Um artigo recente publicado no Journal of Mental Health examina a freqüência dos dados clínicos da saúde mental no Reino Unido, incluindo informações relacionadas aos determinantes sociais da saúde, bem como os relatos fenomenológicos (focados em sintomas). Estes dados clínicos são baseados em códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde Relacionados (CID) e vêm do banco de dados eletrônico do UK NHS Trust.
Os autores, incluindo o psicólogo clínico britânico Peter Kinderman, descobriram que tanto os determinantes sociais da saúde quanto os códigos fenomenológicos raramente são usados em relatórios clínicos, apesar de sua conhecida prevalência entre os usuários dos serviços.
“Em 2012, um grupo líder de psiquiatras sociais argumentou que a assistência em saúde mental precisava ser reformada, para levar melhor em conta os determinantes sociais. Da mesma forma, o Relator Especial das Nações Unidas Dr. Dainius Puras argumentou que os problemas de saúde mental estão fortemente ligados às adversidades, desigualdades e abusos da primeira infância, e defendeu uma ‘revolução’ no cuidado da saúde mental; uma mudança no foco de ‘tratamento’ para uma base social mais fundamental para o cuidado. Este tipo de visões para a assistêncua tem como primeiro passo o reconhecimento e registro destes determinantes sociais”, escreve Kinderman e seus co-autores.
As Nações Unidas e muitos outros têm apelado para a necessidade de reconhecer o impacto de fatores sociais e econômicos na saúde mental em vez de uma abordagem individualizada baseada no modelo médico. Estes fatores sociais e econômicos incluem fenômenos como pobreza, imigração, experiências adversas na infância, desabrigo e isolamento.
Kinderman também propôs a reforma do diagnóstico psiquiátrico, colocando uma ênfase renovada no diagnóstico de condições sociais em vez de distúrbios dentro dos indivíduos (ver entrevista MIA). Apesar desses apelos, porém, a psicologia e a psiquiatria continuam sendo regidas por um paradigma dominante baseado no individualismo e em entendimentos restritos do cérebro.
O documento atual examina com que freqüência os determinantes sociais dos códigos de saúde foram relatados nos registros de casos de saúde mental no Reino Unido entre 1 de janeiro de 2015 e 1 de janeiro de 2016. Os autores, reconhecendo a “evidência esmagadora” do impacto dos determinantes sociais da saúde sobre a saúde mental, procuraram analisar com que freqüência as categorias CID-10 e CID-11 relacionadas a estes fenômenos são realmente mencionadas nos registros de casos clínicos.
Eles também analisaram a freqüência dos códigos “fenomenológicos” do CDI sendo relatados, concentrando-se nos sintomas, tais como alucinações auditivas e ideações suicidas, em vez de transtornos diagnosticáveis.
Os autores examinaram 21.701 registros de casos do UK NHS Trust, um banco de dados eletrônico baseado no “sistema ePEX, um sistema de registros eletrônicos de saúde projetado tanto para a atividade clínica interna do Trust quanto para a comunicação obrigatória aos comissários e órgãos reguladores”.
Dos 21.701 registros de casos, 4.656 indivíduos receberam um diagnóstico formal.
10,2% de toda a amostra de usuários de serviços foram diagnosticados com um “transtorno mental, comportamental e de desenvolvimento neurológico”, como a esquizofrenia paranóica.
O uso de códigos “quase-diagnósticos”, consistindo de “sintomas, sinais e achados clínicos e laboratoriais anormais, não classificados em outros lugares”, foi bastante raro. Dezenove pessoas (0,1%) das 21.701 receberam um código relacionado, por exemplo, a alucinações auditivas ou “outros sintomas e sinais envolvendo estado emocional” (R45.8).
O sistema do CID é complexo e pode incluir diagnósticos primários e secundários, no entanto, o que forçou os autores a examinar manualmente muitos casos. Códigos relacionados a “sintomas, sinais e achados clínicos e laboratoriais anormais, não classificados em outros lugares” foram mencionados um total de 66 vezes.
Apenas 43 referências foram feitas a códigos do CID relacionados a determinantes sociais de saúde para 39 indivíduos (0,2%, ou 0,8% dos indivíduos diagnosticados).
Por exemplo, dois indivíduos foram identificados como “desempregados”, um indivíduo recebeu o código para “outra tensão física e mental relacionada ao trabalho”, um foi identificado como “sem-teto”, e três foram classificados como “vivendo sozinho”.
Além disso, dois foram classificados como tendo um “problema relacionado ao ambiente social”, sete foram relatados como tendo “problemas relacionados ao suposto abuso sexual de criança por pessoa dentro do grupo de apoio primário”, e seis foram relatados como lidando com o “desaparecimento e morte de membro da família”. Outros receberam códigos relacionados a problemas legais, circunstâncias psicossociais, “estresse, não classificado em outro lugar”, e outras questões.
Quando indivíduos receberam um diagnóstico mental, como a Síndrome de Estresse Pós-Traumático (SEPT), também foi raro encontrar um código psicossocial de acompanhamento. Por exemplo, de 64 pessoas diagnosticadas com SEPT, apenas dois casos mencionaram vagas “circunstâncias psicossociais”. Além disso, não foram relatados “eventos traumáticos específicos” em nenhum desses casos, apesar de a SEPT estar fundamentado em um histórico pessoal de trauma.
Da mesma forma, dos 151 usuários de serviços diagnosticados com um “transtorno de personalidade emocionalmente instável”, apenas um caso mencionou qualquer coisa relacionada a determinantes sociais da saúde – uma única menção de suposto abuso sexual.
Os autores compararam o uso infrequente desses códigos com a prevalência estimada da população. Por exemplo, apenas três pessoas no banco de dados foram relatadas como vivendo sozinhas, enquanto 11% de todos os usuários de serviços de saúde mental relataram viver sozinhos em uma pesquisa representativa.
Experiências adversas na infância relacionadas a trauma foram relatadas apenas 11 vezes (0,05% do total do conjunto de dados), mas em estudos epidemiológicos, 31% dos participantes relataram eventos de trauma na infância.
Em resumo:
“Em geral, foram usados códigos para possíveis determinantes sociais em apenas 39 casos (0,2% do conjunto de dados completo de 21.701 indivíduos, ou 0,8% dos 4656 que receberam um diagnóstico primário). A comparação com as freqüências de base relevantes revelou uma subnotificação altamente significativa de determinantes sociais chave, conhecidos”.
Enquanto isso, códigos fenomenológicos (focados nos sintomas) foram utilizados em apenas 19 casos. Eles observam que estas estatísticas são semelhantes às descobertas do sistema psiquiátrico dos EUA.
No entanto, eles advertem que estes dados não fornecem informações sobre notas clínicas psiquiátricas e de enfermagem “mantidas individualmente”.
Os autores concluem:
“É provável que informações de diagnóstico possam ter guiado decisões clínicas em pelo menos algumas ocasiões, mas não foram registradas no banco de dados. No entanto, a omissão de registros dos determinantes sociais dos problemas de saúde mental é importante, devido ao provável impacto em nossa compreensão dos problemas, nos caminhos dos cuidados e nas agendas políticas.
A descrição das circunstâncias que podem ter contribuído para o sofrimento psíquico promove a compreensão e, portanto, a compaixão. Pesquisas demonstraram que a inclusão de informações sobre determinantes sociais reduz a probabilidade de que um padrão de comportamento seja visto como patológico. Omitir informações sobre circunstâncias psicossociais significa que é mais provável uma explicação biomédica e patologizante”.
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Kinderman, P., Allsopp, K., Zero, R., Handerer, F., & Tai, S. (2021). Minimal use of ICD social determinant or phenomenological codes in mental health care records. Journal of Mental Health, 1-10. (Link)
Em um novo artigo em Policy and Politics, a pesquisadora Sarah White, da Universidade de Bath, escreve sobre a preocupação cultural difundida com bem-estar e felicidade. Ela afirma que esta preocupação aponta para um mal-estar subjacente que as pessoas experimentam no capitalismo tardio, à medida que seus laços sociais e relacionais são corroídos. Além disso, as soluções individualistas que prometem bem-estar muitas vezes agravam o problema.
A autora baseia as suas afirmações em suas descobertas na Zâmbia e na Índia e, em vez disso, propõe uma compreensão relacional do bem-estar. Esta conceitualização do bem-estar encoraja mudanças no nível político para incluir a reconstrução das relações sociais, concentrando-se nas estruturas sociais e políticas, e valorizando o contexto local.
O bem-estar é um dos temas mais bem pesquisados e populares em Psicologia. Apesar de sua popularidade, os críticos têm apontado inúmeros problemas na forma como medimos e entendemos o bem-estar. Por exemplo, algumas pesquisas têm observado que as mídias sociais ameaçam o bem-estar psicológico. Fatores estruturais como o inconsistente e a constante mudança do horário de trabalho dos pais também foram encontrados para diminuir o bem-estar de seus filhos.
Além disso, descobertas recentes têm sugerido repetidamente que o individualismo, prevalecente nas sociedades capitalistas tardias está ligado a uma saúde mental pior. Isto é especialmente verdadeiro para os jovens, pois está associado a pressões extremas e constantes de desempenho. As pessoas que tendem a reproduzir as ideias capitalistas neoliberais também mostram taxas mais altas de solidão e diminuição do bem-estar, porque esses valores enfatizam a responsabilidade pessoal e minimizam as influências sociais sobre a saúde do indivíduo.
Escrevendo sobre preocupações similares, White começa explorando o declínio dos laços sociais e relacionais sem romantizar formas mais antigas de uma família ou comunidade mítica feliz. Ela escreve que os laços comunitários e relacionais “libertados” no capitalismo tardio permitem a fácil disponibilidade e exploração de mão-de-obra móvel. O mercado e o Estado substituíram muitos papéis anteriormente desempenhados por sistemas de parentesco ou outras instituições comunitárias. Estas mudanças econômicas e políticas levaram a mudanças em nossas ideias de autoestima, família e outros vínculos relacionais – muitas vezes consistentes com a crescente individualização.
Na superfície, parece que as pessoas têm mais agência e escolha, mas White escreve que na verdade elas são:
“Disciplinados e seduzidos pelas forças do Estado e do mercado para fazer certos tipos de ‘escolhas’ e proporcionar não apenas certos tipos de comportamento, mas um certo tipo de self”.
Este self foi transformado em um projeto de aperfeiçoamento onde as pessoas são encorajadas a buscar serviços mais profissionalizados (análise, terapia, autoajuda, livros de autoajuda) para alcançar a perfeição fugidia. O bem-estar é parte deste projeto de autoaperfeiçoamento. Há um foco forçado no positivo, ignorando a insegurança subjacente, a perda e a fragmentação causada pela alienação de laços sociais e relacionais.
White argumenta que houve três grandes formas de bem-estar que dominaram o discurso popular. O Bem-estar geral afirma que o bem-estar deve medir mais do que apenas o crescimento econômico e incluir outras medidas subjetivas relativas ao progresso da sociedade. As críticas a esta abordagem incluíram a problematização da idéia de que existem formas superiores e inferiores de bem-estar, o que poderia refletir preconceitos baseados em classe, etnia e gênero.
O outro tipo de bem-estar é o bem-estar subjetivo, mais popularizado pela psicologia positiva. Isto considera a satisfação com a própria vida o principal indicador de bem-estar – “uma métrica de quão felizes ou satisfeitos as pessoas estão em seus próprios termos”. Há muitos problemas com esta medida, tais como as pessoas podem relatar altos níveis de satisfação por inúmeras razões: “baixas expectativas, opressão internalizada, ou simplesmente um desejo de parecer bem”.
White escreve que esta é também uma medida altamente baseada no mercado – as pessoas que respondem a estas perguntas são tratadas como consumidores que relatam sua satisfação com um produto (suas vidas). Tal abordagem baseada no mercado pareceu absurda na Índia e na Zâmbia, onde as pessoas acharam estranho “abstrair-se de sua experiência vivida e depois fazer um julgamento generalizado ao longo de toda a vida”.
A terceira é o bem-estar pessoal, onde os indivíduos são exortados a assumir a responsabilidade por sua felicidade e saúde, não apenas se sentindo bem, mas fazendo bem. Desta forma, a mudança no comportamento individual está no centro. Apesar das tentativas de vincular o bem-estar pessoal ao social, ele permanece um conceito individualista em sua essência porque o social é visto como importante apenas porque contribui para o bem-estar individual.
A autoperfeição é realizada através de numerosas tecnologias emergentes do self, tais como aplicações de cuidado, relógios de medição de fitness, etc. Tudo isso aumenta o auto-monitoramento e pressiona as pessoas a realizarem um “self” positivo em todos os momentos.
White sustenta que embora existam inúmeros problemas com estas conceptualizações, o fato de estarmos preocupados com o bem-estar como uma sociedade mostra que nos falta algo. Ela então avança sua própria conceituação de bem-estar chamada bem-estar relacional. As abordagens mencionadas acima consideram as relações importantes, mas apenas como um meio de aumentar o próprio bem-estar; elas ainda se concentram no indivíduo.
White emprega uma abordagem totalmente relacional onde as relações não são vistas apenas como um acréscimo ou uma restrição dos sentimentos individuais de bem-estar. Em outras palavras, os relacionamentos não são apenas apoio social ou determinante social do próprio bem-estar pessoal.
Em vez disso, usando o conceito de Gergen, o indivíduo é visto como construído através de suas múltiplas relações. Isto se refletiu em seu trabalho empírico na Índia e na Zâmbia. Ela descobriu que os aldeões têm uma profunda compreensão e experiência relacional do eu, e o bem-estar foi entendido em termos coletivos.
Os aldeões que foram seus participantes descreveram o bem-estar, “suas histórias pessoais e geografias, o que os havia frustrado e lhes trouxe alegria”, em termos relacionais. A ideia de amor estava profundamente interligada com o proporcionar, e “ter o suficiente” trouxe à tona conversas sobre ter o suficiente para compartilhar com os outros na comunidade. O bem-estar relacional, material e subjetivo era inseparável.
Ela descobriu que as estruturas sociais eram críticas, pois as relações de poder da sociedade estavam intrinsecamente ligadas a questões de bem-estar. Isso incluía políticas governamentais, estruturas burocráticas e econômicas. Essas estruturas freqüentemente determinam “riqueza e pobreza, pertencimento e exclusão, justiça e direito”.
Além disso, o ambiente natural desempenhou um papel importante na forma como o bem-estar foi vivenciado e compreendido. Como os participantes eram de comunidades rurais, suas vidas e sua subsistência dependiam dos recursos naturais e de como eles eram compartilhados e utilizados. Havia também um senso de responsabilidade e cuidado com o meio ambiente natural. White cita um aldeão indiano que disse: “Se não cuidarmos do jardim, então Deus não mandará a chuva”.
White escreve que esta compreensão do bem-estar como profundamente relacional, material e subjetivo tem sérias implicações em nível político. Isto significa que devemos nos concentrar na reconstrução dos vínculos sociais e comunitários. Significa também garantir que respeitamos os contextos locais ao medir o bem-estar, perguntando às pessoas como elas o entendem e experimentam; em outras palavras, o que é importante para elas.
Finalmente, enfatiza o papel que as estruturas sociais têm no bem-estar das pessoas. Por exemplo, pedir às pessoas que administrem seu peso não é suficiente se ignorarmos o papel que a pobreza desempenha no mesmo.
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White, S. C. (2021). Relational well-being: re-centering the politics of happiness, policy, and the self. Policy & Politics. DOI: https://doi.org/10.1332/030557317X14866576265970 (Link)
Em um estudo recentemente publicado na PLoS One, pesquisadores investigaram os efeitos da exposição a longo prazo tanto à ficção literária quanto à popular sobre vários aspectos da cognição social. Eles constataram que a leitura da ficção literária previa uma maior capacidade de compreender a vida psicológica dos outros de forma mais complexa e precisa.
O estudo foi liderado pela psicóloga social Emanuele Castano da Universidade de Trento, na Itália. Os autores escrevem:
“Como crianças, ouvimos (e fabricamos) histórias o dia todo, e como adultos, terminamos o dia lendo, observando e, cada vez mais, brincando com histórias. Adoramos histórias porque são divertidas, nos ensinam sobre o mundo em que vivemos e, assim como a interação social, nos ajudam a construir os processos cognitivos necessários para aprender sobre o mundo”. O trabalho acadêmico em teoria evolutiva e antropologia sugere que as histórias desempenharam um papel significativo na evolução da cognição humana. Durante a última década, a pesquisa investigou os processos envolvidos na construção mental de mundos ficcionais, como os leitores são transportados para tais mundos, e o impacto que o envolvimento com a ficção tem sobre a cognição”.
Os autores fazem distinção entre ficção literária e popular, que atrai os leitores por diferentes razões e tem diferentes funções sócio-cognitivas. A ficção popular é considerada divertida, uma fuga da realidade cotidiana, onde o leitor segue principalmente as histórias com significados e temas relativamente evidentes. Por outro lado, a ficção literária é conhecida por ter histórias mais complexas e introspectivas, narradas a partir de múltiplas perspectivas. Os leitores são encorajados a construir seus próprios significados a partir dos eventos da história.
“Uma consequência desta ênfase na vida interior é que a ficção literária destaca o subjetivo sobre o objetivo, a incerteza e a multiplicidade sobre a certeza e a singularidade. Outra conseqüência relacionada é que os leitores são convidados a prestar maior atenção ao funcionamento da mente. Enquanto toda ficção requer a compreensão dos estados mentais incorporados dos personagens, a ficção literária ‘faz[s] o leitor inferir estados mentais implícitos, além de (e às vezes ao invés de) enunciar alguns”.
Os autores supõem que, como a ficção literária encoraja uma leitura mais complexa da psicologia humana em suas histórias, ela se traduziria na compreensão dos leitores de si mesmos, dos outros e de seus mundos. Pesquisas experimentais realizadas no passado demonstraram que a ficção literária melhora a teoria da mente, ou a capacidade de pensar sobre os mundos psicológicos de nós mesmos e dos outros.
Após esta pesquisa, os autores procuraram explorar que outras características da cognição social poderiam ser influenciadas pela leitura da literatura. Eles colocaram a hipótese de aumentar a complexidade atribucional, reduzir o viés egocêntrico e aumentar a precisão na percepção social das pessoas que lêem ficção literária.
A complexidade atribucional refere-se à compreensão do comportamento humano como afetado por interações interpessoais e outras forças externas e motivado por uma propensão para explicações complexas. Se os leitores de ficção literária estiverem engajados em uma maior tomada de perspectiva, é menos provável que caiam no efeito do falso consenso (um viés egocêntrico) de superestimar o quanto os outros são semelhantes a nós mesmos na forma como se comportam e no que valorizam. Os pesquisadores consideram que, ao reduzir o viés egocêntrico, a ficção literária também pode aumentar nossa precisão dos estados mentais dos outros (pensamentos, emoções, atitudes, etc.) em nível individual e social.
Os pesquisadores recrutaram uma amostra de 502 participantes através da plataforma de Mechanical Turk (MTurk). Dos 477 participantes incluídos no estudo, eles completaram várias medidas para avaliar sua exposição aos diferentes tipos de ficção (literária, popular) e aqueles para a complexidade atribucional. Os participantes também completaram tarefas relacionadas ao viés egocêntrico, à precisão social e mental (Reading in the Mind Eyes Test). Finalmente, os pesquisadores usaram múltiplas regressões para medir a correlação entre a exposição à literatura com estas características de cognição social.
A partir dessas análises, os pesquisadores relataram que:
“A exposição à ficção literária e popular previu positivamente e negativamente a complexidade atribucional, respectivamente. Para ambas as medidas de tendência egocêntrica (TFC e PCTF), Literário era um preditor negativo, mas apenas marginal, enquanto Popular não era um preditor de nenhuma das medidas. Para medidas de exatidão, a exposição à ficção literária previu positivamente tanto a Acuidade Mental quanto a Acuidade Social, enquanto a exposição à ficção Popular não previu nenhuma das duas”.
Castano e colegas também analisaram como outros fatores, como nível de educação e gênero, poderiam se relacionar com essas variáveis. Por exemplo, eles descobriram que os participantes com educação superior tinham mais exposição tanto à ficção literária quanto à popular, tinham níveis mais altos de complexidade atribucional e precisão mental.
Além disso, as mulheres tinham padrões semelhantes com a inclusão de maior precisão social, embora não fossem encontradas diferenças de gênero para o viés egocêntrico. Ao controlar para estes dois fatores, os pesquisadores não encontraram nenhuma mudança nos padrões a não ser a exposição à ficção literária sendo um preditor mais confiável do viés egocêntrico.
De acordo com os autores, estas descobertas são importantes porque se baseiam em descobertas de estudos anteriores que examinam como a ficção molda a cognição social e afeta o estilo cognitivo. Além disso, elas são consistentes com descobertas que mostram a complexidade atribucional positivamente associada à precisão mental/individual e social, bem como a percepção dos pares como possuindo mais sabedoria social e consideração.
Os autores mencionam que a compreensão dos preditores de complexidade atribucional poderia ser importante para mitigar o racismo e moldar atitudes em relação a opiniões importantes relacionadas à política.
“No entanto, embora esta lógica seja consistente com o trabalho anterior que é experimental por natureza, devido à natureza correlacional dos dados aqui apresentados, nós advertimos contra tirar conclusões fortes sobre a causalidade. Nossa opinião é que a leitura de diferentes tipos de ficção promove certos processos sócio-cognitivos e estilos cognitivos relativos a outros, mas também concordamos que as diferenças individuais nestes processos e estilos podem tornar as pessoas mais propensas a gravitar em direção a diferentes tipos de ficção”.
Eles mencionam que é possível que o nível de educação, e especificamente o nível universitário, possa afetar sua exposição à ficção literária, levando à melhoria das habilidades sócio-cognitivas. Entretanto, os autores também advertem contra assumir uma superioridade inerente da ficção literária, pois a complexidade atribucional está relacionada à tomada de decisão atrasada ou descarrilada e negativamente relacionada à saúde mental. Em contraste, o viés egocêntrico está positivamente relacionado com a saúde mental.
Citando a Teoria da Gestão do Terror, que sugere que muitas de nossas ações são motivadas por um medo inconsciente da morte (ou seja, ansiedade existencial), os autores especularam que a ficção literária e popular tem efeitos opostos sobre essa ansiedade.
“Um dos mais importantes mecanismos psicológicos através dos quais mantemos esta ansiedade existencial à distância é a visão do mundo cultural: concepções da realidade que imbuem a vida de estabilidade, ordem e permanência. As visões de mundo culturais são elaboradas e mantidas dentro de grupos culturais através de uma variedade de artefatos culturais, entre os quais a ficção. Dadas as características da ficção literária e popular discutidas acima, prevemos que a exposição à ficção popular (porque confirma as expectativas sobre o mundo) reduz a ansiedade existencial, enquanto a ficção literária (porque desafia tais expectativas) a aumenta”.
Os autores contextualizam os processos sócio-cognitivos subjacentes associados à ficção literária e popular como essenciais para facilitar processos sociais centrais de vinculação com os outros e individualização; eles sugerem que estar em uma dialética constante e autodidata ajuda a sociedade a florescer. A vinculação facilita a formação e manutenção de grupos sociais através do desenvolvimento de identidades sociais e da identificação com e promulgação de papéis sociais. A individuação direciona a atenção para dentro e fomenta uma visão do mundo em termos de indivíduos únicos.
“Nesta perspectiva, uma hierarquia de ficção não tem sentido porque tanto a ligação como a individualização são necessárias não apenas no nível social para que as sociedades humanas funcionem e evoluam, mas também, quando dirigidas para dentro, para satisfazer necessidades intra-psíquicas”.
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Castano, E., Martingano, A. J., & Perconti, P. (2020). The effect of exposure to fiction on attributional complexity, egocentric bias, and accuracy in social perception. PLoS ONE, 15(5), e0233378. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0233378(Link)
Minha descida no sistema de saúde mental e medicação psiquiátrica começou aos 19 anos após meu primeiro ano de faculdade, primeiramente na forma de antidepressivos, depois evoluindo para estabilizadores de humor e antipsicóticos. Agora, minha história psiquiátrica é tão extensa que é como se eu estivesse envolta em um bandagem infinita, como uma múmia, medicação que cobre continuamente as minhas feridas, nunca permitindo que elas sejam expostas e cicatrizem.
Pergunto-me como as coisas ficaram tão intrincadas e íntimas, como a minha tristeza inicial e meu impulso para cometer suicídio conspiraram para transformar o meu futuro de desejável ao desolado. Como – quando comecei a entrar e sair das sessões de aconselhamento, dos consultórios de psiquiatras e das enfermarias psiquiátricas em uma base rotineira e rotativa – fiquei entorpecida, e como, à medida que meu brilho diminuía, minha curiosidade, motivação e senso de humor também diminuíam.
Eu finjo confiança na manutenção de minha sanidade com a medicação diária. Mas, na verdade, estou tão ansiosa como sempre, pois o ano cinco se aproxima. Meu padrão de insanidade retorna sempre. Vivi meu primeiro episódio psicótico em 2003 (com 21 anos), o segundo em 2006, o terceiro em 2011, e o quarto em 2017. Os quatro anos desde meu último episódio foram marcados por períodos de produtividade, paz, rotina, estabilidade, hipomania, energia, agitação, indolência e tédio, um agregado de bons e maus hábitos, um conglomerado de qualidades positivas e negativas, altos e baixos normais. Nada tem sido muito desencadeante ou estressante: nada que me mande para além do limite. Nada me fez querer renunciar à minha medicação, e nada me fez esquecer de tomar a minha medicação.
Meus episódios psicóticos estão cheios de mania, nunca de depressão, e durante um episódio, a ação reina suprema. Tomei um trem, peguei carona, me envolvi em caminhar e fugir cronicamente, joguei fora meus pertences e destruí minhas obras de arte. Fui sem teto, fui encarcerada, fui hospitalizada e, apesar de acolher certos aspectos da loucura, nenhuma dessas experiências, como um todo, foi positiva. Eu sou uma contradição ativa: senti-me como deus, senti minha vida ameaçada, senti uma espécie de liberdade última, senti-me quebrada.
No passado, quando deixei de tomar a minha medicação e tive um episódio, sempre fui colocada de volta (às vezes imediatamente, mas sempre contra a minha vontade). Por exemplo, durante o meu último episódio, um psiquiatra de uma unidade de internação hospitalar ameaçou fazer o pessoal forçar a medicação (Haldol, talvez?) através de injeção, se eu continuasse a recusar o tratamento oral. Apesar do tratamento sub-humano do psiquiatra, eu me rendi e comecei a tomar a medicação oral.
Não me sinto necessariamente desconfortável com a medicação, mas sim com a ambivalência. Hoje, continuo esta contradição ativa, muitas vezes professando uma postura anti-medicação. Eu tenho raiva pelo fato de nunca ter sido minha escolha tomá-la. Estou sempre curiosa sobre a minha capacidade de funcionar sem medicação. Estou curiosa sobre a minha natureza e personalidade, sobre as portas que imagino que se abririam para infinitas possibilidades e produtividade em série, para o êxtase incessante, se eu deixasse a medicação e evitasse os antagonistas e a agonia.
Minha experiência apóia a teoria da euforia, e sei que eu ficaria emocionalmente feliz sem a medicação. Mas o sofrimento que sofri nas mãos da autoridade (médicos e policiais) foi muito traumático para fingir que eu poderia evitar o que sempre foi inevitável, pelo menos no passado. Se eu pudesse manter um semblante de sanidade sem a minha pílula diária, eu poderia parar de pontificar e transformar o meu sonho em realidade.
Em todo meu glorioso devaneio, quando me lembro do meu cadastro, a dor retorna. Minha autoestima está envolta em uma condenação criminal de 2006, as consequências que me seguem em minha busca pela utopia. Sim, eu não estava medicada na época das ofensas. Marcada com um registro que não pode ser expungido (de acordo com a lei da Virgínia) porque me declarei culpada, não posso recuperar o meu orgulho, a minha alegria, a minha vida. Demasiado estigma. Demasiado julgamento. Demasiado de outras pessoas, imperfeitas como eu. Minha vida parece roubada, e eu estou perdida, sem um propósito.
Meu consolo é a capacidade de escrever, e embora eu possa nunca ficar rica financeiramente, posso ser rica em um talento que ninguém pode tirar de mim, e as palavras podem ser apenas o poder que preciso para reconstruir a minha autoestima e fazer reparações com tudo e com todos que perdi com a loucura.
Apesar de minha aptidão para escrever e de minhas aspirações, a medicação reduz a ação, diminui a motivação e me encontro em um estado perpétuo de procrastinação. É uma tarefa de exercício, por exemplo, e eu raramente faço algo para além do que me sinto segura. É muito parecido com preguiça. É muito parecido com passar o tempo sentada. No entanto, tenho mantido a mesma dose diária de 10 mg de Abilify durante os últimos anos. É o único medicamento que tomo e, embora esteja em conformidade, não estou satisfeita: Não me sinto inteira. Eu não me sinto autêntica.
Eu iria ao ponto de pular de um trem enquanto tomava medicamentos, ou fazia alguma coisa, qualquer coisa, ao mesmo tempo em que era regida apenas para provar que meus impulsos muitas vezes nada tinham nada a ver com medicação ou com a compostura. Minhas ações fora da medicação estão enraizadas no desejo e na sensação de grandeza, elas são de caminhar 10 milhas sem parar todos os dias até que me encontro dentro das paredes e corredores de uma unidade hospitalar, o remédio começa a fluir, subjugando minha energia inquieta, sufocando a minha engenhosidade. Saí do meu último surto psicótico, 12 kg mais leve. De certa forma, estava grata pela mania que me deixou inquieta e andando sem parar, porque olhava mais de perto para uma versão mais antiga e mais esbelta de mim mesma, uma versão suprema dos meus 20 anos quando eu estava feliz e cheia de confiança.
Descobrir minha identidade é a parte mais difícil da equação. Eu sou alguém que não conheço quando não estou medicada porque, durante a maior parte da minha vida adulta, sempre tomei medicação. E quando estou sob medicação, sou alguém que não gosto. Quando estou sob medicação, estou entorpecida. Fora da medicação, sinto a verdade. Com a medicação, sinto a falsificação. Ofende-me a maneira sutil como a medicação filtra minha identidade: a maneira como torna a minha visão embaçada, protegendo-me da sensação e mascarando minhas tristezas, a maneira como não posso dizer quem realmente sou e o que realmente quero. Embora a medicação subverta a identidade, ela impulsiona a reflexão. Sobre a medicação, penso eu. Muita coisa. E nem sempre o tipo de pensamento produtivo e saudável. É a antítese da minha natureza fisicamente ativa quando sem medicação.
Quero viver a vida sem medicamentos, o que me levaria a tomar medidas: partir, fugir, recomeçar, apenas fazê-lo: com audácia, sem medo, sem olhar para trás. Eu já o fiz antes. Já o fiz mais de uma vez. Suspeito que o farei novamente. Não posso evitar as (e)moções: o impulso que me atrai, o conforto que me frustra. Quero uma experiência alternativa, do tipo que é iluminadora, onde enfrento meus problemas, aprendo com eles e avanço de forma saudável, com as ferramentas para garantir segurança e consciência, sem toda a bruma, sem a simulação sufocante de hospitalizações, sem as impurezas da psiquiatria.
Os principais resultados aparecem de uma forma pró e contra. Reconheço a realidade de minha situação em seu estado atual e sei que não vou renunciar à administração de medicamentos num futuro próximo, mesmo lutando diariamente com consentimento e contentamento.
Aos 20 anos, o mundo estava na ponta dos meus dedos. Aos 39 anos, eu não tenho nada para mostrar. Tudo o que faço agora é me perguntar o que estaria fazendo e onde estaria se conseguisse alcançar a crista e me acalmar no ritmo, com equilíbrio, o suficiente para escapar do sistema cíclico de medicamentos e psiquiatria. Eu vacilo no momento, sem saber se quero estender meu cadastro. Tirar as possibilidades é como gargarejar água salgada morna.
Gargarejo. Gargarejo. Engolir. Soa como um vulcão ativo pronto para entrar em erupção. Penso sobre o futuro, não sobre o passado, não sobre a memória, aquele sinal astuto de imaginário versus real. Enquanto as lembranças me provocam, eu me regurgito.
Passo mais tempo pensando em como não quero estar sob medicação do que estabelecendo um hábito de escrita ou me envolvendo em ‘hobbies’ ou promovendo uma rotina mais produtiva. Estou muito distraída com o gosto salgado da nostalgia.
Escrever está sempre em minha mente (como minhas tramas para fugir ou quebrar o ciclo da medicação diária), mas nunca se torna uma realidade. As histórias que me sinto obrigada a documentar por sua pura singularidade são as mais difíceis de contar porque me levam de paisagens brilhantes a interiores escuros. Você deveria escrever um livro, mais de um amigo já me disse, mas eu luto para contar e moldar estas histórias que deprimem minha mente e enfraquecem meu coração. Às vezes eu ganho, mas nunca por muito tempo. Cinqüenta Primeiros Esboços que se aproximam, eu brinco, mas é verdade: cada vez que me sento para escrever, começo de novo.
Eu continuo a tomar um comprimido todas as manhãs para domar o intangível. O medo me encara e a liberdade me seduz, e eu sonho com o meu verdadeiro eu, quem eu sou (quando não estou medicada e não sofro com a retirada da medicação), minha natureza e personalidade. Quero abraçar meu tipo selvagem, quer seja inclinar-me para o sol, brilhante como um girassol, ou soprar ao vento como um papo de um dente-de-leão. Estou antecipando o dia em que meu corpo se torne fluente na linguagem do meu cérebro; quando eles cooperarem – o físico e o mental, quando eu não for mais um estranho para mim mesma. É romântico, até mesmo uma espécie de fetiche a que reverto, este ideal, sempre consciente de meu objetivo final: a liberdade da mente.
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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão- em termos gerais -da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.
Businessman burying his head in the sand into desert by cloudy day - 3D render
A CPI do genocídio foi prorrogada por mais noventa dias. No Brasil, continuamente assistimos estupefatos às declarações de corrupção na gestão da pandemia. Propinas, acordos escusos que foram firmados às custas da vida de mais de meio milhão de brasileiros. Enquanto os brasileiros precisavam de vacina, estava no balcão do governo a propina associada à compra e venda de vacinas. Medidas mais firmes são levantadas a todo tempo na CPI como pedidos de prisão temporária, preventiva e até mesmo em flagrante, crime contra a vigilância sanitária, prevaricação, corrupção passiva, epidemia dolosa. As gravíssimas declarações realizadas na CPI perfilam a estreita associação entre os escândalos e o “familiarismo” deflagrado no Palácio do Planalto.
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O familiarismo em política pressupõe a fantasia social compartilhada da família como núcleo de relações hierárquicas naturalizadas, “não problemáticas”, da autoridade baseada no amor e na devoção. Em núcleos deste tipo os lugares sociais de autoridade e submissão são lugares naturais. Essa sobreposição das relações econômicas sociais complexas à lógica da “casa” não visa apenas à produção ideológica de ilusões de naturalidade dos modos de circulação e produção de riquezas. Ela visa à sobreposição fantasmática entre o corpo social e o corpo do pai, dos irmãos. Sobreposição esta que deve produzir docilidade em relação à autoridade (Safatle, 2020). Esta lógica aproxima a política da lógica religiosa, regida pela fé, pela crença, pelo imaginário. Aspectos que fogem da explicativa racional baseada em argumentos.
Contudo, algo ruiu. O corpo, o pai, a autoridade autoproclamada aos quatro ventos, o mito. Podemos observar fendas e rachaduras profundas que prenunciam o desmantelamento do governo.
O desmoronamento paulatino da narrativa anticorrupção que, mais uma vez, foi utilizada para a ascensão de um poder autoritário, vem produzindo uma reação diametralmente oposta no que se refere a saúde: a redução das taxas de mortes por covid-19 e a ampliação vacinal. Neste momento histórico, parece haver um forte antagonismo entre a saúde enquanto cuidado com a população, valorização da vida e, de outro lado, as ações do poder executivo. Os ataques frequentes à saúde, à saúde pública e a defesa ferrenha de tratamentos “mágicos”, sem embasamento científico, expressavam uma das principais tônicas do negacionismo brasileiro.
O uso político do negacionismo não se encerra na concepção de negacionismo científico. Este mecanismo contamina e se expande como negação dos direitos humanos, negação da gravidade da doença e da morte, negação como mentira e manipulação da realidade em prol de um discurso político-econômico que expressa a mescla entre o neoliberalismo predatório e o discurso fascista. Negacionismo que se utiliza de artifícios psicológicos como o medo, a insegurança e o ressentimento para enraizar profundamente seus alicerces sociais nas bases frágeis da nossa democracia.
Corremos o sério risco do não reconhecimento da legitimidade das eleições presidenciais em 2022. O ressentimento foi depositado nas urnas em 2018, sob a forma de voto, com a secreta esperança de vingança. O ressentimento ainda ressoa e produz efeitos sociais desastrosos.
Pensamos com Kehl (2020) que o ressentido é um escravo de sua impossibilidade de esquecer, vive em função de sua vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo. Como se trata de um vingativo passivo, seu silêncio acusador e suas queixas contínuas mobilizam confusos sentimentos de culpa no outro. O ressentido acusa, porém, não está seriamente interessado em ser ressarcido do agravo que sofreu. A dívida permanece impagável: a compensação reivindicada é da ordem de uma vingança projetada no futuro. Uma fantasia de vingança adiada. O ressentimento seria fruto de uma espécie de solução de compromisso entre os prazeres de cobrar uma dívida não na mesma moeda em que ela foi gerada, mas ao preço do sofrimento do credor. Impedido de vingar-se diretamente, o ressentido aposta na vingança imaginária que lhe permitiria gozar do sofrimento daquele que o ofendeu sem ter que se confrontar com sua própria crueldade.
No âmbito individual e coletivo, o ressentido vive a repetição de um gozo preso na pulsão de morte em vez dos variados prazeres possíveis na dinâmica de pulsão de vida. Para compensar a renúncia autoimposta, consola-se acreditando estar no caminho certo, no caminho do bem. Cidadãos de bem. Conservadores ressentidos. Aqueles que lutam pelo retorno nostálgico de um tempo em que eram felizes. A aspiração nostálgica daquilo que não foi, que não aconteceu, faz com que se negue tudo o que não corrobora com a fantasia compartilhada.
A economia moral neoliberal produz os seus descontentes.
Se no neoliberalismo há desarticulação do bem comum, fica claro na pandemia que ninguém se salva sozinho. O ideal meritocrático, o empresariado de si, a concepção privatista da saúde cai por terra quando se pensa que a vacina funciona enquanto ação coletiva de solidariedade.
Outra questão que deve ser cuidadosamente considerada quando falamos de negacionismo é o problema da subnotificação. Sabemos que os dados referidos ao número de mortes são indispensáveis para organizar os hospitais e as UTI, para saber se a estrutura sanitária existente é apropriada ou deve ser ampliada. Conhecer os dados sociodemográficos das vítimas da doença auxilia na implementação de políticas públicas de prevenção e assistência. No entanto, cada vez parece evidente o problema da subnotificação. Por exemplo, no estado de Santa Catarina, foi recentemente publicado um artigo elaborado por pesquisadores da UFSC que aponta com dados muito claros a existência de subnotificação de casos de Covid-19 no estado (Caponi, 2020).
O artigo, denominado “Estimativa da subnotificação de casos da Covid-19 no estado de Santa Catarina”, propõe duas abordagens sistêmicas para estimar os valores da subnotificação do número de óbitos e de indivíduos infectados por Sars-CoV-2. O estudo confronta a ocorrência de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) registrados nas primeiras 16 semanas epidemiológicas de 2020 (até 26 de abril) com o número de casos confirmados de Covid-19 para o mesmo período em Santa Catarina em anos anteriores. O estudo indica que esse aumento de casos pode ter direta relação com Covid-19, ainda que não tenham sido notificados como doentes da pandemia, mas como pacientes com SRAG, indicando a existência de uma clara subnotificação (Bruna-Romero; Carciofi, 2020; Caponi, 2020).
Hoje, por tratar-se de uma pandemia, parece necessário que os governos assumam o respeito às normativas e regulações internacionais estabelecidas por instâncias como a OMS, a Opas ou a Comissão Interamericana de direitos humanos da ONU. No entanto, dia a dia se multiplicam os argumentos que, desconhecendo os direitos humanos fundamentais, estabelecem parâmetros e pautas sobre quem deve e quem não deve ser assistido, legitimando decisões não éticas sobre a vida e a morte (Caponi, 2020).
De acordo com as diretrizes da ONU relativas ao combate à pandemia de Covid-19, o momento representa um verdadeiro desafio global que exige o respeito irrestrito às normas de direitos humanos. Considera que os valores do conhecimento científico devem prevalecer sobre as fakenews, os preconceitos e a discriminação (Caponi, 2020).
No artigo de Pedro Hallal do dia 25/05/2021 para a Folha de São Paulo intitulado “O negacionismo mata” são salientadas as denominadas cidades suicidas. Para sua análise, Hallal retoma os dados estarrecedores trazidos a público pelo jornalista Ricardo Mendonça no Valor Econômico: 5.570 cidades brasileiras foram divididas de acordo com o percentual de votos em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Em 108 cidades, Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, em 833 cidades teve entre 10% e 20% dos votos, e assim sucessivamente, até chegar nas 214 cidades nas quais Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e na única cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos em 2018.
De posse dessas informações, o passo seguinte foi analisar a quantidade de casos e de mortes por Covid-19 em cada uma das 5.570 cidades. Os dados são de livre acesso, tanto pelo Painel Coronavírus do Ministério da Saúde quanto pelo DataSUS. Nas 108 cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, o número de casos é de 3.781 por 100.000 habitantes. A quantidade de casos sobe linearmente até atingir 10.477 casos por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e 11.477 casos por 100.000 habitantes na cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos. Os dados para mortes são igualmente chocantes. A mortalidade varia de 70 mortes por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, até a mortalidade de 313 por 100.000 habitantes na única cidade em que Bolsonaro fez 90% dos votos ou mais no segundo turno das eleições de 2018.
Mais do que os resultados isoladamente, o que chama atenção é a escadinha observada nos gráficos. Ou seja, o morador de uma cidade na qual Bolsonaro venceu o segundo turno das eleições de 2018 tem três vezes mais risco de morte por Covid-19 do que o morador de uma cidade em que Bolsonaro foi derrotado com folga. Assim, podemos afirmar que o negacionismo adoece e mata.
Instrumentos da necropolítica foram utilizados fartamente: a liberação de armas, o discurso negacionista, lentidão proposital na aquisição das vacinas e a corrupção vinculada à compra de vacinas. Lógica do “nós versus eles” operou e opera tanto na gestão da pandemia como nos sujeitos inseridos neste tipo de laço social.
Na compreensão de Dunker (2015) houve uma substituição dos condomínios psiquiátricos, carcerários e cronificantes, baseados no modelo de longa internação e recolhimento hospitalar por um modelo de racionalidade diagnóstica adaptada às exigências do capitalismo à brasileira. Essa nova forma de gestão do mal-estar está centrada na produção de espaços de exclusão e anomia de um lado e na definição de condomínios de classificação diagnóstica flexível, de outro. São zonas artificiais de contenção, de excitação, de anestesia e de separação que funcionam como muros de proteção contra o mal-estar e zonas de exceção contra o sofrimento. Esses muros de proteção também compartimentalizaram a realidade.
A pandemia de coronavírus evidencia que, assim como a educação, a saúde não pode ser pensada compartimentalizada e nem em termos neoliberais de investimento e capital. A saúde não é um bem de mercado que deve ser adquirido na medicina privada, deixando a saúde pública para aqueles que não podem pagar. A pandemia ensina que, como afirma o sociólogo italiano Domenico De Masi (2020), nosso planeta é “uma grande aldeia unida por infortúnios”.
Referências
Caponi, S. (2021). Biopolítica, necropolítica e racismo na gestão da covid-19. Revista Porto das letras, 7(2), 21-44.
Katrina Michelle é psicóloga e fundadora e diretora do The Curious Spirit, uma prática psicoterapêutica transpessoal que encoraja a exploração pessoal transcendente para remediar o sofrimento psicológico. Ela é uma psicoterapeuta holística que atualmente serve como professora na Escola de Trabalho Social da Universidade de Columbia e no Instituto para o Desenvolvimento das Artes Humanas.
Além de sua prática, ela também atua como diretora de redução de danos da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS) e anteriormente trabalhou como diretora executiva do Centro Americano para Integração de Experiências Espiritualmente Transformativas (ACISTE). Para desmistificar experiências de despertar através da narrativa e da arte, ela também está produzindo o filme When Lightning Strikes.
Começando no mundo do trabalho social tradicional, Michelle foi atraída pela psicologia transpessoal após sua própria experiência espiritualmente transformadora espontânea. Ela agora trabalha para ajudar a criar comunidades capazes de realizar essas experiências muitas vezes difíceis, já que as sociedades ocidentais muitas vezes não têm a linguagem e a compreensão cultural necessárias para integrá-las na vida cotidiana.
Nesta entrevista, discutimos o lugar dos psicodélicos na psicoterapia, como as experiências transformadoras espirituais podem ser confundidas com “doença mental” e as várias resistências que temos a essas experiências.
A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.
Richard Sears: Quero começar perguntando como você chegou ao seu trabalho. O que o atraiu para a psicologia transpessoal e seu trabalho na redução de danos para a MAPS?
Katrina Michelle: Psicologia Transpessoal, antes de saber o que era, sempre foi um interesse meu. Está na intersecção dos estudos da consciência, da investigação filosófica, da saúde comportamental e da espiritualidade.
Eu sempre soube que queria ser terapeuta e segui o caminho tradicional de passar pela escola de trabalho social tradicional, mas sentia que faltava algo na prática geral da psicoterapia e sabia que era aquela peça espiritual.
Eventualmente, voltei à escola para estudar psicologia transpessoal. Foi realmente durante esse esforço acadêmico que percebi que o que sempre me atraiu para o campo foi a minha própria experiência transpessoal. Foi aquilo a que Stan Grof se refere como uma experiência unitiva, que é esta fusão não solicitada da consciência com o mundo ao seu redor, este senso de expansão, este estado de amor de coração aberto, e era algo completamente inefável.
Levei mais de 10 anos até mesmo para começar a encontrar palavras para apontar para ele. Foi só uma década depois, quando voltei à escola para a psicologia transpessoal, que percebi que era isto que eu estava aqui para estudar.
Sears: Tendo em vista sua formação e experiência, que lugar você vê para os psicodélicos no tratamento da saúde mental?
Michelle: Estamos num momento tão fascinante porque sabemos que qualquer tipo de tratamento transpessoal pode realmente mudar sua consciência, e os psicodélicos não brincam. Você não pode se esconder deles. Os psicodélicos realmente cortam nossas defesas. Eles podem nos tornar capazes de ver além das formas que nos padronizamos para ver no mundo. Também pode ser realmente assustador ser tão vulnerável.
É por isso que acho que a redução de danos é importante quando se trata de psicoterapia e integração. É um novo estado de ser, e se não for realizada no contexto cultural correto, pode ser um desafio para as pessoas e pode até causar mais traumas.
Sears: E quanto ao trabalho de redução de danos? O que isso parece na prática?
Michelle: A redução de danos é um campo bastante grande. A redução de danos psicodélicos, como temos feito no projeto Zendo, é realmente olhar para onde as pessoas estão, entrando em sua experiência, e onde elas precisam de apoio. Fizemos isso construindo um modelo de apoio entre pares onde os voluntários são treinados para servir uns aos outros.
O trabalho de redução de danos tem várias partes. A primeira é se preparar para a sua jornada: saber que substâncias você vai tomar, explorar considerações sobre como vai tomá-las, com quem vai tomá-las, compreender a história de sua família, o que pode ser desencadeado psicologicamente e se você pode ou não ter a capacidade de administrar isso. Você também precisa planejar seus cuidados após a experiência. As lições que surgirão não terminam com a viagem; elas podem durar meses, anos ou mesmo o resto de sua vida.
Sears: Será que você poderia falar um pouco mais sobre a integração deste tipo de experiências? Por que é importante integrar estas coisas, e como fazemos isso?
Michelle: Na minha experiência, era algo que eu não conseguia guardar. Estava sempre lá na parte de trás da minha cabeça. Me levava às lágrimas quando me lembrava da experiência, e eu realmente não tinha contexto para isso.
Meu primeiro pensamento quando saí dessa experiência, que foi realmente fugaz e intemporal, foi: “Oh, devo estar tendo uma pausa psicótica“. Eu tinha uns 20 anos de idade. Eu estava naquela idade em que é mais provável que você esteja tendo uma pausa. Tive a sorte de não ter descompensado, de ser capaz de manter-me unida.
Havia algo de poderoso nessa experiência que me apontava em direção à minha jornada e ao meu caminho. Até que consegui nomeá-la e ter uma comunidade em torno dela.
É semelhante a qualquer viagem psicodélica onde você pode ter esta experiência incrível. Você pode até mesmo trabalhar com ela durante o fim de semana, se estiver em um retiro, e depois arrumá-la. Mas se você voltar para casa e tiver pessoas dispostas a apoiá-lo no seu processamento, você pode realmente tirar as lições e trabalhá-las em seu estado regular de consciência. Acho que é daí que vem o crescimento, levando esses estados expandidos e nos ajudando a movê-los para nossa vida diária.
Sears: Em sua opinião, por que rotulamos algumas drogas que afetam nossos estados mentais como terapêuticas e não outras?
Michelle: O modelo médico para mim, embora certamente tenha seus benefícios (eu não sou alguém que é antipsiatra), funciona através da supressão dos sintomas. A diferença é que às vezes os sintomas que vêm à tona estão realmente lá para nos ensinar algo. Se pudermos expandir nossa maneira de pensar sobre esses sintomas – além de apenas suprimir a ansiedade com benzos, por exemplo – então existe o potencial para um grande crescimento.
A supressão dos sintomas é uma forma de usarmos drogas tradicionalmente na psiquiatria. Eu acho que este novo modelo com psicodélicos é completamente o oposto. Em vez de suprimir, estamos arrancando o curativo; estamos procurando a verdade, estamos deixando tudo sair. Estamos trazendo as sombras para a superfície, e estamos trabalhando com elas. Essa é a terapia. Esse é o verdadeiro trabalho.
Não se trata de empurrá-los de volta para baixo e de passar o seu dia como se nada tivesse ocorrido. Isto é o que eu acho que a psicologia deve fazer: ela deve nos ajudar a refletir sobre nós mesmos e nossos estados e entender o que está por vir e por quê, para que possamos crescer e nos expandir e evoluir como indivíduos e como um coletivo.
Sears: Como psicoterapeuta transpessoal, como você entende ‘doenças mentais’ ou sofrimento psicológico de maneira diferente do modelo biomédico do cérebro doente?
Michelle: A psicologia transpessoal está lá para capacitar o indivíduo. Não se trata de verificar uma lista de sintomas e chegar ao diagnóstico, que eu então lhe atribuo, e você carrega como um peso sobre seu ombro. Algumas pessoas precisam disso. Às vezes ajuda ter um rótulo para isso, porque depois pensam que têm algum controle sobre ele. Tudo bem se isso funcionar para você.
Acho que a beleza da psicologia transpessoal é que nós também poderíamos fazer isso. Se é por isso que seu seguro vai pagar, fico feliz em lhe dar isso. No entanto, trata-se também de olhar além disso e capacitá-lo a encontrar a linguagem que funciona para você.
Eu uso o trabalho de Stan e Christina Grof e suas lentes de emergência espiritual para realmente explorar o que significa olhar para esses estados extremos como realidades potenciais. Penso que há maneiras de fazer isso que são mais inteligentes e mais abrangentes do que apenas o modelo médico, essencialmente tomando uma pílula pelo tempo em que se pode suprimir os sintomas e ir à terapia.
Há outro tipo de terapia que podemos fazer onde, em vez de suprimir os sintomas, estamos mergulhando nos sintomas e olhando para o que estava lá. Em vez de uma visão reducionista, acho que é uma visão mais expansiva.
Sears: Parece que você está descrevendo uma abordagem holística da saúde mental. Você pode nos dar alguns exemplos do que você poderia trazer para uma prática transpessoal? Há alguma forma de você trazer outras orientações para sua prática?
Michelle: Eu não desconto nada que a saúde mental comportamental nos dê. Certamente, existem ali ferramentas que podem ser super valiosas para as pessoas. Eu não desconto a psiquiatria como um todo. Acho que tem problemas, mas acho que, usada com a devida discrição, a psiquiatria pode desempenhar um papel importante na cura.
Pessoalmente, em termos de minhas técnicas, eu me concentro no que entendo como minhas próprias sensibilidades. Hesito em usar a palavra intuição porque acho que essas palavras podem soar como superficiais e por aí afora. Trata-se realmente de sintonizar uma pessoa na sua frente e estabelecer com ela uma comunicação que está além das palavras, além do físico.
Sabemos que a energia é real, e que está viva. Quando estou me sintonizando com a energia de alguém na minha frente e falando com ele sobre o que estou sentindo, e eles estão refletindo de volta para mim, geralmente entramos em um estado um pouco alterado. Começaremos com uma meditação; passaremos para um espaço de mudança da consciência comum, e então estaremos na sessão. Para mim, é um processo realmente orgânico. Cada pessoa precisa de algo diferente. Eu não acho que um tamanho sirva para todos.
Sears: Você mencionou anteriormente que teve uma experiência transformadora espiritualmente unitiva saindo do metrô. Você poderia nos falar um pouco sobre isso?
Michelle: Eu tinha provavelmente cerca de 20 anos de idade e eu estava apenas passando meu dia saindo do metrô e andando na Lexington Avenue em Nova York. De repente fui levada para este lugar que estava fora do tempo e do espaço, como eu o conhecia. Havia a sensação de entender o tecido do universo, vendo que todos esses estranhos ao meu redor em Nova York são na verdade parte de mim, e eu faço parte deles e senti esse sentimento avassalador de amor e empatia.
Esta não é a estrutura da qual eu estava vindo. Sou um nova-iorquina nascida e criada. Nós não falamos assim. Para mim, ter esta experiência espontânea de repente, foi uma felicidade, e foi lindo.
Depois, ao sair de lá, foi confuso. Não era algo em que eu pudesse envolver minha mente lógica. São aquelas experiências que as pessoas têm que realmente podem ser catalisadoras de mudança. Acho que é a integração que leva a essa mudança. A integração pode durar muito tempo, e pode ser realmente confusa.
Nem todas as experiências são felizes e bonitas como as minhas. Às vezes pode envolver muita dor, o que parece ser um problema médico, mas isso não pode ser diagnosticado. Nós realmente precisamos de uma estrutura para dar às pessoas uma linguagem em torno deste tipo de experiências.
Sears: Nesta resposta e em sua última resposta, você apontou energias e conexões que são mais profundas e observou que você é cuidadosa com sua linguagem porque você pode sair como “superficial”. Nas teorias tradicionais da psicoterapia, existe o termo transferência, que para mim me parece realmente semelhante ao que você está falando a respeito da intuição. Como você navega nisso?
Michelle: Eu não sei, porque que tive que navegar muito pessoalmente. Acho que a minha regra geral é conhecer seu público. Para algumas pessoas, a “transferência” não faria sentido. Mas se eu falo de intuição ou conexão ou empatia, elas estão muito presentes comigo, e suavizam, e se abrem.
A linguagem é importante. Uma palavra como “transferência” pode parecer muito carregada e hierárquica. Como terapeuta que quer se aproximar das pessoas com quem estou trabalhando, como especialista em si mesmo, encontrar uma linguagem clínica pode fazer com que as pessoas se sintam diferentes.
Sears: Como podemos reconhecer essas experiências transpessoais em nós mesmos e naqueles ao nosso redor?
Michelle: Muitas pessoas podem estar experimentando estes surtos energéticos e ir a um médico, mas geralmente não há uma resposta lá. Em contraste, um professor espiritual pode descrevê-la como uma experiência ascendente da Kundalini. Não construímos completamente a ponte entre estas formas de entender a energia ou a espiritualidade e as lentes médicas e os testes diagnósticos. Acho que, em geral, é um processo de queda de nossas defesas.
As pessoas que passam por essas Experiências de Transformação Espiritual (ESTs) tendem a ter mudanças significativas no estilo de vida. Muitas vezes, elas deixam relacionamentos nos quais já estão há muito tempo. Elas mudarão completamente seu caminho de carreira. Elas se tornarão muito menos centradas em torno de dinheiro, status, privilégios e foco em causas humanitárias.
Para generalizar um pouco, as pessoas tendem a se sentir ligadas a algo maior do que elas mesmas, e elas querem estar a serviço disso. Quando de repente você não tem os amigos de 20 anos, ou está lutando pelo fim de um casamento ou seus filhos não o reconhecem mais, isso pode vir com seu próprio trauma.
Sears: Você mencionou que os psicodélicos podem ser um catalisador para este tipo de experiências transformadoras. Você conhece algum outro catalisador semelhante aos psicodélicos?
Michelle: A meditação é uma ferramenta realmente poderosa. As pessoas terão freqüentemente estas experiências nos retiros de Vipassana, onde são 10 dias de silêncio. Às vezes, quando se acalma a mente, chega-se àquele estado em que algo mais se eleva. Isso pode ser aterrorizante para algumas pessoas.
O Ioga se tornou um exercício físico e uma moda. Mas o Ioga é a abertura de canais para se conectar com essa consciência superior. As pessoas estão passando por essas posturas e não estão reconhecendo que estão abrindo o seu potencial para ter experiências que talvez não estejam prontas para ter. Porque, mais uma vez, não há linguagem ou contexto cultural em nossa sociedade ocidental.
Parece ótimo ter uma experiência feliz no topo da montanha, mas você não pode controlar se isso vai ou não acontecer.
Sears: Estas experiências espiritualmente transformadoras podem ser confundidas pelos indivíduos que as têm ou aqueles ao seu redor como doenças mentais?
Michelle: Isso acontece, e é muito comum. Acontece porque não temos uma lente alternativa para olhar através dela.
A maioria das pessoas olhará para alguém com uma experiência como a que estou descrevendo, e lhe chamarão de um estado dissociativo. Se durar, eles o colocarão no hospital, e o medicarão. Essa é uma maneira muito diferente de ver algo que, quando mantido no espaço certo, pode ser transformador de uma maneira positiva.
Agora você dá a alguém medicamentos que talvez ele não precise. Você coloca as pessoas em um hospital, o que pode ser traumatizante por muitas razões. Você lhes dá um diagnóstico, e as pessoas realmente se dão mal por não serem encontradas e compreendidas.
O desafio é que muitos de nossos provedores de saúde mental ainda não estão necessariamente abertos a isso. Precisamos colocá-lo na pesquisa. Precisamos conseguir financiamento para que, uma vez que a pesquisa esteja lá, as pessoas possam começar a adotá-la e incorporá-la em suas práticas de compreensão das pessoas de maneiras que vão além do que somos treinados clinicamente no modelo médico.
Sears: Em sua experiência, que obstáculos externos e resistências internas a essas experiências são mais comuns?
Michelle: Se você está passando por algo que poderia ser considerado uma experiência espiritualmente transformadora, você pode ficar aterrorizada com o que isso significará. Pode significar que eu precise deixar minha esposa ou deixar meu emprego ou dar meu dinheiro. Isso é aterrorizante. É uma perda do seu ego, de como você se entende a si mesmo no mundo. O ego está lá para lutar.
A resistência externa também poderia ser “Eu não quero que as pessoas pensem que sou louco, então como posso compartilhar isso com as pessoas? Eu não quero ser diagnosticado e medicado”. As pessoas resistem, e então este processo é interrompido e não pode ir além daquele espaço daquela primeira experiência.
Sears: O que podemos fazer para apoiar as pessoas ao nosso redor se elas estão tendo esse tipo de experiência?
Michelle: Há profundidades de dor às quais não estamos acostumados a ir em nossa sociedade. No entanto, toda essa dor faz parte do que nos torna humanos.
Ninguém vai dizer que é fácil ver um ente querido sofrer, mas acho que também precisamos capacitar as pessoas que possam estar expressando algo assim para explorar o que elas querem para que não estejamos ditando tratamento a elas. É um processo de tentar trabalhar com elas nesse estado, entendendo o que sua intuição está pedindo. Será que eles querem montar isto em casa com as pessoas que amam? Será que querem ir a um hospital e levar a ser medicado o mais rápido possível?
Penso que parte do desafio ao falar sobre eles é que existem tantos tipos diferentes de experiências, e todos são únicos. Dar às pessoas lentes alternativas, dar às pessoas uma comunidade que possa segurá-las e apoiá-las, como o Projeto Zendo, pode criar recipientes seguros para essas experiências.
Penso que esse é o ideal que podemos esperar: uma comunidade que seja emocionalmente inteligente e de mente aberta o suficiente para poder sentar-se com as pessoas e testemunhá-las em sua dor e em sua escuridão e permitir que se movimentem através delas sem ditar e exigir tratamentos, especialmente se alguém não for uma ameaça para si mesmo ou para os outros. Todos nós somos desencadeados em nossa própria dor ao ver a de outra pessoa. É sempre uma jornada dentro de nós mesmos para nos sentarmos com nosso desconforto em olhar para as pessoas que queremos consertar.
Sears: Alguns de nossos leitores provavelmente tiveram algumas dessas experiências difíceis das quais temos falado. O que você diria a alguém que teve uma experiência que achou difícil de integrar em sua vida diária?
Michelle: Penso que o mais importante é saber que eles não estão sozinhos. Seja o que for que estejam lutando, eles podem encontrar uma maneira de se integrar e trabalhar. Eles só precisam se conectar com a comunidade certa, com o cuidado certo, e dar a eles mesmos uma chance de terminar esse processo.
Tudo isto é complicado pelo fato de que você provavelmente precisa trabalhar e se sustentar e pagar seu aluguel enquanto tenta dar a si mesmo o tempo necessário para montar isto. Não é algo que as pessoas necessariamente entendem e que reconhecem como uma deficiência, mas pode ser como uma deficiência.
Eu não digo deficiência como algo com um período no final. É um período de desafio que, quando lidamos com ela, podemos trabalhar com ela, e podemos crescer a partir dela. Acho que é aí que o trabalho acontece. Acontece na escuridão; acontece na dor.
Sears: Você já experimentou algum recuo, crítica ou conseqüências como resultado de sua orientação transpessoal como psicóloga ou trabalhando com psicodélicos?
Michelle: Eu diria pessoalmente, além de talvez alguns olhos arregalados ou pessoas que simplesmente não querem se envolver na conversa, eu não tenho experimentado muito empurrão em termos do meu trabalho com substâncias psicodélicas.
Eu acho que as pessoas ainda têm muito medo e velhos condicionamentos culturais sobre o que são os psicodélicos, e isso é compreensível. Acho que isso vai mudar quando tivermos mais pesquisa e quando a pesquisa se tornar inegável. Isso não quer dizer que todos vão pular fora e fazer uso de psicodélicos, nem todos deveriam fazê-lo. Não é para todos.
No que diz respeito à minha orientação transpessoal, os terapeutas que conheço podem não falar sempre a mesma língua, mas a maioria das pessoas tem a mente bastante aberta, e eu não levo a peito aqueles que não o são.
Sears: Você pode nos falar sobre algo que aprendeu em seu trabalho e que a maioria de nós talvez não saiba que poderia se beneficiar de saber?
Michelle: Eu acho que o principal é que nós, como humanos, somos inatamente inteligentes, e acho que não nos damos crédito suficiente para a inteligência inata que carregamos dentro de nós. Acho que o corpo tem uma maneira de saber como se curar, assim como a mente. Acho que se trata de entrar em um território obscuro que é desconhecido.
Pode ser assustador, mas confiando que se realmente permitirmos que esses processos naturais evoluam e se desdobrem e apenas limpemos as bordas para que possamos passar o dia, acho que há algumas coisas realmente dinâmicas e belas que podem vir disso.
Há otimismo para mim sobre o fato de que, mesmo quando somos completamente incompreendidos, há sempre alguém por aí que pode se relacionar. É apenas uma questão de encontrar e conectar-se com eles. Às vezes todos nós precisamos de um pouco de apoio, e não há problema.
Sears: Você poderia nos falar um pouco sobre o filme em que você está trabalhando, “Quando um raio ataca“?
Michelle: Quando o Lightning Strikes é um exemplo perfeito de que não temos lentes para algumas dessas experiências que temos discutido. Segue minha amiga Kate, que conheci porque ela começou a me descrever sua própria experiência com a Kundalini e a dor em que ela tem estado. Parte de nossa conversa tem sido sobre como é difícil encontrar outras pessoas com experiências semelhantes quando ela não tem linguagem para isso.
O filme realmente pretende ser sobre essa viagem. Tem a intenção de criar um contexto para pessoas que podem não ter tido uma experiência como esta, mas se você começar a se aclimatar ao idioma, você pode ser capaz de ajudar alguém no futuro, reconhecendo o que ele é. Da mesma forma, se você está passando por esta experiência, agora você pode se conectar com as pessoas e entender do que se trata.
O filme é realmente sobre nossas próprias viagens pessoais e como nos reunimos para sermos curiosos e explorar e falar com pessoas que são “especialistas” porque passaram por suas próprias experiências. É sobre olhar através das diferentes lentes, a perspectiva da saúde mental, a perspectiva da Ioga e vários modelos espirituais, e ver o que podemos aprender enquanto trazemos alguma voz a este tópico, porque não é algo do qual as pessoas estejam falando.
Mais uma vez, não é sequer algo para o qual tenhamos acordado a linguagem, e acho que esse é o primeiro passo. Escolhemos o título “Quando um raio ataca” porque em toda nossa leitura e encontro com as pessoas ao longo do caminho, é a maneira mais comum das pessoas descreverem essas experiências. Elas dirão: “‘Eu tive um relâmpago”, ou “um raio atingiu meu corpo”.
Uma compreensão evolutiva da depressão enquanto uma adaptação, chamada de hipótese de ruminação analítica (ARH), postula que a depressão pode ter evoluído para permitir um pensamento sustentado sobre problemas sociais complexos. Esta visão sugere que os tratamentos clínicos que favoreçam as funções que a depressão desenvolveu para o enfrentamento de problemas serão mais eficazes do que aqueles – como os medicamentos antidepressivos – que meramente aliviam o sofrimento.
Além disso, a teoria evolucionista sugere que os medicamentos antidepressivos podem ter um efeito iatrogênico que prolonga a duração do episódio subjacente. Em outras palavras, ao mascarar os sintomas, os antidepressivos podem realmente prolongar os episódios depressivos, deixando-os sem solução. Para testar esta teoria, Steven Hollon, Paul Andrews e seus colegas delinearam um estudo simples de pesquisa que pode testar se os medicamentos antidepressivos são, de fato, iatrogênicos por esse motivo.
Os pesquisadores têm sugerido que os antidepressivos podem fazer mais mal do que bem. Os antidepressivos têm sido criticados por uma variedade de razões, incluindo a correlação com a incapacidade a longo prazo, problemas de abstinência, riscos na gravidez e o aumento do risco de suicídio, especialmente para os jovens. Estudos apoiados pela indústria sobre a eficácia do antidepressivo também têm sido criticados pela comunicação incorreta dos resultados de ensaios clínicos. Outros estudos têm levantado preocupações sobre o raciocínio por trás da classificação da depressão como uma doença que requer modificações neuroquímicas, em oposição, por exemplo, a mudanças sociais ou políticas.
Como Hollon escreveu em um estudo anterior, “qualquer intervenção que facilite as funções que a depressão desenvolveu para ajudar é provável que funcione melhor a longo prazo do que um antidepressivo que simplesmente anestesia a dor”.
De acordo com a hipótese de ruminação analítica, a depressão se desenvolveu para manter as pessoas concentradas na fonte de sua angústia até que possam chegar a uma solução para resolver o problema relevante. … [Nesta visão] há razões para se acreditar que os antidepressivos têm um efeito iatrogênico que prolonga a duração do episódio subjacente e que deixa os pacientes em elevado risco de recaída sempre que eles são retirados.
A depressão é o transtorno psiquiátrico diagnosticado mais comumente no mundo inteiro, e os antidepressivo são as intervenções mais comumente prescritas para o tratamento da depressão. Infelizmente, os antidepressivos parecem funcionar apenas pelo tempo em que são tomados. Apesar das preocupações de segurança em relação ao uso a longo prazo, as diretrizes da Associação Americana de Psicologia recomendam o uso indefinido para pacientes com depressão crônica.
Os autores propõem a terapia cognitivo-comportamental (TCC) como um método alternativo de tratamento que é igualmente eficaz como o antidepressivo quando implementado adequadamente, com efeitos terapêuticos de longo prazo não encontrados a partir do uso de medicamentos. Entretanto, a maior parte das evidências dos efeitos duradouros da TCC vem de comparações com o uso anterior do antidepressivo, e a amplitude em que os antidepressivos são iatrogênicos permanece, portanto, pouco clara.
Como os autores argumentam, com base na ARH, há uma possibilidade razoável de que os antidepressivos não só interfiram no efeito duradouro da TCC, mas também tenham efeitos iatrogênicos. Eles escrevem:
“Se o objetivo da ruminação analítica é chegar a uma solução para qualquer problema interpessoal complexo que primeiro desencadeou o sofrimento, então qualquer intervenção que facilite a implementação dessa solução deverá facilitar a função que a ruminação analítica desenvolveu para servir… Há motivos para pensar que acrescentar um antidepressivo pode diminuir o efeito duradouro da TCC”.
Para testar esta hipótese, os autores elaboraram um estudo randomizado que poderá determinar se os antidepressivos evitam o efeito duradouro da TCC.
Estudos anteriores simplesmente compararam resultados para pacientes deprimidos que utilizavam TCC com aqueles que utilizavam apenas antidepressivos O estudo dos autores introduz um terceiro grupo de controle experimental, um grupo pill-placebo. Se a TCC realmente tem um efeito duradouro, então os pacientes que se recuperam da depressão na TCC devem ter menos probabilidade de recorrência do que os pacientes que se recuperam em um placebo (o controle não específico necessário para determinar se a TCC está suportando) ou se o antidepressivo é iatrogênico, ou ambos. Se o antidepressivo for iatrogênico, então os pacientes que se curam com antidepressivo devem se recuperar pior do que os grupos de TCC ou de pill-placebo.
Como Hollon e seus colegas concluem:
“Sabemos que o tratamento com TCC supera o uso anterior do antidepressivo, mas ainda não sabemos por que… O estudo proposto responderá a estas perguntas e merece ser feito”.
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Hollon, S., Andrews, P., Singla, D., Maslej, M., Mulsant, B. (2021). Evolutionary Theory and the treatment of depression: It is all about the squids and the sea bass. Behavior Research and Therapy 143. (Link)
Um artigo recente publicado no Psychological Medicine explora a controvérsia em torno do que constitui um ” transtorno mental “. Com base em exemplos empíricos ou “casos de teste” que surgiram durante a redação do DSM-5, os psiquiatras Dan Stein e Kenneth Kendler e a filósofa Andrea Palk discutem as fronteiras “difusas” em torno dos transtornos mentais. Em particular, eles falam sobre casos clínicos onde há “danos” mas não “disfunção psicobiológica”, “disfunção psicobiológica” mas não “danos”, e onde ambos podem estar potencialmente presentes, mas não sem controvérsia.
“A questão do ‘que é um transtorno mental’ é crucial, em parte, porque existe a possibilidade real de classificar erroneamente vários tipos de desvio social ou variação comportamental como ‘transtorno’, quando eles são melhor conceituados usando outras categorias, tais como ‘diferenças individuais não patológicas’, ‘escolha de estilo de vida’ ou ‘crime’, escrevem os autores. “Um exemplo paradigmático do DSM é o da homossexualidade, que foi conceitualizado no DSM-I como um transtorno, mas pelo DSM-5 não foi mais mencionado”.
Desde que a Associação Psiquiátrica Americana publicou o DSM-5 em 2013, tem havido uma quantidade significativa de controvérsias sobre a definição precisa de um ” transtorno mental”. A Divisão 32 da Associação Americana de Psicologia – a Sociedade de Psicologia Humanista – assim como a Sociedade Britânica de Psicologia, ambas fizeram declarações questionando algumas das categorias medicalizantes apresentadas no DSM-5.
Algumas das controvérsias delineadas nestas cartas incluem a redução dos limiares de diagnóstico, na medida que poderiam levar à patologização de muitos comportamentos “normais”, variação sociocultural na psicopatologia, incluindo se o desvio sociopolítico deve ser categorizado como mentalmente desordenado, bem como a novos avanços na promoção de uma abordagem do modelo biomédico.
Muitas dessas controvérsias não são novas e não surgiram com a publicação do DSM-5, naturalmente, tendo uma rica história dentro dos movimentos anti-psiquiátricos e aqueles liderados por pares.
O artigo atual explora em profundidade algumas dessas controvérsias, dando especial atenção aos “casos de teste” clínicos, que ilustram alguns dos problemas com os modelos psiquiátricos convencionais de transtornos mentais.
Entre os “casos de teste” que envolvem danos mas não disfunção psicobiológica, os autores incluem fenômenos como o envelhecimento, racismo e ansiedade associados a ameaças de vida, como perda de emprego e rejeição na relações amorosas.
Os autores explicam que “uma série de condições estão associadas a danos aos indivíduos e/ou à sociedade, mas que não devem ser consideradas transtornos por falta de evidência de disfunção psicobiológica subjacente”.
Em resumo, pode haver mudanças mentais, físicas e comportamentais “indesejáveis” que não estão associadas a disfunções no sentido psicobiológico. O envelhecimento se qualifica aqui, pois embora esteja associado a certos tipos de disfunção (como um espectro de deficiência cognitiva de leve a grave), muitos dos efeitos do envelhecimento são, de fato, bastante “normais”.
O racismo, da mesma forma, pode estar associado a certos aspectos disfuncionais da personalidade, mas os autores afirmam que há poucas evidências para o funcionamento psicobiológico subjacente. Isto apesar do fato de que o racismo obviamente causa muitos danos, tanto pessoal quanto socialmente. Eles afirmam:
“Ao contrário, há um consenso relativamente difundido de que as crenças e comportamentos racistas são em grande parte um produto da socialização e da cultura. Portanto, argumentaríamos que o racismo não é um transtorno; é um fenômeno que, embora sancionado em algumas culturas no passado, é agora uma forma de desvio social que deve ser abordado por uma série de diferentes intervenções sociais e educacionais. Assim, os julgamentos sobre a inclusão de uma entidade na nosologia podem exigir uma reflexão rigorosa sobre os valores culturais e sociais”.
Além disso, os autores também afirmam que apesar desses fenômenos não atenderem necessariamente aos critérios para transtornos mentais clínicos, os indivíduos ainda podem se beneficiar da psicoterapia que trabalha essas questões. Além disso, isto pode ser complicado pelo fato de que o “claro excesso” da atenção para esses comportamentos pode começar a atender aos critérios para as categorias de transtornos mentais.
Para os casos em que há disfunção psicobiológica mas sem dano claro, os autores listam condições tais como deficiência, transtornos do espectro do autismo e transtornos de identidade de gênero. Embora esses tipos de condições possam causar “desvantagem e sofrimento”, os autores localizam isso no âmbito da aceitação social e acomodação, e não em qualquer disfunção subjacente.
Com o exemplo, a surdez:
“A surdez em si não é intrinsecamente prejudicial; ao contrário, são as respostas da sociedade, ou a falta de respostas em termos de garantia de acomodação adequada, o que produz danos”.
Da mesma forma, com o espectro do autismo (particularmente casos mais leves) e condições de identidade de gênero, bem como a audição de vozes, estas questões não são necessariamente disfuncionais, mas podem tornar-se disfuncionais em termos da experiência pessoal e do acesso social, devido a barreiras e preconceitos sistêmicos.
Finalmente, os autores discutem condições onde há tanto possíveis danos quanto possíveis disfunções psicobiológicas. Apesar de algumas evidências para estes dois critérios, estas condições ainda são controversas.
Exemplos aqui incluem transtorno de comportamento sexual compulsivo, jogos pela Internet, transtornos de jogo, síndrome de psicose atenuada, e comportamento suicida. Existem controvérsias em torno destes ” transtornos ” porque seu dano é mais um risco do que um problema necessariamente real. Por causa disso, incluí-los como transtornos psiquiátricos pode levar ao sobrediagnóstico e à sobremedicalização.
Além disso, as etiologias subjacentes a esses transtornos muitas vezes não são totalmente desenvolvidas em um sentido psicobiológico, confiando no julgamento clínico e na gravidade dos sintomas.
Os autores advertem:
“Julgamentos sobre se uma entidade deve ou não ser incluída na nosologia podem exigir uma avaliação cuidadosa do grau de perda de controle, e da deficiência relacionada, particularmente no caso de comportamentos compulsivos ou viciantes”. Em termos de comportamento suicida, os autores observam que embora possa ser sintomático de certos transtornos mentais, há também casos convincentes a serem feitos para o suicídio tanto como uma escolha racional quanto como uma forma de protesto político ou “resposta culturalmente sancionada à vergonha”.
Os autores concluem:
“Primeiro, embora o dano seja útil para definir transtorno mental, algumas entidades propostas podem exigir uma cuidadosa consideração do dano individual versus dano social, bem como da acomodação social.
Segundo, embora a disfunção seja útil para conceituar os transtornos mentais, o campo se beneficiaria do desenvolvimento de indicadores de disfunção mais definidos.
Terceiro, seria útil incorporar evidências de validade diagnóstica e utilidade clínica na definição de um transtorno mental e esclarecer melhor o tipo e a extensão dos dados necessários para apoiar tais julgamentos”.
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Stein, D. J., Palk, A. C., & Kendler, K. S. (2021). What is a mental disorder? An exemplar-focused approach. Psychological Medicine, 51(6), 894-901. (Link)
Em The Lancet, declaração feita pelo Dr. Allen Frances, coordenador da força tarefa do DSM-IV: “Para pessoas que nunca viram o modelo de Trieste em ação, pode parecer bom demais para ser verdade. Como pode qualquer sistema de saúde mental ajudar pacientes com condições graves e crônicas com tão poucas hospitalizações e tão pouco tratamento involuntário? Eu já estive entre os céticos profundos. Mas a imersão durante cinco visitas me convenceu de que Trieste é o melhor lugar do mundo para ser um paciente com um transtorno mental – onde as visitas aos pacientes nas prisões e nas ruas dos EUA me convenceram de que os EUA estão entre os piores. É impressionante como os pacientes se saem bem quando são bem tratados em Trieste; como ficam mais doentes quando são negligenciados nos EUA.
A abordagem de Trieste se baseia em quatro princípios: os pacientes são cidadãos merecedores de dignidade e respeito; há um grande valor terapêutico em incluí-los nas atividades diárias da cidade; o trabalho com a comunidade cria um tecido social inclusivo que acolhe os pacientes; e os pacientes funcionam melhor quando preservamos a sua liberdade e aproveitamos os seus pontos fortes.
Trieste promove a saúde mental com a sua ênfase nas relações interpessoais, no envolvimento familiar, na melhoria das condições de vida e nas oportunidades de trabalhar e se divertir. Tratamento involuntário, isolamento e portas fechadas são eliminados em um sistema que é marcadamente carinhoso e convidativo. A negligência nos EUA permite que sintomas agudos se tornem crônicos, permite que sintomas piores surjam e promove a desmoralização”.
Em setembro de 1962, a Academia Phillips Exeter em New Hampshire forçou meu colega de quarto, Geoffrey, e eu a passarmos por dois anos de tratamento psiquiátrico para sermos curados de nossa homossexualidade. Éramos apenas crianças, 16 anos de idade, e fomos confrontados com o desafio hercúleo de nos tornarmos heterossexuais enquanto vivíamos em uma escola só de meninos sem sequer ver uma menina. Nossa primeira experiência sexual foi tratada como se fosse um crime e um pecado, assim como uma doença mental. A Academia não disse a meus pais por que eu tinha que me submeter a tratamento psiquiátrico, e eles não me perguntaram.
Toda semana meu psiquiatra masculino me bombardeava com ameaças como estas:
“Se as pessoas souberem que você é homossexual, você nunca terá amigos e nunca terá emprego”.
“Todos os homossexuais acabam sendo vagabundos no Bowery”.
“Você é homossexual porque se identificou com as mulheres de sua família, mas não é tarde demais”. Agora você pode se identificar comigo e se tornar normal”.
“Você deve se casar com uma mulher como todo mundo, mas nunca deve dizer a sua esposa que você é homossexual porque se o fizer, ela ficará preocupada toda vez que você for jogar boliche com os homens de seu escritório”.
Percebi que havia um perigo muito real de que meu psiquiatra pudesse me deixar louco, e fiz tudo o que pude para evitar. Minha estratégia consistia principalmente em ler livros de homossexuais famosos, incluindo James Baldwin, Jean Genet, André Gide e Oscar Wilde. Também me perguntei se meu psiquiatra poderia estar trabalhando em mim sua própria homossexualidade reprimida. Afinal, ele havia feito carreira na Marinha como médico examinando os corpos de jovens marinheiros e agora passava seus últimos anos em uma escola preparatória para meninos.
Eu estava sendo torturado e eu sabia disso. Depois de um ano deste abuso psiquiátrico, no verão de 1963, eu tive a minha primeira alucinação. Foi uma visão beatífica. Agora eu tinha que admitir para mim mesmo que meu psiquiatra tinha de fato me levado à loucura, e não havia ninguém com quem eu pudesse falar sobre isso. Eu tinha medo de ficar preso em um asilo pelo resto da minha vida. Como minha alucinação era de natureza religiosa, eu tinha que me perguntar qual era a diferença entre o êxtase místico e o delírio esquizofrênico. Se eles eram a mesma coisa, então toda a teologia tinha que ser questionada. Comecei a ler vorazmente: livros sobre misticismo e teologia, especialmente os do teólogo alemão Paul Tillich.
De Harvard ao Hospital
Em 1962, entrei em Harvard. Durante meu primeiro ano, fiquei totalmente psicótico. Escrevi um ensaio sobre minha experiência religiosa, “A Prova Fenomenológica de Deus”, e entreguei-o a Tillich (um professor de lá) quatro horas antes do último sermão de sua vida, que terminou com as palavras “O Filho do Homem está em nossa presença”. Em seguida, sofri uma aguda reação paranóica esquizofrênica. A polícia de Harvard me levou ao Hospital McLean, anteriormente conhecido como o Asilo McLean para Loucos, e lá passei os 13 meses seguintes. Havia um rosto que reconheci em minha enfermaria: meu colega de quarto Exeter, Geoffrey. Nunca esquecerei a expressão de compaixão e horror que vi no rosto de Geoffrey quando ele percebeu que ambos agora estávamos mentalmente doentes e compartilhando o mesmo destino.
Os psiquiatras aconselharam meus pais a vender a casa deles, pois esperavam que eu ficasse confinado para sempre. Eles também lhes disseram que não deveriam ter mais contato comigo porque era culpa deles que eu estava louco. Durante meses eu não tinha idéia de por que meus pais haviam me abandonado quando eu mais precisava deles. Só descobri 30 anos mais tarde quando minha mãe me contou.
Os psiquiatras fizeram tudo o que puderam para me desencorajar. Depois de um ano de internação, um psiquiatra me informou que, quando eu tinha chegado, eu era o paciente mais gravemente doente mental que já tinha estado neste hospital, que tinha 125 anos de idade. Eles me disseram que eu nunca mais deveria voltar a Harvard. Eles encheram minhas veias com Thorazine e Stelazine. Eles me transformaram em um zumbi.
Depois desses 13 meses, o dinheiro de meus pais acabou e eu fui transferido para um hospital menos caro. Lá fui autorizado a parar de tomar drogas. Depois de dois meses, fui liberado.
Durante esse tempo, eu sabia muito bem porque estava doente. Meu psiquiatra Exeter tinha me deixado louco ao tentar reprimir minha homossexualidade. Eu havia me recusado a discutir a homossexualidade com meus psiquiatras, pois sabia que eles pensavam que era um doente mental e eu não era. Da mesma forma, eu nunca mencionei o misticismo com eles, pois sabia que eles não tinham competência em teologia. Prometi a mim mesmo que nunca mais confiaria em um psiquiatra.
Após minha libertação, a primeira coisa que minha mãe me disse foi isto: “Você nunca poderá comprar um seguro de saúde nos Estados Unidos”. As seguradoras americanas não vendem apólices para pessoas com histórico de psicose. Pensamentos me passaram pela cabeça: Primeiro, a América me deixa louco porque as pessoas pensam que a paisagem americana seria mais bonita se não incluísse nenhum homossexual. Depois, me castiga com o encarceramento e, finalmente, me diz que que para ter direito ao seguro de saúde, terei que passar toda minha vida no exílio. Os Estados Unidos é o único país que conheço que alguma vez obrigou seus cidadãos a emigrar para obter um serviço médico. Como consolo, eu disse a mim mesmo que se minha esquizofrenia me impediu de ter um seguro de saúde, ela também me salvou de ser morto no Vietnã.
O amor e o exílio
Eu sabia então que o único remédio para meus problemas seria viver abertamente. Assim que fui liberado, superei todas as minhas inibições sexuais. Voltei para Harvard, onde logo me apaixonei por Mark, que havia acabado de fugir de um hospital psiquiátrico em Connecticut. Ele tinha 18 anos de idade na época, dois anos mais novo que eu. Sua vida havia desmoronado depois que um padre católico o seduziu quando ele tinha apenas 14 anos. Sua história era tão parecida com a minha: primeiro, os adultos americanos destroem nossas vidas, e depois nos castigam, trancando-nos em asilos insanos.
O carinho de Mark me curou da minha esquizofrenia. E assim que me formei em 1968, fui para o exílio permanente, vivendo na Europa e no Canadá, onde ensinei inglês em várias universidades. Não consultei um psiquiatra nem tomei remédio psiquiátrico desde que tive alta do hospital, em 1966.
A Europa parecia ser um bom lugar para se viver como refugiado. Afinal de contas, eu já falava francês fluentemente e era proficiente em alemão e italiano. Durante os nove anos que ali lecionei, acrescentei o polonês e o espanhol ao meu repertório. A comunicação em línguas estrangeiras é uma terapia maravilhosa para uma pessoa que se recupera de uma psicose. Quando eu falo alemão, por exemplo, tudo o que eu vivi enquanto falava inglês parece pertencer a outra pessoa, a outro país, a outra época. Há também a idéia reconfortante de que se eu disser algo realmente louco em uma língua estrangeira, as pessoas vão apenas assumir que eu não aprendi a língua corretamente, enquanto que se eu disser algo bizarro em inglês, as pessoas suspeitam que eu estou realmente fora de mim.
A mudança para a Europa também ajudou a estabelecer uma barreira entre mim e minhas más lembranças da América. Às vezes, quando eu caminhava por Bonn, ouvia turistas americanos falando uns com os outros. Só o som de suas vozes me fazia pular, assustado, pois me traziam tantas lembranças de traumas que eu havia vivenciado nos Estados Unidos.
Os homens que eu havia amado não foram tão afortunados. Meu colega de quarto Exeter, Geoffrey, continuou vendo psiquiatras até 1974, quando cometeu suicídio. Eu sempre me culpei por arruinar sua vida e causar a sua morte. A maioria das pessoas diria que esta idéia é totalmente irracional, mas eu apenas a chamo de “culpa do sobrevivente”. Geoffrey não merece estar morto, e eu sinto que não mereço estar vivo. Depois que a Academia Phillips Exeter nos separou e nos fez ver psiquiatras, eu jurei nunca mais contatar Geoffrey após nosso breve reencontro no Hospital McLean. Ele precisava esquecer de mim e do que tínhamos feito juntos, eu pensei.
Mas quando ouvi falar de seu suicídio, percebi que havia errado em abandoná-lo. Talvez ele tivesse pensado em mim todos os dias durante os últimos 12 anos, assim como eu tinha pensado nele. Se tivéssemos sido simplesmente deixados sozinhos e deixados nos amar como queríamos, ele não teria se matado e eu não teria me tornado psicótico. Considero que os psiquiatras são responsáveis por sua morte e pelo meu colapso mental, mas eles não assumirão responsabilidade por nenhum de nós.
Algumas semanas após minha saída da América, Mark foi descoberto pelo diretor de cinema italiano Michelangelo Antonioni, que o escolheu para ser a estrela de seu filme Zabriskie Point. Antonioni estava procurando o jovem mais furioso da América para o papel principal em seu filme sobre jovens revolucionários marxistas americanos, e encontrou meu Mark, de 20 anos de idade, parado em uma rua de Boston tendo uma altercação com um marinheiro.
Eu estive na Europa durante toda a carreira cinematográfica de Mark. Em 1973, Mark decidiu iniciar a Revolução encenando um assalto à mão armada em seu banco local, mas seu apocalipse socialista nunca aconteceu. Em 1974, quando Mark estava na prisão e eu estava lecionando em uma universidade alemã, eu lhe disse: “Você é o Cristo sofredor”. Foi a declaração mais sincera que eu já fiz. Um ano depois, ele morreu na prisão aos 27 anos de idade. A história oficial diz que foi um acidente, mas acredito que seus companheiros de prisão o mataram. Eu nunca deixei de adorá-lo.
A luta contra a homofobia
Durante minha vida, a vida dos homossexuais melhorou muito na América do Norte e na Europa Ocidental. Os horrores que fui forçado a sofrer são agora impensáveis, mas continuam a levantar questões sobre a ética da psiquiatria. Durante os anos 50, os psiquiatras usaram diferentes técnicas para “curar” a homossexualidade, incluindo “terapia” de choque elétrico, comas de insulina, lobotomias e castração química. Sob a influência do comportamentalismo, o paciente homossexual foi mostrado a imagem de um homem nu em uma tela e recebeu um choque elétrico. A imagem foi então substituída por uma imagem de uma mulher nua, ao mesmo tempo em que o choque cessou. O objetivo desta tortura era fazer a paciente associar desejos homossexuais com dor e desejos heterossexuais com a remoção da dor.
A Associação Psiquiátrica Americana ainda classificava a homossexualidade como uma doença mental até 15 de dezembro de 1973. Foi quando, em sua reunião anual em Boston, um psiquiatra homossexual (usando uma máscara para esconder sua identidade) suplicou a seus colegas que removessem a homossexualidade do manual de doenças mentais. Enquanto isso, a Associação Psiquiátrica Canadense havia dito ao mesmo tempo que a homossexualidade não era uma doença mental. Permanece um mistério como a orientação sexual pode ser patológica de um lado da fronteira e saudável do outro, ou como ela pode ser uma doença num dia e perfeitamente normal no outro.
Tudo isso prova que a psiquiatria não é uma ciência, mas um ‘potpourri’ de preconceitos, fobias e incertezas dos psiquiatras. A Associação Psicanalítica Americana pediu desculpas por uma época ter tratado a homossexualidade como uma doença mental, mas a Associação Psiquiátrica Americana ainda não o fez. É difícil imaginar quanto dinheiro os psiquiatras já ganharam ao tentar convencer os homossexuais de que estávamos mentalmente doentes e que o remédio poderia ser encontrado dentro de seus consultórios.
Atualmente, a “terapia” de conversão para homossexuais foi proibida em 20 estados americanos, principalmente nas costas do Atlântico e do Pacífico. O Canadá e a Alemanha elaboraram leis para proibi-la, e espera-se que elas entrem em vigor em breve. Entretanto, a Rússia ainda tem uma lei que proíbe a “propaganda homossexual”. Este ensaio se enquadraria nessa categoria. Há cidades na Polônia que se orgulham de anunciar que estão em “zonas livres de LGBT”, o que significa que as minorias sexuais não são bem-vindas lá. Em 72 países, as atividades homossexuais entre homens ainda são consideradas criminosas, 44 países proíbem as relações lésbicas, e 11 países consideram as atividades homossexuais como uma ofensa capital.
O escritor italiano Primo Levi, que sobreviveu a Auschwitz e depois cometeu suicídio quando voltou para casa na Itália, disse: “Chi è stato torturato rimane torturato“: “Aquele que foi torturado permanece torturado”. Esta é a história da minha vida. psyc
Homossexualidade reprimida e esquizofrenia
Durante minha extensa leitura sobre esquizofrenia e homossexualidade, procurei exemplos de homens cuja doença era como a minha; em outras palavras, pessoas cuja esquizofrenia era causada pela repressão de sua homossexualidade. Os psiquiatras de hoje, todos os quais considero charlatães, se recusam a reconhecer que a repressão sexual pode causar doenças mentais, embora o próprio Sigmund Freud tenha sido a primeira pessoa a promover esta idéia.
Através de minhas pesquisas, descobri quatro esquizofrênicos famosos cuja doença parece ter sido causada pela repressão de sua homossexualidade. Eles são o juiz alemão Daniel Paul Schreber (1842-1911), o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), o poeta quebequense Émile Nelligan (1879-1941) e o matemático americano John Nash (1928-2015). Publiquei artigos sobre todos eles na revista chinesa Journal of Literature and Art Studies.
Nietzsche, por exemplo, foi o filósofo alemão mais famoso do século XIX. Como explico em meu artigo, ele se tornou totalmente psicótico em 1889 aos 45 anos de idade e passou os últimos 11 anos de sua vida em estado vegetativo, vivendo primeiro em um asilo de loucos e depois em custódia dada por sua mãe e irmã. Em 1989, Joachim Köhler publicou um livro que revelou a história da homossexualidade de Nietzsche: Zarathustras Geheimnis (Zarathustra’s Secret). Este livro criou um escândalo entre os estudiosos de Nietzsche porque suas idéias demonstram o ponto de vista homofóbico dos muitos biógrafos de Nietzsche que discutem sua vida sexual árida e a falta de relações heterossexuais sem considerar uma vez a possibilidade de Nietzsche ser homossexual. Segundo Köhler, Nietzsche começou a fazer viagens à Itália aos 37 anos de idade em busca de aventuras homossexuais. Na época, a Alemanha tinha uma lei que punia os atos homossexuais com até cinco anos de prisão. A Itália não tinha tal lei, e assim se tornou o destino preferido dos alemães em busca de prazeres homossexuais.
Um dos principais argumentos do movimento anti-psiquiatria é que os psiquiatras nunca concordam entre si, e o caso de Nietzsche oferece um exemplo perfeito. Psiquiatras sérios, respeitados e eruditos escreveram artigos científicos brilhantes “provando” a verdadeira causa da psicose de Nietzsche. O problema é que todos eles discordam uns dos outros. Alguns dizem que sua psicose foi devido a uma doença bipolar, alguns dizem que foi devido à esquizofrenia, alguns dizem que foi devido à sífilis, e outros dizem que foi devido a um tumor cerebral. Seu amigo Richard Wagner alegou que a verdadeira causa era a masturbação excessiva. Como eu digo, acredito firmemente que foi devido a ele ter que negar quem ele era, tanto para o mundo quanto para si mesmo. Não deve ser surpresa que meu artigo sobre Nietzsche tenha causado muita controvérsia entre os admiradores de Nietzsche, cujos preconceitos homofóbicos os cegaram para o que parece óbvio.
Eu consegui passar os últimos 55 anos fora dos hospitais psiquiátricos, enquanto Nietzsche esteve confinado por 11 anos. Uma grande diferença entre ele e eu é que eu sempre soube qual era a causa de minha psicose, e ele aparentemente nunca soube. Nos últimos 25 anos, eu tenho desfrutado de um relacionamento estável e feliz com meu marido, que é um homem local aqui no Quebec. Meu conselho aos jovens americanos que lutam contra doenças mentais é aprender línguas estrangeiras e recomeçar a vida em outro país que seja menos violento e menos confuso.
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