Por que as gêmeas que tinham tudo “sucumbiram”?

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Publicado pela BBC, dia 18 de junho de 2021.

Nascidas em novembro de 2001, elas eram consideradas como brilhantes desde tenra idade.

O próprio Ian Gould [pai], um gêmeo, diz que a filosofia deles como pais era “expô-las a tanta diversão e atividade quanto possível”.

Eles falam das meninas dançando balé junto à piscina nas férias no Egito, de sua participação em várias equipes esportivas e de seu “hobby de toda a vida delas”, a equitação.

[…] Ian e Jane dizem que começaram a aparecer os sintomas iniciais na infância delas mostrando que as coisas “não estavam certas”.

Isto incluía Sam arrancando seus cílios, sobrancelhas e cabelos. Em testes psicométricos, as meninas receberam as notas mais baixas que sua escola já havia visto .

“Nós somos apenas pais. Não somos treinados para juntar os pontos assim e, infelizmente, nenhum dos profissionais o fez”, diz Jane.

Em 2014, quando a família vivia em Fulbourn, Cambridgeshire, amigos levantaram preocupações de que Sam e Chris estavam postando “pensamentos suicidas e anoréxicos” nas mídias sociais. Um ano depois, descobriu-se que Sam havia se automutilado.”

[…] Eles decidiram desistir de suas carreiras para se concentrar em ajudar suas filhas.

Aos 14 anos, em maio de 2016, Chris fez uma tentativa de tirar sua própria vida.

No mês seguinte, Chris revelou que ela e Sam haviam sido abusadas sexualmente desde os cinco anos de idade até a adolescência, e nomeou seu suposto abusador.

Jane diz que a revelação os deixou em “choque total”.

“Não quero que você interprete mal a palavra acreditar, porque em nenhum momento nós não acreditamos nelas, mas isso é o que o seu cérebro lhe diz – isso não pode ser verdade”.

‘Nós nos esforçamos ao máximo para proteger nossas meninas; como isso pode ter acontecido e nós não sabíamos disso’.

[…] Em certo sentido, este momento lhes proporcionou uma oportunidade.

“Pensamos é isso, é a resposta que temos procurado, por que duas garotas que tinham tudo a seu favor estão se desmoronando?”.

A polícia de Hampshire investigou o caso, mas, numa época em que as meninas estavam lutando com sua saúde mental, elas não queriam dar provas em vídeo, o que Ian diz ser a única opção oferecida a elas.

Os policiais encerraram o caso no final de 2016, nunca tendo entrevistado o suposto abusador.

“Tivemos que dizer às meninas que a polícia não ia fazer nada a respeito, que eles não iam nem mesmo entrevistá-lo”, diz Ian.

“Essa é a coisa que realmente me fica na cabeça”.

Chris e Sam se sentiram “invalidadas e não acreditavam em nós”, acrescentam seus pais.

As meninas eram “as melhores apoiadoras uma da outra” e eram “ardentemente, intensamente leais”, diz Jane.

Ambas passaram um tempo em unidades de saúde mental como pacientes internadas, mas foram separadas, de acordo com o procedimento padrão em torno de irmãos.

Apesar de estarem a 70 milhas (113km) uma da outra, elas estavam determinadas a permanecer em contato.

Mas Chris foi transferida para uma unidade diferente que não permitia nenhuma forma de comunicação, que seus pais dizem que foi “a pior separação”.

Ian e Jane lutaram para que suas filhas fossem diagnosticadas com uma doença mental específica, apesar de mostrarem sinais de um emergente transtorno borderline de personalidade.

Jane diz que parecia que o transtorno era um “diagnóstico de Voldemort” para crianças, comparando-o ao personagem Harry Potter que não pode ser nomeado.

“Como eles não o nomeavam, não podíamos nos educar sobre ele”, diz ela.

“As meninas estavam desesperadas para saber o que havia de errado com elas, elas mesmas o disseram – ‘por que eu me sinto assim, o que há de errado comigo?'”

Os profissionais se recusaram a dar-lhes uma resposta, embora, com o passar do tempo, a resposta se tenha tornado cada vez mais clara [sobre seu diagnóstico].

Ambas as meninas tinham uma paixão por rock pesado e a família foi ao festival Reading em agosto de 2018.

Em 1º de setembro, Sam e seus pais assistiram juntos a um filme e tudo parecia normal.

Mas ela foi encontrada morta por sua mãe no dia seguinte. Ela tinha 16 anos de idade.

A morte de Sam teve um profundo impacto sobre Chris, que viu os paramédicos tentarem ressuscitá-la.

Chris dormiu uma noite na cama de sua irmã, mas nunca mais se sentiu capaz de passar a noite na casa da família. Ela fez 17 anos em novembro; seu primeiro, e único, sem Sam.

Seus pais ficaram “muito gratos” por um nível de flexibilidade após a morte de Sam que normalmente não era oferecido pela unidade de saúde mental próxima, dirigida pelo Cambridgeshire and Peterborough NHS Foundation Trust (CPFT).

Chris se tornou “mais parecido com um paciente-dia”.

Mas, tragicamente, Chris tirou sua própria vida em 26 de janeiro de 2019, quatro meses depois de sua irmã.

Perguntados sobre o impacto que a morte de Sam teve sobre Chris, Ian e Jane disseram quase em uníssono: “isso a matou”.

Jane acrescenta: “A partir daquele momento, ela diria a qualquer um… foi um caso de “quando” e não “se” ela foi se juntar a sua irmã”.

“Nossa vida inteira girava em torno de ‘como podemos tentar fazer valer a pena viver a vida de Chris? Como podemos mantê-la viva para ajudá-la a ver que ela pode ser uma gêmea sobrevivente e fazer uma vida para si mesma”?

“Embora ela ainda tivesse problemas de saúde mental, durante 2018 ela tinha começado realmente a colocar sua vida de volta nos eixos. Se Sam não tivesse morrido, ela estaria agora na universidade fazendo algo fantástico, e não temos nenhuma dúvida sobre isso”.

No inquérito de Chris no mês passado, os profissionais aceitaram que havia “inconsistências” em seu diagnóstico, que o médico legista achou “confusas” para Chris.

Ambos os pais planejam se concentrar na conscientização dos problemas que suas filhas enfrentaram, à medida que se reconciliam com suas mortes. Jane diz que quer que aqueles com influência vejam sua história e “compreendam o quanto a sociedade falha com a saúde mental das pessoas, particularmente dos jovens”.

Se você está se sentindo emocionalmente angustiado, ajuda e apoio estão disponíveis através da BBC Action Line.

Leia a matéria na íntegra → 

Reforma Psiquiátrica: diagnóstico psiquiátrico e alternativas (3)

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Este é o quarto de uma sequência de blogs que estou escrevendo para analisar alguns aspectos da reforma psiquiátrica que considero como sendo críticos. Venho apresentando a proposta construída pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia.

 

O que vimos até agora:

  • A dependência da assistência em saúde mental aos critérios de diagnóstico do DSM / CID. Suas consequências.
  • Uma compreensão dos princípios básicos do PTMF e como eles diferem daqueles do modelo biomédico.
  • Um entendimento do que a abordagem do PTMF quer dizer: poder, ameaças, significado e respostas às ameaças. 

Por que nós necessitamos de identificar padrões gerais no sofrimento psíquico?

Como você leitor provavelmente se deu conta, o PTMF se baseia em uma ampla gama de ideias, abordagens e críticas com as quais você se sente já familiarizado. Muitas das terapias existentes e estratégias de autoajuda são muito consistentes com os princípios do PTMF. Por exemplo, o Diálogo-Aberto, a Rede dos Ouvidores de Vozes, a terapia de narrativa e outras abordagens que já não seguem a perspectiva do diagnóstico. O PTMF pode ser visto como uma estrutura muito ampla que acomoda e suporta uma gama de modelos específicos.  Ele também pode ser usado para identificar lacunas nessas abordagens, que com muita frequência surgem por ser dada a devida atenção para a operação do poder e dos significados ideológicos a ele associados.

Será que necessitamos de identificar padrões gerais? Não estaríamos uma vez mais reproduzindo a lógica de classificar formas de pensar, sentir e agir em termos do que é patológico versus o normal? Assim sendo, ao propor substituir o modelo de diagnóstico psiquiátrico por um outro supostamente alternativo, não estaríamos trocando seis por meia dúzia?  E verdade que o PTMF é uma estrutura global para identificar padrões de sofrimento emocional, experiências incomuns e comportamento perturbador. Contudo, suas pretensões teóricas e éticas é que possa funcionar como uma alternativa de fato ao diagnóstico e classificação psiquiátrica do que é normal e do que é patológico.

O Padrão Fundamental

É considerado como sendo o “padrão fundamental” porque sustenta todos os outros, não importa se aplicado a um indivíduo, família, grupo ou ao nível populacional.

  • Todas as formas de adversidade são mais comuns em contextos de desigualdade e outras formas de privação, discriminação, marginalização e injustiça social.
  • Discursos sociais e significados ideológicos dão forma a experiência e expressão do sofrimento.
  • As relações de apego interrompidas muito cedo são uma forma de adversidade em si próprias, e preparam o cenário para respostas emocionais mediadas biologicamente às adversidades subsequentes.
  • Uma grande parte do impacto da adversidade pode ser explicada por fatores que exacerbam a experiência de ameaça. Isso inclui quanto mais precoce for a idade de desenvolvimento; sentir-se preso em uma armadilha; ameaça interpessoal e intencional; imprevisibilidade e falta de controle sobre a ameaça; ameaças repetidas e múltiplas; invasão física; ameaça crônica de fundo; e falta de alguém em quem confiar e agir como protetor.

Esse diagrama nos ajuda a ter uma visão global da abordagem do PTMF.

O “padrão fundamental” é assim definido: “Desigualdades econômicas/sociais e significados ideológicos que dão suporte à operação negativa do poder resultam em níveis mais elevados de insegurança, falta de coesão, medo, desconfiança, violência e conflito, preconceito, discriminação, e adversidades sociais e relacionais em todas as sociedades. Isso tem implicações para todo o mundo, e particularmente para aqueles com identidades marginalizadas. Limita a capacidade dos cuidadores para fornecer às crianças relações seguras durante a sua infância, que por si só é perturbador para o desenvolvimento da criança, como também compromete a sua capacidade para manejar o impacto de adversidades futuras. Adversidades são correlacionadas, de tal modo que a sua ocorrência em um momento do passado da pessoa e/ou no presente, o que cria a possibilidade dela experimentar outras adversidades subsequentes. Aspectos tais como dano intencional, traição, impotência, aprisionamento e imprevisibilidade aumentam o impacto dessas adversidades, e isso não é apenas cumulativo, mas sinérgico. Com o passar do tempo, a operação da interação complexa de adversidades resulta em uma probabilidade muito maior de experimentar sofrimento emocional e comportamentos perturbados ou perturbadores. A forma dessas expressões de sofrimento é moldada pelos recursos disponíveis, pelos discursos sociais, pelas capacidades corporais e ambiente cultural, e a sua função central é promover segurança emocional, física e social e sobrevivência. Na medida em que as adversidades se acumulam, o número e a gravidade dessas respostas crescem em conjunto, junto com outros indesejados resultados de saúde, comportamental e social. Na ausência de fatores ou intervenções atenuantes, o ciclo é então criado para continuar nas novas gerações.” (Johnstone & Boyle, 2018, p. 195).

Padrões Gerais e suas características

Já vimos como os padrões em medicina estão baseados em descrições das várias maneiras nas quais as coisas podem ir mal com os nossos corpos. Mas quando se fala em pensamentos, sentimentos e comportamentos humanos, nós necessitamos fazer uma grande mudança em direção a tipos de padrões muito diferentes, que são primariamente moldados pelas complexas interações baseadas no significado com os nossos meios ambientes físicos, sociais e culturais. Nossos corpos estão inevitavelmente envolvidos em algum nível. Mas como bem dizem as autoras, reconhecer as reações corporais frente às adversidades não é o mesmo que tentar entender o sofrimento psíquico em termos de padrões na biologia.

Os padrões do PTMF podem ser descritos como respostas à operação negativa do poder, incorporadas e baseadas em significados.

As características dos padrões gerais:

  • Os padrões não estão baseados em relações de causa-efeito entre o que acontece com as pessoas e se, ou como, elas podem experimentar o sofrimento. Isso ocorre pelo fato que tudo é moldado pelos significados que nós criamos acerca das circunstâncias complexas de nossas vidas e as fontes de poder disponíveis para nós.
  • Como resultado, os padrões são, e serão sempre, soltos e sobrepostos, provisórios e incertos. Não há nenhum “padrão para a psicose” ou para o “transtorno da personalidade”, e tampouco não se espera por um simples encaixe entre uma narrativa pessoal e um padrão específico mais amplo. Isso não é um fracasso dos padrões. É simplesmente como as coisas são no campo do sofrimento emocional humano, e significa que há sempre esperança por mudança.
  • Há regularidades, ou modo comuns de responder às ameaças, que estão enraizadas em nossa biologia, em nossas sociedades e em nossas culturas. Os padrões do PTMF refletem essas regularidades.
  • Os padrões ultrapassam noções “normal” e “anormal” e “mentalmente doente” e “mentalmente sano”. Os padrões se aplicam a todos nós humanos afetados em algumas áreas de nossas vidas pela operação negativa do poder, nós todos experimentamos ameaças, nós todos damos sentido ao que se passa conosco e com os outros, e nós todos usamos respostas às ameaças.
  • Os padrões podem ser usados para apoio à construção ou coconstrução, de narrativas livres da lógica do diagnóstico e histórias a respeito das vidas das pessoas.

O documento descreve padrões do poder negativo e ameaças comuns. Em “blogs” anteriores eu os apresentei de uma forma mais ampla.  Acho que neste “blog” vale a pena eu apresentar com mais detalhes formas de significado e de respostas às ameaças muito comuns entre todos nós.

Formas de significar as situações e experiências frente as ameaças do poder (“Que significado você dá a essas situações e experiências?” “Que sentido você dá a isso?”)

Inseguro, assustado, atacado Encurralado
Abandonado, rejeitado Derrotado
Indefeso, impotente Fracassado, inferior
Desesperançado Culpado, condenável, responsável
Invadido Traído
Controlado Envergonhado, humilhado
Emocionalmente oprimido Senso de injustiça
Emocionalmente “vazio” Perda de sentido
Isolado, solitário Contaminado, mal
Excluído, alienado Pária, perigoso
Ruim, sem valor Diferente/anormal

 

Respostas às ameaças (“Que tipos de Respostas às Ameaças você tem usado?”, “O que você fez para sobreviver?”)

Tipos de respostas comuns entre nós:

Preparar-se para “lutar” ou atacar; preparar-se para “fuga”, escapar, buscar segurança; resposta de “congelamento”; hipervigilância, respostas de surpresa, insônia; pânico, fobias; codificação de memória fragmentada; supressão de memória (amnésia; ouvir vozes; dissociação (perdendo a noção e tempo/lugar; vários graus de divisão de consciência); despersonalização, desrealização; flashbacks; pesadelos; entorpecimento emocional, achatamento, indiferença; entorpecimento corporal; pensamentos persecutórios; regressão emocional, afastamento; sustentar crenças incomuns; problemas de atenção/concentração; auto-imagem e sentido de si confusa/imagem instável; discurso e comunicação confusos e confundidos; auto-agressão de vários tipos; auto-negligência; dieta, fome infringida a si próprio; gula, comer demais; auto-silenciamento; autocondenação e autopunição; ódiio ao corpo; pensamentos compulsivos; realização de rituais e outros “comportamentos de segurança”; coletar, acumular; evitação / uso compulsivo da sexualidade; impulsividade; raiva, fúria; agressão e violência; pensamentos e ações suicidas; desconfiança dos outros; empatia reduzida; uso de drogas, álcool e fumo; sensações somáticas – tensão, vertigem, dor física, zumbido; sensações de calor ou frio, exaustão, irritação da pele, problemas gastrointestinais e muitas outras reações corporais; defesas emocionais: grandiosidade, negação, externalização, projeção, idealização; intelectualização (evitação de sentimentos e sensações corporais); estratégias relacionais; rejeição e manutenção de distanciamento emocional; etc., etc.

Exemplos de respostas às ameaças mais comuns nas crianças e nos jovens:

Problemas com o comer / dormir Bater, morder
Concentração pobre, distrair-se Medo extremo de separação
Impulsividade Fobias
Fazer xixi na cama Crueldade com animais
Tiques nervosos, ficar se coçando Retirada emocional, regressão
Roubo Evasão
Atraso na fala e no desenvolvimento Relações ruins com seus colegas
Intimidar os outros Comportamento sexualizado
Fugir de casa

 

No próximo “blog” quero concluir essa apresentação do PTMF. Irei transcrever alguns casos trabalhados com a abordagem do PTMF.

Para concluir este “blog”, reitero a sugestão que você procure acessar as referências originais, porque o que estou fazendo aqui é simplesmente buscar despertar o seu interesse para conhecer o conteúdo do PTMF.

Sintomas infantis diante do divórcio: medicalização e judicialização das relações familiares

Unhappy little kids sister and brother covering ears, suffering from noisy parents argument, angry mother and father shouting and quarreling on background, family conflict, children and divorce

Os sintomas infantis comportam características que mobilizam articulações entre os saberes da medicina, da psicanálise e do direito. Eles se apresentam como dispositivos primordiais para uma compreensão ampliada das questões que atravessam a infância na contemporaneidade, como a medicalização e judicialização das relações familiares.

De acordo com Foucault (1963), ao estudar a tradição da clínica médica, entende-se por sintoma a forma como a doença se manifesta. Os sintomas representam uma verdade sobre a patologia que se encontra exposta ao olhar clínico sensível à diferença, em relação a um estado que se define como sendo a saúde. Por ser a transcrição primeira da doença, os sintomas deixam transparecer uma figura invariável, visível e/ou invisível da patologia. Zafirian (1986) acrescenta que para se produzir um diagnóstico em medicina, no quadro da atividade médica, há sinais funcionais, físicos, biológicos, entre outros, que referidos ou não a uma etiologia conhecida permitem classificar o doente em uma categoria. Todavia, no âmbito psiquiátrico, no que tange ao sofrimento psíquico, torna-se mais complexo seguir o procedimento médico, posto não haver um sinal objetivo nem um sintoma patognomônico determinante da patologia mental. Esta se inscreve como um distúrbio de comportamento em relação a uma norma estabelecida, entretanto, a formulação da própria norma varia conforme o meio, a cultura e o período sócio-histórico.

Foucault (1963) pontua que a psicanálise tanto deriva como rompe com a clínica médica, sobretudo no que se refere à noção de sintoma. Diferentemente do sintoma médico, o sintoma psicanalítico adquiriu o estatuto de porta-voz da verdade do sujeito. Nesse sentido, o sintoma não representa a verdade da doença, porém, não deixa de se referir a uma verdade: a verdade do sujeito do inconsciente.

Ansermet (2003) explica que se para o médico o que se manifesta sinaliza algo estabelecido em seu saber, para o analista, em contrapartida, o sintoma possui caráter enigmático e sujeito à decifração.

Especificamente em relação aos sintomas infantis, Dolto (2013) aponta para a articulação estrutural entre o sintoma da criança, o discurso, a fantasia e o desejo dos pais. Para a autora, a criança expressa através dos seus sintomas as consequências de um conflito vivo em seus pais. A criança suporta inconscientemente o peso das tensões e interferências da dinâmica emocional em ação nos pais, cujo efeito de contaminação mórbida é tão intenso quanto mais se guarda ao seu redor o silêncio e o segredo.

Pedir a uma criança para estruturar-se sobre algo que não é dito, que foi silenciado a ela, significa exigir a negação de uma parte de si mesma. Assim, pensamos que a angústia infantil se presentifica enquanto sintoma, principalmente quando a criança e os pais não conseguem traduzir o seu sofrimento em palavras.

A situação de angústia se caracteriza pela impossibilidade de utilizar a palavra como mediadora. Desse modo, o excesso de angústia transborda e pode produzir crises e sintomas nas crianças. O processo de colocar o sofrimento em palavras mediante uma escuta analítica viabiliza que a supertensão promovida pela angústia possa ser dissipada. Assim, compreendemos os sintomas como uma linguagem inconsciente associada ao corpo e ao esquema corporal. Para Dolto (2017): “Estes sintomas que endividam a liberdade de viver são também meios de expressar o sofrimento de um ser humano atingido em seu narcisismo (p.310)”.

Nos casos de divórcio, por haver diversas nuances no processo e por exigir dos cônjuges um árduo trabalho psíquico, consideramos o divórcio litigioso como um processo potencialmente traumático que remonta às identificações primordiais, estando assim suscetível à transmissão psíquica transgeracional. Com efeito, observa-se que os traumas são terrenos férteis para a transmissão psíquica transgeracional, pois ficam fora da possibilidade de processamento psíquico, de simbolização e da linguagem. Os restos traumáticos podem ser repetidos ao longo de sucessivas gerações sob a forma de sintoma.

No litígio conjugal os pais estão preocupados em vencer a disputa judicial e não se importam com as “armas” que serão utilizadas no embate. No fogo cruzado encontra-se a criança, cuja constituição psíquica depende dos seus modelos identificatórios.

Quando um casal, antes ligado pelos laços do amor, passa a brigar movido por vingança, ódio ou pelos bens adquiridos, a criança não é incluída neste conflito sem consequências. A associação entre conflitos conjugais e angústia nos filhos é enunciada quer seja por meio de atos e sintomas, quer seja por meio dos próprios discursos dos pais. As investigações sobre o imbricamento entre o sintoma infantil e o conflito parental demandam um minucioso aprofundamento clínico-teórico, tendo em vista que por vezes a criança pode se identificar com o próprio conflito e relacionar a sua importância na vida dos seus pais com a intensidade do conflito. A presença dos pais adquire um papel central no tratamento infantil, de suma importância, tendo em vista o enlace fantasístico, fantasmático, discursivo comum que une os pais e a criança sintomaticamente. Contudo, a pluralidade de fatores presentes no sintoma infantil vem sendo solapada em benefício de uma leitura estreita, localizacionista e patologizante do sofrimento e da angústia infantil, cuja tônica é posta no funcionamento cerebral da criança.

A partir do DSM-5, foram categorizadas em termos descritivos situações como o abuso infantil, a criança afetada pela relação dos pais e sofrimento pela ruptura conjugal, entre outros acontecimentos que sugerem a fusão dos discursos médico e jurídico. A inclusão destes novos itens parece abrir espaço para a inclusão da Síndrome da Alienação Parental (SAP) em manuais diagnósticos psiquiátricos. Esta síndrome foi descrita inicialmente pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner na década de 1980 para designar casos de um distúrbio infantil que acometeria, especialmente, menores de idade envolvidos em situações de disputa de guarda entre os pais. Na visão do autor, esta síndrome se desenvolve a partir de programação ou lavagem cerebral realizada por um dos genitores para que o filho rejeite o outro responsável (Gardner, 2001).

Desde os escritos de Gardner havia a expectativa de que a denominada SAP fosse incluída no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-V, pela Associação Americana de Psiquiatria. E, atualmente, observamos a presença de duas categorias diagnósticas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a saber: V 61.03 (Z 63.5) Ruptura da Família por Separação ou Divórcio e V 61.29 (Z 62.898) Criança Afetada por Sofrimento na Relação dos Pais. Entretanto, vale mencionar que diversas categorias diagnósticas listadas no referido manual têm contribuído para o incremento de pesquisas com vistas a que se disponibilizem novos medicamentos no mercado, medicalizando massivamente as crianças e judicializando cada vez mais as relações familiares. A despeito das polêmicas e controvérsias que atravessam este assunto, a proposta de Gardner difundiu-se rapidamente no Brasil e em outros países, levando
alguns a pensar que a suposta síndrome havia se tornado uma epidemia em todo o
mundo.

Nesse fluxo, houve intensa mobilização da opinião pública e, a comoção gerada em torno do sofrimento de crianças que supostamente seriam vítimas da SAP culminou na elaboração da Lei nº. 12.318/10. Esta lei teria como objetivo identificar e punir os genitores tidos como responsáveis pela alienação parental dos filhos. Todavia, apesar do esforço e da empenhada atuação multidisciplinar no judiciário, principalmente do poder geral de cautela do juiz no propósito de suprimir a alienação, é comum no final do processo não se conseguir provar a alienação parental (Sousa & Brito, 2011) nem as situações de abuso descritas no manual.

Próchno, Paravidini e Cunha (2011), ao analisarem criticamente a SAP, relativizam o protagonismo feminino do papel de alienador. Segundo a pesquisa destes autores, a mulher não necessita mais do marido para garantir a sua sobrevivência, portanto, ela pode tomar iniciativas em separações conjugais, sem com isso carregar consigo qualquer sentimento de culpa ou vingança. O que antes era exceção, hoje é um fato corriqueiro. Divórcios e separações conjugais fazem parte da realidade conjugal. Nüske e Grigorieff (2015) acrescentam que quando existem filhos, o final da conjugalidade não representa o fim da família, mas sim a sua transformação de família nuclear em binuclear. Sob este prisma, o divórcio não enseja um distanciamento paterno ou materno-filial, visto que a separação não se resume à família parental.

Presenciamos a crescente judicialização das relações familiares associada ao adoecimento dos laços filiativos e afiliativos. Parece que o excesso de demandas judiciais em busca de resoluções para as questões familiares não tem como contraponto dispositivos que possibilitem a composição e a elaboração destas questões. Se por um lado, o sistema judiciário não consegue fazer frente a tudo que lhe chega, seja na quantidade de casos, seja na complexidade dos assuntos, por outro, as medidas judiciais não se mostram eficientes (e suficientes).

A transposição das desavenças conjugais para o judiciário requer a
participação efetiva da psicologia no trabalho com as famílias que chegam à Justiça
como forma de auxiliar o restabelecimento da saúde psíquica individual e familiar.
A participação da psicologia não se resume a confecção de laudos, relatórios e
pareceres. O caráter avaliativo não se sobrepõe à necessidade de ações coletivas e
individuais para o reestabelecimento da saúde mental dos indivíduos envolvidos no
litígio.

O trabalho integrado e interdisciplinar voltado para a saúde mental e para os aspectos psicopatológicos presentes no divórcio pode contribuir sobremaneira para aliviar o judiciário do excessivo número de processos e demandas judiciais, reduzir a judicialização das relações e apresentar soluções estruturadas e eficazes para a resolução efetiva do litígio.

Eletrochoque, vozes, paralisia: histórias de presos políticos em manicômios

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Publicado em UOL. O portal acaba de tornar público um documento inédito que mostra 24 casos de presos políticos que foram internados pela ditadura militar em instituições psiquiátricas. Esse número provavelmente é maior do que o identificado pela reportagem. A reportagem conta a história de alguns desses presos políticos.

Dos 24 casos, pelo menos 22 foram submetidos a tortura em prisões comuns, antes de serem internados. É o caso de Paulo Benchimol, que passou a ouvir vozes parecidas “com [a voz de] um daqueles agentes que me interrogaram” e que diziam “que estava de volta para as mãos do diabo”. Já S.R. perdeu a memória depois de dez dias de choques elétricos. Nas instituições onde foram internados, alguns presos políticos continuaram a sofrer maus-tratos. Em Pernambuco, J.S. ficou “dois anos com dificuldades na fala e locomoção” devido à alta dosagem de medicamentos psiquiátricos que recebeu. No Rio, Solange Gomes foi tratada com eletrochoque e convulsoterapia (indução de convulsões)”.

A LUTA ANTIMANICOMIAL: ontem, hoje e sempre!!!

Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/06/14/historias-presos-politicos-manicomios.htm?cmpid=copiaecola

A psicoterapia pode evitar a recidiva quando os antidepressivos são descontinuados

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Quando é seguro interromper os medicamentos antidepressivos? Se os medicamentos evitarem recaídas, então pará-los poderia levar a um retorno das experiências (como ansiedade ou depressão) que fizeram a pessoa procurá-los em primeiro lugar. Mas um novo estudo – publicado na revista de primeira linha JAMA Psychiatry – descobriu que a psicoterapia é tão boa na prevenção de recaídas quanto a continuação dos antidepressivos.

Um comunicado de imprensa sobre o estudo resume seus resultados: “Programas psicológicos curtos e simples podem evitar que as pessoas recaiam quando param seus antidepressivos”.

O estudo foi conduzido por Josefien Breedvelt e Claudi Bockting na Universidade de Amsterdã.

Os pesquisadores encontraram quatro estudos pré-existentes que comparavam a psicoterapia (e a afilação/descontinuação do antidepressivo) com o uso contínuo de antidepressivos. Os estudos incluíram 714 participantes no total e acompanharam pacientes durante 15 meses após a interrupção do uso de antidepressivos. As terapias fornecidas foram a terapia cognitiva ou a terapia cognitiva baseada na ‘mindfulness’.

“Esta meta-análise dos dados individuais dos participantes sugere que a realização de uma intervenção psicológica enquanto um paciente é submetido a um tratamento de redução de antidepressivos pode ser uma alternativa ao uso de antidepressivos a longo prazo no tratamento da depressão recorrente”, os pesquisadores escrevem no artigo da JAMA Psychiatry.

No comunicado à imprensa, Breedvelt escreve que “Descobrimos que independentemente dos riscos clínicos, tais como um alto número de episódios anteriores ou sintomas residuais, os pacientes podem considerar a interrupção dos antidepressivos desde que possam receber uma psicoterapia simples”.

De acordo com Breedvelt e Bockting, as orientações para a prática clínica instam os clínicos a continuar a terapia antidepressiva a longo prazo, mesmo em pessoas que não atendem mais aos critérios de depressão ou ansiedade, enquanto “tratamento de manutenção”. Entretanto, elas observam que os antidepressivos têm muitos efeitos adversos que podem piorar com o uso a longo prazo, como ganho de peso e disfunção sexual, e as pessoas podem não querer continuar a tomá-los a longo prazo.

Ao contrário dessas diretrizes, o estudo deles descobriu que a interrupção do tratamento antidepressivo é possível sem causar mais recaídas se uma simples psicoterapia for fornecida durante a interrupção.

No comunicado à imprensa, Bockting escreve:
“Embora as diretrizes clínicas recomendem atualmente o uso de antidepressivos de longo prazo em pacientes de alto risco, é hora de discutir alternativas”.

De acordo com os pesquisadores, não havia um grupo particular de pessoas para quem isto funcionava melhor ou pior do que qualquer outro (mesmo aqueles que tinham experimentado anteriormente numerosos episódios recorrentes de depressão ou ansiedade), o que significa que isto poderia ser tentado com qualquer pessoa.

Breedvelt e Bockting concluem que a psicoterapia – juntamente com a descontinuação da medicação – é uma alternativa viável ao tratamento antidepressivo contínuo, uma vez que a pessoa tenha experimentado melhora.

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Breedvelt, J. J. F., Warren, F. C., Segal, Z., Kuyken, W., & Bockting, C. L. (2021). Continuation of antidepressants vs. sequential psychological interventions to prevent relapse in depression: An individual participant data meta-analysis. JAMA Psychiatry. Published online May 19, 2021. doi:10.1001/jamapsychiatry.2021.0823 (Link)

Como equilibrar a ação individual e os fatores sociais na depressão?

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Em um capítulo do livro Conceituação e Tratamento da Depressão, as psicólogas Maria Orphanidou e Irini Kadianaki discutem as controvérsias de longa data em torno da conceituação da depressão. Elas exploram o lugar do indivíduo na compreensão das causas por trás da depressão e ilustram como o debate “responsabilidade individual versus fatores sociológicos” pode ser um beco sem saída.

Usando suas pesquisas sobre a experiência vivida de depressão com pacientes cipriotas gregos, as autoras propõem uma compreensão socialmente consciente do ‘empoderamento’ que preserva a agência individual ao mesmo tempo em que consideram a importância dos fatores sociológicos como essenciais para a compreensão da depressão.

As pesquisas em torno da depressão têm passado por algumas mudanças drásticas na última década. Os especialistas estão se distanciando cada vez mais da teoria do “desequilíbrio químico”. Como resultado, o papel dos antidepressivos também tem sido problematizado por descobertas recentes.

Mais recentemente, os pesquisadores sugeriram que a depressão poderia ser uma resposta ao estresse do trauma, da solidão entre os adolescentes e até mesmo ligada a uma sensação de falta de propósito e de sentido. Estressores econômicos como o desemprego têm sido ligados ao crescente diagnóstico de depressão em todo o mundo.

Outra preocupação importante tem sido o sobrediagnóstico da depressão devido à confiança excessiva no questionário da Pfizer para triagem, em benefício das empresas farmacêuticas.

Orphanidou e Kadianaki apontam para uma controvérsia central na forma como a depressão é entendida. Os modelos biomédicos e psicológicos sugerem que as causas dos sintomas depressivos estão dentro do indivíduo – do desequilíbrio de serotonina aos pensamentos disfuncionais – e visam o indivíduo para tratamento. O modelo sociológico insiste que as circunstâncias da vida que estão fora do controle individual, tais como racismo, pobreza, desemprego, etc., são as causas centrais da depressão. Assim, o foco no indivíduo exerce pressão desnecessária sobre ele e faz parte de uma cultura neoliberal maior que se concentra unicamente na responsabilidade individual e no autoaperfeiçoamento, e não nos problemas do sistema.

Ao mesmo tempo, outros pesquisadores sustentam que a responsabilidade individual pode dar às pessoas um senso de empoderamento e agência. Como resultado, há um impasse, com um lado sendo severamente crítico em relação à individualização e o outro insistindo que, se removermos a responsabilidade individual, também removemos o senso de poder e agência. Os autores escrevem que o que precisamos é de um entendimento de empoderamento que seja social e que não sobrecarregue o indivíduo, mas que mantenha a agência o sujeito.

Eles começam observando que, apesar do modelo biopsicossocial de saúde mental, a individualização é predominante na pesquisa e na prática. Mesmo quando são discutidos fatores estruturais como a pobreza e a falta de moradia, a pressão para corrigi-los ainda está sobre o indivíduo – procurando que ele assuma o controle de seu tratamento, faça mudanças no estilo de vida, etc.

Ao mesmo tempo, o empoderamento pessoal tem sido ligado a uma menor auto-estigmatização e sintomas depressivos e a melhores resultados. Dado que a sensação de perda de controle ou poder e desesperança são fundamentais na depressão, é provável que o empoderamento individual seja benéfico. Originalmente, o empoderamento deveria ser aplicado em todos os níveis da sociedade, do indivíduo, da comunidade e organizacional/estrutural, mas o foco tem sido apenas o empoderamento individual.

Várias críticas à narrativa de empoderamento individual/paciente têm sido feitas. Primeiro, ela está relacionada a valores ocidentais, como autocontrole e autogestão. Como resultado, em vez de ser objetivo e universal, está impregnado de valores sociais do que significa ser um bom cidadão responsável que se auto-promove. É insuficiente em outras culturas com diferentes sistemas de valores.

Embora esta narrativa de auto-empoderamento soe bem, ela pode levar à auto-culpabilização, à condenação da vítima, à auto-responsabilização e à marginalização de fatores sócio-culturais. As pessoas podem ser julgadas e culpadas por não administrarem sua depressão, mesmo quando as causas são em grande parte sociais. Como resultado, as pessoas não podem questionar as injustiças sistêmicas (exploração do trabalho, más condições de vida) e como elas podem estar ligadas ao que estão sentindo.

As pesquisadoras mostram como esta autoconfiança e excessiva auto-responsabilidade se reflete nos participantes de suas pesquisas. Elas conduziram oito entrevistas semiestruturadas com cipriotas gregos sobre sua experiência de depressão.

Elas encontraram a culpa própria desenfreada nos discursos dos pacientes. O efeito da narrativa da individualização era evidente. Isto era verdade mesmo quando os pacientes estavam conscientes do papel de fatores sociológicos, tais como bullying, abuso de drogas na família, problemas financeiros, etc. No entanto, eles ainda internalizavam tanto a causa quanto o tratamento de sua depressão. Alguns trechos de suas narrativas destacam este ponto:
“[Depressão] foi devido às minhas estúpidas [reações] de [pensar demais] e ansiedade, (…) e meus traços de personalidade. (…) Muitas vezes, eu crio problemas para mim mesmo por conta própria, para ser honesto. Não é culpa de mais ninguém. (…)”
“Você se coloca em uma prisão, em uma caixa, então eu acredito que [a depressão] é uma tortura. Hum, você se prende sozinho, ninguém mais o coloca lá, e você cria coisas com seus pensamentos, e o único responsável por esta situação é você”. (…) Ninguém pode ajudá-lo se você não quiser ajudar a si mesmo”.

“Os fracos, os sensíveis [são mais afetados pela depressão] (…) Eu era um personagem fraco. (…) Você precisa de força. Talvez você adquira essa força porque está sofrendo? E você diz [para si mesmo] que precisa fazer algo, não pode ficar assim. (…) Eu disse a mim mesmo que vou lutar [contra a depressão] sozinho. (…) Se [as pílulas] me ajudarem e eu me ajudar a mim mesmo, eu vou conseguir.”

Ao mesmo tempo, para a maioria dos pacientes, a auto-responsabilidade e sentir-se capaz de dar respostas também foram uma fonte de força e empoderamento. Um paciente disse:

“Psicoterapia”. [É] quando você descobre seus pontos fortes e que não há problema para os outros não gostarem de você. [Você] aprende coisas, [você] muda, [você] começa a amar a si mesmo. [Você] trabalha em você mesmo e para conhecer a si mesmo. (…) Pouco a pouco, você vai descobrindo seus pontos fortes”.

Mesmo quando alguns pacientes sabiam que fatores sociais foram, pelo menos em parte, responsáveis por sua depressão, estes fatores não foram discutidos no tratamento.

As pesquisadoras sugerem incluir mais aspectos sociais na compreensão e no tratamento da depressão, ao mesmo tempo em que reconhecem como a responsabilidade pessoal é importante para o empoderamento e a agência. O empoderamento individual está embutido em contextos socioculturais – crescendo em uma comunidade que olha uns pelos outros em vez de punir os que estão na pobreza, uma família amorosa e encorajadora, um estado que toma medidas para reduzir a pobreza e o desemprego, etc.

Os autores escrevem que pensam que uma grande razão pela qual os sistemas sociais são evitados em favor da responsabilidade individual é que a mudança social requer esforço, recursos e tempo a longo prazo. O que é necessário é pesquisas que estudem as dificuldades práticas que dificultam estas mudanças. Elas escrevem:

“Assim, é possível que, numa tentativa de compensar essas barreiras e oferecer uma solução mais imediata no tratamento da depressão, os profissionais da saúde mental se concentrem em fatores individuais, que são mais facilmente amenizáveis.”

A solução delas envolve profissionais reconhecendo explicitamente o lugar dos determinantes sociais da depressão, lembrando aos pacientes sobre esses fatores e seu papel em sua própria condição, e indo além do simples enfoque no empoderamento do paciente. Elas insistem que estas medidas são essenciais se quisermos mudar o entendimento do paciente em torno da autocondenação e da responsabilidade pelo tratamento.

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Orphanidou, M. & Kadianaki, I. (2021). Addressing individualization in depression: Towards a socially informed empowerment. In Christos C. & Georgia P. (eds.) Depression Conceptualization and Treatment. Springer (Link)

Reforma psiquiátrica brasileira e a necessidade de alternativas ao diagnóstico psiquiátrico (2)

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Neste quinto “blog” da série eu darei continuidade à apresentação da proposta da Abordagem Poder, Ameaça e Significados  (PTMF) desenvolvida pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia. Relembrando: a proposta do PTMF é que uma alternativa à abordagem dos manuais oficiais de diagnóstico necessita da criação de condições para que uma perspectiva distinta possa ocorrer. Portanto, é indispensável que desloquemos a nossa atenção para longe do suposto mal funcionamento das mentes e cérebros e que dirijamos a nossa percepção para o mundo social mais amplo e as maneiras como ele pode nos prejudicar. Ao não desconstruir o modelo biomédico da psiquiatria, a reforma psiquiátrica tem sido incapaz de construir uma alternativa ao diagnóstico psiquiátrico. A experiência dos colegas psicólgos britânicos é exemplar de que isso é possível, como o leitor está podendo verificar aqui.

O PTMF propõe que a abordagem dos problemas seja feita guiada por um pequeno conjunto de questões. E que são as seguintes:

  • “O que aconteceu com você?” (Como o poder está operando em sua vida?)
  • “Como isso afetou a você?” (Que tipo de ameaças isso representa?)
  • “Qual o sentido você fez disso?” (Qual é o significado dessas situações e dessas experiências para você?)
  • “O que você teve que fazer para sobreviver?” (Que tipos de respostas às ameaças você tem usado?)
  • “Quais são os seus pontos fortes?” (Que recursos de poder você tem acesso?)
  • … e para integrar tudo acima: “Qual é a sua história?”
  1. “O que aconteceu com você?” (Como é que o poder está operando em sua vida?)

O PTMF retoma a noção de poder que Foucault desenvolveu ao longo da sua obra. Irei retomar aqui alguns dos aspectos mais importantes. Foucault desafiou as ideias tradicionais que viam o poder principalmente como algo muito evidente e que é ‘possuído’ por indivíduos ou grupos particulares ou localizados em lugares específicos. Esse tipo de poder de fato existe, mas Foucault argumentou que, nas sociedades modernas, mais liberais, outras formas de poder menos facilmente identificáveis vem se tornando cada vez mais importantes. São aquelas formas de poder que realmente operam em nossas vidas no cotidiano, como parte de qualquer organização, relação ou interação social, sendo ou não reconhecidas. São para essas formas de poder (sutis e penetratantes) que o PTMF sugere que prestemos muita atenção. Há as formas de poder positivas, como são os recursos que cada um de nós e as comunidades possuem para enfrentar situações adversas. E, há as formas negativas de poder, que se constituem em ameaças e produzem efeitos nefastos (‘pathos’, no sentido grego do termo).

Foucault focalizou nas formas que o poder pode produzir ao criar normas e padrões sociais, identidades, desejos e conhecimento. Exemplos seriam o desejo para ser magro, ou ser um ‘homem de fato’, ou possuir isso ou aquilo outro. Um outro exemplo de uma forma negativa de poder é o papel do DSM para definir um grande leque de comportamentos e sentimentos como “sintomas” e na produção de novas identidades via formas de “transtorno mental” – o que conhecemos por “medicalização”.

Uma outra forma de poder que merece ser destacada é a linguagem e a ideia de discurso. “Discurso” se refere a conjuntos de termos ou imagens relacionados que usamos quando representamos, pensamos ou escrevemos acerca de grupos ou fenômenos particulares.  Discursos podem criar identidades positivas ou negativas ou fazer com que algumas pessoas mereçam poder e privilégio mais do que outras. Os discursos podem fazer algumas experiências ou contribuições sociais invisíveis, enquanto que outras visíveis e valorizadas. Os discursos podem fazer algumas pretensões parecerem como fatos e esconder as suas raízes culturais. Os discursos podem fazer com que alguns processos de ação pareçam razoáveis e justificados e outros parecerem não razoáveis ou mesmo impensáveis.

O PTMF trabalha com as desigualdades de poder como referência central para o entendimento do sofrimento emocional e psicológico. Poder é o fator chave para ligar essas dificuldades aos processos sociais mais amplos e para sublinhar a necessidade para ação social e justiça social. O que é bem distinto da abordagem convencional dos modelos biopsicossocial ou vulnerabilidade-estresse.

O PTMF agrupa várias formas de poder que são potencialmente relevantes para muitas formas de sofrimento e comportamento perturbador e/ou perturbado. Que são os seguintes:

(a) Poder biológico ou incorporado: diz respeito aos nossos corpos e características físicas. P. e., nós podemos ter boa saúde, uma aparência física atraente, fertilidade, talento esportivo e assim por diante. Ou nós podemos experimentar limitações físicas tais como dor, doença, dano cerebral, desfiguração e incapacidade. O poder biológico diz também acerca dos sentidos culturais de nossas características corporais e como a nossa sociedade as acolhe e responde a elas. Isso inclui os sentidos de atributos tais como forma e tamanho do corpo ou tonalidade e cor da pele, o que pode fortemente afetar a experiência do nosso dia-a-dia.

(b) Poder interpessoal: todas as formas de poder que operam através das relações, mas sobretudo o poder para cuidar/não cuidar, dar suporte ou proteger alguém, abandonar ou deixar alguém, dar/retirar/suspender amor ou reconhecer.

(c) Poder coercitivo ou poder pela força: o uso do poder usando violência, agressão, ameaças, força física, certos gestos e posturas ou lembranças de violências para assustar ou intimidar alguém, para fazer com que o outro faça coisas que não quer ou impedir que faça o que quer.

(d) Poder legal: os poderes de polícia, o uso da lei para perseguir e restringir a liberdade das pessoas, o desrespeito da igualdade dos direitos que é dirigido a grupos sociais determinados, as políticas de Estado, como são de garantir o direito à educação, saúde, moradia, cultura, os poderes para a internação involuntária, o tratamento em saúde mental sem o livre consentimento.

(e) Poder econômico e material: diz respeito à capacidade para obter bens e serviços necessários para o seu bem-estar, para dar conta das necessidades financeiras e participar em atividades valorizadas.

(f) Capital social/cultural: diz respeito a ter acesso a oportunidades educacionais e de trabalho, qualificações, conhecimento, experiência compartilhada e conexões para facilitar o modo como as pessoas levam suas vidas e conferir um senso de confiança social e de pertencimento; o capital social/cultural que é transmitido de uma geração para a outra.

(g) Poder ideológico: que envolve o controle do sentido, linguagem, discurso e “agendas”. Trata-se de um dos poderes menos visíveis, mas que é o da maior importância, porque é a maneira como nossos pensamentos e crenças, como nós queremos pensar e sentir, como nos vemos a nós próprios, os outros e o mundo mais amplo e o que nós tomamos como “natural” ou “fatos”. É a respeito dos efeitos da linguagem e discurso.

II. “Como o que aconteceu afetou você?” (Que tipos de ameaças isso representa?)

As evidências científicas nos dizem das condições que são necessárias para que os seres humanos mantenham o seu bem-estar. O PTMF as chama de “necessidades centrais”. Essa lista inclui:

  • Sentirmo-nos seguro, valorizado e cuidado em nossas primeiras relações com os pais e/ou cuidadores
  • Ter um senso de segurança e pertencer a um grupo familiar/de amizade/social
  • Sentirmo-nos seguros e protegidos em nosso ambiente físico
  • Formar relações íntimas e parcerias
  • Experimentar e aprender a manejar uma gama de emoções
  • Sentir-se valorizado e efetivo em nossos papeis familiares/sociais
  • Ter algum controle sobre partes importantes de nossas vidas, incluindo nossos corpos e emoções
  • Ter atendidas necessidades físicas e materiais para nós próprios e nossos dependentes
  • Experimentar algum senso de justiça ou equidade acerca das nossas circunstâncias
  • Estar conectado com o mundo natural
  • Se engajar em atividades significativas e, mais geralmente, ter um senso de esperança, sentido e propósito em nossas vidas.

Principais ameaças, necessidades e poder

A proposta dos colegas britânicos é que consideremos as ameaças essenciais à segurança, sobrevivência ou bem-estar como o oposto ou o reverso das necessidades humanas básicas. Estas ameaças criam circunstâncias de vida aversivas onde é provável que lutemos em vez de prosperar, desenvolver, crescer enquanto seres humanos. Ameaças cruciais podem ocorrer nestas áreas:

  • Dentro das relações – ser abandonado, rejeitado ou perder pessoas que se ama, que se é cuidado ou que se depende; ser lesado ou invalidado através de críticas, humilhação, ter seus sentimentos e crenças rejeitados ou ter visões ou sentidos de outras pessoas impostas a você, mesmo quando não concorda; falta de amor, cuidado e proteção; negligência emocional, física ou material; abuso sexual ou emocional; receber comunicações confusas; sofrer bullying; experimentar violência doméstica; traumas intergerações que são passados pelos parentes e familiares.
  • Corporais – por exemplo, má saúde, dor crônica, incapacidade corporal, lesões, perda de função, perigo físico, fome, exaustão, ataques físicos e invasão por assédio sexual, e outras formas de violência e coerção.
  • Econômicas / materiais – por exemplo, amaças à segurança financeira ou de moradia; não poder ter as necessidades físicas ou materiais ou acesso a serviços básicos para si próprio e/ou dependentes; não poder compartilhar atividades sociais, dar presentes, reparar ou substituir coisas que foram danificadas; lutar contra dívida crônica.
  • Sociais / comunitárias – por exemplo, isolamento, exclusão, hostilidade no trabalho ou em sua vizinhança; não poder competir em conquistas, status e assim por diante; injustiça / desigualdade, perda do papel social ou de trabalho.
  • Ambiental – por exemplo, falta de segurança; viver em péssimas condições de moradia; viver em uma área densa, urbana ou de alta criminalidade; perda da conexão com o mundo natural; perda da conexão com a sua terra natal.
  • Conhecimento e construção de sentido – por exemplo, falta de oportunidade, suporte ou recursos sociais para encontrar e usar recursos importantes de informação para dar sentido de suas experiências; ter o seu conhecimento desvalorizado pelos outros, entendimentos e experiências impostas de sentido veiculados por discursos sociais e por outros mais poderosos, incluindo o que ocorre nos serviços de saúde mental.
  • Identidade – por exemplo, a falta de apoio para o desenvolvimento da sua própria identidade; perda de status; perda de identidade social, cultural ou religiosa, tais como ser um trabalhador, um pai/mãe ou um membro de um grupo social ou étnico particular.
  • Valor de base – por exemplo, a perda de propósito, valores, crenças e sentidos; perda de rituais, crenças e práticas comunitárias.

O PTMF considera como essencial se identificar quais são as ameaças mais fáceis ou mais difíceis de serem enfrentadas, de se sobreviver. Como por exemplo, se ocorreram na infância; a falta de pessoas com quem se pode encontrar apoio, confiança ou proteção;  tempo de duração das ameaças; a sua imprevisibilidade, ficar na expectativa de quando a ameaça irá ocorrer; se a ameaça vem de alguém muito próxima à pessoa; etc.

Você deve estar se perguntando se a exemplo dos manuais de diagnóstico oficial, como o DSM e o CID, não estaríamos igualmente abrangendo a existência humana como um todo e transformando-a em condições para saúde/doença. Eu também tive essa impressão no meu primeiro contato com a abordagem do PTMF. Mas com a leitura mais cuidadosa e indo até o fim do documento do PTMF, foi ficando claro para mim que não é isso. Que se a nossa perspectiva para a existência humana, para a nossa existência, não for pautada em termos de saúde e doença, conforme o que aprendemos com o modelo biomédico da psiquiatria (e também de uma psicologia), passamos a enfrentar as vicissitudes da nossa existência a partir de outros parâmetros. Os parâmetros podem ser diversos, mas que de que alguma forma são confirmados em geral pelas evidências científicas. Mas continuemos com o resumo que estou fazendo da abordagem do PTMF.

III. “Que sentido você deu a isso?” (Qual o sentido dessas situações e experiências para você?)

Ao formularmos essa terceira pergunta, o que eu estava no parágrafo anterior dizendo fica mais claro. É da maior importância se ter claro que a experiência de ameaça não é a mesma entre duas pessoas. A ligação entre poder e ameaça não é fixa ou inevitável, porque há outros aspectos da situação que podem aumentar ou reduzir o impacto. Isso é muito importante. É o que é sublinhado pelos colegas britânicos. Por isso é que eles propõem que se acrescente o “sentido” como uma outra camada da complexidade. Essa é uma outra razão do por que não se pode fazer simples ligações causa-efeito entre os eventos e circunstâncias das vidas das pessoas e as consequências em termos de sofrimento ou “problemas de saúde mental”.

Trauma e abuso podem ser paralisantes em seus efeitos, mas nem todo mundo que é traumatizado começará mais tarde a ouvir vozes ou a ter extremas oscilações de humor ou a se auto-mutilar, por exemplo, embora alguns passarão por isso. A pobreza aumenta o risco de dificuldades de saúde mental, mas nem todo mundo que é pobre se tornará o que nós podemos diagnosticar como “deprimido”. Igualmente, eventos que podem parecer, vistos de fora, menos difíceis podem ser extremamente angustiantes para a pessoa envolvida, dependendo da significância e sentido dado aos eventos. É por isso que o “sentido” (ou o signficado) é o fio que mantem todos os outros aspectos do PTMF juntos. Daí a extrema relevância da palavra (a linguagem) como o elemento coordenador das interações interpessoais nas abordagens psicossociais.

Alguns dos sentidos comuns que as pessoas dão às experiências angustiantes:

  • Inseguro, assustado, atacado = encurralado
  • Abandonado, rejeitado = derrotado
  • Desamparado, impotente = fracassado, inferior
  • Desesperançoso = culpado, censurável, responsável
  • Invadido = Traído
  • Controlado = envergonhado, humilhado
  • Emocionalmente sobrecarregado = Sentimento de injustiça / injustiçado
  • Mau, sem valor = contaminado, maligno
  • Isolado, solitário = alienado, perigoso
  • Excluído, alienado = diferente, anormal

Devido às limitações de espaço de um “blog” não irei entrar em detalhes (embora sejam importantes). Recomendo que você leitor interessado em se aprofundar busque ler o documento original do PTMF.

IV. “O que você teve que fazer para sobreviver?” (Que tipos de respostas a ameaças você está usando?)

Aqui nós queremos saber como as pessoas tentam sobreviver à operação negativa do poder e às ameças baseadas no sentido que resultam disso recorrendo a uma série de respostas às ameaças.

O PTMF toma como referência essencial a abordagem do trauma-informado. Essa abordagem integra a pesquisa a respeito da importância das relações iniciais na infância (a “teoria do apego”), os efeitos dos eventos traumáticos na mente e no corpo e o impacto do ambiente social mais amplo. A abordagem do trauma-informado já é amplamente empregada nos países que compõem o Reino Unido, por exemplo.

Por sinal, eu recomendo a leitura de um livro dos maiores biológos da história da Ciência, que é Charles Darwin. Enquanto que em Sobre a Origem das Espécies transformou o pensamento científico a respeito da vida na Terra, em A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais Darwin aborda o lugar do homem na natureza. Há muito em comum entre nós humanos e os animais, como respostas às ameaças. Nesse livro Darwin destaca características centrais da nossa humanidade: mente e moralidade.

Como a abordagem do trauma-informado não é do conhecimento de todos nós, irei me alongar na transcrição de trechos do PTMF. A abordagem do trauma-informado demonstra que as pessoas que experimentam formas extremas de sofrimento psíquico com frequência têm histórias de trauma, tais como abuso e negligência emocional e física, abuso sexual, violência doméstica, bullying, e muitas outras adversidades. Está amplamente mostrado na literatura científica que, em média, mais traumas alguém sofreu, especialmente no início da vida, mais provelmente ela terá empobrecida a sua saúde física e mental, e resultados no emprego, educacional e social.

A pesquisa científica também tem mostrado que estressores tais como ambientes urbanos inseguros, racial, discriminação ou ver alguém ser espancado, esfaqueado ou baleado, que são mais comuns em áreas com elevada carência. Esses fatores são traumáticos por direito próprio, assim como aumento das chances de abuso, violência e negligência nas relações pessoais ou familiares.

Também há eviências que o impacto de traumas não resolvidos podem ser transmitidos por gerações, assim as crianças e os netos das pessoas que sofreram adversidades são também afetados. São os conhecidos traumas transgeracionais.

A lista de respostas aos traumas é muito grande. Eis aqui algumas das respostas:

Preparar-se para “lutar” ou atacar; preparar-se para “fuga”, escapar, buscar segurança; resposta de “congelamento”; hipervigilância, respostas de surpresa, insônia; pânico, fobias; codificação de memória fragmentada; supressão de memória (amnésia; ouvir vozes; dissociação (perdendo a noção e tempo/lugar; vários graus de divisão de consciência); despersonalização, desrealização; flashbacks; pesadelos; entorpecimento emocional, achatamento, indiferença; entorpecimento corporal; pensamentos persecutórios; regressão emocional, afastamento; sustentar crenças incomuns; problemas de atenção/concentração; auto-imagem e sentido de si confusa/imagem instável; discurso e comunicação confusos e confundidos; auto-agressão de vários tipos; auto-negligência; dieta, fome infringida a si próprio; gula, comer demais; auto-silenciamento; autocondenação e autopunição; ódiio ao corpo; pensamentos compulsivos; realização de rituais e outros “comportamentos de segurança”; coletar, acumular; evitação / uso compulsivo da sexualidade; impulsividade; raiva, fúria; agressão e violência; pensamentos e ações suicidas; desconfiança dos outros; empatia reduzida; uso de drogas, álcool e fumo; sensações somáticas – tensão, vertigem, dor física, zumbido; sensações de calor ou frio, exaustão, irritação da pele, problemas gastrointestinais e muitas outras reações corporais; defesas emocionais: grandiosidade, negação, externalização, projeção, idealização; intelectualização (evitação de sentimentos e sensações corporais); estratégias relacionais; rejeição e manutenção de distanciamento emocional; etc., etc.

Concluindo. No próximo “blog” irei retomar essas quatro questões e articulá-las no que o PTMF chama de “Padrões Gerais no Sofrimento Psíquico”. Espero que ao completar a apresentação do PTMF você meu caro leitor poderá ter uma visão geral da abordagem. Muito provavelmente dúvidas, questionamentos e críticas estão surgindo entre os que estão lendo esta abordagem que estou apresentando- que supostamente é uma alternativa ao DSM/CID. Eu sugiro que você leitor busque acessar as fontes bibliográficas originais. Relembrando, para acessá-las basta clicar: (i) o documento original do PTMF; (ii) o livro escrito por duas das autoras do PTMF, Mary Boyle & Lucy Johnstone, The Power Threat Meaning Framework.

Até o próximo “blog”.

Importante Publicação sobre Redução e Interrupção dos Antipsicóticos é Lançada

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Um novo artigo, publicado no Schizophrenia Bulletin, é o primeiro artigo científico a destacar uma abordagem gradual de descontinuação de medicamentos antipsicóticos, o que é promissor para a redução de sintomas negativos de abstinência e recaída. O autor principal, Mark Horowitz, da UCL Psiquiatry, explicou o motivo da publicação:

“Surpreendentemente, não há diretrizes publicadas sobre como sair dos antipsicóticos. Por minha própria experiência, sei como pode ser difícil o desmame dos medicamentos psiquiátricos – por isso nos propusemos a escrever orientações sobre como se retirar com segurança dos antipsicóticos. A interrupção de medicamentos é uma parte importante do trabalho de um psiquiatra, mas que tem recebido pouca atenção.”

Flickr

Pesquisas demonstraram que mais da metade dos indivíduos que tomaram antipsicóticos relataram experiências negativas, incluindo, entre outras, suicídio, entorpecimento emocional, sedação, ganho de peso e dificuldades cognitivas. O uso de antipsicóticos a longo prazo tem sido ligado a efeitos negativos no corpo, tais como distúrbios de movimento, aumento da mortalidade e impactos duradouros no cérebro, incluindo a atrofia cerebral.

Dados os efeitos adversos dos antipsicóticos, devem ser desenvolvidas e implementadas abordagens seguras para reduzir e, por fim, acabar com o uso de antipsicóticos. Pesquisas sugerem que pessoas diagnosticadas com transtornos psicóticos, que são gradualmente retiradas de seus antipsicóticos, podem melhorar o seu funcionamento e os resultados a longo prazo.

Como nossos cérebros se adaptam ao uso a longo prazo de drogas como os antipsicóticos, a interrupção abrupta dos medicamentos antipsicóticos pode levar a recaídas e sintomas de abstinência. Os sintomas de abstinência podem consistir em sintomas somáticos, como náuseas e sudorese, sintomas motores e sintomas psicológicos, incluindo psicose. Os sintomas somáticos normalmente começam em dias e duram algumas semanas. Em contraste, os sintomas motores podem se manifestar durante um período de semanas após a redução da dose e podem durar meses ou mais.

O autor sênior professor David Taylor do King’s College London explicou:

“Os antipsicóticos são tão familiares aos prescritores que é tentador supor que eles são ao mesmo tempo eficazes e inócuos. Embora eles sejam talvez o tratamento mais útil para doenças mentais graves, como a esquizofrenia, a sua natureza tóxica torna-os inadequados para condições menos severas. Os antipsicóticos induzem mudanças duradouras nas células nervosas do cérebro, e eles precisam ser retirados muito lentamente (e de uma forma particular a cada um) para dar tempo ao cérebro para se restabelecer.”

Embora a distinção entre as recaídas associadas à abstinência e aquelas que refletem um curso típico de um transtorno psicótico seja desafiadora, as retiradas associadas à recaída podem ser evidenciadas pelo aumento das taxas de recidiva após a cessação do antipsicótico.

Pesquisas também descobriram que indivíduos que foram prescritos antipsicóticos por períodos mais longos de tempo têm um risco maior de recaída, incluindo sintomas psicóticos, após a interrupção de sua medicação; com o risco dobrando após 1-2 anos de antipsicóticos, triplicando após 2-5 anos, e aumentando 7 vezes após 8 anos de uso de antipsicóticos.

Os autores ressaltam que a recaída após a interrupção da medicação se estende além da dos antipsicóticos para outros medicamentos psicotrópicos:

“Este padrão de recaída, consistente com os efeitos relacionados à  descontinuação, não se restringe aos antipsicóticos, mas também é evidente para os antidepressivos na ansiedade, assim como lítio e outros estabilizadores do humor no transtorno afetivo bipolar (BPAD), igualmente persistindo por meses.”

Há uma falta de informação e orientação no que diz respeito ao processo de redução gradual dos antipsicóticos, o que contribui para a hesitação dos psiquiatras em ajudar os clientes a descontinuar a sua medicação. O afilamento gradual parece ser uma forma eficaz de reduzir a recidiva após a cessação, já que as mudanças neurológicas feitas pelos antipsicóticos têm se mostrado persistentes por anos após o fim do uso de antipsicóticos. Atualmente, as diretrizes sugerem que a afilação a doses mínimas é eficaz, mas não indicam especificamente como fazer a afilação.

O coautor Sir Robin Murray, do King’s College London, acrescentou:

“Alguns psiquiatras estão relutantes em discutir a redução de antipsicóticos com seus pacientes. Infelizmente, a consequência é que os pacientes param o medicamento por sua própria conta, com o resultado de que eles têm uma recaída. Muito melhor seria que os psiquiatras se tornem especialistas em quando e como aconselhar seus pacientes a reduzirem lentamente os seus antipsicóticos.”

Os autores oferecem diretrizes sobre como parar de tomar antipsicóticos com segurança, o que também se alinha com as pesquisas recentes que publicaram sobre como interromper o uso de antidepressivos com segurança.

Eles identificam os seguintes princípios a serem seguidos com o afilamento da medicação: “fazê-lo com cautela por pequenas quantidades, e assegurar que os pacientes estejam estáveis (com sugestão de intervalos de três a seis meses entre as reduções de dose, ou pequenas reduções feitas a cada mês) antes de prosseguir com as reduções. Versões líquidas do medicamento ou formulações de pequenas doses serão necessárias para ajudar os pacientes a fazer isso e assim evitar que por si próprios façam o esmagamento dos comprimidos.

Outros especialistas líderes na área enfatizam a importância destas recomendações. Joanna Moncrieff, da Psiquiatria da UCL, que está liderando o ensaio RADAR, o primeiro estudo na Inglaterra a analisar o efeito de reduzir lentamente os antipsicóticos em pessoas com um diagnóstico de esquizofrenia, disse:

“Muitas pessoas querem desesperadamente tentar parar com seus antipsicóticos, e por boas razões, mas os psiquiatras muitas vezes estão relutantes em ajudá-los. Este documento melhorará a confiança dos psiquiatras em ajudar as pessoas a reduzir e interromper os antipsicóticos, o que dará às pessoas mais opções sobre seu tratamento.”

O Professor John Read, da Universidade de East London, Presidente do Instituto Internacional para Retirada de Drogas Psiquiátricas (IIPDW), declarou:

“Este documento é um avanço histórico que proporcionará uma orientação há muito esperada para milhares de pessoas que têm passado por este difícil processo, com pouco apoio ou informação durante décadas. Os psiquiatras envolvidos são verdadeiros pioneiros na jornada em direção a uma abordagem mais baseada em evidências de medicamentos psiquiátricos.”

Os autores concluem enfatizando a necessidade de mais pesquisas e de diretrizes formais para o estabelecimento de antipsicóticos afunilados. A implementação de tais diretrizes poderia ser transformadora para as pessoas que recebem prescrição de antipsicóticos, como destacado por aqueles com experiência vivida:

Sandra Jayacodi, que faz parte do painel consultivo de experiência de vida e membro da pesquisa RADAR, disse:

“Os efeitos colaterais dos medicamentos antipsicóticos são extremamente desagradáveis, e isso reduziu a qualidade da minha vida, e as chances são de que minha expectativa de vida seja reduzida também. Às vezes parece uma sentença de prisão perpétua. Se me fosse dada uma escolha com apoio e orientação adequados, eu deixaria de tomá-los. Sim, portanto, é uma questão de tempo os psiquiatras receberem orientações para ajudar as pessoas a reduzir ou parar suas drogas antipsicóticas. Saber que existe tal diretriz também dará às pessoas a confiança para iniciar uma conversa com seu psiquiatra sobre a redução ou interrupção das drogas antipsicóticas.”

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Horowitz, M. A., Jauhar, S., Natesan, S., Murray, R. M., & Taylor, D. (2021). A method for tapering antipsychotic treatment that may minimize the risk of relapse. Schizophrenia Bulletin. doi:10.1093/schbul/sbab017 (Link)

Pesquisadores alertam sobre “Atrofia Cerebral” em crianças prescritas com Antipsicóticos

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Em um novo comentário, os pesquisadores discutem as evidências de que os medicamentos antipsicóticos podem causar atrofia cerebral – especialmente em crianças, cujos cérebros ainda estão se desenvolvendo. O artigo foi escrito por Tarun Bastiampillai, Peter Parry e Stephen Allison na Universidade Flinders na Austrália, e foi publicado no Australian and New Zealand Journal of Psychiatry (ANZJP).

Os autores escrevem que uma ideia aceita na psiquiatria é que as crianças são mais suscetíveis aos efeitos adversos dos antipsicóticos de segunda geração, tais como obesidade, diabetes e sedação. Entretanto, as mudanças no cérebro provocadas pelos antipsicóticos são um assunto mais controverso. Alguns psiquiatras sugeriram que a própria psicose é responsável pela atrofia cerebral e que os medicamentos podem proteger o cérebro através da redução dos sintomas.

Infelizmente, de acordo com Bastiampillai, Parry e Allison, isto não se encaixa com os resultados das pesquisas. Eles citam um estudo de 2011 onde uma maior duração do uso de antipsicóticos e uma dose mais alta de medicamentos antipsicóticos foram ambos associados à perda de volume cerebral. Os pesquisadores controlaram fatores de confusão, tais como duração da “doença” psicótica, gravidade dos “sintomas” e abuso de substâncias. Isto sugere que a “gravidade da doença” não pode ser usada para explicar essa perda de volume cerebral.

Da mesma forma, estudos em macacos e ratos mostram que quando animais saudáveis são expostos a antipsicóticos, eles perdem em média 8-11% de seu volume cerebral, especialmente no córtex cerebral frontal. Os pesquisadores testaram tanto o haloperidol quanto a olanzapina, o que significa que este efeito foi encontrado tanto para os antipsicóticos de primeira geração quanto para os antipsicóticos de segunda geração mais novos.

Essas descobertas são especialmente preocupantes à luz das recentes evidências de que são prescritos antipsicóticos às crianças na ausência de quaisquer sintomas psicóticos – e geralmente, sem nenhum diagnóstico de saúde mental.

Os autores citam um artigo de 2015 na JAMA Psiquiatria onde os pesquisadores relataram que “a maioria dos jovens tratados com antipsicóticos não tiveram nenhum diagnóstico registrado em seus dados de reivindicações de cuidados de saúde” – significando que as crianças estão sendo prescritas antipsicóticos como um controle comportamental, ao invés de tratar uma condição diagnosticada.

Olfson, King e Schoenbaum – os autores desse artigo de 2015 – escrevem que esses problemas comportamentais são limitados a fases do desenvolvimento, o que significa que a maioria das crianças provavelmente aprenderá melhores maneiras de lidar e se comportar, sem a necessidade de medicamentos com efeitos colaterais perigosos e comuns e que podem estar prejudicando o cérebro em desenvolvimento das crianças.

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Bastiampillai, T., Parry, P., Allison, S. (2018). Can antipsychotic medication administered for paediatric emotional and behavioural disorders lead to brain atrophy? Australian & New Zealand Journal of Psychiatry, 1-2(4867418797419). doi: 10.1177/0004867418797419. (Link)

Alternativas com o Mínimo de Medicamentos Necessários para a Psicose

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Em um novo artigo de opinião em Psicose, a psicóloga Ruth Cooper da Universidade de Greenwich e seus colegas argumentam contra o uso a longo prazo de medicamentos antipsicóticos para psicose e esquizofrenia. Eles avançam então sua posição de que, dada a evidência atual, o Reino Unido deve explorar intervenções psicossociais e abordagens de medicação mínima para os pacientes.

Os medicamentos antipsicóticos são a primeira linha de tratamento nos EUA e no Reino Unido. As críticas acompanham o assunto ao longo da história e, mais recentemente, se tornaram mais fortes. Pesquisas recentes mostraram que as pessoas que deixam de tomar antipsicóticos tendem a se sair melhor a longo prazo e têm maior probabilidade de recuperação. Outras se concentraram nos numerosos efeitos adversos dos medicamentos, especialmente seus efeitos a longo prazo. Mais perturbador ainda, os antipsicóticos têm sido associados à atrofia cerebral em crianças e causam diminuição da espessura cortical em adultos.

Outras críticas vieram de pesquisas sobre a experiência das pessoas com os antipsicóticos. Os pacientes descrevem alguns benefícios, mas também um senso reduzido de auto-estima e de agência. A maior pesquisa até o momento observou que a maioria dos pacientes relatou consequências negativas de estar sob esses medicamentos. Consequentemente, houve um impulso para se desenvolver diretrizes sobre a retirada segura de medicamentos psiquiátricos, já que os efeitos da retirada de medicamentos antipsicóticos podem ser debilitantes.

Cooper e seus colegas começam citando as constatações da OMS de 1979 de que, quando se trata de psicose, as pessoas dos países mais pobres com menos acesso a medicamentos se saíram melhor do que as das nações ricas. Embora os antipsicóticos ajudem a reduzir os sintomas para alguns pacientes, eles podem ser ineficazes em outros e ter efeitos adversos significativos. Novas pesquisas sugerem que para cada 6 pessoas tratadas com antipsicóticos, 1 pessoa teve melhores resultados benéficos.

Há também inúmeras razões pelas quais os pacientes deixam de tomar os antipsicóticos. Os efeitos adversos podem incluir “aumento de peso significativo, diabetes, doenças cardíacas, distúrbios de movimento e mudanças estruturais no cérebro, incluindo redução do volume cerebral… sedação, letargia, embotamento emocional e disfunção sexual que podem ter um impacto adverso na qualidade de vida.”

Os pacientes podem ser coagidos ao tratamento, o que pode impedir a relação entre eles e o sistema de saúde mental, fechando as oportunidades de tratamentos psicológicos. Os autores escrevem que as diretrizes do NICE (National Institute for Health and Care Excellence) do Reino Unido apoiam a tomada de decisões compartilhadas entre os profissionais da saúde mental e os pacientes. Como a maioria dos pacientes mantém sua capacidade de decisão, eles têm o direito de escolher tratamentos alternativos se desejarem. Os autores escrevem:

“Dados os efeitos adversos dos antipsicóticos, a ineficácia para algumas pessoas e outros motivos para parar que estão descritos acima, os pedidos para parar ou não tomar esses medicamentos devem ser vistos como uma escolha legítima e não, como alguns clínicos podem supor, como ‘falta de discernimento'”.

Os autores também observam que os antipsicóticos se tornaram populares porque se pensava que reduziam as recaídas. Estudos também mostraram que parar os antipsicóticos de repente pode provocar psicoses espontâneas. Entretanto, embora isto tenha sido confundido anteriormente com recaída, agora se faz a hipótese de que é resultado da retirada da droga causada pela supersensibilidade à dopamina.

Assim, muitos pacientes querem deixar de tomar seus medicamentos, mas têm pouca orientação ou ajuda. Dada a ausência de diretrizes nacionais e a pressão sobre os profissionais da saúde mental para dar alta às pessoas, os profissionais muitas vezes não têm certeza sobre intervenções alternativas.

Sob a pressão dos usuários de serviços que desenvolveram seus próprios recursos para sair de drogas psiquiátricas, tais como “The Harm Reduction Guide To Coming Off Drugs” e “The Inner Compass Initiative”, a NICE pediu mais pesquisas sobre intervenções psicossociais. Mais recentemente, o Royal College of Psychiatry também publicou um conjunto de recursos e diretrizes para se retirar os antidepressivos, sinalizando um apoio construtivo para o movimento de desprescrição.

Os autores exploram a literatura em torno de abordagens de medicação mínima para psicose em todo o mundo. Historicamente, tem havido numerosos lugares onde abordagens de medicamentos mínimos e tratamentos psicossociais têm sido tentados – Soteria House nos EUA e Suíça, Kingsley Hall e Villa 21 no Reino Unido, e atualmente Open Dialogue na Finlândia (tratamento imediato às necessidades).

Estes locais ou não utilizaram antipsicóticos, ou minimizaram seu uso (atrasando-os por 6 semanas), ou utilizaram benzodiazepinas por um curto período. Eles se concentram em fornecer apoio emocional e prático e às vezes no processo e na experiência de psicose.

Cooper e seus colegas escrevem que há duas grandes revisões sistemáticas destas abordagens, primeiro por Calton e colegas em 2008 e outro por Cooper e Laxhman em 2020. Revendo 9 tratamentos psicossociais em 2.250 pacientes, a análise constatou que a maioria dos tratamentos, quando comparados ao grupo de controle antipsicótico, foram pelo menos tão eficazes quanto o grupo de controle – tanto na redução dos sintomas quanto na melhoria do funcionamento. Isto foi conseguido através de muito menos uso de antipsicóticos e sem evidência de maiores danos nos pacientes minimamente medicados. Entretanto, há muitas limitações com estes estudos promissores, como a ausência de pesquisa de alta qualidade, pequenas amostras e a exclusão de pacientes de alto risco.

Recentemente, um estudo australiano comparou, entre pacientes com psicose do primeiro episódio, um grupo antipsicótico com outro grupo que recebeu tratamento psicossocial intensivo (coordenação de cuidados, TCC, psicoeducação, intervenção familiar e monitoramento). Após 6 meses, e depois de 1 e 2 anos, nenhuma diferença foi encontrada entre os grupos. As taxas de desistência foram altas em ambos os grupos. Cooper e colegas escrevem:

“Apesar disso, o estudo fornece evidências preliminares de que um pacote intensivo de tratamento psicossocial, semelhante ao que já pode estar disponível nos serviços de intervenção precoce, poderia ser para alguns uma alternativa potencial para os antipsicóticos. Certamente se justifica um estudo mais amplo deste pacote de tratamento.”

Sob pressão dos usuários dos serviços, atualmente, em Vermont e em partes da Noruega, as instituições estabeleceram abordagens de medicamentos mínimos. A avaliação formal dessas iniciativas ainda não foi publicada.

Os autores observam que existem várias abordagens para alternativas a medicamentos (ou com o mínimo de medicamentos) que podem ser oferecidas aos pacientes que as preferem.

Primeiro, podem ser utilizados diferentes categorias de intervenções psicossociais, tais como “apoio emocional e prático, terapias da palavra e psicoeducação… ‘estar com’ pessoas que são ativamente psicóticas, de forma não intrusiva, atividades práticas, sociais e criativas, tais como exercícios, arte e terapia com animais, e apoio de pares de pessoas com experiência de vida.”

Em segundo lugar, alternativas como O Movimento dos Ouvidores de Vozes permitem que as pessoas vejam suas vozes como significativas e ajudam a incorporá-las em sua experiência de vida, trabalhando com as vozes.

Em terceiro lugar, é importante construir um melhor relacionamento com os membros da família e amigos que muitas vezes estão preocupados com recaídas; isto envolve incluí-los em compromissos e dar-lhes boas informações. Eles podem fornecer apoio essencial, e se não, então locais como a Soteria que proporcionam alívio de difíceis circunstâncias familiares. O uso a curto prazo de benzodiazepinas (menos de 1 mês devido às suas propriedades viciantes) pode aliviar alguma ansiedade.

Alguns podem se beneficiar de parar completamente o uso das drogas, enquanto outros podem se beneficiar mantendo doses mínimas. Boas informações sobre sintomas de abstinência, o reconhecimento e tratamento dos mesmos devem ser dadas aos pacientes e suas famílias.

Os autores concluem observando:

“Temos agora uma oportunidade de ouvir e responder aos usuários dos serviços e, como na Noruega e Vermont, os governos poderiam incentivar a provisão e a pesquisa de serviços com o mínimo de medicamentos para proporcionar às pessoas uma escolha genuína sobre seu tratamento. É necessária uma maior discussão, em consulta com os usuários do serviço, sobre os elementos-chave que tais serviços devem incluir.”

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Cooper, R.E., Mason, J.P., Calton, T., Richardson, J. & Joanna Moncrieff (2021) Opinion Piece: The case for establishing a minimal medication alternative for psychosis and schizophrenia, Psychosis, DOI: 10.1080/17522439.2021.1930119 (Link)

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