A criação de uma alternativa conceitual para o DSM: uma entrevista com a Dra. Lucy Johnstone

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No ano passado, Lucy Johnstone, Mary Boyle e seus colegas no Reino Unido lançaram o Power Threat Meaning Framework (PTMF), que traduzimos para o Português como Poder, Ameaça e Sentido (PAS). Trata-se de conjunto de ideias que tem representado um afastamento das concepções biomédicas que animam o Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana (DSM).  Essa estrutura desloca a noção de “O que está errado com você?” – como é recomendado pelo DSM – para “O que aconteceu com você?”. Ao assim fazer, rejeita o processo médico de diagnosticar ‘transtornos’, em favor de uma resposta narrativa que conte contextos, dinâmicas de poder e sistemas. Para que o leitor tenha uma ideia, veja o vídeo de lançamento desse Modelo de referência, que foi produzido pela própria Sociedade Britânica de Psicologia, e que está com legendas em português.

No momento em que o Movimento Global de Saúde Mental está exportando o modelo biomédico ocidental pelo mundo afora, Johnstone, Boyle e a equipe do projeto PAS, que inclui aqueles que se identificam como usuários / sobreviventes, e que buscam promover uma maneira radicalmente diferente de se entender o sofrimento. As respostas ao P.A.S. variaram de críticas à gratidão.

Johnstone, uma psicóloga clínica e consultora, com larga experiência em trabalhar há muitos anos em ambientes de saúde mental para adultos, acredita que o atual sistema de saúde mental falhou, e que estamos agora no processo de testemunhar o desmoronamento do paradigma médico do sofrimento emocional. Ela acredita que precisamos de uma abordagem baseada em princípios fundamentalmente diferentes. O P.A.S. , que se baseia em uma ampla gama de evidências e exemplos de alternativas existentes, é uma tentativa de descrever como isso pode se dar. A equipe do projeto P.A.S. espera que possa ser uma contribuição para a tão necessária revolução.

Em uma recente postagem, o Mad in Brasil trouxe ao conhecimento do nosso público um artigo publicado pela Clinical Psychology Forum onde são avaliados os resultados após um ano do lançamento oficial da Abordagem do P.A.S. Nesta entrevista que agora estamos trazendo ao conhecimento do público, 18 meses após o lançamento, Lucy Johnstone reflete sobre a reação ao P.A.S. e o impacto que teve até agora. Como as ideias estão sendo usadas? Há chance de se tornar mais amplamente adotado? Lucy também descreve como suas próprias experiências de vida influenciaram o seu trabalho.

A transcrição abaixo foi editada para maior clareza. (Ao final da transcrição você pode ouvir a entrevista completa.)

Zenobia Morrill: Para começar, por que você acredita que nós necessitamos de um modelo de diagnóstico alternativo? Com outras palavras, qual é o problema com o DSM?

Lucy Johnstone: Não achamos que precisamos de um novo manual de diagnóstico, achamos que precisamos de uma nova estrutura que não seja diagnóstica. Então é isso que tentamos fornecer. Mas você e qualquer um da comunidade Mad está bem ciente, como muitas outras pessoas, de que a atual estrutura de diagnóstico está enfrentando muitos problemas.

É claro que experiências de sofrimento psíquico são muito reais. As pessoas realmente se sentem suicidas e desesperadas, ansiosas e sem esperança, ouvem vozes hostis e têm mudanças de humor e assim por diante, mas nunca foi demonstrado que essas experiências reais são melhor entendidas como sendo doenças médicas que precisam ser diagnosticadas. Há também uma grande quantidade de evidências de que as pessoas estão, em última análise, respondendo a eventos em suas vidas quando passam por essas experiências muito difíceis.

Nós claramente precisamos de algo diferente (do DSM). Agora, é claro, as pessoas têm ideias variadas sobre como esse sistema diferente deva ser; se deveria ser, de algum modo, um quadro de diagnóstico melhor e mais eficaz, ou se deveria ser algo completamente diferente. Mas é óbvio que todos os lados do debate pensam que o sistema de diagnóstico atual não está funcionando. Precisamos, pelo menos, de algo diferente e é nossa opinião que a grande diferença precisa ser um afastamento fundamental da suposição de que essas dificuldades e essas formas de sofrimento psíquico são mais bem entendidas enquanto doenças médicas.

Morrill: Como você responderia às pessoas que dizem que o DSM ou o CID são úteis, pois agrupam pessoas com sintomas semelhantes para fins de pesquisa, fornecem uma linguagem comum aos praticantes ou até ajudam a fins de reembolso e categorizam diferentes tratamentos para pessoas com sintomas semelhantes?

Johnstone:  O diagnóstico enquanto tal, o diagnóstico médico, faz essas coisas. É por isso que temos isso, para que possamos agrupar os sintomas e sugerir os melhores tratamentos ou intervenções. Eu realmente desafiaria essa linguagem, antes de tudo. A linguagem dos ‘sintomas’, das ‘doenças’ e dos ‘tratamentos’, tudo faz parte desse mesmo modelo não comprovado. Na verdade, acho que seria muito difícil sustentar que os diagnósticos psiquiátricos executam qualquer uma das funções que o diagnóstico faz no que eu chamaria de ramos legítimos da medicina.

Precisamos de fato de maneiras de agrupar diferentes tipos de experiências, para que possamos pensar sobre o melhor caminho a seguir e tudo o mais, porém o sistema de diagnóstico não faz isso. Estamos afirmando que criamos algo que faz isso melhor. Igualmente, é verdade que, no sistema atual, o diagnóstico é necessário para alguns propósitos práticos, como o acesso aos serviços públicos e benefícios, e no futuro previsível provavelmente se passará. Queremos afirmar que descobrimos que existem formas mais eficazes de fazer isso que não exigem que você assine um rótulo, o que na verdade não é válido e que é experimentado por muitas pessoas como prejudicial.

Morrill: Você acha que o DSM ajudou a formar o pensamento social e profissional sobre as dificuldades psiquiátricas que é de uma maneira prejudicial?

Johnstone: O DSM e seu equivalente europeu, o CID, certamente tiveram um profundo efeito na formação do pensamento social e profissional, e é a galinha e o ovo, não é assim? Surgiu de um certo modo de pensar sobre as coisas. Isso teve um efeito profundo. Eu certamente argumentaria, como muitas outras pessoas, que o efeito geral tem sido muito prejudicial.

Eu acho que é quase impossível subestimar a sua influência e entender quão profundamente ela está infiltrada em todos os tipos de áreas de nossas vidas. Não são apenas serviços, mas o sistema legal, o sistema de saúde pública, a tal ponto em que as pessoas estão realmente chegando já tendo se autodiagnosticado. Esse idioma está em toda parte: em campanhas, como campanhas anti-estigma, no Google, na mídia, nos programas de treinamento das pessoas. Tornou-se algo que Mary Boyle, em sua frase útil, chama de “a mentalidade do DSM”.

Há uma horrorosa quantidade de evidências, e se irá saber disso, é claro, mas pessoas como Robert Whitaker mostraram, eu acho bastante conclusivamente, que esse tipo de abordagem, juntamente com as drogas psiquiátricas que a abordagem convida, não ajuda as pessoas ou as torna melhores, em longo prazo, em média. Na verdade, os níveis de incapacidade entre os países vem ao mesmo tempo aumentando. O modelo fundamental claramente não está funcionando e precisamos claramente de algo diferente.

Morrill: Você está mostrando que esse sistema tem causado danos, não tem validade e não está funcionando. E que o quadro de referências P.A.S. oferece outra coisa. Quais são os principais objetivos do P.A.S.

Johnstone: O P.A.S. é uma tentativa absurdamente simples e ambiciosa – uma tentativa em andamento, não uma resposta completa – que esperamos que comece a delinear uma alternativa conceitual ao modelo de diagnóstico da angústia.

Nós já temos várias maneiras diferentes de abordar o sofrimento, que não são baseadas em diagnósticos, e nos debruçamos em muitas delas. Muito do que está no quadro de referências não é novo. Nós escolhemos a expressão ‘quadro de referências’deliberadamente. É uma espécie de guarda-chuva que dá suporte, centraliza e dá mais algumas evidências, credibilidade e suporte para as muitas formas não-diagnósticas de trabalho que já existem, além de sugerir novos caminhos para o futuro.

Estamos pretendendo que isso seja um passo importante, não apenas para um uso particular da linguagem, um uso particular de rótulos, mas uma maneira completa de pensar – afastar-se de toda a mentalidade do DSM. Em parte, é por isso que o documento é tão longo, denso e detalhado, porque não queríamos apenas ajustar o sistema existente. Não queríamos apenas dizer: “Bem, aqui está uma maneira extra de fazer as coisas que podem ser úteis”. Queríamos ir além disso, o que exigia que nos aprofundássemos profundamente nos princípios filosóficos e conceituais da abordagem do DSM e apresentar uma visão geral sólida de toda a pesquisa relevante.

O objetivo é mover-se, em termos simples, para longe do “O que está errado com você?” para a pergunta “O que aconteceu com você?”.  Para dizer o mais rapidamente quanto o possível, estamos evidenciando, esperamos, a ideia de que o sofrimento das pessoas seja compreensível no contexto, mas queríamos pensar sobre o contexto em sua forma mais ampla. Uma das coisas que queríamos fazer era deixar bem claro o elo entre o sofrimento psíquico pessoal e o contexto social, a desigualdade social e as injustiças sociais. Em outras palavras, colocar o poder no mapa. [A problemática] o poder não está faltando apenas no pensamento psiquiátrico, mas também está faltando muito no pensamento psicológico, e faz muita falta ao pensamento psicoterapêutico.

Junto com isso, queríamos ter um quadro de referências que apoiasse as pessoas para ajuda-las a contar suas histórias, narrativas de todos os tipos. Portanto, a resposta mais simples para “O que você faz ao em vez de diagnóstico?” é  “você ouvir as histórias das pessoas”. Essa é um quadro de referências que, esperamos, valida a ideia de que as narrativas são uma alternativa ao diagnóstico e apoie a construção ou a co -construção de narrativas particulares e analise padrões nessas narrativas.

Finalmente, a terceira coisa importante a dizer é que o quadro de referências se aplica a todos nós. Nós realmente queríamos nos afastar de toda essa ideia de que há um grupo de pessoas que são de alguma forma doentes mentais ou diferentes de alguma forma fundamental. Estamos todos sujeitos à influência negativa do poder. Todos nós sofremos de vez em quando. O quadro de referências é, na verdade, sobre todos nós.

Uma das principais coisas sobre o quadro de referências é, na verdade, dar às pessoas o conhecimento, a informação, para decidir sobre como querem descrever sua própria experiência. Essa é uma forma realmente importante de restaurar o poder das pessoas: a capacidade de criar seus próprios significados. Em última análise, criar novas narrativas que façam mais sentido.

O modelo biomédico de psiquiatria é um excelente exemplo do uso do poder ideológico, porque é uma cosmovisão que não tem nenhuma evidência para apoiá-lo, que nunca teve evidências para apoiá-lo, que opera claramente no interesse de pessoas que já são bastante poderosas – profissionais, empresas farmacêuticas, e assim por diante – claramente operando para as desvantagens de pessoas que já são menos poderosas, se não provavelmente não estariam optado pelos serviços. O modelo biomédico claramente opera impondo uma forma de significado às pessoas, que segue as linhas de: você tem uma doença mental do tipo X, Y ou Z. Se você começar a desafiar isso, você descobrirá rapidamente que o poder está em outro lugar. Você não tem permissão para contestar. Todos os tipos de consequências podem vir ao desafiar esse modelo.

Morrill: Como sua experiência pessoal e profissional influenciou a sua participação e construção do P.A.S.?

Johnstone: Eu sempre acreditei que a loucura tem significado, mas também acho que provavelmente todos nós no grupo do projeto diríamos a mesma coisa. De certa forma, o P.A.S. é a culminação de nossa experiência pessoal e profissional. Nós, todos nós, trouxemos uma gama de experiências para essa tarefa que envolveu pesquisa, prática clínica, treinamento e experiência pessoal. Em conjunto, acho que houve uma mistura rica em que todos nós, com esses aspectos de nossas experiências, fomos capazes de alimentá-la na produção do documento.

Se eu pensar sobre mim mesma, eu certamente diria que não foi por acaso que passei a trabalhar em trabalho de saúde mental e desenvolvi as visões que hoje tenho. Eu sou uma pessoa normal. Eu venho de um background de uma família de classe média típica do Reino Unido, meus pais são professores, eu tenho um irmão e uma irmã, eu fui para uma escola de uma bom padrão. . . Quero dizer, em certo sentido, nada de terrível aconteceu comigo. Em outro sentido, havia uma série coisas que que me levaram a estar sempre muito infeliz quando criança, quando adolescente, quando jovem, e passei muito tempo pensando sobre isso. Está claro para mim que havia razões para isso.

Eu venho de uma geração que foi bastante influenciada pelo chamado movimento antipsiquiátrico. Quando comecei a treinar como psicóloga, ainda havia pessoas por perto, algumas das quais eram muito inspiradoras para mim, que haviam trabalhado com Laing, por exemplo. Essas ideias ainda estavam por aí. Tudo tinha a ver comigo. O fio condutor das experiências pessoais, que o sofrimento psíquico ou a loucura têm significado, se harmonizou muito com algumas das correntes que ainda existem na cultura. Eu sempre acreditei nisso, eu sempre segui esse fio condutor.

Morrill: Como foi o processo intelectual de construir o P.A.S.?

Johnstone: Em certo sentido, o ponto de partida é a declaração do posicionamento que a Divisão de Psicologia Clínica emitiu em maio de 2013, exatamente na mesma época em que o DSM-5 foi publicado, e eu fiz parte dessa posição, assim como algumas outras pessoas que estavam no grupo. Em essência, era todo um corpo profissional que pedia o fim do modelo de doença do sofrimento, o que é bastante corajoso e desafiador ser feito.

Uma das recomendações era que, se nós fossemos pedir isso, precisaríamos saber como seria uma alternativa e nos juntarmos aos sobreviventes e outros grupos interessados em ver como isso poderia ser.

Isso evoluiu a partir disso, sem qualquer plano. Mary e eu éramos os líderes do projeto. Eu nunca estive envolvida em algo tão ambicioso antes. Eu acho que o que ajudou é que o grupo principal, todos nós nos conhecíamos há anos, se não décadas. Todos nós sabíamos de onde vínhamos e não acho que nenhum outro grupo teria conseguido executar essa tarefa com tanta facilidade. Houve um grande grau de confiança e amizade compartilhada e ideias e entendimentos divididos.

Nós começamos a nos encontrar regularmente. Começamos a consolidar algumas de nossas ideias. Começamos a atribuir diferentes aspectos do documento a diferentes pessoas para que assumissem a liderança. Começamos a atrair outros membros e pessoas para dar conselhos e consultas. Criamos um grupo consultivo de usuários de serviços e cuidadores. Cerca de três anos depois, Mary e eu percebemos que, a menos que dedicássemos um tempo realmente sólido para isso, isso nunca aconteceria. Nós essencialmente passamos dois anos sem sermos remuneradas financeiramente na frente de nossos computadores, cada uma de nós, juntando tudo, e depois o documento saiu.

Foi muito estressante em vários momentos. Acho que é justo dizer que, por cerca de dois anos, acho que senti, e sei que Mary assim se sentiu, e acho que os outros provavelmente sentiram o mesmo, esse tipo de pensamento: “Que diabos estamos fazendo aqui? Parece que estamos vagando em um deserto intelectual.” Firmemente, como acreditávamos que o modelo existente não é adequado para esse propósito, na verdade seria uma tarefa muito maior reunir algo que que se mantivesse unido do ‘colocar seu dinheiro onde sua boca já está’  [em algo seguro, já dado] – como dizemos no Reino Unido,  Por isso foi muito estressante e às vezes muito difícil, mas emergimos do outro lado com um documento em evolução e imperfeito, mas acho que nos sentimo-nos muito orgulhosos.

Morrill: O que você acha que o P.A.S. realizou? Como você deseja que seja usado, e como isso mudaria o pensamento social e profissional se ele for adotado?

Johnstone: Não tínhamos ideia de como isso iria se desenvolver e é ainda algo em evolução. Eu não sei aonde isso irá dar ou como será. Se for de fato totalmente implementado, a paisagem aparecerá bem diferente. Eu acho que é realmente difícil conceituar, porque se está trazendo algumas questões realmente fundamentais, como: “necessitamos de um sistema de saúde mental?” Nem todas as culturas e países tiveram ou têm um sistema de saúde mental. Nós precisamos mesmo de um? Essa é uma grande questão.

Em um nível mais imediato, nós deliberadamente não definimos respostas específicas sobre “Como eu poderia trabalhar de maneira diferente com essa pessoa?” Ou “Como os serviços podem parecer de maneira diferente?” Porque queríamos que isso fosse um recurso conceitual, um conjunto de ideias. Cabe às próprias pessoas pensar em como elas poderão colocá-lo em prática. Queremos colaborar, deixar que as pessoas façam o que parece ser útil, porque elas serão os especialistas em seu ambiente e em sua posição. A segunda etapa do projeto é que isso aconteça na medida em que estiver acontecendo. Esperamos receber feedback sobre isso.

Esperamos aprender como as pessoas o estão usando, o que funcionou, o que não funcionou e assim por diante. Eu acho que o que nós queríamos principalmente alcançar era algum senso de apoio para as pessoas que querem pensar e fazer as coisas de maneira diferente ou ver suas vidas de maneira diferente – algumas ideias para que eles ponham em prática para levá-las mais adiante. É assim que parece estar funcionando. Isso é ótimo. É uma jornada em andamento, então vamos ver.

Morrill: Como os objetivos centrais do P.A.S. se encaixam ou se chocam com o movimento para globalizar a saúde mental?

Johnstone:  Um dos maiores escândalos de nossa era, penso eu, não é apenas que o modelo de diagnóstico está falhando de forma abrangente na maioria dos países industrializados ocidentais nos quais foi desenvolvido, mas que ao mesmo tempo – e isso pode não ser uma coincidência – esteja sendo exportado pelo mundo todo.

Isso geralmente é visto como sendo bom, e tenho certeza de que as pessoas estão motivadas para o bem, a maioria delas, ao promoverem isso. Embora não esteja tão segura quanto às empresas farmacêuticas.  Mas acho que estamos perto demais para ver o que o escandaloso que isso é. Isso me lembra bastante como há cem anos, 80 anos atrás, o que ocorria com os missionários exportando o cristianismo, obedientemente e bem motivados.  Mas na verdade isso é em certo sentido semelhante, e diria que é até mesmo mais prejudicial. É uma forma de colonização e é insidiosa, porque trata-se de conquistar as mentes das pessoas e persuadir as pessoas de que isso é o que elas querem, essas maravilhosas novas formas científicas ocidentais de tratar as chamadas doenças. Uma das fortes mensagens do P.A.S., esperamos, é uma mensagem de respeito pelas muitas formas diferentes, culturalmente específicas e culturalmente apropriadas, de entender, expressar e tratar o sofrimento em todo o mundo.

Isso é muito diferente da perspectiva do DSM, porque a perspectiva do DSM tem um grande problema em tentar acomodar expressões de sofrimento culturalmente específicas. Porque se estas são doenças médicas, elas pareceriam mais ou menos as mesmas, não é mesmo? Diabetes, uma perna quebrada, malária, ou o que quer que seja pareceria ser mais ou menos o mesmo, onde quer que aconteça. Expressões de sofrimento psíquico podem parecer extremamente diferentes. Podem parecer extremamente diferentes ao longo do tempo, assim como entre culturas. Nos termos da Estrutura de Significado de Ameaça de Poder, isso absolutamente faz sentido porque um dos nossos principais argumentos é que, em vez de entender o sofrimento através de padrões biológicos, padrões que são emprestados dos tipos de padrões que vemos quando as coisas dão errado em nossos corpos, precisamos entender o sofrimento através de padrões organizados por significado. Eles são organizados pelo significado, não pela biologia, que é um grande salto conceitual, um dos saltos conceituais fundamentais que acho que fizemos. Precisamos estar pensando sobre como esses padrões são baseados ou organizados por significados sociais e culturais, não pela biologia e algo que deu errado com nossos corpos.

Assim que você se depara com isso, percebe, do ponto de vista do quadro de referências, é claro, expressões e experiências de sofrimento psíquico vão parecer muito diferentes culturalmente, porque são culturas diferentes com significados, normas, significados e pressupostos diferentes. Isso define o cenário para dizer, bem fantástico. Se isso funciona, é ótimo. Na verdade, ir além disso e dizer que pode haver coisas que podemos aprender com culturas não-ocidentais não industrializadas, em vez do contrário. “Vamos impor nossas visões ‘modernas’”.

Morrill: Que críticas você recebeu e como a psiquiatria respondeu ao P.A.S.?

Johnstone: Bem, os psiquiatras variam. Tem sido interessante porque há um grupo de psiquiatras no Reino Unido chamado Rede de Psiquiatria Crítica, que são críticos muito diretos do modo como a psiquiatria funciona. Fui convidada para falar em sua conferência anual este ano. Eles foram muito solidários, muito interessados, muito acolhedores.

Outros psiquiatras, é claro, viram isso de maneira diferente e, como esperado, têm, bem, gosto de pensar que a linha usual de defesa vai ignorar, atacar, assimilar.

Qualquer abordagem que desafie o status quo que você tende a ver: ignorar, vamos fingir que ninguém disse isso, atacar, vamos rasgar isso, assimilar– de certa forma, a fase mais perigosa, porque é como “Vamos pegar alguns pedaços e partes disso, mas vamos ignorar a mensagem fundamental ” e todo o road showcontinua como antes. Teremos psiquiatria como antes, mas teremos um grupo de ouvidores de vozes por meia hora uma vez por semana enfermaria, onde damos às pessoas algumas estratégias de enfrentamento e, ao mesmo tempo, tudo continuará como antes. Embora, curiosamente, pareçamos ter ido direto para a fase de ataque com o quadro de referências. Eu não sei o que isso significa, mas eu quero dizer que é realmente muito maior do que, como às vezes é inadequadamente dito, psiquiatria versus psicologia. Trata-se de uma forma de pensar que está profundamente enraizada em todas as nossas mentes, em todos os profissionais de qualquer formação.

Acho que é importante ouvir tudo que volta para você, mas algumas coisas me parecem bastante estranhas. Por exemplo, uma das grandes críticas que temos recebido é que “Seu quadro de referências carece de evidências”. Bem, o modelo de diagnóstico não é evidenciado, com certeza. Na verdade, temos 70 páginas de referências e uma visão geral das evidências. Algumas das críticas menos construtivas são: “Você é antipsiquiatria”, que, no Reino Unido, é uma forma generalizada de desacreditar você.

O sistema não vai mudar facilmente, e por sistema quero dizer todos os profissionais que estão envolvidos nele. Mas, como eu disse, não é principalmente para onde estamos mirando. Acho que chegou a hora, tanto quanto podemos, de nos afastarmos de todas essas coisas e promovermos boas práticas e práticas diferentes onde pudermos e onde houver pessoas dispostas a ouvir e experimentar coisas novas.

Morrill: Houve uma crítica ao envolvimento dos usuários e sobrevivente no projeto P.A.S. Você pode discutir essas críticas, assim como suas respostas a elas?
Johnstone: Temos tido comentários realmente, realmente emocionantes, vindos de pessoas específicas que disseram: “Eu vejo minhas dificuldades de uma maneira muito diferente, não preciso me sentir tão diferente, nem culpado ou envergonhado”, e assim por diante. E tivemos algumas críticas muito justas, particularmente que não é muito fácil lê-lo na maior parte da sua forma atual. Eu acho isso justo. Acho que queremos pensar em formas mais acessíveis e estamos fazendo isso.

Há pessoas que dizem: “Não parece realmente se encaixar ou descrever-me”. Isso é absolutamente bom. E há pessoas que estão felizes com o modelo de diagnóstico que se encaixa e se adequa a elas, e isso é absolutamente bom também, porque não é nosso objetivo, nem está ao nosso alcance, impor esse quadro de referências às pessoas. É para as pessoas pegarem se quiserem.

Nós tivemos algumas críticas bastante iradas que eu acho que são baseadas em mal-entendidos e eu não posso culpar ninguém por não ler todo o documento – é longo – mas o risco é você pegar ideias que não são realmente o que dissemos . Um dos comentários regulares que recebemos é: “Eu preciso do meu diagnóstico para o acesso ao bem-estar e ao serviço, e você quer tirar o meu diagnóstico.” E também, “O sistema vai dar pulos com isso e dizer ‘oh, essas pessoas não são doentes, não precisamos dar-lhes apoio’ ”, e assim por diante. Na verdade, nós dissemos claramente, em vários pontos do documento, que a primeira prioridade deve ser proteger o acesso das pessoas a benefícios e serviços, e assim por diante.  Este é um documento para discussão. Não é um plano para serviços ou para agências de benefícios, é uma maneira de discutir ideias.

Eu ainda sustentaria que o atual sistema de benefícios não está funcionando agora e as mesmas pessoas que estão, compreensivelmente, preocupadas com “Isso tornará a vida ainda mais difícil?” Eu acho que seria a primeira a admitir que o sistema é terrível no Reino Unido, e não apenas no Reino Unido. Muitas vezes, o diagnóstico é usado para excluir e incluir pessoas, e a maioria das pessoas está realmente sofrendo e tem que passar por um processo humilhante de se descrever em seu pior dia e aceitar um rótulo que possa não ser o mais feliz para ter o mínimo para viver. Este sistema realmente precisa mudar. Precisa mudar de uma maneira que não coloque as pessoas em risco. Mas acho que temos que ter essas discussões.

Há outras pessoas que eu acho que entenderam ou entenderam mal e estão a dizer: “Nós iremos dar a volta pelo país, arrancando o diagnóstico das pessoas e dizendo: ‘você não tem permissão para usar essa linguagem’.” Eu disse claramente que as pessoas têm que ter o direito de descrever suas experiências de uma maneira que faça mais sentido para elas, mas raramente é oferecida a essas pessoas essa escolha. Essa escolha é raramente oferecida às pessoas.

Morrill: Para onde vamos daqui? O mundo da psiquiatria ainda parece ser principalmente governado pelo DSM. O P.A.S. seria como uma causa perdida, se for esse o caso?

Johnstone: Não parece uma causa perdida porque, na minha opinião, estamos realmente testemunhando o desmoronamento de todo um paradigma. Com ou sem o P.A.S., os dias do paradigma de diagnóstico estão contados. Se você ler o material de Thomas Kuhn, a ‘Estrutura das Revoluções Científicas’, estamos vendo todos os sinais da queda de um paradigma. Estamos vendo contradições maciças dentro do paradigma, tentativas desesperadas de reforçá-lo, uma montanha de evidências que não são corretas, ou que outras formas são um caminho melhor para se seguir.

Uma das coisas que Thomas Kuhn diz é que todas essas coisas podem acontecer e, no entanto, o paradigma não mudará fundamentalmente a menos que ou até que haja outro lugar para onde ir. Bem, eu acho que há realmente um número de lugares para ir, e eu acho que a perspectiva informada pelo trauma, que nós desenhamos em grande parte no quadro de referências, é um deles, mas eu acho o quadro em si, espero eu, também possa ser visto como suporte adicional para esse tipo de abordagem, e como um lugar para se ir de fato. Se se tornar uma pequena parte desse inevitável processo, e eu acho que é inevitável, então ficaremos satisfeitos e orgulhosos.

Morrill: Isso é animador de ouvir.

Johnstone: Como você vê, eu sou totalmente otimista.

Morrill: Algo mais a acrescentar?

Johnstone: Eu penso que não. Eu gostaria de encorajar as pessoas a ler esses links que você irá colocar mais adiante para que conheçam algo mais. Faça o que quiserem desse material.

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Ouçam o audio aqui

Mais informações à respeito do Quadro de Referências Poder, Ameaças e Sentido:

The British Psychological Society: Introducing the Power Threat Meaning Framework (legendado)

Dra. Lucy Johnstone: interview to MIA radio.

A proposta discutida em Nova Zelândia e Austrália (parte I)

Reflections on responses to the power threat meaning framework one year on. 

 

A Atenção Básica Tem Medo da Esquizofrenia

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O artigo Por trás da máscara da loucura: cenários e desafios da assistência à pessoa com esquizofrenia no âmbito da Atenção Básica, publicado na revista Fractal, analisa os cenários e os desafios no atendimento de pessoas diagnosticadas com esquizofrenia na Atenção Básica.

A pesquisa exploratória e descritiva foi realizada no município de Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte, junto aos médicos e enfermeiros que atuam no Estratégia Saúde da Família (ESF), pelo fato de serem os profissionais que estão em contato direto com a população. Foram selecionados cinco enfermeiros e cinco médicos entre oito Unidades Básicas de Saúde. O roteiro que orientou a entrevista foi formado por questões que consideravam as concepções sobre esquizofrenia e seus efeitos, as políticas públicas de saúde mental e o papel da ESF na promoção da saúde mental. Após as entrevistas, foi realizada a análise de conteúdo através da análise e categorização das respostas obtidas nas entrevistas e, assim, avaliou-se a presença de semelhanças e diferenças nos discursos registrados.

A partir da análise das falas, foram gerados quatro categorias temáticas de discussão: Conceituações dos profissionais acerca da esquizofrenia; Assistências às pessoas com esquizofrenia na Atenção Básica – da ideal à real; Entraves para a assistência em saúde à pessoa com esquizofrenia; Possibilidades para a melhoria do trabalho em saúde mental.

Na categoria conceituações dos profissionais acerca da esquizofrenia, o primeiro conceito que surgiu foi “doença incapacitante”,  com sequelas psíquicas e do convívio social. Os profissionais da Atenção Básica manifestam medo de lidar com usuários considerados esquizofrênicos. O segundo conceito que emergiu foi o de “doença que altera o comportamento humano”, nas falas estiveram presentes o desconhecimento ou uma definição reducionista sobre as causas e sintomas do transtorno. Por último, o terceiro conceito é que a esquizofrenia exige diagnóstico e tratamento adequado.

“[…] Eu tenho medo de esquizofrênico! […] Já tive a oportunidade de trabalhar, de fazer visitas a pacientes esquizofrênicos e eu tinha muito medo, sempre ficava na retaguarda porque eu nunca sabia qual reação ele teria. Infelizmente é isso que eu penso.” (profissional de saúde F)

Outra categoria, a de assistência à pessoa com esquizofrenia na Atenção Básica – da ideal à real, o primeiro item identificado pelos profissionais foi o atendimento multiprofissional, mas observar -se uma transferência de responsabilidade do profissional de saúde básica para profissionais de serviços especializados, como o CAPS ou o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, que conta com psiquiatras e psicólogos. Outro item destacado foi a ênfase na terapêutica medicamentosa, dessa forma os profissionais reforçam o modelo biomédico da contenção farmacológica dos sintomas. O último item, foi o papel central da família na adesão e manutenção do tratamento.

“[…] trabalhar a família de modo que permita que esse pessoal esteja realmente fazendo uso do medicamento.” (profissional de saúde G)

” O que é feito no PSF não é nem  acompanhamento da medicação, mas talvez a troca de receitas para que o paciente ele tenha acesso a sua medicação.” (profissional de saúde H)

Já na categoria entraves para assistência em saúde à pessoa com esquizofrenia, três aspectos aparecem nos depoimentos:  a falta de envolvimento e participação da família no tratamento, a ausência de ações e atividades voltadas às pessoas com esquizofrenia e a dificuldade de articulação entre a Atenção Básica e os serviços especializados.

“[…] A família é omissa! A comunidade é rotulante! Para a comunidade  todo mundo é doido e não esquizofrênico! […] A família é omissa tanto no cuidado como na socialização do problema […] (Profissional de saúde F)

Por último, a categoria possibilidades para melhoria do trabalho em saúde mental, a primeira estratégia mencionada foi o fortalecimento do processo de educação permanente dos profissionais para melhorar a qualidade da assistência, enquanto a segunda estratégica citada concerne a participação da família no tratamento. Os participantes da pesquisa também identificam outros instrumentos de intervenção que poderiam ser fortalecidos como a visita domiciliar, que parece ser a única alternativa que estimula o trabalho com a esquizofrenia.

“[…] É muito complicado porque ninguém se aproxima dessa pessoa e ela não vai ter u cuidado e assim ela vai sentir rejeitada e não vai buscar esse cuidado. Vai se sentir doido realmente! Numa crise ele vai para um hospital psiquiátrico de onde ele volta pior do que ele foi, que geralmente é isso que acontece. Então esse é o fator complicador. A comunidade rotula e a família esconde o caso dentro de casa […].” (Profissional de saúde F)

Os autores consideram a partir do estudo, que a assistência às pessoas consideradas esquizofrênicas na atenção básica não identifica as maiores necessidades dessa clientela, se distanciando do princípio da integralidade. Mostrou-se um trabalho totalmente dependente do que é desempenhado no CAPS, no setor hospitalar psiquiátrico e no setor privado, apresentando baixa autonomia nas intervenções. Algumas soluções propostas seriam a qualificação permanente dos profissionais da atenção básica, efetivação de um sistema de referência e contrarreferência entre atenção básica e serviço especializado, a efetivação das políticas públicas em saúde mental, promoção de recursos por parte da iniciativa pública para desenvolver para desenvolver estas ações e a diversificação dos instrumentos de intervenção que ampliem as ações para a comunidade.

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SILVA, Ailton Pereira da et al . “Por trás da máscara da loucura”: cenários e desafios da assistência à pessoa com esquizofrenia no âmbito da Atenção Básica. Fractal, Rev. Psicol.,  Rio de Janeiro ,  v. 31, n. 1, p. 2-10,  abr.  2019 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922019000100002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  jul.  2019.  http://dx.doi.org/10.22409/1984-0292/v31i1/5517.

Um dia em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD)

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A revista Radis publicou uma matéria sobre o que é um CAPSad, após passar um dia inteiro frequentando o CAPS Miriam Makeba e acompanhando a rotina do local. A matéria traz ainda relatos de pessoas que frequentam o local.

A Radis faz um excelente trabalho mostrando os benefícios da Reforma Psiquiátrica, que permitiu o atendimento humanizado e em liberdade das pessoas em sofrimento psíquico. Mas a Reforma está sendo ameaçada pela nova Política Nacional de Saúde Mental e com as Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas.

“A nota [Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas] é parte de uma estratégia consciente e bem determinada de desmonte do SUS e da reforma psiquiátrica e de restauração e ampliação dos interesses privados que atuam na saúde pública” (Paulo Amarante)

Já para o psiquiatra Edmar Oliveira, ex-diretor do Instituto Municipal Nise da Silveira, o ataque do Governo desfigura e destrói os pressupostos da Reforma.

“Ou seja, cria condições de violação dos direitos humanos, retira o tratamento dos dispositivos comunitários, dispensa a inclusão social e acaba com o modelo substitutivo, requisito principal da Reforma”(Edmar Oliveira)

Todos os entrevistados descreveram como o CAPS os ajudou a superar suas dificuldades, contando com o apoio de uma equipe multidisciplinar formada por 43 profissionais entre médicos, enfermeiros, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, durante 24 horas por dia.

“Isso aqui não pode acabar, se não, vão acabar com a gente também. Vai ser uma calamidade. No Caps eu me sinto protegida e segura”.(Fabiana Gomes Barbosa – Usuária do CAPSad Miriam Makeba)

A matéria é muito relevante para se entender quais são as mudanças nos serviços de saúde mental com as novas leis, bem como para se ter uma ideia de como funciona um CAPS e porque é um espaço tão relevante para a sociedade.

A matéria traz uma entrevista muito importante com o psiquiatra Edmar Oliveira, onde ele diz que “SEM DEMOCRACIA, O MANICÔMIO VENCE“.

Leia a matéria completa → (Link)

Por que Mad in Italy?

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A Comunidade Mad ganha mais uma parceria. O Mad in Italy se junta à comunidade Mad nos Estados Unidos, Reino Unido, Finlândia, Suécia, Espanha, Ásia e a nós da língua portuguesa.  Sejam bem-vindos os novos e as novas companheiras, permitindo que ampliemos a nossa compreensão dos desafios e que troquemos experiências de como superar as limitações do atual paradigma de assistência psiquiátrica. (Editores do Mad in Brasil).

O artigo descreve algumas das características fundamentais dos serviços de saúde mental na Itália. Pretende estimular um diálogo tanto dos aspectos positivos quanto dos negativos, prestando atenção para algumas das estatísticas mais relevantes que os caracterizam. Os dados mostram uma imagem bastante crítica da saúde mental a denotar ineficiências substanciais na continuidade dos serviços. Dois dos aspectos mais críticos são o uso substancial de serviços hospitalares e a psicofarmacologia. Em essência, o artigo define o tom para intervenções sobre os diferentes aspectos do sistema de saúde mental, que, esperamos, serão discutidos com o senso crítico e respeito apropriados.

MAD IN ITALY está agora se juntando à ‘Família MAD’ para contribuir para a difusão de uma abordagem crítica e construtiva da saúde mental, que destaca os princípios frequentemente negligenciados da recuperação e do contexto psicossocial que contribuem para uma boa qualidade de vida. Somos muito gratos a Robert Whitaker e a James Moore pelo encorajamento, sugestões preciosas e assistência em relação à conceituação, desenvolvimento e implantação do site MAD IN ITALY.

Os principais membros da nossa equipe, em ordem alfabética, são: Francesca Bagaglia, psicóloga; Laura Guerra, farmacologista; Marcello Maviglia, psiquiatra e especialista em medicina da dependência química. Para os interessados, nossas biografias estão disponíveis em ‘About’. Embora tenhamos origens e experiências educacionais diferentes, compartilhamos uma visão criticamente construtiva em relação ao campo da saúde mental. Nós esperamos estimular pensamentos vivazes e provocadores e a trocas entre os membros, visitantes e colaboradores do MAD IN ITALY.

Desde o início desta iniciativa, deve ficar claro que nos opomos à atual estreiteza biológica que domina a psiquiatria ocidental e que tem contribuído para a marginalização do planejamento e intervenções psicossociais, sob a noção errônea de que os tratamentos farmacológicos para o sofrimento emocional são absolutamente seguros, confiáveis e rentáveis e que são baseado em evidências científicas inegáveis (1, 2). Na mesma linha, acreditamos fortemente que os diagnósticos em psiquiatria não indicam a presença de uma doença, mas sim a ocorrência de sofrimento emocional, mergulhado que está em aspectos sociais, culturais e espirituais e que, portanto, requer uma narrativa mais completa e maior do que aquela com base em uma mera regulação de neurotransmissores (3).

Além disso, é fundamental enfatizar que a dependência do modelo biológico se desenvolveu em um contexto de progressivo e profundo enfraquecimento do sistema de bem-estar social em todo o mundo, incluindo a Itália. As duas tendências agem sinergicamente. Na realidade, ao se concentrar no alegado mau funcionamento do cérebro biológico, esse modelo desencoraja o desenvolvimento de habilidades de recuperação e de redes sociais tão necessárias para o processo pessoal de recuperação do sofrimento emocional. Na mesma linha, é discutível que a atual dependência de medicações psicotrópicas para diagnóstico psiquiátrico, tratamento hospitalar e internação involuntária, tenha sido estimulada e sustentada pela interseção de forças ideológicas e financeiras que também são responsáveis pelo enfraquecimento do sistema de bem-estar social na promoção da saúde e prevenção da doença (4).

Essas dinâmicas criaram um poderoso processo mundial de medicalização da experiência de sofrimento emocional para todas as faixas etárias, transformando-a em sintomas e diagnósticos ao entrar em contato com o médico, levando à terapia altamente dependente de medicamentos (5, 6). Devido à globalização dos modelos e práticas de atenção à saúde, a mudança para a medicalização do sofrimento emocional também tem sido sentida consideravelmente na Itália, durante as últimas três décadas (7).

Nesse contexto, é difícil entender se o sistema de saúde mental italiano, que atualmente demonstra uma forte dependência aos medicamentos e aos serviços psiquiátricos hospitalares, está ganhando consciência dessa involução criando estratégias de planejamento concretas no território, para além dos limites dos workshops, conferências, painéis e publicações sobre o assunto. Infelizmente, as informações atualmente disponíveis não ajudam a desenvolver uma imagem clara de sua eficiência em atender às necessidades da comunidade, devido a lacunas relacionadas à coleta de dados, análise, opiniões conflitantes e visões ideológicas que não são exclusivas do sistema de saúde mental italiano, mas que são, mais ou menos, comuns a todos os sistemas de saúde mental do mundo.

Embora durante as últimas quatro décadas desde a implementação da Lei de Saúde Mental número 180 tenha havido uma expansão dos serviços de saúde mental e um grau de consolidação de intervenções baseadas na comunidade, um olhar crítico sobre os dados e uma atenção cuidadosa para as preocupações expressas pelos grupos de defesa e pelos usuários, sugerem fortemente que existem lacunas problemáticas no continuum de cuidados, impedindo bons resultados, incluindo uma boa qualidade de vida (8,9). Expandindo essas questões, os dados destacam a dependência de tratamentos farmacológicos e hospitalares, a utilização de instalações residenciais para a ampliação dos serviços psiquiátricos, nível de pessoal insuficiente em ambientes para as crises agudas, bem como uma alta variabilidade no acesso a serviços e na qualidade de atendimento em diferentes regiões (8, 9 10).

O relatório SIEP (Sociedade Italiana de Epidemiologia Psiquiátrica) de 2018, fornece alguns dados cruciais sobre a utilização de serviços, sendo por conseguinte muito relevantes para se compreender questões relacionadas à qualidade do atendimento: a taxa geral de readmissão não planejada dentro de 30 dias para serviços de internação está em um nível de 17,7% e a taxa de acompanhamento ambulatorial após a alta hospitalar em até 14 dias é de cerca de 40% (10). Esses dados não são muito tranquilizadores, pois sugerem que o sistema não está focado em proporcionar tratamento comunitário eficiente, conforme sempre foi defendido pelo Dr. Basaglia, o criador da Lei Número 180, que visava criar um sistema de saúde mental baseado na comunidade no qual o indivíduo com experiência de sofrimento emocional teria um papel central na decisão do curso da recuperação pessoal (8, 9).

Na verdade, os dados podem ser interpretados como falhas do conceito de assistência psiquiátrica comunitária. Como já foi dito, essas lacunas acompanham a esmagadora difusão do tratamento psicofarmacológico. De fato, os dados da AIFA (agência de medicamentos italiana) mostram que cerca de 12 milhões de italianos estão tomando medicamentos psiquiátricos.

Também a Itália ocupa o quarto lugar entre os países europeus para o número de prescrições de medicamentos psicotrópicos (11). Além disso, uma pesquisa realizada em 2016 pelo Instituto Mario Negri de Pesquisa Farmacológica em Milão constatou que cerca de quatrocentas mil crianças e adolescentes são tratados anualmente por transtornos mentais pelo Serviço Nacional de Saúde da Itália e que entre vinte e trinta mil deles recebem drogas psiquiátricas (12).

Além disso, os dados sobre a utilização de drogas psiquiátricas na Itália são parciais e devem ser lidos com cautela, pois podem representar uma estimativa conservadora. De fato, podem não levar em conta o número de medicamentos psiquiátricos obtidos sem prescrição formal. Além disso, existem diferenças regionais na metodologia de coleta de dados que dificultam o quadro (12, 13). No mesmo contexto, os dados, com todas as reservas já expressas acima, mostram diferenças regionais substanciais na utilização de TSO (Tratamento Involuntário), não seguindo necessariamente a distribuição de recursos baseados na comunidade na península italiana. Dados de 2016 mostram que na Sicília foram executados quase 30 TSOs por 100.000 habitantes, em comparação com uma média nacional de 16 por 100.000 habitantes. Além disso, Puglia, Sardenha, Calábria e, surpreendentemente, Emilia-Romagna, apresentaram percentuais acima da média (14). Na realidade, uma análise comparando a razão de diferenças regionais para a taxa de utilização de TSO é extremamente desafiadora, pois a sequência de eventos que levam a um episódio é complexa e inclui disponibilidade de recursos, fatores ideológicos, sociológicos e culturais que conspiram para maior ou menor utilização das taxas.

Outro aspecto fundamental na compreensão do panorama completo é a taxa de suicídio, que é relatada recentemente como em cerca de 7 casos por 100.000, com diferenças regionais esperadas. A maior parte da consumação do suicídio é realizada por homens (a proporção é de 3 para 1 em comparação com as mulheres), entre as faixas etárias de 45 e 50 anos. No entanto, existem muitos casos entre adolescentes e idosos. As taxas de suicídio têm aumentado nos últimos anos, especialmente na faixa etária entre 24 e 65 anos, provavelmente por questões relacionadas à economia. É a segunda causa de morte entre os jovens (15). Esses dados são bastante consistentes com as tendências globais, com as devidas diferenças e exceções.

Vale a pena observar novamente que a utilização desses dados para um planejamento convincente exigiria análises, reflexões e discussões contínuas entre especialistas, provedores e indivíduos com ‘experiência vivida’, coletados nas diferentes áreas e regiões da Itália.  Pelo que é do conhecimento do autor, considerando que há fóruns frequentes em toda a península italiana com foco em questões de saúde mental, não há um local específico para essa finalidade. Por exemplo, embora esteja claro que um indivíduo em sofrimento psíquico tem menos recursos de saúde mental à sua disposição em Palermo do que em Trento, os dados atualmente disponíveis não indicam com certeza que essa variação se traduza em resultados significativamente diferentes.

Parafraseando Gisella Trincas, presidente nacional da UNASAM (União Nacional das Associações de Saúde Mental), o verdadeiro problema do sistema italiano de saúde mental é a falta de continuidade dos cuidados, a ausência ou escassez de percursos de tratamento e a falta de integração na prestação de serviços (16). Na mesma linha, abordagens de recuperação que enfatizem a importância da ‘experiência vivida’, os determinantes sociais da saúde, as questões culturais incluindo a saúde emocional dos imigrantes, expostos a experiências traumáticas esmagadoras, parecem ainda não encontrar um lugar definido na prática clínica diária e nos sistema de saúde mental, embora sejam abordados durante entrevistas aos meios de comunicação, palestras, conferências, como já é feito para os outros temas fundamentais de saúde metal. Vale ressaltar que o termo recuperação se aplica àqueles indivíduos que vivenciaram sofrimento emocional e que buscam uma existência significativa e gratificante, na qual a autonomia, a dignidade e a qualidade de vida desempenhem um papel essencial (17).

Um dos componentes essenciais para um processo adequado de recuperação é a assistência prestada por especialistas ex-usuários, indivíduos com histórico de sofrimento emocional, que adquiriram as habilidades para gerenciá-lo e estão dispostos a ajudar os outros em seu processo de recuperação (18). Embora a Itália tenha, sem dúvida, uma tradição respeitável em relação à conceituação e à promoção de sistemas de assistência baseados na recuperação (por exemplo, os princípios estabelecidos por Basaglia e sua equipe), eles estão difusamente espalhados no território, com exceção de alguns iniciativas inovadoras em várias comunidades onde os princípios de recuperação e o papel dos especialistas entre ex-usários são seriamente levados em consideração para a sua inclusão no meio terapêutico (18,19, 20).

Outro desenvolvimento positivo na área da recuperação é o projeto em curso relativo à ‘abordagem do Diálogo Aberto’, que visa adaptar o modelo do Diálogo Aberto da Finlândia à realidade cultural, social e cultural do sistema de saúde mental italiano. O projeto, que começou em março de 2015, envolve oito departamentos de saúde mental italianos de seis cidades diferentes da Itália (Savona, Turim, Trieste, Modena, Roma e Catânia) (21). O foco do projeto é essencialmente o tratamento de crises psiquiátricas através do envolvimento rápido e construtivo da família e redes sociais que ajudarão o indivíduo a desenvolver ferramentas de recuperação para superar as dificuldades que interferem para a resolução da crise e o progresso no caminho da recuperação. Será interessante ver, caso o projeto mostre resultados positivos, como a intervenção será integrada na prestação de serviços de saúde mental.

Em resumo, no momento, embora essas questões sejam discutidas em vários locais, uma mudança clara de um modelo biológico e hospitalar para um sistema baseado na comunidade não está acontecendo, embora o caminho tenha sido traçado há muito tempo. Nesse contexto, o sistema italiano de saúde mental, como a maioria deles em todo o mundo, luta para aceitar um modelo baseado nos princípios da Recuperação, que destaca as necessidades individuais e comunitárias de saúde mental, os determinantes sociais do sofrimento emocional, a integração física e mental, o atendimento psicológico e a qualidade de vida. Como se pode inferir do que acaba de ser dito, abordaremos questões críticas que interferem na mudança para um sistema de assistência baseado na comunidade. Em nossos esforços na condução de um discurso científico alternativo honesto e transparente, publicaremos material e informações com base em evidências confiáveis. Isso inclui relatórios e estudos de evidência qualitativos e baseados na prática, que destaquem o conhecimento desenvolvido, aperfeiçoado e implementado em diversos contextos do mundo real, em oposição aos locais artificiais que são o contexto dos ensaios clínicos randomizados (22).
Desnecessário dizer que estou me referindo ao grande papel desempenhado pelos contextos social, cultural, econômico, ideológico e político no desenvolvimento e persistência do sofrimento emocional (23). Nesse contexto, enfatizaremos o papel da ‘experiência vivida’ e o testemunho de pessoas que vivem e enfrentam diariamente a realidade do sofrimento emocional como uma forma válida e confiável de conhecimento baseado na prática (24).

Em conclusão, apesar de entender que resolver os problemas de qualquer sistema de saúde mental é uma tarefa monumental, vemos o papel de MAD IN ITALY como parte do diálogo construtivo ajudando o leitor a abordar a experiência de sofrimento emocional contextualmente e, esperançosamente, gerar debates e iniciativas que possam estimular mudanças reais. Nesta perspectiva, vamos receber posts, artigos, blogs, comentários e críticas relevantes para o funcionamento e / ou mau funcionamento do sistema de saúde mental italiano. OBRIGADO!

Referências:
1. Dr. Breggin’s best overview Critique of psychiatric drugs – Peter Breggin https://breggin.com/dr-breggins-best-overview-critique-of-psychiatric-drugs/
2. Joanna Moncrieff, The Myth of the Chemical Cure: A Critique of Psychiatric Drug Treatment, 2007, Springer, New York.
3. Kinderman P, Read J, Moncrieff J, (2013); Drop the language of disorder. Evidence-Based Mental Health; 16:2-3.
4. The Conversation, How neoliberalism is damaging your mental health , January 30, 2018 (https://theconversation.com/how-neoliberalism-is-damaging-your-mental-health-90565)
5. Heath I. Commentary, (1999); There must be limits to the medicalisation of human distress. BMJ.;318:439
6. P. Thangadurai and K. S. Jacob; (2014) Medicalizing Distress, Ignoring Public Health Strategies Indian J Psychol Med. Oct-Dec; 36(4): 351–354.
7. Psicopillole. Per un uso etico e strategico dei farmaci (2017) di A. Caputo e R. Milanese Recensione del libro https://www.stateofmind.it/2018/05/psicopillole-caputo-milanese/
8. Barbui, C., Papola, D., & Saraceno, B. (2018); Forty years without mental hospitals in Italy. International journal of mental health systems, 12, 43. doi:10.1186/s13033-018-0223-1
9. Come posso prendermi cura della mia Salute Mentale – AIRInforma, http://informa.airicerca.org/it/2018/04/23/prendermi-cura-salute-mentale/
10. SIEP Salute Mentale in Italia La Mappa delle Disuguaglianze http://www.condicio.it/allegati/353/Salute_mentale_Italia_2_2018.PDF
11. AIFA homepage http://www.aifa.gov.it/content/trend-consumo-psicofarmaci-italia-2015-2017
12. Psicofarmaci e minori – Istituto Mario Negri, http://www.marionegri.it/media/sezione_media/rassegna_stampa/rassegna_2015/rs_Psicofarmaci_e_minori.pdf
13. Cosa ci dicono i dati sul consumo di psicofarmaci in Italia – VICE https://www.vice.com/it/article/neg9dd/dati-sul-consumo-di-psicofarmaci-in-italia
14. Procedura TSO, legge Basaglia e abusi | Estreme Conseguenze; https://estremeconseguenze.it/2018/12/17/cose-da-pazzi/
15. Interview with Prof. Maurizio Pompili,In Italia 4000 suicidi l’anno, la metà evitabili – Repubblica.it https://www.repubblica.it/salute/2018/09/10/news/in_italia_4000_suicidi_l_anno_la_meta_evitabili-206050272/
16. Gisella Trincas su Salute Mentale, OPG e Diritti Umani | Unasam; http://www.unasam.it/gisella-trincas-su-salute-mentale-opg-e-diritti-umani/
17. What’s Recovery? SAMHSA’s Working Definition. https://store.samhsa.gov/product/SAMHSA-s-Working-Definition-of-Recovery/PEP12-RECDEF
18. Peers; https://www.samhsa.gov/brss-tacs/recovery-support-tools/peers
19. Luigi Basso, Ileana Boggian, Paola Carozza, Dario Lamonaca & Alessandro Svettini (2016) Recovery in Italy: An Update, International Journal of Mental Health, 45:1, 71-88, DOI: 10.1080/00207411.2016.1159891
20. Peer working. L’orientatore esperto in supporto fra pari in salute mentale;
https://www.ausl.re.it/comunicazione/congressi/xiii-settimana-della-salute-mentale-20-settembre-1-ottobre-2018
21. Raffaella Pocobello; Marcello Macario; Giuseppe Tibaldi (2016); Open Dialogue UK Conference “Towards openness and democracy in mental health services. Open Dialogue and related approaches in the UK and internationally” 2nd February 2016 – Friends House, Euston, London.
22. Hellerstein D. J. (2008). Practice-based evidence rather than evidence-based practice in psychiatry. Medscape journal of medicine, 10(6), 141.
23. WHO and the Calouste Gulbenkian Foundation (2014), Social determinants of mental health.
https://www.who.int/mental_health/publications/gulbenkian_paper_social_determinants_of_mental_health/en/
24. Louise Byrne, Brenda Happell & Kerry Reid-Searl (2015) Recovery as a Lived Experience Discipline: A Grounded Theory Study, Issues in Mental Health Nursing, 36:12, 935-943, DOI: 10.3109/01612840.2015.1076548

Marcello Maviglia

(Do corpo editorial do Mad in Italy)

Informe da ONU Critica a Abordagem Biomédica para a Saúde Mental

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(Photo Credit: UN Photo/Kim Haughton/Flickr Creative Commons)

Um novo informe do Relator Especial das Nações Unidas, Dainius Pūras, enfatiza que condições estruturais como pobreza, discriminação e violência são as causas profundas dos transtornos e sofrimento mental. O principal funcionário da ONU no campo da Saúde Mental afirma que os Estados têm a obrigação de promover políticas e práticas que abordem a desigualdade social e a sua desconexão com a promoção do papel dos direitos humanos, da dignidade e da saúde mental.

O Relator Especial observa que a intervenção efetiva em saúde mental tem sido sufocada pelo excesso de confiança em abordagens ultrapassadas, intervenções feitas em nível individual e baseadas no modelo biomédico:

“Os serviços de saúde mental sofrem de um foco excessivo em abordagens ultrapassadas, através das quais a maioria dos recursos é alocada ao tratamento individual para condições diagnosticadas de saúde mental, incluindo medicamentos psicotrópicos e cuidados institucionais. Este desequilíbrio global continua a reforçar uma lacuna de equidade, evidência e implementação ”.

Pūras argumenta que “boa saúde mental e bem-estar não podem ser definidos pela ausência de algum sintoma, mas devem ser determinados pelo ambiente social, psicossocial, político, econômico e físico, o que possibilita que indivíduos e populações vivam uma vida de dignidade, com pleno gozo de seus direitos e em busca equitativa de seu potencial ”.

(Photo Credit: UN Photo/Kim Haughton/Flickr Creative Commons)

Pūras é um médico especialista em saúde mental e saúde infantil. Desde a sua nomeação como Relator Especial sobre o direito de todos a usufruir do mais alto padrão de saúde atingível, ele tem sido um defensor declarado dos direitos humanos (ver artigo dos editores do MIB). No Dia Mundial da Saúde Mental de 2017, Pūras criticou a medicalização da depressão, afirmando que o paradigma neurobiológico é redutor, prejudicial e “deve ser abandonado”.

Em seu último relatório, Pūras continua a enfocar a saúde mental e os direitos humanos como prioridades de desenvolvimento. O relatório destaca que o compromisso de se promover o direito à saúde mental deve incluir a abordagem dos determinantes sociais e relacionais subjacentes da saúde, como a pobreza, a discriminação, o bullying e várias formas de violência.

Por exemplo, o relatório descreve que “a explicação das iniquidades em saúde mental se estende muito além do biológico e individual para o social, econômico e político. A vida das pessoas é muitas vezes limitada por leis injustas, estruturas de governo e poder, e políticas que estratificam a sociedade, afetando profundamente as relações humanas e como as pessoas agem ao longo da vida ”.

Por sua vez, uma abordagem biomédica e orientada para a doença concentra-se estreitamente em intervenções individuais, e não sociais. Em contraste, Pūras defende políticas e estruturas que valorizem e facilitem a conexão social e o acesso a recursos que são componentes vitais para a saúde.

O Relator Especial destaca vários pontos para ajudar a fundir uma abordagem de determinantes sociais e uma abordagem baseada em direitos para a saúde mental. Em primeiro lugar, o direito à saúde é visto como inseparável dos outros direitos humanos, uma vez que possibilita a obtenção de outros direitos e vice-versa. Por exemplo, direitos como a igualdade, os direitos trabalhistas, o direito à moradia, o direito à educação, os direitos ambientais, os direitos culturais, o acesso à justiça e a ausência de discriminação estão todos entrelaçados à saúde. Portanto, escreve Pūras, a responsabilidade do Estado e a participação significativa de todos na tomada de decisões e na ação civil são essenciais.

A estrutura baseada em direitos enfatiza a obrigação dos Estados de cumprir e promover os direitos humanos, a participação, a não discriminação, a igualdade e a assistência internacional baseada em direitos. Também responsabiliza os Estados pela implementação de uma abordagem dos determinantes sociais.

O relatório delineia exemplos de fatores de risco que interferem nos direitos humanos. Estes incluem formas de exclusão social, xenofobia, cortes no bem-estar social, ataques à organização do trabalho, violência contra membros marginalizados na comunidade (por exemplo, mulheres, crianças, indivíduos que se identificam como LGBT), intimidação e poluição ambiental.

De acordo com o relatório, os fatores de proteção que apoiam os direitos humanos envolvem políticas e práticas que não apenas previnem fatores de risco (por exemplo, violência), mas que envolvam proteção através do incentivo à inclusão, bem-estar e investimento em recursos, meio ambiente e educação, para dar alguns exemplos. O Relator Especial sublinha a importância dos relacionamentos em todas as etapas da vida, que incluem a comunidade e a natureza.

Finalmente, o relatório inclui várias recomendações aos Estados. Para garantir o direito à saúde mental, o Relator Especial pede uma redução da coerção, da institucionalização e da medicalização. A abordagem baseada em direitos, portanto, é apresentada como uma alternativa à abordagem biomédica e às práticas de paternalismo e coerção:

A confiança, que é o alicerce das relações terapêuticas, tem sido corroída, particularmente aonde as práticas coercitivas e paternalistas são priorizadas.”

Segundo Pūras, “Iniciativas de advocacy lideradas por usuários, redes de apoio formadas por usuários e ex-usuários e, vitalmente, novos métodos de trabalho, como coprodução baseada na genuína igualdade para pessoas com experiências em saúde mental e enquanto usuárias de serviços psiquiátricos, são essenciais para restaurar a confiança e para construir novas alternativas.”

Iniciativas lideradas pelos sobreviventes e usuários da psiquiatria são destacadas como centrais para dar forma eficaz às intervenções e ao desenvolvimento geral de uma abordagem baseada em direitos para a saúde mental. Conforme indicado no relatório:

“A pesquisa liderada pelos usuários e ex-usuários, com suas tradições emancipatórias na produção de conhecimento e evidências, deve ter a mesma importância do que outras abordagens para a formulação de políticas de saúde mental que estejam em conformidade com as obrigações de direitos humanos.”

O Relator Especial reconhece que a terminologia de ‘saúde mental’ pode, por si só, estar a invocar um discurso próprio ao modelo médico.

“A terminologia na esfera da ‘saúde mental’ é um terreno contestado. Há uma necessidade de se aceitar termos diferentes de acordo com como as pessoas definem suas próprias experiências de saúde mental, diz o Relatório. É bem verdade que a ‘saúde mental’ em si pode sinalizar uma tradição biomédica para explicar e compreender experiências vividas, sofrimento psíquico ou emocional, trauma, audição de vozes ou incapacidade psicossocial. O Relator Especial reconhece as contestações nessa área e a importância do setor de saúde e do modelo médico quando usados apropriadamente.”

O informe continua a esclarecer a opinião do Relator Especial de que a supermedicalização obscureceu os determinantes sociais da saúde e jogou o ônus da saúde sobre o indivíduo. Na busca pelo direito à saúde, o indivíduo pode ter pouco ou nenhum acesso a sistemas de saúde ou pode enfrentar sistemas que se envolvem em práticas ineficazes.

O Relator Especial “desafia as partes interessadas a refletir sobre como o domínio biomédico levou à supermedicalização no setor da saúde, particularmente na saúde mental, desviando recursos de uma abordagem baseada em direitos para a promoção da saúde mental.”

Em meio ao movimento para globalizar o paradigma biomédico da saúde mental, o Relator Especial da ONU pressiona pela priorização dos direitos humanos e por um foco holístico nos determinantes sociais e contextuais da saúde:

“A comunidade global deve priorizar sistemas sustentáveis que permitam e adotem uma abordagem baseada em direitos humanos para a promoção da saúde mental. Os seres humanos, em toda a sua diversidade, são detentores de direitos e não devem ser vistos como objetos de diagnóstico ou portadores de doença ”.

O relatório da ONU pede uma ação urgente para que esse objetivo possa ser alcançado:

“Concepções restritas de determinantes, juntamente com uma confiança excessiva nas explicações biomédicas do sofrimento emocional e das condições de saúde mental, desviam a atenção política das políticas baseadas em direitos e ações que promovem a saúde. Esta questão grosseiramente negligenciada dos direitos humanos requer uma ação urgente ”.

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Pūras, D. (2019). Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health. United Nation Human Rights Council, Forty-first session (24 June–12 July 2019). A/HRC/41/34. Retrieved from: https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/HRC/41/34

Estudo mostra resultados do Diálogo Aberto no Reino Unido

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A abordagem do Diálogo Aberto para o tratamento da saúde mental, que surgiu na Lapônia Ocidental, na Finlândia, fascina os pesquisadores há anos, uma vez que ganhou popularidade por revolucionar o atendimento de pessoas diagnosticadas com esquizofrenia. Um novo estudo testa essas alegações, investigando como clínicos e usuários de serviços experimentam uma versão modificada dessa abordagem adaptada e implementada no Reino Unido.

Os resultados sugerem que, enquanto os clínicos mostraram reações positivas com respeito à abordagem, os usuários do serviço deram respostas mistas. No geral, os pesquisadores indicaram que a experiência dos participantes não foi unânime e qualquer aplicação dessa abordagem merece uma investigação mais aprofundada.

“A resposta de alguns usuários que notaram que se sentiram ouvidos e entendidos nas reuniões de rede indica o potencial valor terapêutico do diálogo aberto e sugere que um teste de controle randomizado é necessário para comparar o diálogo aberto com o tratamento convencional”, os pesquisadores escrevem. 

 

Desde a fundação da moderna psiquiatria ocidental, a esquizofrenia tem sido um distúrbio marcado por um profundo pessimismo e muitas vezes foi considerado uma doença cerebral degenerativa por aqueles que aderiram ao modelo biomédico. Assim, não foi surpreendente quando a abordagem do Diálogo Aberto se tornou famosa, uma vez que passou a relatar resultados esmagadoramente positivos para pacientes com psicose de primeiro episódio. A abordagem se tornou tema do documentário de Daniel Mackler e tem experimentado um aumento de popularidade.

Ao mesmo tempo, devido à ausência de ensaios sob controle randomizado considerados como sendo o padrão-ouro para a pesquisa, têm sido levantadas questões sobre a eficácia do Diálogo Aberto enquanto intervenção clínica. Além disso, muitos dos primeiros estudos mostrando excelentes resultados vieram da Finlândia, e alguns pesquisadores tem questionado se esse modelo seria aplicável em outros contextos.

Para testar essas alegações, os pesquisadores Rachel Tribe, Abigail Freeman, Joshua Stott e Stephen Pilling, da University College London, e Steven Livingstone, psicólogo clínico do Hospital St. Ann, entrevistaram clínicos e usuários de serviços no Reino Unido sobre experiência deles com as reuniões do Open Dialogue.

Os pesquisadores identificaram quatro temas principais e descobriram que, embora a maioria dos usuários se sentisse ouvida, compreendida e respeitada, eles também se sentiram confusos (e, no caso de um participante, angustiado) com a falta de uma agenda para as reuniões. Alguns até relataram haver se sentido intimidados pela intensidade emocional da abordagem.

A abordagem do Diálogo Aberto é um método baseado em trabalho com a rede de relações dos usuários, e também na abordagem no território voltada para intervir cedo (dentro de 24 horas) após o primeiro surto psicótico. Isso requer que uma equipe de médicos, enfermeiros, assistentes sociais e pessoas da rede social do paciente o visitem assim como à sua família em sua própria casa. Também é essencial que a equipe inicial permaneça a mesma durante todo o processo de tratamento do paciente. Essa abordagem democrática, que mantém total transparência com o paciente, depende dos três princípios : “tolerância à incerteza”, “dialogismo” e “polifonia nas redes sociais”.

O Diálogo Aberto passou a chamar a atenção quando estudos de follow-up mostraram que, daqueles que receberam tratamento através deste método, 82% não apresentaram sintomas residuais e 86% retornaram ao trabalho ou à educação nos anos seguintes. Enquanto muitos pediram por investigações mais rigorosas usando ensaios aleatórios de controle (randomizados), outros pesquisadores como Mary Olson  apontaram que “a transformação e a influência de todo um sistema psiquiátrico comunitário não se prestam à randomização”. Além disso, Olson sugere que um complexo sistema baseado em rede, que portanto possui múltiplas associações, não pode simplesmente ser testado através de métodos que busquem uma relação de causa e efeito de forma reducionista e linear.

Por esta razão, o presente estudo é crítico, na medida que existe uma necessidade de se entender como a abordagem do Diálogo Aberto se aplica em outras culturas e contextos diferentes. Atualmente, este é um dos muitos estudos que estão sendo feitos para avaliar os benefícios da abordagem; outros estão sendo feitos nos Estados Unidos , Escandinávia, Alemanha, Itália, Áustria, Alemanha e Polônia.

O que torna este estudo significativo não é apenas o momento (‘timing’), mas também que a análise qualitativa pode fornecer uma descrição detalhada e uma compreensão rica e profunda da experiência dos usuários e dos médicos do serviço. Esta versão modificada da abordagem Open Dialogue denominada diálogo aberto apoiado por pares (POD)  é desenvolvida no contexto dos serviços de crise do Reino Unido, e visa fundir os princípios da abordagem finlandesa original com os “benefícios adicionais e a flexibilidade proporcionados pelo apoio de pares, nos serviços do NHS que estão linha de frente para o tratamento dos casos agudos.”

O estudo foi realizado com cinco usuários dos serviços, três membros da rede dos usuários e 11 médicos, e teve como meta lançar luz sobre sua experiência subjetiva das reuniões do Diálogo Aberto. Esses médicos ainda estavam concluindo o seu curso de treinamento para serem diplomados em Diálogo Aberto. Os dados foram coletados em Londres, em um serviço de saúde mental territorial patrocinado pelo NHS. Uma análise temática construtivista surgiu com os quatro temas essenciais.

Os pesquisadores descobriram que os usuários do serviço tendem a comparar sua experiência positiva das reuniões da rede com o tratamento usual (TAU), que eles descreveram como coercitivo e apático. Muitos usuários de serviços relataram sentir-se respeitados nas reuniões de rede.

“Os participantes passaram por reuniões de rede diferentes do TAU. Os médicos, em particular, foram extremamente positivos em relação à abordagem e usaram linguagem positiva para denotar sua preferência pelo diálogo aberto em comparação com o TAU. Os usuários do serviço frequentemente referenciaram suas experiências negativas anteriores na área da saúde mental e refletiram sobre o aumento de experiências comunicativas positivas em reuniões da rede ”, escrevem os pesquisadores.

Eles observam ainda que “os dados dos usuários e dos médicos do serviço sugeriram que várias perspectivas receberam espaço nas reuniões da rede. Para a maioria dos usuários, isso pareceu resultar em um sentimento de ser ouvido e compreendido. ”Pode-se sugerir que essa experiência possivelmente se origina do dialogismo (e polifonia), um dos princípios centrais da abordagem do diálogo aberto.

Embora os médicos sentissem que as conversas reflexivas que tiveram uns com as outros na presença do usuário do serviço tenham sido úteis, os próprios usuários do serviço tiveram respostas diferentes. Alguns as acharam estranhas, enquanto outros acharam que eram conversas sinceras. Have um usuário que achou que os médicos só fingiam se importar com o dito e que ficou embaraçado com essas reflexões feitas pelos profissionais.

Os médicos sentiram a ausência de uma agenda como sendo algo desafiador, mas também a consideraram como uma mudança positiva que permitiu que eles trouxessem seu eu autêntico nas reuniões. Essa abertura e sinceridade foram devidamente notadas pelos usuários que, embora tenham apreciado, também se sentiram intimidados pela intensidade emocional das sessões. Foi interessante notar que alguns usuários esperavam terapia durante essas reuniões e que tiveram que mudar suas expectativas ao longo do processo.

Tanto os médicos quanto os usuários do serviço observaram que a expressão de emoções era mais livre nessas reuniões do que no tratamento usual (TAU), mas alguns usuários do serviço acharam que isso era difícil de lidar. Havia também alguém que desconfiava da abertura dos médicos e achava que era um espetáculo. Suspeitas como essa podem ser consideradas dentro das histórias pessoais dos participantes, dadas suas experiências passadas de tratamento de saúde mental. Por exemplo, se, no passado, os provedores não foram transparentes, é mais provável que as pessoas experimentem as reflexões dentro da abordagem do Diálogo Aberto como algo falso.

O desconforto com as reflexões também pode ser considerado dentro do contexto mais amplo das práticas padrão de tratamento de saúde mental no Reino Unido. Se, por exemplo, os participantes e membros da família resistiram em discutir abertamente suas experiências por medo de serem patologizados (serem considerados como tendo ‘falta de insight’ do seu transtorno) ou de terem seus direitos removidos ou suspensos.

Essa preocupação foi refletida por um membro da família no estudo que disse: “Nenhum de nós sentiu que poderíamos ser tão abertos quanto queríamos” porque estávamos basicamente discutindo a doença de minha mãe enquanto ela estava lá e ela tomou conta da reunião, então foi difícil ser honesto”. Freeman e seus colegas discutiram de maneira semelhante como a abordagem do diálogo aberto parece ser mais produtiva e apreciada entre usuários e familiares que valorizam a transparência das reuniões da rede, e que essa transparência é essencial para a estrutura democrática do Diálogo Aberto.

No geral, parece que tanto os clínicos quanto os usuários do serviço apreciaram a abertura e a liberdade emocional, mas que os últimos também tiveram respostas diversas à incerteza criada pela falta de uma agenda clara. Eles relataram confusão com a aparente ausência de estrutura e propósito explícito das reuniões. Dado o arranjo radicalmente diferente da abordagem do Diálogo Aberto quando comparado ao tratamento como de costume, essa confusão pode ser esperada. A maioria das pessoas associa intervenções de saúde mental a um especialista que prescreve um caminho claro para a remoção dos sintomas. Deve-se notar que a falta de agenda pode não ser meramente incidental, uma vez que a tolerância à incerteza é novamente um dos princípios centrais que informa a prática do Diálogo Aberto.

Os pesquisadores observam que uma das limitações do estudo é que ele foi realizado nas fases iniciais da experiência com o Diálogo Aberto. Por exemplo, os médicos ainda estavam recebendo treinamento, e os critérios de inclusão para os usuários do serviço foram que eles deveriam ter participado de pelo menos uma reunião do serviço nos últimos seis meses. Além disso, apontam que o tamanho da amostra foi bastante pequeno e, dentre os oito usuários entrevistados, três eram parentes.

É também digno de nota que este foi um estudo de uma versão modificada do método Open Dialogue, chamado Peer Support Open Dialogue (POD) que, como Razzaque e Stockman escrevem, é uma forma diferente da abordagem de ‘diálogo aberto’ tal como é atualmente praticado na Finlândia. Eles observam ainda que, embora “relato dos pacientes, relatos da família e a experiência clínica tenham sido extremamente positivos”, há enormes desafios ao se transferir a abordagem de diálogo aberto para o Reino Unido em uma escala tão ampla como a que está sendo exigida pelo NHS.

Desafios adicionais a esta forma modificada incluem “desafios organizacionais de continuidade dos cuidados em serviços que são cada vez mais fragmentados, bem como os desafios culturais de introduzir uma quebra de hierarquia, uma maior autonomia do paciente e da família e o envolvimento dos colegas de trabalho.” Os médicos do estudo atual observaram similarmente que eles enfrentaram muitas dificuldades organizacionais ao tentar fornecer os serviços segundo a abordagem do Diálogo Aberto.

Por fim, os pesquisadores alertam que “é necessário se pesquisar se os desafios à implementação destacados no presente estudo são resultado da cultura neste local específico. Além disso, questões relacionadas ao elemento da abordagem apoiada por pares não foram proeminentes nos dados da entrevista. ”

O estudo é um passo essencial no exame da adaptação da abordagem do Diálogo Aberto no Reino Unido, e sua natureza qualitativa fornece insights sobre as áreas onde as mudanças podem ser necessárias ao transferir essa abordagem para uma cultura diferente.

Os desafios são muitos, pois o Diálogo Aberto não é apenas mais uma forma de terapia, mas vem com um conjunto radicalmente diferente de práticas linguísticas e institucionais (a poética e a micropolítica ) e com diferenças estruturais “inerentes aos serviços psiquiátricos públicos na Finlândia”. Será que podemos aplicar a ética organizacional do Diálogo Aberto – envolvendo democracia, participação e humildade – em sistemas inerentemente hierárquicos que dependem da aparente experiência dos profissionais e que estão frequentemente sujeitos aos caprichos de governos e empresas de seguro de saúde?

Os pesquisadores deste estudo observam que “são necessárias pesquisas para explorar as relações entre a experiência do diálogo cultural, social e comunitário dos usuários do serviço.” Este estudo é um primeiro passo importante para se examinar essas questões, e mais pesquisas são necessárias para se aprofundar nossa compreensão dessa abordagem promissora.

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Tribe, R., Freeman, A., Livingstone, S., Stott, J., & Pilling, S. (2019). Diálogo aberto no Reino Unido: estudo qualitativo. BJPsych Open, 5 (4), E49, doi: 10.1192 / bjo.2019.38 (Link)

Loucura, Sexualidade e Legados da Discriminação Estratégica

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Em julho de 2018, o governo britânico emitiu um plano de ação LGBT. Isso veio em resposta aos resultados de uma pesquisa nacional de pessoas LGB e T que indicou que, entre muitas outras coisas, 5% dos entrevistados LGB tinham recebido terapia de conversão e outros 2% haviam recebido tal terapia. Isso levou o governo a incluir a proibição da terapia de conversão na Grã-Bretanha em seu plano de ação de 75 pontos para melhorar a vida das pessoas LGB e T. Há provas contundentes de que as pessoas LGB e T estão em maior risco de sofrer de sofrimento mental, desenvolvendo problemas de saúde mental, dependência química, automutilação e suicídio, do que a população em geral. Na Grã-Bretanha, também é provável que sofram discriminação nos serviços de saúde mental. Dada esta situação, por que os ativistas usuários e sobreviventes que frequentam os serviços na Grã-Bretanha têm permanecido relativamente quietos sobre essa forma de opressão psiquiátrica em geral e sobre esta campanha específica para proibir a terapia de conversão?

Organizações LGBT e grupos profissionais de saúde mental têm estado na vanguarda de campanhas para proibir a terapia de conversão e pelo fornecimento de melhores serviços de saúde mental para pessoas LGB e T na Grã-Bretanha. Em 2014, o Departamento de Saúde solicitou que o Conselho de Psicoterapia do Reino Unido, juntamente com vários outros órgãos profissionais de saúde mental, emitisse uma declaração de consenso sobre a terapia de ‘conversão’ ou ‘reparadora’. Eles foram claros que é antiético e errado oferecer “um tratamento para o qual não há doença”. Esta posição originou-se dos profissionais do campo da saúde mental e dos ativistas LGBT. Então, há alguma questão em jogo a ação política dos sobreviventes em psiquiatria com relação ao tratamento de LGB e T? Até à data, tem havido pouco trabalho em conjunto entre os movimentos de sobreviventes e os movimentos LGBT, apesar de haver um interesse comum em criticar e resistir ao projeto de normalização das disciplinas psi – isto é, as categorizações clínicas da psiquiatria e da psicologia do que é ‘normal’ e ‘anormal’ ou ‘saudável’ e ‘doente ‘. Uma posição comum e interseccional ainda está por ser desenvolvida entre os dois movimentos e suas organizações.

Por que isso pode ocorrer? Eu e Helen Spandler realizamos um estudo de arquivos sobre o tratamento da homossexualidade feminina nos serviços de saúde mental do Reino Unido dos anos 50. Isso se baseia em nosso trabalho anterior nessa área e esperamos que ele contribua para as histórias interconectadas da opressão LGBT e Loucura. Nossa pesquisa nos levou a pensar, junto com a historiadora norte-americana Regina Kunzel, se a situação atual pode ter sido influenciada pelas táticas dos ativistas lésbicos e gays das décadas de 1960 e 1970 em suas campanhas para desqualificar a homossexualidade enquanto doença mental.

Campanhas para despatologizar a homossexualidade envolvida, como Kunzel diz, “esforços para distanciar a homossexualidade do estigma da doença mental”. Por exemplo, durante os anos 60 e 70, ativistas de direitos gays e lésbicas que fizeram campanha para a desclassificação (retirada da homossexualidade do DSM) se apresentaram como “Gay, com Orgulho e Saudável”, essencialmente argumentando que “gay é normal e saudável” em oposição a “gay é anormal e doente”. Embora essa estratégia possa ser uma reação compreensível à patologização, apesar de suas melhores intenções, esses ativistas foram colocados em uma armadilha binária psiquiátrica em seus argumentos de campanha sobre quem deveria ser classificado como ‘doente’ ou ‘saudável’? Em 1965, Franklin Kameny, líder da campanha de libertação gay americana, escreveu sobre essa tensão na revista lésbica The Ladder , dizendo:

“Se permitirmos que o rótulo da doença se sustente, teremos duas batalhas para combater – aquela contra o preconceito aos homossexuais enquanto tal e aquela para  combater o preconceito contra os doentes mentais – seremos páriase marginalizados duas vezes. Uma dessas batalhas já é o bastante.”

Da mesma forma, na Grã-Bretanha, para evitar a desqualificação psiquiátrica e para o avanço da credibilidade política, ativistas como Jackie Forster, do Grupo de Pesquisa das Minorias, também promoveram os homossexuais como mentalmente normais quando ela escreveu: “não estamos doentes. . . nossa orientação sexual não nos impele a nos comportar de tal maneira a ferir ou afligir os outros.” Apesar do resultado momentaneamente importante dessa campanha – a desclassificação da homossexualidade como uma doença mental – essa tática implicava que as pessoas com problemas de saúde mental eram anormais ou perigosos e que as pessoas LGB que experimentam sofrimento mental devem ser estrategicamente não incluídas em nome de uma causa maior.

Na convenção da Associação Americana de Psiquiatria (APA) de 1971, Kameny e outros ativistas da libertação gay dos EUA que procuravam remover a homossexualidade como uma doença mental do Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM) forçaram os organizadores a deixar homens e mulheres gays falarem por si em um painel chamado ‘Estilo de vida do homossexual não-paciente’. Aqui, é importante destacar a conceptualização do homossexual ‘não-paciente’. Na época, muito da pesquisa sobre a homossexualidade era feita sobre ‘populações de pacientes’, o que era visto como fazer os homossexuais parecerem mais ‘doentes’; mas ao definir o ‘homossexual não paciente’, os ativistas da libertação gay construíram uma entidade ‘discriminadora’ em sua negociação? A defesa intransigente da normalidade psicológica foi uma condição para a libertação das pessoas LGB da psiquiatria?

Kunzel acredita que um dos principais problemas é o uso de “um único eixo de opressão baseado na saúde prejudicada dos outros”, onde “a saúde deixa de ser um estado desejado ou um bem evidente, mas uma ideologia que mobiliza um conjunto de normas, prescrições e hierarquias de valor.”  Cat Fitzpatrick e Jijian Voronka, escrevendo sobre campanhas contemporâneas para despatologizar identidades e vidas trans, instaram os ativistas trans a terem cuidado para não se “imitar os ativistas gays a jogar pessoas loucas para fora do ônibus, para assim serem respeitadas”. Para parafrasear a escritora feminista lésbica Adrienne Rich, que escreveu sobre o poder opressivo da “heterossexualidade compulsória”, as pessoas e comunidades LGB também não experimentam o poder opressivo da “sanidade compulsória”?

Dado este legado e contexto, parece necessário perguntar sobre a relação do movimento de sobreviventes do Reino Unido com a história de sobreviventes LGB e com as lutas sociais e políticas contemporâneas das comunidades LGB e T com relação à psiquiatria, à terapia e à saúde mental. O movimento de sobreviventes do Reino Unido não tem tido um papel proeminente na campanha contra o renascimento religioso contemporâneo do tratamento terapêutico para a homossexualidade, ou na crítica ao tratamento homofóbico de pessoas LGB em serviços de saúde mental. Ainda não há uma crítica adequada do poder opressivo da heteronormatividade, vinda de dentro do movimento (assim como da própria sociedade), a respeito das disciplinas ‘psi’. Aqueles que se identificam como lésbicas, gays, bi ou queer e os loucos habitam um espaço interseccional entre os dois movimentos e podem ser marginalizados em ambos. No entanto, podemos agora estar entrando na Grã-Bretanha em uma nova era de ativismo e política queer sobrevivente. Há um número emergente de ativistas sobreviventes, muitos deles mulheres mais jovens, muitas dos quais se identificam como queer e feministas, que estão desafiando os rótulos “transtorno de personalidade limítrofe” e “transtorno de personalidade emocionalmente instável”. Ativistas estão chamando os rótulos misóginos de “insultos ao caráter”.  Se você é não-heterossexual, você pode estar em maior risco de receber esses rótulos. Um dos critérios diagnósticos é ter uma autoimagem ou senso de self “instável”, interpretado por alguns médicos como sendo indicado para orientação sexual e identidade de gênero. Perguntas novas e importantes sobre as definições de ‘normal e anormal’ e ‘doente e saudável’ do psiquismo estão sendo feitas.

Em 1965, Kameny disse que os ativistas da libertação gay “devem argumentar a partir de uma posição positiva de saúde”. Há agora razões altamente convincentes para que as colaborações defendam uma posição crítica sobre saúde, pois as concepções de saúde dependem de normatividades construídas clínica, social e culturalmente e que continuam a oprimir e excluir. Regina Kunzel nos lembra que “ os estudos sobre incapacidades e a loucura nos ajudam a entender a saúde não apenas como uma afirmação de orgulho contra o estigma, mas também como um projeto de normatividade e exclusão”. Helen Spandler e Meg-John Barker discutiram algumas das complexidades e semelhanças entre as duas disciplinas radicais para explorar potenciais visões compartilhadas entre os dois. É importante notar que elas explicam que Queer and Mad Studies criticam as formas dominantes e culturalmente aceitas do que é ser ‘normal’. . . elas questionam entendimentos dominantes e construções do que significa ser psicologicamente ou sexualmente normal. . . ambas compartilham a ideia de que as ‘normatividades’ são mantidas por meio de oposições binárias, em que “um lado é privilegiado em detrimento do outro.” Dadas as lutas contemporâneas e intersecionais que existem para pessoas LGBT que vivenciam sofrimento mental ou recebem um rótulo de diagnóstico, o movimento dos sobreviventes e as comunidades LGBT na Grã-Bretanha podem estar juntos em solidariedade aberta, a partir de posições criticas, para construir e argumentar sobre questões da saúde, desafiando o poder de psiquiatras e psicólogos em determinar a ‘normalidade’ e a ‘sanidade’.

O impacto emocional da consciência crítica na juventude

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San Francisco Youth Climate Strike – March 15, 2019 (Photo Credit: Wikipedia Commons)

Um estudo recente, publicado na revista Developmental Psychology, esclarece diferentes elementos da ‘consciência crítica’ e explora a relação desses elementos com o bem-estar da juventude. Os resultados de suas análises sugerem que os estudantes do ensino médio com menos confiança na justiça das estruturas políticas dos EUA, na eficácia do governo e no poder da ação política pessoal, sofrem maiores problemas de saúde mental e têm menores taxas de sucesso acadêmico. Essas e outras descobertas fornecem novos caminhos para se pensar nos esforços com educação crítica e justiça social.

“O conceito originalmente criado pelo educador brasileiro Paulo Freire, a consciência crítica descreve o processo pelo qual as pessoas tornam-se criticamente conscientes das raízes sociais e históricas das estruturas que perpetuam sua marginalização e tomam medidas para enfrentar essa opressão”, escrevem Dr. Erin B. Godfrey e colegas do Departamento de Psicologia Aplicada da Universidade de Nova York.

“Nos últimos anos, estudiosos da psicologia do desenvolvimento têm trabalhado com  o quadro de referências de Freire para explorar como uma consciência de desigualdade estrutural e opressão pode capacitar jovens marginalizados (por exemplo, jovens de cor; jovens de baixa renda) a mudar essas realidades, com consequências positivas para o seu desenvolvimento.”

San Francisco Youth Climate Strike – March 15, 2019 (Photo Credit: Wikipedia Commons)

Psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais de saúde mental estão se tornando cada vez mais conscientes do impacto significativo que os fatores sociais e econômicos têm sobre o bem-estar. Ao contrário de ver a pessoa individual e sua composição bioquímica como um sistema isolado, muitos pesquisadores estão explorando como fatores tais como status socioeconômico, identidade de gênero e opressão racial contribuem para o sofrimento humano. Esse entendimento tem levado a uma mudança para muitos pesquisadores, clínicos e indivíduos que sofrem os efeitos de seus sistemas sociais, em direção à justiça social e à mudança sistêmica mais ampla.

O educador e revolucionário brasileiro Paulo Freire enfatizou a necessidade de um aumento da ‘consciência crítica’ sobre as desigualdades estruturais e outras forças opressivas que resultam em sofrimento e marginalização, bem como a participação na ação social e política para mudar essas condições. Freire acreditava que a reflexão e a ação se reforçavam mutuamente, de modo que a participação na mudança social poderia aprofundar a compreensão de problemas estruturais e vice-versa.

“Evidências sugerem que a consciência crítica é benéfica para a juventude marginalizada – levando a melhores resultados ocupacionais e melhoria do bem-estar socioemocional”.

Psicólogos desenvolvimentistas têm adotado esses tópicos a partir do trabalho de Freire, aprofundando a pesquisa sobre os efeitos da consciência crítica no bem-estar da juventude e, mais sistematicamente, traçando seus distintos elementos.

O presente estudo analisou a relação entre três diferentes elementos da consciência crítica: a) reflexão crítica, b) eficácia sociopolítica, e c) ação crítica. A reflexão crítica é definida como a capacidade dos jovens de compreender o mundo à sua volta, por exemplo, como as desigualdades sistêmicas podem impedi-los de oportunidades de sucesso e aumentar sua marginalização. A eficácia sociopolítica está relacionada ao senso dos jovens de sua capacidade de mudar essas condições ou seu senso de empoderamento. Finalmente, a ação crítica refere-se ao envolvimento dos jovens nos esforços para mudar realidades sociopolíticas e econômicas injustas ao seu redor.

Os pesquisadores se concentraram em como esses fatores se relacionam entre si e com as medidas de bem-estar da juventude, como são as características demográficas, os resultados socioemocionais e o sucesso acadêmico. Eles pesquisaram 448 jovens não brancos de várias origens étnico-raciais, socioeconômicas e de gênero, dentro do sistema público de ensino médio de Nova York. As respostas para as perguntas da pesquisa que medem a consciência crítica e os resultados do bem-estar foram submetidas à análise estatística.

Quatro diferentes classes ou tipologias de alunos do ensino médio foram determinadas a partir da análise inicial. A classe 1 caracterizou-se por desconhecer as injustiças econômicas e raciais e, ao mesmo tempo, demonstrar os níveis mais baixos de crença na justiça das realidades políticas nos EUA. Eles também mostraram os níveis mais baixos de eficácia política interna ou fé em sua capacidade de efetuar mudanças, bem como pouco compromisso com a ação. No entanto, eles demonstraram uma crença moderadamente alta na eficácia das autoridades governamentais para a solução de problemas.

A classe 2 também foi caracterizada como inconsciente das injustiças, mas satisfeita com sua capacidade de efetuar mudanças e com a eficácia do governo. Eles expressaram alta crença na justiça dos EUA.

A classe 3 foi altamente crítica em relação à desigualdade econômica e racial. Eles tinham uma crença de nível médio na justiça dos EUA, alta confiança na eficácia do governo, uma crença média e alta para a sua capacidade política para mudanças, e compromisso de nível médio com a ação.

Finalmente, a classe 4 exibiu um nível intermediário a alto de reflexão crítica, crenças sobre justiça nos EUA com nível de médio a baixo, crença muito baixa com relação à eficácia das instituições, crença de média a alta em sua capacidade para produzir mudanças, e compromisso médio a baixo para a ação.

Os pesquisadores não encontraram diferenças significativas entre as classes em termos de gênero ou status socioeconômico, mas descobriram que os estudantes afro-americanos eram o grupo menos provável a pertencer à classe 2 (não-críticos e satisfeitos com o sistema). Os estudantes chineses eram os mais prováveis a pertencer à classe 2.

Previsivelmente, os estudantes da classe 2 eram significativamente menos propensos a apresentar sintomas depressivos em comparação com a classe 4, o grupo crítico que tinha uma crença muito baixa na eficácia das autoridades governamentais ou no seu engajamento com a mudança das realidades políticas. Os alunos da classe 2 também tiveram um envolvimento acadêmico e uma competência significativamente maiores do que a classe 4, bem como notas mais altas do que as outras classes.

“No geral, os jovens da Classe 4 (críticos e descontentes, mas eficazes) tiveram pior bem-estar socioemocional e acadêmico do que os jovens da Classe 2 (acríticos, satisfeitos e eficazes), relatando mais sintomas depressivos, menor competência acadêmica, menor engajamento acadêmico e notas piores após o controle de raça / etnia. Assim, jovens criticamente reflexivos que não confiam no governo parecem sofrer em seu bem-estar socioemocional e acadêmico, pelo menos em comparação com jovens menos críticos e mais confiantes.”

Este estudo aponta para a complexidade da consciência crítica e oferece novas formas de pensar sobre a educação da juventude e o incentivo à ação social. Os pesquisadores sugerem, por exemplo, que os estudantes que não são críticos, mas têm uma alta crença na justiça dos EUA, podem se beneficiar da educação crítica adicional se ela for enquadrada segundo os ideais americanos. Entender como a consciência crítica afeta os jovens marginalizados e como eles podem estar melhor preparados para lidar com as injustiças sistêmicas que afetam seu bem-estar, continua sendo uma necessidade urgente de mais pesquisas.

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Godfrey, E. B., Burson, E. L., Yanisch, T. M., Hughes, D., & Way, N. (2019). A bitter pill to swallow? Patterns of critical consciousness and socioemotional and academic well-being in early adolescence. Developmental Psychology, 55(3), 525-537. (Link)

O Modelo alternativo ao DSM proposto pela Sociedade Britânica de Psicologia

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Este é o primeiro de dois blogs sobre a minha turnê pela Nova Zelândia e Austrália, tendo sido convidada para apresentar o Modelo Poder Ameaça Sentido (em inglês Power Threat Meaning Framework – PTMF). A PTMF é uma tentativa ambiciosa de delinear uma alternativa conceitual ao diagnóstico psiquiátrico e à medicalização do sofrimento, patrocinada pela Divisão de Psicologia Clínica da British Psychological Society, que foi lançada em Londres, em janeiro de 2018 (Johnstone e Boyle, 2018a; Johnstone e Boyle, 2018; clique aqui para documentos relevantes, vídeos e outros recursos, bem como para o acesso para o vídeo com legendas em português). Nossos anfitriões foram a ISPS (Sociedade Internacional de Abordagens Psicológicas à Psicose) presente em ambos os países, com a colaboração da Fundação Blue Knot (Austrália), havendo também sido convidada  pela Sociedade Psicológica da Nova Zelândia e pelo Colégio de Psicólogos Clínicos da Nova Zelândia.

O primeiro evento, e para mim o mais assustador em princípio, foi um workshop em Auckland que durou dois dias. Eu queria fazer disso uma oportunidade para comparar e contrastar diferentes experiências culturais e expressões de sofrimento psíquico. Eu estava ansiosa por explorar uma das nossas esperanças para o PTMF – qual seja, que em contraste com a imposição do modelo de diagnóstico ocidental em todo o mundo, o PTMF respeite e valide outras visões de mundo, em parte porque está baseado em princípios fundamentais que são compartilhados. Como dissemos no documento:

O modelo PTM prevê e permite a existência de experiências culturais e expressões de sofrimento amplamente variáveis, sem posicioná-las enquanto variações bizarras, primitivas, menos válidas ou exóticas, dos diagnósticos dominantes ou de outros paradigmas ocidentais … Apresentado como uma metalinguagem baseada em capacidades humanas universalmente evoluídas e respostas a ameaças, os princípios básicos do modelo PTM aplicam-se ao longo do tempo e entre diferentes culturas. Dentro disso, listas abertas de respostas e funções de ameaças…. permitem um número indefinido de expressões de sofrimento local e historicamente específicas, todas moldadas pelos significados culturais predominantes (Johnstone e Boyle, 2018a, p. 22).

O consultor de psicologia clínica Ingo Lambrecht organizou o evento, com o apoio do resto do comitê da ISPS da Nova Zelândia; ele conseguiu garantir o uso, durante os dois dias, de um marae – que é um local de encontro comunal maori, quer dizer, um espaço sagrado.

O contexto da Nova Zelândia

O marae foi criado como sendo um serviço de saúde mental a oferecer intervenções maori ao lado daquelas mais convencionais. Esta é uma estrutura de serviço comum na Nova Zelândia, e os Pakeha (europeus) também podem acessar essas abordagens, se assim o desejarem. Não existe um modelo único, mas há um que é bem conhecido e é amplamente integrado na prática: Te Whare Tapa Wha(Durie, 1994). Ele se baseia nos 4 pilares interconectados do bem-estar maori: mente, espírito, saúde física e família (whanau). Isso foi expandido para o modelo Meihana por um grupo de clínicos que queriam desenvolver uma estrutura que se envolvesse ativamente com crenças, valores e experiências Maori (Pitama et al, 2014). Meihana acrescenta as dimensões de Taiao (ambiente físico) e Iwi Katoa (contexto social). Se algum desses elementos estiver fora de equilíbrio, haverá uma ameaça ao bem-estar. Diversas variações desses modelos são descritas por McNeill (2009). Por exemplo, Te Pae Mahutonga (Durie, 1999) explicitamente inclui os impactos da colonização nas vidas, experiências e conceitos Maori, assim como a versão mais recente do modelo Meihana, que também enfatiza o papel do racismo e a migração da terra tradicional iwi.

Todas essas são perspectivas holísticas, diferentes das ocidentais em vários aspectos, incluindo a ênfase na espiritualidade. O conceito de whanau faz com que a noção ‘holista’ seja muito mais expansiva do que a palavra equivalente em inglês, ao incluir a extensa família composta por tias, tios, avós e assim por diante, vivos e mortos. Vários whanau formam um hapu, que por sua vez são parte de um iwi ou tribo. Essas identidades estão fortemente conectadas ao mundo natural. Assim, uma introdução tradicional de Maori incluirá ‘meu rio é …’ e ‘minha montanha é …’, bem como ‘meu whanau é …’ ‘… meu hapu é … ‘e ‘meu iwi é …’

O contexto mais amplo é, de certa forma, muito diferente daquele do Reino Unido. Resumidamente, a Nova Zelândia / Aotearoa (Aotearoa é o nome Maori do país, traduzido aproximadamente como ‘nuvem branca longa’) foi colonizada por europeus a partir de 1800. Aotearoa / Nova Zelândia tornou-se uma colônia britânica em 1840 ,através do Tratado Marco de Waitangi, assinado por representantes da Coroa Britânica e chefes Maori. Isto salvaguardou a posse legal dos Maori das suas terras e bens e deu-lhes direitos iguais aos cidadãos britânicos. Os princípios do Tratado foram realizados de forma muito imperfeita e não impediram a anexação posterior da terra Maori. Até hoje, os povos maori e das ilhas do Pacífico estão muito representados nas estatísticas da pobreza, desemprego, saúde mental e dependência. No entanto, o Tratado permanece como uma declaração de princípios e, sem dúvida, contribuiu para um compromisso de reconhecer e respeitar as visões de mundo dos Maori e das Ilhas do Pacífico e para reconhecer e reduzir as desigualdades e as disparidades de saúde existentes nessas populações.

A Nova Zelândia está no meio de uma grande Inquérito realizada pelo governo sobre os serviços de saúde mental e dependência química, que são vistos como falhas na população como um todo; as taxas de suicídio são altas, assim como os vícios. Um longo período de consulta resultou em 40 recomendações, que atualmente estão sendo consideradas. O documento de resumo é eloquente- alguns trechos são os seguintes (He Ara Oranga, 2018):

“Reconhecemos desde o início que essa investigação representava uma oportunidade de mudança” que apenas ocorre uma vez para uma geração. Em todo o país, as pessoas nos disseram que queriam que esse relatório levasse a uma mudança real e duradoura – uma ‘mudança de paradigma’ …”

“As pessoas disseram que, a menos que a Nova Zelândia lide com os determinantes sociais e econômicos da saúde, nós nunca deteremos a maré dos problemas de saúde mental e dependência. Há um chamado para o bem-estar e as soluções comunitárias – para ajudar nas tempestades da vida, para ser visto como uma pessoa como um todo, não como um diagnóstico, e para que as pessoas sejam encorajadas e apoiadas a cura e a restauração do senso de si mesmo …”

“Para a saúde e o bem-estar maori, é fundamental o reconhecimento do impacto da alienação cultural e da privação geracional, a afirmação da indigeneidade e a importância das abordagens culturais e clínicas, enfatizando os laços com whānau, hapū e Iwi.”

“Para os povos do Pacífico, a adoção de ‘formas típicas do Pacífico’ para permitir a saúde e o bem-estar nosso – uma abordagem holística incorporando as línguas, identidade, conexão, espiritualidade, nutrição, atividade física e relacionamentos saudáveis que são características dos povos do Pacífico.”

“Não podemos medicar ou tratar o nosso modo de como sair da epidemia de sofrimento mental e do vício que afetam todas as camadas da nossa sociedade.”

“Acreditamos que muitas dimensões das aspirações dos povos Maori e do Pacífico, especialmente a chamada por uma abordagem holística, apontam o caminho para todos os neozelandeses.”

O workshop

Em um lindo dia quente, nós nos reunimos sob uma árvore  – uma plateia mista de médicos (incluindo vários psiquiatras), voluntários e familiares, estudantes, usuários de serviço e ex-usuários. O processo de acolher um visitante em um marae é chamado de powhiri e pode assumir várias formas. Neste caso, o tangata whenua (anfitriões) realizou um haka powhiri (uma dança de boas-vindas e canto), quando eu e os participantes nos aproximávamos do marae. Uma vez lá dentro, e depois de um momento de respeito pelos antepassados cujas gravuras estavam na parede oposta, um ancião (kaumatua) entoou canções e karakia (orações). Os anfitriões receberam os visitantes com um beijo na bochecha ou hongi (tocando o nariz) e então nos mudamos para outra sala para lá  compartilhar chá e frutas (comida e bebida não são permitidas nos marae.)

Desejando ressaltar as apresentações de Māori, colocando-me com um pouco mais de precisão do que simplesmente dizer “sou um psicólogo clínico”, eu descrevi minha cidade natal, Bristol, minha família e minha herança escocesa de Johnstones, Grahams, McKays e Frasers. Eu também disse aos assistentes que dois dos meus bisavós tinham sido missionários em Gana e Sri Lanka (conhecidos pelos britânicos como Gold Coast e Ceilão). Eu disse que parecia importante reconhecer que todos nós temos uma relação com o colonialismo. Também coloquei as questões deliberadamente provocativas: “O paradigma diagnóstico ocidental é simplesmente outra forma de colonialismo, talvez mais sutil do que as versões anteriores, mas igualmente prejudicial em seus impactos?” “O Inquérito que está sendo feito irá longe o suficiente para alcançar a tão esperada ‘mudança de paradigma’?” “Ou vamos simplesmente acabar criando versões mais atualizadas ao que já temos hoje?” “É legítimo oferecer o modelo de diagnóstico ocidental fracassado junto com os modelos indígenas, ou ele precisa ser abandonado por completo?”

Eu não vou descrever o primeiro dia, além de dizer que ele consistiu em introduzir o PTMF  e ilustrá-lo através da história de Debra Lampshire, atual presidente da ISPS NZ – muito obrigado a Debra por sua generosidade. Nós terminamos com um karakia.

Depois de uma cerimônia de boas-vindas que foi mais breve, o segundo dia começou com uma reflexão sobre as perspectivas Maori por Pikihuia Pomare, um psicólogo clínico Maori e Jason Haitana, um colaborador que presta assessoria. Pikihuia começou com uma waita (canção) e depois voltou à discussão do dia anterior sobre o poder em seus muitos disfarces, incluindo o colonialismo e o privilégio branco, e a consequente necessidade de se recuperar o conhecimento maori que foi silenciado. Jason pegou este tema, recontando algumas histórias de criação maori ou purakau. Como ele disse, elas são mais do que simples histórias, porque, embora não sejam literalmente verdadeiras, expressam verdades importantes herdadas dos ancestrais. Sua primeira história foi sobre Ranginui e Papatuanuku, o pai celeste e a mãe terra do mundo, vivendo na escuridão. Seus filhos decidem que precisavam ser afastados para trazer luz ao mundo, e fizeram isso, porém não sem esforço e dor. Ele convidou o público a compartilhar ressonâncias com suas próprias vidas, como a necessidade de as crianças criarem o espaço para se tornarem elas mesmas. Os participantes, tanto Māori quanto Pakeha, responderam com uma série de reflexões pessoais.

Fiquei com vários pensamentos. Em primeiro lugar, a noção de histórias, mitos e lendas enquanto veículo de verdades é algo que muito apoiado pelo PTMF. É por isso que o modelo defende a narrativa em geral, não apenas o tipo particular de narrativa chamada de ‘formulação’ (por nós no Reino Unido). Se formos além da prática convencional baseada em evidências e da verdade histórica, e também considerarmos a ‘verdade narrativa’ (Spence, 1982, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p. 83), podemos valorar as histórias de acordo com o fato de elas parecerem se encaixar de uma maneira que “torne a mudança concebível e alcançável” (Schafer, 1980, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p.82). Em segundo lugar, como um dos participantes comentou para mim, as histórias Maori mostraram temas claros que poderiam ser descritos como poder, ameaça e significado. Não estou sugerindo que eles precisem ser traduzidos nesses termos, mas simplesmente estou observando pontos comuns entre as duas perspectivas de Māori purakau e os temas centrais do PTMF. Em terceiro lugar, as reações do público me deram uma ideia de como esse purakau poderia ser usado para refletir, explorar e curar dilemas e lutas humanas. Isso também ecoa o PTMF, que se refere à ‘Competência narrativa … a capacidade de os seres humanos absorverem profundamente, interpretarem e responderem apropriadamente às histórias dos outros’ (Grant, 2015, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p.78), e recuperação enquanto “recuperar nossa experiência para retomar a autoria de nossas próprias histórias” (Dillon e May, 2003, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p. 75).

A segunda metade da manhã consistiu em um painel informal com 7 de nós. Um intervalo de tempo relativamente longo foi alocado para isso, e fiquei impressionada com a maneira como se desenrolou. De acordo com a sessão anterior, alguns dos oradores de Maori responderam aos pontos indiretamente ao contar uma história tradicional, e da mesma forma, alguns da audiência, embora Pakeha, começaram suas contribuições contando histórias sobre si mesmos. O sentido era o desdobramento de uma conversa fluente que ia mais fundo do que o debate acadêmico usual. Em vários momentos do dia anterior, quando expliquei o conceito de ‘formulação’, lembrei-me, acertadamente, que esse processo de co-construção de uma história é essencialmente sobre duas pessoas que estão profundamente em contato uma com a outra e que tocam o coração uma da outra. Isso não é do meu conhecimento, em qualquer definição oficial de ‘formulação’ que eu conheça, e, no entanto, me pareceu absolutamente verdadeiro.

Sugeri que a discussão poderia querer voltar às perguntas que fiz no começo do primeiro dia. Não houve respostas diretas – não foi esse tipo de conversa, e ainda não sabemos como será o resultado do Inquérito que está sendo feito no país. No entanto, houve forte endosso da inclusão dos fatores causais do PTMF que são omitidos da maioria dos modelos psiquiátricos e psicológicos, como o ‘impacto do colonialismo’, ‘trauma intergeracional’, ‘negação e perda do conhecimento tradicional’ e o papel do poder ideológico em todas essas áreas. Alguns dos participantes foram fortemente a favor de se abandonar o modelo baseado no DSM, junto com a defesa do PTMF como uma alternativa, embora imperfeita e ainda em desenvolvimento para nos levar adiante.

Um dos membros do painel foi uma jovem mulher maori, uma sobrevivente de serviços de saúde mental que agora está treinando para ser psiquiatra a fim de provocar mudanças no sistema. Ela havia encontrado o PTMF por acaso e lido o documento principal em sua totalidade. Ela reconheceu que o Modelo precisaria se adaptar às necessidades locais, mas sentiu que havia espaço para isso ser oferecido. Como tal, ela estava muito entusiasmada com seu potencial para apoiar entendimentos indígenas e nos disse que já está sendo usado para informar o pensamento em um serviço de saúde mental Maori.

O Inquérito inclui um resumo das respostas especificamente maori (“Whakamanawa: Honrar as vozes e as histórias de Maori”). Um extrato ilustra as semelhanças com as mensagens do PTMF:

“A voz maori do Inquérito reconhece o sofrimento mental como uma resposta razoável a ambientes mais adversos. Dentro de um paradigma de bem-estar, a angústia mental não é medicalizada, patologizada ou criminalizada; os caminhos para a cura são baseados em whānau, incluindo elementos espirituais e apoiados por um ambiente saudável mais amplo. O ponto focal de uma mudança de paradigma de bem-estar pressupõe que a saúde mental é uma dimensão de experiência relevante para todos os membros da sociedade.”

Reflexões

Eu acho que todo o workshop foi uma experiência profundamente provocante e enriquecedora. Ao contrário de algumas experiências de treinamento, senti que recebi muito mais do que dei, tanto em termos de ideias e desafios, como também em termos de cordialidade, conexão e a oportunidade de experimentar o sabor de uma cultura muito diferente.

Eu quero evitar fazer generalizações simplistas sobre uma cultura que não é familiar para mim, e estou ciente de que tem havido muita mistura de sangue e ideias entre os europeus e os maori ao longo dos anos. Como resultado, as pessoas agora vivem em ambos os mundos e possuem diferentes graus de identificação com práticas e perspectivas tradicionais. Por exemplo, muitos Maori se converteram ao cristianismo no século XIX.

Dito isto, concordo com o Inquérito de que as cosmovisões dos Maori e das Ilhas do Pacífico têm muito a oferecer a todos os neozelandeses e, gostaria de acrescentar, às perspectivas ocidentais em geral. É muito evidente que, pelo menos no Reino Unido, perdemos o senso de comunidade, espiritualidade, identidade e conexão com o mundo natural que é tão altamente valorizado pelos neozelandeses indígenas, com impactos no bem-estar amplamente documentados. Tentamos reconhecer isso no PTMF, incorporando  referências como o impacto do colonialismo e do trauma intergeracional, a inseparabilidade do indivíduo em relação ao grupo social e a necessidade de integrar a mente, o corpo, o espírito e o mundo natural. Incluímos também, como possíveis formas de reivindicar poder, identidade e agência:

  • Significados, crenças e formas de expressão específicas da cultura
  • Práticas, rituais e cerimônias apoiadas culturalmente
  • Narrativas comunitárias, valores, credos e crenças espirituais, para apoiar a cura e integração do grupo social
  • Conexões com o mundo natural
  • Lidar com traumas coletivos / transgeracionais e perda de identidade, cultura, patrimônio e terra
  • Produção narrativa através da arte, poesia, literatura, música
  • Ação política

(Johnstone e Boyle, 2018b, p.216-217; Johnstone e Boyle, 2018 a, p. 77-79).

Após minha breve e direta exposição a uma cultura muito diferente, percebo que esse reconhecimento não vai longe o suficiente. Embora obviamente não seja apropriado que os próprios autores da PTMF adaptem o documento para as perspectivas não-ocidentais, acredito que as futuras edições precisam dar mais ênfase a essas necessidades humanas universais.

E algumas reservas …

Não tenho nenhum desejo de idealizar as perspectivas que aprendi. Especificamente, tenho preocupações sobre a infiltração do pensamento medicalizado nessas abordagens originalmente não-ocidentais. Depois de descrever sua abordagem “Te Whare Tapa Wha”, um serviço de saúde mental comunitário maori acrescenta esses parágrafos que poderiam vir de qualquer livro psiquiátrico padrão:

O que é doença mental?

A doença mental é um comportamento clinicamente significativo ou um distúrbio psicológico que está associado à angústia ou incapacidade … Uma doença mental pode … limitar nossa capacidade de funcionar como a sociedade normalmente esperaria de nós e pode colocar nós e outras pessoas em risco. A doença mental é, portanto, um termo amplo que abrange problemas que vão desde distúrbios menores a graves.

Esquizofrenia

A esquizofrenia é um transtorno mental grave que afeta cerca de 1% da população geral. É uma doença complexa caracterizada por ‘psicose’, palavra usada para descrever desordem de pensamentos (por exemplo, delírios – falsas crenças mantidas apesar da evidência de que não são reais), percepções (por exemplo, alucinações – ver, ouvir ou sentir coisas que não estão lá), discurso desorganizado e comportamento grosseiramente desorganizado, que não são experimentados por outros e que não são vistos como anormais pelo sofredor. Esses quatro sintomas são frequentemente chamados de ‘Sintomas Positivos’ da esquizofrenia, porque são o resultado do processo da doença.

Da mesma forma, o Inquérito, juntamente com a sua progressiva “chamada ao bem-estar e soluções comunitárias – para ajudar nas tempestades da vida, para ser visto como uma pessoa completa, não como um diagnóstico”, inclui muitas frases que implicam o próprio modelo diagnóstico, como “doença psiquiátrica duradoura” e “doença mental grave” (que parecem ser conceitualizadas como algo fundamentalmente diferente de outras formas de sofrimento). Entre as recomendações bem-vindas para lidar com os determinantes sociais da angústia estão várias que simplesmente implicam “mais do mesmo” (por exemplo, “Expandir o acesso a serviços a mais pessoas com necessidades mentais e de dependência leve a moderada e moderada a grave”). Um serviço culturalmente consciente não é uma garantia contra a infiltração de ideias biomédicas.

Em conclusão, o resultado do Inquérito da Nova Zelândia continua a ser produzido. Não tenho dúvidas de que essa iniciativa ousada resultará em algumas melhorias reais, mas parece provável que fique aquém de um desafio fundamental à abordagem diagnóstica. No entanto, se o PTMF puder ajudar nesse sentido, eu e os outros autores ficaremos encantados. Enquanto isso, vou sempre valorizar a conexão vitalícia que agora foi forjada com o marae em Manawanui.

Com agradecimentos a Ingo Lambrecht, Debra Lampshire e o resto do comitê doISPS NZ.

Durie, M. (1994). Whaiora: Māori health development. Auckland: Oxford University Press.

Durie, M. (1999). Te Pae Mahutonga: A model for Māori health promotion. In Health Promotion Forum of New Zealand Newsletter, 49, 2-5.

He Ara Oranga: Report of the Government Inquiry into Mental Health and Addiction (2018) Available at  www.mentalhealth.inquiry.govt.nz/inquiry-report

Johnstone, L. & Boyle, M. with Cromby, J., Dillon, J., Harper, D., Kinderman, P., Longden, E., Pilgrim, D. & Read, J. (2018a). The Power Threat Meaning Framework: Overview. Leicester: British Psychological Society. Available from www.bps.org.uk/PTM-Overview

Johnstone, L. & Boyle, M. with Cromby, J., Dillon, J., Harper, D., Kinderman, P., Longden, E., Pilgrim, D. & Read, J. (2018b). The Power Threat Meaning Framework: Towards the identification of patterns in emotional distress, unusual experiences and troubled or troubling behaviour, as an alternative to functional psychiatric diagnosis. Leicester: British Psychological Society.

McNeill, H. (2009) Māori models of mental wellness. Te Kaharoa, 2, 96-115.

Pitama, S., Huria, T., and Lacey, C. (2014)Improving Māori health through clinical assessment: Waikare o te Waka o Meihana. Journal of theNew Zealand Medical Association, 127, pp 107 – 119.

O problema não são as drogas, são os humanos

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Publicado em Correio 24 horas, artigo da Dra. Mônica Nunes – médica-psiquiatra, professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e representante da região Nordeste na diretoria da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

“Diferentemente da ‘internação compulsória’, determinada pela Justiça em decorrência do cometimento de atos ilícitos por pessoas inimputáveis, a internação involuntária de pessoas em uso abusivo de substâncias psicoativas por um período máximo de 90 dias, como preconiza a Lei 13.840 de 2019, é um mecanismo que atribui uma autoridade extrema a profissionais de saúde de deliberarem sobre a necessidade de internar pessoas contra a sua vontade e sem o aval da sua própria família.”

A Dra. Mônica Nunes  fala dos resultados alcançados em uma recente pesquisa realizada: “Em pesquisa que realizamos recentemente na Bahia, um dos resultados interessantes a que chegamos é que, mesmo entre aquelas que passam por tratamentos extremos, como o de serem internadas em Comunidades Terapêuticas, aquelas que eventualmente se beneficiam desse procedimento são as que haviam aderido plenamente, por exemplo, através de conversão religiosa prévia, à proposta de internação. Ou seja, a mudança em relação ao uso abusivo de substâncias psicoativas depende do que as pessoas entendem e acreditam que é realmente oferecido para ser colocado no lugar que as drogas ocupam nas suas vidas.”

Artigo na íntegra →

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