e grupos marginalizados sofrem preconceitos e internalizam estereótipos negativos e são patologizados pela psicologia ocidental para identificar ou responder à opressão – tudo isso dificulta a experiência de bem-estar psicossocial”.

Dentro da psicologia da libertação de Martín-Baró, então, o objetivo é repensar e reencenar um tipo diferente de psicologia que poderia levar em conta estes fatores sociais e contextuais, pois procura corrigir o que aflige as pessoas – o que Martín-Baró chamou de psicologia enquanto um “instrumento de mudança”, em vez de um programa de adaptação ou de manutenção do domínio social.

Conceitos importantes, “tarefas” ou perguntas pertinentes para uma psicologia da libertação são numerosos, mas Heitz se concentra em um punhado de questões. Elas são:

  • Consciência crítica ou “conscientização”.
  • Recuperação da memória histórica
  • Desideologizar a experiência cotidiana
  • Utilizar as virtudes do povo
  • Que devemos trabalhar de maneira diferente
  • “Mas se [psicologia] contribui para a alienação ou manutenção do controle do povo, para que serve a psicologia? As pessoas não precisam de tal psicologia”.

Consciência crítica ou conscientização

Esta noção se refere a um processo de aumento do diálogo e da conscientização em torno das condições materiais, sociais e políticas da própria situação (ou de uma comunidade) no mundo, com especial atenção às posições de subjugação. Para Martín-Baró, de acordo com Heitz, a consciência crítica envolve três passos cruciais:

“Primeiro, a mudança individual ocorre através do engajamento ativo no diálogo. Segundo, o indivíduo torna-se consciente dos sistemas de opressão e da possibilidade de fazer mudanças. Terceiro, o indivíduo começa a compreender sua capacidade de moldar ativamente sua identidade e seu papel no contexto social; esta parte do processo inclui uma compreensão histórica do eu e da comunidade”.

A consciência crítica é a conscientização através do diálogo (não apenas interpessoal, mas muitas vezes também comunitária) da situação em que as pessoas se encontram. Isto abre a porta para outras atividades ao longo do caminho, tais como esforços ativistas e a recusa de aceitar tais condições para si mesmos.

Recuperação da memória histórica

Para entender o presente e preparar-nos para um futuro mais brilhante, devemos saber de onde viemos. A “memória histórica” não deve ser perdida. Dando um exemplo, diz Heitz:

“Após a guerra civil guatemalteca, que durou de 1960 a 1996 e teve como alvo principal os civis de ascendência maia, a Igreja Católica iniciou o Projeto de Recuperação da Memória Histórica… O objetivo do projeto era permitir que os sobreviventes da violência política na Guatemala pudessem compartilhar suas experiências e histórias para informar um futuro mais justo e promover a justiça, o perdão e a reconciliação”.

Outros esforços semelhantes têm existido/continuam a existir para o povo judeu envolvido em atividades de memória histórica em torno do Holocausto, e talvez alguns esforços na África do Sul pós-Apartheid relacionados com os esforços de reparo comunitário e reconciliação.

Inerente a esta abordagem está a crença no poder de preservar a narrativa histórica e cultural, pois ela pelo menos em parte explica de onde as pessoas vêm – o que elas passaram. Em vez de esquecer estas provações em alguma tentativa de “começar de novo”, os psicólogos da libertação acreditam que é vital encontrar raízes na própria linhagem histórica, mesmo quando ela envolve sofrimento.

Desideologizar a experiência cotidiana

Este conceito está ligado à idéia de consciência crítica. A ênfase aqui, porém, está em ” dar um passo atrás em relação às histórias socialmente construídas” e, em vez disso, entrar na “reflexão” e na “tentativa de observar objetivamente nosso ambiente social”.

Pode-se pensar em debates recentes nos EUA em torno das tentativas de reforma educacional do Projeto 1619 e de seu retrocesso conservador, à medida que guerras culturais são travadas sobre mitos fundadores e “histórias socialmente construídas”.

Para Martín-Baró, estas não são simplesmente idéias ou discursos concorrentes, sem fundamento. Pelo contrário, desideologizar pressupõe que existe um grau de verdade a que podemos chegar em relação ao que está acontecendo social e politicamente à nossa volta . Olhando concretamente para esta questão, por exemplo, pode-se ver como corporações internacionais em todo o mundo procuram extrair recursos de países “em desenvolvimento”, bem como influenciar a tomada de decisões de líderes poderosos e órgãos governamentais no mundo “desenvolvido” através de esforços de lobby.

Martín-Baró acreditava no uso de múltiplas ferramentas à disposição dos cientistas sociais, desde a análise quantitativa até o trabalho qualitativo, a fim de descobrir e desideologizar estas verdades sociais, que foram cobertas por novas histórias e verdades por aqueles que estão no poder.

Utilizar as virtudes do povo

Dado que Martín-Baró, inspirado pela teologia da libertação, acreditava no poder do povo comum para determinar seu próprio destino, ele também pensava que os psicólogos da libertação devem olhar para o próprio povo para responder à pergunta “o que deve ser feito”. Isto se opõe ao método psiquiátrico e psicológico convencional de eventualmente incluir a voz dos marginalizados como uma perspectiva simbólica – eles muitas vezes procurariam colocar a voz e a experiência vivida do povo em primeiro lugar.

Da mesma forma, este foi um movimento da parte de Martín-Baró para trabalhar contra o modelo “deficitário” sob o qual uma grande parte da psiquiatria e da psicologia tem trabalhado, tentando encontrar o que está “errado” com as pessoas para fornecer algum “conserto”. Em vez disso, a psicologia da libertação procura defender e ampliar os recursos já existentes de pessoas marginalizadas e oprimidas.

Além disso, esta abordagem vai contra a mentalidade colonial, que é predominante em grande parte da psiquiatria e psicologia ocidental. Ao invés de entrar com idéias predefinidas de bem-estar humano e patologia humana, o que Martín-Baró está propondo exige humildade e disposição para observar e até mesmo seguir a orientação daqueles que estão mais intimamente conscientes das lutas de opressão e dominação. Às vezes isso pode entrar em conflito com as idéias ocidentais do eu, de outros, do mundo e até mesmo das cosmologias.

Heitz observa, por exemplo, que a medicina ocidental tem frequentemente suspeitado das práticas indígenas de cura, mas que pode haver mais destas práticas – localizadas em ambientes comunitários – do que a medicina ocidental pode compreender plenamente. É um ato de colonialismo entrar e dizer a um grupo cultural: “não, não, toda a sua abordagem está errada”. Já descobrimos” – sem prestar atenção em como essas práticas podem beneficiar a comunidade e seus membros.

Devemos trabalhar de forma diferente

Para Martín-Baró, trabalhar de forma diferente significava um tipo diferente de prática terapêutica e, segundo Keitz, “reimaginar os limites tradicionalmente individuais da psicologia”. Essencialmente, Martín-Baró acreditava que não era suficiente reformar a prática terapêutica ou a prática terapêutica grupal. Ao invés disso, era necessária uma alternativa imaginativa à psicologia, que poderia “operar em nível estrutural para “despolarizar, desmilitarizar e desideologizar” para produzir mudanças significativas e de longo prazo”.

Heitz observa que embora existam diferenças significativas entre El Salvador e os Estados Unidos contemporâneos da guerra civil, com a pandemia da COVID-19 coincidindo com questões de injustiça racial – privação sistêmica entre as linhas raciais e outras – os psicólogos americanos estão talvez em uma posição oportuna para começar a pensar sobre como “abordar os cuidados de forma diferente”, levando em maior consideração questões como opressão e acesso a recursos.

“Mas se [psicologia] contribui para a alienação ou para manter o controle do povo, para que serve a psicologia? As pessoas não precisam de tal psicologia”.

Dada a insistência da psicologia da libertação de que grande parte da psiquiatria e da psicologia dominante mantém relações de opressão, dominação, alienação e assim por diante, então o que deve ser feito a partir de uma perspectiva de psicologia da libertação? Vale a pena salvar a psicologia e a psiquiatria?

Antes de responder a essa pergunta, Heitz aborda mais uma vez a questão da psicologia e da ignorância da psiquiatria:

“Levando a declaração de Martín-Baró um passo adiante, ignorando a opressão social, mesmo que estejamos abordando clinicamente as conseqüências individuais da opressão, estamos contribuindo para uma forma de psicologia que minimiza, e até ignora, as circunstâncias sociopolíticas”.

Em vez disso, Heitz argumenta a favor de múltiplos caminhos que psicólogos focados na libertação também podem tomar informados por terapias feministas e outras fora da psicologia, apelando para mudanças na abordagem de questões sociais sistêmicas (raciais), como o historiador e estudioso anti-racista Ibram X. Kendi.

Entre as possibilidades que ela enumera estão 1) trabalhar pela libertação negra, por dentro da academia, 2) iniciativas e programas dentro de uma organização (como os esforços da Associação Americana de Psicologia e suas várias divisões) para elaborar planos de ação para tratar de problemas sociais, 3) defesa política, tanto individual quanto coletiva, como “votar, chamar representantes locais e estaduais, ou voluntariar tempo e experiência através de iniciativas maiores organizadas pela Associação Americana de Psiclogia ou associações psicológicas estaduais”.

Heitz conclui:

“Devemos nos engajar ativamente no desmantelamento das estruturas opressivas e capacitar os grupos oprimidos a fazer o mesmo para promover a libertação psicológica”. Reunindo as idéias de Martín-Baró e Kendi, fica claro que se os psicólogos não estão lutando ativamente contra a opressão, então a disciplina da psicologia não está servindo ao povo, e não está apoiando a cura ou a libertação.

A psicologia, tal como existe hoje nos Estados Unidos, não está atendendo de forma equitativa às necessidades de todos os indivíduos e grupos. De fato, em alguns casos, o campo continua a perpetuar as iniquidades. Enquanto algumas dessas iniquidades estão enraizadas além do campo da psicologia, como o sistema de saúde nos Estados Unidos, existem maneiras que os psicólogos podem advogar pela mudança, e é nossa responsabilidade fazê-lo. A psicologia da libertação fornece uma estrutura para entender e dar sentido à história da psicologia, priorizar vozes oprimidas, facilitar mudanças positivas e trabalhar em direção à cura e libertação coletiva”.

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Heitz, H. K. (2022) “Liberation Psychology: Drawing on history to work toward resistance and collective healing in the United States.” Psychology from the Margins4(4). Bottom of Form (Link)

Os Danos da Despatologização de Algumas Condições de Saúde Mental

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Os críticos das psicodisciplinas têm frequentemente apontado para os danos da patologização, referindo-se ao processo pelo qual as experiências de sofrimento mental são subsumidas sob as rubricas de doenças e enfermidades, excluindo entendimentos alternativos e obscurecendo o contexto social. Entretanto, em alguns casos, tentativas de despatologizar algumas experiências desafiando seu status como ” distúrbios reais” também podem afetar negativamente os usuários do serviço.

Esse é o argumento de um novo artigo de Lucienne Spencer e Havi Carel intitulado “‘Isn’t Everyone a Little OCD?’ The Epistemic Harms of Wrongful Depathologization.” (“‘Não somos um pouco TOC’ Os Danos Epistêmicos da Despatologização Errada). Spencer e Carel explicam que “a despatologização equivocada desvaloriza o status epistêmico de tais pessoas, reduzindo seus sintomas a meros traços de personalidade, negando-lhes assim uma identidade psiquiátrica plenamente reconhecida”. Uma manifestação de despatologização errônea é a despriorização de pacientes psiquiátricos por profissionais de saúde em favor de “pacientes que estão realmente doentes””.

Eles continuam:

“Argumentamos que a despatologização equivocada envolve simultaneamente estigmatizar e trivializar um transtorno mental e que nele reside sua nocividade. Isto cria uma zona crepuscular de transtorno mental, onde o doente é considerado tanto como exagerando suas dificuldades (trivialização) quanto como sendo epistemicamente suspeito por causa de seu diagnóstico psiquiátrico (estigmatização). Assim, pessoas com certos tipos de doença mental são consideradas doentes demais para estarem livres de estigma, mas não o suficiente para serem levadas a sério…Fornecemos um estudo detalhado deste processo no caso de transtorno obsessivo-compulsivo (” conhecido por TOC”)”.

A hipótese de que, em alguns casos, há um significado a ser encontrado em um diagnóstico psiquiátrico é central para o argumento de Spencer e Carel. Na verdade, muitos indivíduos em todo o mundo encontram significado, poder e propósito em seus diagnósticos psiquiátricos. Embora a “patologização injusta” possa ser prejudicial, eles argumentam em seu trabalho que a “despatologização injusta” também pode levar a danos epistêmicos para qualquer pessoa que se afaste da norma sanitária.

Os autores observam:

“Não estamos, naturalmente, sugerindo que todas as tentativas de despatologização sejam injustas. De fato, vozes poderosas dentro do movimento da neurodiversidade e do Orgulho Louco defendem a despatologização como um objetivo de justiça social. Os fatores decisivos são a presença ou ausência de banalização e a identidade de quem faz a despatologização. Se a despatologização acontece através da apropriação por pessoas sem doença psiquiátrica, então ela é injusta. Mas se a despatologização é o resultado de um esforço considerado, em grupo, de conscientização e não leva à banalização, então esta despatologização não é injusta. Assim, deixamos em aberto a possibilidade de que as pessoas com TOC possam, potencialmente, um dia decidir despatologizar o TOC por dentro, em seus próprios termos, enquanto retêm o tratamento para os efeitos negativos de sua neurodiversidade”.

“‘Isn’t Everyone a Little OCD?’ The Epistemic Harms of Wrongful Depathologization” está dividido em seis seções:

Seção 1: Eles argumentam que a despatologização equivocada desvaloriza o status epistêmico dos indivíduos que encontram sentido em seu diagnóstico psiquiátrico estigmatizando e banalizando sua doença mental.

Seção 2: Nesta seção, Spencer e Carel argumentam que patologizar um comportamento é vê-lo como anormal e que requer tratamento especial. Um comportamento patologizado pode mais tarde ser medicado, ou seja, classificado como um distúrbio médico. Embora estes processos e palavras sejam freqüentemente utilizados de forma intercambiável pelo público e pela literatura, eles podem ser (e muitas vezes são) mutuamente exclusivos. Em outras palavras, “a medicalização pode – mas nem sempre segue a patologização”. Assim, a desmedicalização nem sempre segue a despatologização.

“Embora a despatologização tenha sido considerada até agora um processo amplamente positivo, neste artigo articulamos seu impacto negativo na psiquiatria. Examinamos como um transtorno mental pode perder seu status patológico no discurso público enquanto mantém seu status médico, resultando em uma difusão da definição clínica e mascarando sua natureza séria e debilitante. Argumentamos que a despatologização pode, portanto, ser prejudicial. Nosso objetivo é articular um novo dano, impulsionado não por atitudes patofóbicas, mas sim pelo que chamamos de despatologização injusta, que esvazia o estado de doença mental….”.

Seção 3: Os autores definem o fenômeno nocivo conhecido como “injustiça epistêmica” na literatura filosófica. A injustiça epistêmica, inicialmente cunhada pela filósofa feminista Miranda Fricker, é um processo no qual um indivíduo é prejudicado, não moral ou fisicamente, por outra pessoa, mas é prejudicado epistemicamente por outra pessoa. Experimentar dano epistêmico ou violência é ter seu modo de conhecer e dar sentido ao seu mundo invalidado/não ser devidamente respeitado por uma pessoa mais poderosa. Em outras palavras, a injustiça epistêmica prejudica sua capacidade como conhecedor de sua própria experiência.

Seção 4: Spencer e Carel exploram como a estigmatização e trivialização diária dos sintomas do TOC se tornaram tão comuns que o transtorno foi despatologizado, mas não desmedicalizado. Ou seja, os indivíduos com TOC são estigmatizados da mesma forma que qualquer pessoa com uma doença mental, porque não são vistos como conhecedores confiáveis de sua própria experiência. Entretanto, simultaneamente, seus sintomas são banalizados pela apropriação e utilização cotidiana do termo TOC.

Spencer e Carel o colocam desta forma:

“O termo TOC foi apropriado por alguém que não foi diagnosticado com a condição e não experimenta o conjunto completo de problemas que o transtorno causa. Assim, um termo psiquiátrico usado para descrever um certo tipo de transtorno mental é apropriado por aqueles que não experimentam a condição em questão e assim banalizam-na”.

Como o transtorno é banalizado por pessoas que afirmam ter TOC quando experimentam um momento fugaz de desconforto depois de não lavar as mãos ou ver suas roupas no chão, os testemunhos de pessoas que experimentam toda a gama e espectro dos sintomas do TOC são deslegitimados – eles experimentam a injustiça testemunhal.

Seções 5 e 6: Spencer e Carel discutem os danos epistêmicos da estigmatização e da banalização (despatologização injusta) da doença mental. A primeira injustiça epistêmica é a injustiça testemunhal que vem da banalização. Ou seja, as pessoas que sofrem de uma doença mental não são compreendidas ou não recebem apoio ou assistência clínica porque “todo o mundo não tem um pouco de TOC?”A lacuna criada em nossa compreensão coletiva da doença invalida a dor e a incapacidade do indivíduo.

Os autores concluem então:

“O TOC fornece um exemplo paradigmático de ignorância hermenêutica intencional em doenças psiquiátricas. Entretanto, outra pesquisa no Twitter mostra que tal apropriação indevida não está limitada ao TOC. A busca expôs a banalização comum do autismo (‘Estamos todos no espectro, por isso é que é um SPECTRUM …’), o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (‘… consegui esse TEPT ao passar a expressar meus sentimentos às pessoas que simplesmente os descartam…’), e o Transtorno Bipolar (‘Observar casados à primeira vista e confirmar que a maioria [das pessoas] são bipolares…’)”.

“Estas práticas discursivas alteram não apenas a forma como falamos sobre os transtornos mentais, mas também como pensamos e os entendemos. Ao reduzir os transtornos mentais a traços de personalidade não perturbadores e não ameaçadores, certos transtornos mentais podem ser percebidos como menos sérios e prejudiciais do que realmente são. Consequentemente, através da despatologização equivocada, partes significativas da experiência social do sujeito marginalizado são “obscurecidas da compreensão coletiva”, pois lhes foram roubadas…[as] ferramentas para falar sobre sua doença”.

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Spencer, L., & Carel, H. (2021). ‘Isn’t Everyone a Little OCD?’ The Epistemic Harms of Wrongful Depathologization. Philosophy of Medicine, 2(1), 1-18. (Link)

[trad. e edição Fernando Freitas]

 

Apoio de Pares Eficaz para a Recuperação Clínica e Pessoal

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Group therapy in session sitting in a circle with therapist

Um novo estudo publicado em Psychological Medicine revela que as intervenções de apoio de pares (PSIs) podem efetivamente facilitar a recuperação de doenças mentais em vários ambientes. Estes resultados permitem uma análise mais profunda de como os serviços de apoio de pares podem ajudar os indivíduos na recuperação e que tipos de recuperação podem ser acessíveis através das PSIs.

“O apoio de pares envolve uma troca mútua de apoio prático e emocional, baseado no ‘entendimento compartilhado, respeito e fortalecimento mútuo entre pessoas em situações similares com ingredientes críticos, tais como responsabilidade compartilhada, esperança, autodeterminação ao longo da vida e o uso do conhecimento da experiência vivida”, escrevem os autores, liderados por Dorien Smit, pesquisador da Universidade de Radboud e Pro Persona GGz.

Group therapy in session sitting in a circle with therapist

O apoio dos pares é uma relação de apoio emocional mútuo entre indivíduos com experiências pessoais similares. Os serviços de apoio de pares tendem a se centrar no conhecimento da experiência vivida para fornecer cuidados emocionais de uma forma que também facilite a esperança e aumente a autodeterminação.

As ISPs têm sido integradas em muitos programas em vários formatos, resultados alvo e comunidades. Nos últimos anos, o interesse em PSIs cresceu para atender à crescente necessidade de apoio de recuperação entre indivíduos que lidam com angústia psicológica. Outro fator-chave neste interesse cada vez maior também tem sido formalmente apoiado pela Organização Mundial da Saúde na defesa do apoio de pares como uma abordagem de saúde mental centrada na pessoa, na recuperação e baseada em direitos. Finalmente, a pandemia COVID-19 limitou a disponibilidade de serviços de saúde mental, criando uma maior necessidade de intervenções baseadas na comunidade, tais como PSIs.

O apoio de pares também pode ser especialmente benéfico dentro de contextos particulares, como o tratamento das desigualdades de saúde entre os jovens negros e latinos e o planejamento de segurança em torno do suicídio no atendimento de emergência. No entanto, muitas barreiras permanecem na implementação de programas de apoio entre pares e na garantia da entrega eficaz de ISPs.

“O envolvimento em uma intervenção de apoio entre pares pode ser eficaz para reduzir os sintomas de doenças mentais clínicas, melhorar a recuperação pessoal geral e, mais especificamente, a esperança. Em particular para indivíduos com PSI, o apoio de pares demonstrou provável eficácia em todas as três categorias de recuperação”.

A equipe de pesquisa conduziu uma análise sistemática e uma meta-análise de ensaios de controle aleatórios examinando as IPMs. Um estudo sistemático destina-se a localizar a literatura relevante com base em uma lista pré-determinada de termos e critérios de pesquisa. Normalmente, uma meta-análise é conduzida posteriormente para examinar uma estimativa estatística dos resultados do estudo como um todo.

Este estudo se interessou por três resultados da PSI: recuperação clínica, pessoal e funcional. A recuperação clínica captura o grau em que a sintomatologia psiquiátrica melhorou. A recuperação pessoal descreve o grau em que a recuperação percebida ou a agência pessoal melhora. A recuperação funcional é como a qualidade de vida, o compromisso de trabalho e o funcionamento social de alguém melhoram.

A meta-análise mostrou que as ISPs podem facilitar a recuperação pessoal e a recuperação clínica entre aqueles que buscam apoio para o sofrimento psicológico. Entretanto, não foram encontradas evidências que apóiem o papel das ISPs na facilitação da recuperação funcional.

“Embora os efeitos fossem pequenos, o apoio de pares é uma intervenção potencialmente econômica e relativamente fácil de implementar e pode complementar o tratamento profissional. Terapeutas, clínicos gerais e funcionários de serviços orientados à recuperação podem encaminhar seus clientes a iniciativas de apoio entre pares para expandir o contexto dos indivíduos para trabalhar na recuperação ao lidar com doenças mentais”, escrevem os autores.

Smit e colegas recomendam que o apoio de colegas seja considerado um apoio acessível ou complementar ao tratamento profissional.

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Smit, D., Miguel, C., Vrijsen, J.N., Growneweg, B., Spijker, J. & Cuijpers, P. (2022) The effectiveness of peer support for individuals with mental illness: Systematic review and meta-analysis. Psychological Medicine. 1-10. https://doi.org/10.1017/S0033291722002422. (Link)

[Trad. e edição Fernando Freitas]

Lítio para a Prevenção de Suicídios Não É Apoiado pelas Evidências

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Uma nova meta-análise de ensaios modernos com lítio não encontrou nenhuma evidência de que a droga previna comportamentos suicidas ou não-fatais. O estudo incluiu 12 ensaios randomizados controlados (RCTs) comparando o lítio com placebo ou cuidados usuais para transtornos de humor, englobando 2578 participantes. Os pesquisadores descobriram que a diferença entre lítio e placebo para todos os resultados relacionados a suicídios não era estatisticamente significativa.

O estudo foi liderado por Joanna Moncrieff do University College London, que recentemente chamou a atenção da mídia para uma revisão que desmascarou a teoria da depressão de baixa serotonina (“desequilíbrio químico”).

Contatada para comentar via e-mail, Moncrieff disse:

“A idéia de que o lítio previne o suicídio aumentou sua mística e ajudou a propagar a ideia de que o lítio é um tratamento altamente específico e eficaz”. Mas nunca isso fez qualquer sentido. O lítio é uma substância altamente tóxica e sedativa. Ele entorpece as emoções, o que pode reduzir os pensamentos suicidas; mas sabemos que muitas drogas psiquiátricas têm esse efeito de entorpecer as emoções e ainda assim não reduzem o comportamento suicida”.

Estudos prévios chegaram a conclusões inconsistentes sobre as supostas propriedades anti-suicidas do lítio. Por exemplo, um grande e recente RCT de lítio para prevenção de suicídios em veteranos foi encerrado prematuramente porque a droga não era melhor do que um placebo. Entretanto, outras análises descobriram que o lítio era ligeiramente melhor do que um placebo.

Por causa disso, até mesmo alguns especialistas que reconhecem a fraca base de evidência para quase todas as drogas psiquiátricas – como Nassir Ghaemi – acreditam que o lítio tem uma base de evidência mais forte. Alguns até pediram para adicionar lítio à água potável.

De acordo com os pesquisadores contemporâneos, uma razão para as descobertas inconsistentes é que as metanálises anteriores utilizaram o método Peto. No método Peto, são analisados estudos nos quais não ocorrem mortes por suicídio.

Os pesquisadores escrevem: “Como o suicídio é tão raro, muitos ensaios com dados relevantes não foram incluídos nestas análises, o que pode ter efeitos de tratamento inflacionados”.

Outra questão relacionada é que, uma vez que tão poucas pessoas morrem por suicídio, os resultados podem ser distorcidos por um único ensaio com uma metodologia pobre. Os pesquisadores escrevem que as meta-análises anteriores podem ter sido distorcidas apenas por um tal ensaio: um estudo de Lauterbach et al. no qual o cego foi quebrado, muitos participantes não aderiram ao tratamento, e o grupo de lítio recebeu cuidados extras.

Em contraste, o estudo atual utilizou os dados de todos os ensaios relevantes de lítio para transtornos de humor (incluindo depressão e transtorno bipolar) em adultos desde o ano 2000. Os pesquisadores só incluíram estudos que duraram pelo menos 12 semanas na medida em que os estudos de curto prazo tendem a inflar artificialmente os efeitos do tratamento. Os pesquisadores seguiram as diretrizes do PRISMA para conduzir uma revisão sistemática e pré-especificaram suas medidas de resultado.

“Uma meta-análise anterior de ensaios de lítio alegou confirmar que ele tinha propriedades anti-suicidas, e foi muito influente, mas só incluiu ensaios em que houve suicídio, excluindo a maioria dos ensaios em que nenhum deles ocorreu. Portanto, queríamos realizar uma análise que incluísse todos os dados de ensaios aleatórios. Mostramos que se você fez isso, a alegação de que o lítio reduz o suicídio é bastante fantasiosa e não confirmada pelas evidências de ensaios aleatórios”, disse Moncrieff.

Dos 2578 participantes, dois morreram por suicídio no grupo do lítio (0,2%), enquanto que  cinco morreram por suicídio no placebo ou grupo de cuidados habituais (0,4%). Esta diferença não foi estatisticamente significativa, o que significa que uma diferença como esta é o que seria esperado apenas por acaso, dados números tão pequenos.

Apenas sete ensaios clínicos incluíram o resultado de um comportamento suicida não fatal. Dos participantes de 1975 nessas experiências, 81 (6,3%) no grupo de lítio contra 85 (6,5%) no grupo de placebo envolvidos em comportamento suicida não-fatal. Mais uma vez, esta diferença não foi estatisticamente significativa.

Não são apenas os estudos modernos – em uma análise adicional, os pesquisadores incluíram outros 15 estudos anteriores a 2000. Seus resultados não mudaram – a droga não permaneceu melhor do que o placebo.

Para ver se esta descoberta era devida ao tipo específico de análise utilizada, os pesquisadores re-analisaram seus dados usando outros métodos meta-analíticos. Todos estes testes não encontraram diferença entre o lítio e o placebo.

“A idéia de que o lítio ajuda a prevenir o suicídio realmente deveria ser colocada na cama agora”. O mais recente, e de longe o maior, julgamento de seus efeitos anti-suicidas foi interrompido até mesmo cedo porque era tão óbvio que não havia nenhum efeito. No entanto, alguns psiquiatras estão tão enamorados com o lítio que provavelmente ele persistirá. Chocantemente, alguns ainda estão pedindo que o lítio seja adicionado à água potável e usando argumentos sobre suas propriedades anti-suicidas como justificativa – Deus nos livre de que eles alguma vez prevaleçam”! disse Moncrieff.

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Nabi, Z., Stansfeld, J., Plöderl, M., Wood, L., & Moncrieff, J. (2022). Effects of lithium on suicide and suicidal behavior: A systematic review and meta-analysis of randomized trials. Epidemiology and Psychiatric Sciences, 31(e65), 1–11. https:// doi.org/10.1017/S204579602200049X (Full text)

[trad. e edição Fernando Freitas]

Uso a longo prazo de antidepressivos está associado ao aumento da morbidade e mortalidade

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Um artigo recentemente publicado no BJ Psych Open investiga os efeitos adversos dos ISRS e outros antidepressivos quando tomados por mais de cinco anos.

Narinder Bansal, Mohammad Hudda, Rupert A. Payne, Daniel J. Smith, David Kessler e Nicola Wiles utilizaram mais de 200.000 registros médicos individuais coletados pelo Biobank do Reino Unido entre 2006 e 2010.

“Os antidepressivos são um dos medicamentos mais prescritos. Setenta milhões de prescrições foram distribuídas em 2018, o que representa quase o dobro das prescrições em uma década. Este aumento impressionante na prescrição é atribuído ao tratamento a longo prazo, em vez de uma incidência maior de depressão, e estas tendências não se limitam ao Reino Unido”, escrevem os autores. “Entretanto, pouco se sabe sobre as conseqüências do tratamento antidepressivo de longo prazo para a saúde”.

Em julho, Joanna Moncreiff e Mark Horowitz conduziram e publicaram uma revisão das evidências da “teoria do desequilíbrio químico” da depressão, desmascarando efetivamente a idéia. Entretanto, os medicamentos psicotrópicos ainda são utilizados como tratamento de primeira linha para a depressão, apesar das perguntas sobre sua eficácia. Além disso, o uso de antidepressivos a longo prazo pode ter efeitos colaterais preocupantes, mas a educação pública e médica relativa à descontinuação e ao afunilamento da dose permanecem escassas.

Bansal e colegas procuraram documentar os efeitos adversos do uso de antidepressivos de longo prazo. O Biobank do Reino Unido coletou registros médicos de mais de 500.000 indivíduos durante quatro anos (2006-2010). Após excluir os participantes por vários motivos (por exemplo, o participante não estava mais registrado em seu clínico geral ou estava tomando vários antidepressivos no início do estudo), mais de 200.000 participantes entre 40 e 69 anos de idade permaneceram, 96% dos quais eram brancos.

Os autores então avaliaram a associação entre o uso de antidepressivos e quatro morbidades diferentes: diabetes, hipertensão, doença coronariana (CC) e doença cerebrovascular (CV), e dois resultados diferentes de mortalidade, incluindo doença cardiovascular (DCV) e mortalidade por todas as causas. Cada morbidade foi então avaliada utilizando o modelo de risco proporcional de Cox (um modelo de regressão comumente usado para entender a associação entre o tempo de sobrevivência dos pacientes e uma ou mais variáveis preditoras).

Os autores destacam que a experiência dos sintomas comumente entendidos como “depressão” está fortemente associada a “comportamentos de risco à saúde” ou “cocriadores”, tais como obesidade, tabagismo e falta de atividade física, que também são fatores de risco tanto para DCV quanto para diabetes. Através de múltiplas análises estatísticas, Bansal e seus colegas deram o melhor de si para contabilizar esses fatores de risco.

Os autores discutem suas conclusões:

“Nosso estudo descobriu que o uso de antidepressivos a longo prazo estava associado a um aumento do risco de DCV, DCV e mortalidade por todas as causas. Estas questões parecem ser mais problemáticas para os antidepressivos diferentes dos ISRS (mirtazapina, venlafaxina, duloxetina, trazodona), com o uso de tais medicamentos associados a um risco duas vezes maior de CHD, CVD, e mortalidade por todas as causas aos dez anos. Entretanto, havia também evidências de que os antidepressivos, particularmente os SSRIs, estavam associados a um risco reduzido de desenvolver hipertensão e diabetes. As descobertas foram particularmente evidentes após dez anos de acompanhamento, onde tivemos um número maior de eventos”.

Os autores explicam por que suas descobertas podem diferir de outros estudos devido à forma como acomodaram os diversos cofundadores. Depois que os autores se ajustaram aos comportamentos de risco que comumente co-ocorreram com sintomas de depressão, o aumento do risco de diabetes parece ser indistinguível do risco do uso de antidepressivos versus o fumo/obesidade.

Entretanto, os autores observam que: “…não foi possível distinguir entre os efeitos dos antidepressivos e a própria depressão”. E que “…o uso de antidepressivos a longo prazo estava associado a um aumento do risco de CHD, CVD e mortalidade por todas as causas”.

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Bansal, N., Hudda, M., Payne, R., Smith, D., Kessler, D., & Wiles, N. (2022). Antidepressant use and risk of adverse outcomes: Population-based cohort study. BJPsych Open, 8(5),    E164. doi:10.1192/bjo.2022.563 (Link)

Negar a institucionalidade do INSS no processo de concessão do benefício de prestação continuada (BPC). Uma nova reviravolta da Reforma Psiquiátrica Brasileira?

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Movimento de luta antimanicomial tem mais de 30 anos no Brasil - Isabel Baldoni/Prefeitura BH

No livro “A luta pelo reconhecimento da loucura. A gramática moral da assistência social na deficiência mental”, publicado este ano pela editora CRV, alcanço a entrever as condições de possibilidade de uma nova reviravolta. Um possível caminho por onde a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) poderia avançar na resolução de alguns dos seus impasses atuais. Existem elementos subjetivos e objetivos capazes de reclamar a negação da institucionalidade da assistência social da deficiência mental, ou seja, a negação do poder institucionalizante articulado no processo do BPC pela instituição tolerante do INSS.

Para chegar a esta proposição tivemos que efetuar dois passos prévios. O primeiro, foi reconsiderar conceitualmente o ato inaugural – estrutural – da RPB. O fizemos a partir de revisitar a história da loucura, desde Foucault até a atualidade, com as lentes da teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Isso nos levou três capítulos e nos permitiu, entre outras coisas, a conceitualização das palavras proferidas por Basaglia no instituto Sedes Sapientiae de São Paulo:

“O descobrimento da psiquiatria democrática foi reconhecer que o doente não é apenas um doente, senão um homem com todas as necessidades (…) e dizer não à miséria e à prática psiquiátrica” (1979).

“Dizer não” foi a atitude inicial. Mediante o dispositivo da reviravolta se tentará manter de forma permanente este ato inaugural. Porém, anos de reforma têm ensinado que esse dispositivo de reviravolta, que pretende levar em seu ventre a permanência do ato, paradoxalmente, não é, não pôde ou não soube ser constante. Esta realidade exige um esforço intelectual que possa captar de forma estrutural a associação dos elementos que compõem o descobrimento da psiquiatria democrática (reconhecimento e dizer não, ou reviravolta). De forma resumida poderia ser formulado assim:

Na base da reviravolta se encontram sentimentos coletivos de injustiça vinculados com o mal-estar que produz a inadequação das consciências/experiências da loucura (médica e social). Esta inadequação se exprime, cada vez, como a promessa incumprida da ciência médica de fazer do louco um ser humano como qualquer outro, ou seja, no mal-estar das tensões implícitas no consenso normativo do sistema científico-institucional. Por isso, se pode dizer que a ação desinstitucionalizadora (reconhecimento e reviravolta) intervém sobre os padrões de reconhecimento do amor, direito e solidariedade que, junto com uma semântica da liberdade, vem questionar e disputar a gestão do mínimo de liberdade e autonomia estabelecido pelo reconhecimento operado pela psiquiatria positiva e manicomial.

Este trabalho de conceitualização, aqui apresentado de forma muito resumida, nos possibilitou avançar sobre outras realidades além de nosso objeto de estudo. Em primeiro lugar, no entendimento de que a luta pelo reconhecimento impulsionada pela RPB cria as condições de autorrealização para muitos sujeitos. Dessa maneia, produz uma ampliação da civilidade que resulta no progresso moral da sociedade Brasileira. Mas também, nos permitiu discutir a normatividade ontológica (racionalidade eurocêntrica) da teoria de reconhecimento, como sendo a responsável por excluir o campo da SM dos referentes empíricos da sua teoria. Dessa maneira, ao contemplar a intersubjetividade própria de nosso campo, nos vimos levados a fazer aportes para a ampliação da normatividade do aspecto motivacional das lutas sociais.

Já o segundo passo, consistiu em explorar o estado atual da inadequação estrutural das consciências/experiências da loucura – as tensões implícitas no consenso normativo do sistema científico-institucional da concessão/negação do BPC em deficiências mentais. Aqui, além de analisar muita literatura, a legislação e o próprio instrumento de avaliação, tentamos compreender as diferentes dimensões dos conflitos mudos entre os participantes e suas respectivas instâncias institucionais: requerentes, CAPS, INSS e Justiça Federal (JF).

Isto nos levou oito capítulos. Os seus títulos oferecem uma ideia desta gramática moral: O sistema é bruto; Fraude, mentira, simulação e dissimulação; o círculo hermenêutico da prostituta das provas; contratransferência afetiva e sem afeto; o instrumento de avaliação no reconhecimento da loucura em SM; A estrutura do corpo, o prognóstico e o longo prazo: um caso de lost in translation?; Nem todo louco recebe benefício: eu estou apta para o trabalho, mas o trabalho não está apto para mim; A sobrevivência como um benefício: o benefício como recurso terapêutico; Sentimentos de injustiça murmurados.

Daqui surgiram os elementos subjetivos e objetivos capazes de fazer-nos afirmar que estão dadas as condições para uma nova reviravolta, para a negação da institucionalidade do BPC, ou seja, o INSS. Esses elementos, captados nos diferentes registros da gramática moral dos conflitos mudos, podem alcançar uma formulação sintética:

A normatividade do INSS funciona como um Outro estranho para o campo da Saúde Mental. A estrutura de reconhecimento da necessidade e do direito do BPC para os sujeitos em sofrimento psíquico se impõe desde fora, sem contemplar as preferências axiológicas e a intersubjetividade próprias do campo da Saúde Mental.

Esta distância da estrutura de reconhecimento da institucionalidade do BPC (INSS) a respeito das preferências axiológicas de nosso campo, foi descrita, no capítulo que nos ocupamos dela, a partir de três noções. A reificação paradoxal: reestabelece o paradoxo constitucional do tratamento moderno da loucura (proteção-exclusão) no nível da relação entre direito e necessidade. O deslocamento das condições de intersubjetividade de reconhecimento: levanta a questão da racionalidade institucional necessária para responder ao novo paradigma de solidariedade nas deficiências. E finalmente, o desenquadre: indica como o conflito na concessão do BPC permite reestabelecer a autoridade do Juiz e do perito psiquiatra – e com elas a tutela. Mas também, destacar o questionamento sobre quem é o ator social mais adequado para instrumentar a avaliação pautada no paradigma psicossocial (CIF).

Uma política desinstitucionalizadora do BPC requer de algumas objetivações: a) O nível de extensão do conflito e dos sentimentos de injustiça não se restringe aos sujeitos de nosso campo (usuários e profissionais dos CAPS), pelo contrário, perpassam todas as categorias profissionais das diferentes institucionalidades que fazem parte do processo; b) Embora exista um consenso positivo sobre o instrumento de avaliação, sua aplicabilidade nas deficiências mentais ainda apresenta peculiares dificuldades; c) O elevado gasto para o cofre público que representa a conflitividade vigente.

Finalmente, sabemos que toda negação da institucionalidade vigente supõe uma invenção capaz de ampliar o reconhecimento das necessidades. Pois bem, nesses sentimentos de injustiça, nessas preferências axiológicas feridas, na ética do cuidado desenvolvida de forma cotidiana nos CAPS, podem se encontrar verdadeiros esboços de futuras institucionalidades que venham a responder melhor às contradições entre direito e necessidade. Verdadeiros bosquejos para a construção de uma nova semântica da liberdade, que possa articular de forma mais adequada autonomia e cuidado, assim com a passagem entre a orientação moral do trato igual, recíproco e simétrico entre os direitos e obrigações; e a bondade (beneficência), da prática afetiva e não recíproca da infinidade do outro concreto.

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Dr. Martín Mezza. Autor do Livro: “A luta pelo reconhecimento da loucura. A gramática moral da assistência social na deficiência mental”.

Para adquirir exemplares com descontos entrar em contato: martin_mezza1/ [email protected]

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