O Modelo alternativo ao DSM proposto pela Sociedade Britânica de Psicologia

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Este é o primeiro de dois blogs sobre a minha turnê pela Nova Zelândia e Austrália, tendo sido convidada para apresentar o Modelo Poder Ameaça Sentido (em inglês Power Threat Meaning Framework – PTMF). A PTMF é uma tentativa ambiciosa de delinear uma alternativa conceitual ao diagnóstico psiquiátrico e à medicalização do sofrimento, patrocinada pela Divisão de Psicologia Clínica da British Psychological Society, que foi lançada em Londres, em janeiro de 2018 (Johnstone e Boyle, 2018a; Johnstone e Boyle, 2018; clique aqui para documentos relevantes, vídeos e outros recursos, bem como para o acesso para o vídeo com legendas em português). Nossos anfitriões foram a ISPS (Sociedade Internacional de Abordagens Psicológicas à Psicose) presente em ambos os países, com a colaboração da Fundação Blue Knot (Austrália), havendo também sido convidada  pela Sociedade Psicológica da Nova Zelândia e pelo Colégio de Psicólogos Clínicos da Nova Zelândia.

O primeiro evento, e para mim o mais assustador em princípio, foi um workshop em Auckland que durou dois dias. Eu queria fazer disso uma oportunidade para comparar e contrastar diferentes experiências culturais e expressões de sofrimento psíquico. Eu estava ansiosa por explorar uma das nossas esperanças para o PTMF – qual seja, que em contraste com a imposição do modelo de diagnóstico ocidental em todo o mundo, o PTMF respeite e valide outras visões de mundo, em parte porque está baseado em princípios fundamentais que são compartilhados. Como dissemos no documento:

O modelo PTM prevê e permite a existência de experiências culturais e expressões de sofrimento amplamente variáveis, sem posicioná-las enquanto variações bizarras, primitivas, menos válidas ou exóticas, dos diagnósticos dominantes ou de outros paradigmas ocidentais … Apresentado como uma metalinguagem baseada em capacidades humanas universalmente evoluídas e respostas a ameaças, os princípios básicos do modelo PTM aplicam-se ao longo do tempo e entre diferentes culturas. Dentro disso, listas abertas de respostas e funções de ameaças…. permitem um número indefinido de expressões de sofrimento local e historicamente específicas, todas moldadas pelos significados culturais predominantes (Johnstone e Boyle, 2018a, p. 22).

O consultor de psicologia clínica Ingo Lambrecht organizou o evento, com o apoio do resto do comitê da ISPS da Nova Zelândia; ele conseguiu garantir o uso, durante os dois dias, de um marae – que é um local de encontro comunal maori, quer dizer, um espaço sagrado.

O contexto da Nova Zelândia

O marae foi criado como sendo um serviço de saúde mental a oferecer intervenções maori ao lado daquelas mais convencionais. Esta é uma estrutura de serviço comum na Nova Zelândia, e os Pakeha (europeus) também podem acessar essas abordagens, se assim o desejarem. Não existe um modelo único, mas há um que é bem conhecido e é amplamente integrado na prática: Te Whare Tapa Wha(Durie, 1994). Ele se baseia nos 4 pilares interconectados do bem-estar maori: mente, espírito, saúde física e família (whanau). Isso foi expandido para o modelo Meihana por um grupo de clínicos que queriam desenvolver uma estrutura que se envolvesse ativamente com crenças, valores e experiências Maori (Pitama et al, 2014). Meihana acrescenta as dimensões de Taiao (ambiente físico) e Iwi Katoa (contexto social). Se algum desses elementos estiver fora de equilíbrio, haverá uma ameaça ao bem-estar. Diversas variações desses modelos são descritas por McNeill (2009). Por exemplo, Te Pae Mahutonga (Durie, 1999) explicitamente inclui os impactos da colonização nas vidas, experiências e conceitos Maori, assim como a versão mais recente do modelo Meihana, que também enfatiza o papel do racismo e a migração da terra tradicional iwi.

Todas essas são perspectivas holísticas, diferentes das ocidentais em vários aspectos, incluindo a ênfase na espiritualidade. O conceito de whanau faz com que a noção ‘holista’ seja muito mais expansiva do que a palavra equivalente em inglês, ao incluir a extensa família composta por tias, tios, avós e assim por diante, vivos e mortos. Vários whanau formam um hapu, que por sua vez são parte de um iwi ou tribo. Essas identidades estão fortemente conectadas ao mundo natural. Assim, uma introdução tradicional de Maori incluirá ‘meu rio é …’ e ‘minha montanha é …’, bem como ‘meu whanau é …’ ‘… meu hapu é … ‘e ‘meu iwi é …’

O contexto mais amplo é, de certa forma, muito diferente daquele do Reino Unido. Resumidamente, a Nova Zelândia / Aotearoa (Aotearoa é o nome Maori do país, traduzido aproximadamente como ‘nuvem branca longa’) foi colonizada por europeus a partir de 1800. Aotearoa / Nova Zelândia tornou-se uma colônia britânica em 1840 ,através do Tratado Marco de Waitangi, assinado por representantes da Coroa Britânica e chefes Maori. Isto salvaguardou a posse legal dos Maori das suas terras e bens e deu-lhes direitos iguais aos cidadãos britânicos. Os princípios do Tratado foram realizados de forma muito imperfeita e não impediram a anexação posterior da terra Maori. Até hoje, os povos maori e das ilhas do Pacífico estão muito representados nas estatísticas da pobreza, desemprego, saúde mental e dependência. No entanto, o Tratado permanece como uma declaração de princípios e, sem dúvida, contribuiu para um compromisso de reconhecer e respeitar as visões de mundo dos Maori e das Ilhas do Pacífico e para reconhecer e reduzir as desigualdades e as disparidades de saúde existentes nessas populações.

A Nova Zelândia está no meio de uma grande Inquérito realizada pelo governo sobre os serviços de saúde mental e dependência química, que são vistos como falhas na população como um todo; as taxas de suicídio são altas, assim como os vícios. Um longo período de consulta resultou em 40 recomendações, que atualmente estão sendo consideradas. O documento de resumo é eloquente- alguns trechos são os seguintes (He Ara Oranga, 2018):

“Reconhecemos desde o início que essa investigação representava uma oportunidade de mudança” que apenas ocorre uma vez para uma geração. Em todo o país, as pessoas nos disseram que queriam que esse relatório levasse a uma mudança real e duradoura – uma ‘mudança de paradigma’ …”

“As pessoas disseram que, a menos que a Nova Zelândia lide com os determinantes sociais e econômicos da saúde, nós nunca deteremos a maré dos problemas de saúde mental e dependência. Há um chamado para o bem-estar e as soluções comunitárias – para ajudar nas tempestades da vida, para ser visto como uma pessoa como um todo, não como um diagnóstico, e para que as pessoas sejam encorajadas e apoiadas a cura e a restauração do senso de si mesmo …”

“Para a saúde e o bem-estar maori, é fundamental o reconhecimento do impacto da alienação cultural e da privação geracional, a afirmação da indigeneidade e a importância das abordagens culturais e clínicas, enfatizando os laços com whānau, hapū e Iwi.”

“Para os povos do Pacífico, a adoção de ‘formas típicas do Pacífico’ para permitir a saúde e o bem-estar nosso – uma abordagem holística incorporando as línguas, identidade, conexão, espiritualidade, nutrição, atividade física e relacionamentos saudáveis que são características dos povos do Pacífico.”

“Não podemos medicar ou tratar o nosso modo de como sair da epidemia de sofrimento mental e do vício que afetam todas as camadas da nossa sociedade.”

“Acreditamos que muitas dimensões das aspirações dos povos Maori e do Pacífico, especialmente a chamada por uma abordagem holística, apontam o caminho para todos os neozelandeses.”

O workshop

Em um lindo dia quente, nós nos reunimos sob uma árvore  – uma plateia mista de médicos (incluindo vários psiquiatras), voluntários e familiares, estudantes, usuários de serviço e ex-usuários. O processo de acolher um visitante em um marae é chamado de powhiri e pode assumir várias formas. Neste caso, o tangata whenua (anfitriões) realizou um haka powhiri (uma dança de boas-vindas e canto), quando eu e os participantes nos aproximávamos do marae. Uma vez lá dentro, e depois de um momento de respeito pelos antepassados cujas gravuras estavam na parede oposta, um ancião (kaumatua) entoou canções e karakia (orações). Os anfitriões receberam os visitantes com um beijo na bochecha ou hongi (tocando o nariz) e então nos mudamos para outra sala para lá  compartilhar chá e frutas (comida e bebida não são permitidas nos marae.)

Desejando ressaltar as apresentações de Māori, colocando-me com um pouco mais de precisão do que simplesmente dizer “sou um psicólogo clínico”, eu descrevi minha cidade natal, Bristol, minha família e minha herança escocesa de Johnstones, Grahams, McKays e Frasers. Eu também disse aos assistentes que dois dos meus bisavós tinham sido missionários em Gana e Sri Lanka (conhecidos pelos britânicos como Gold Coast e Ceilão). Eu disse que parecia importante reconhecer que todos nós temos uma relação com o colonialismo. Também coloquei as questões deliberadamente provocativas: “O paradigma diagnóstico ocidental é simplesmente outra forma de colonialismo, talvez mais sutil do que as versões anteriores, mas igualmente prejudicial em seus impactos?” “O Inquérito que está sendo feito irá longe o suficiente para alcançar a tão esperada ‘mudança de paradigma’?” “Ou vamos simplesmente acabar criando versões mais atualizadas ao que já temos hoje?” “É legítimo oferecer o modelo de diagnóstico ocidental fracassado junto com os modelos indígenas, ou ele precisa ser abandonado por completo?”

Eu não vou descrever o primeiro dia, além de dizer que ele consistiu em introduzir o PTMF  e ilustrá-lo através da história de Debra Lampshire, atual presidente da ISPS NZ – muito obrigado a Debra por sua generosidade. Nós terminamos com um karakia.

Depois de uma cerimônia de boas-vindas que foi mais breve, o segundo dia começou com uma reflexão sobre as perspectivas Maori por Pikihuia Pomare, um psicólogo clínico Maori e Jason Haitana, um colaborador que presta assessoria. Pikihuia começou com uma waita (canção) e depois voltou à discussão do dia anterior sobre o poder em seus muitos disfarces, incluindo o colonialismo e o privilégio branco, e a consequente necessidade de se recuperar o conhecimento maori que foi silenciado. Jason pegou este tema, recontando algumas histórias de criação maori ou purakau. Como ele disse, elas são mais do que simples histórias, porque, embora não sejam literalmente verdadeiras, expressam verdades importantes herdadas dos ancestrais. Sua primeira história foi sobre Ranginui e Papatuanuku, o pai celeste e a mãe terra do mundo, vivendo na escuridão. Seus filhos decidem que precisavam ser afastados para trazer luz ao mundo, e fizeram isso, porém não sem esforço e dor. Ele convidou o público a compartilhar ressonâncias com suas próprias vidas, como a necessidade de as crianças criarem o espaço para se tornarem elas mesmas. Os participantes, tanto Māori quanto Pakeha, responderam com uma série de reflexões pessoais.

Fiquei com vários pensamentos. Em primeiro lugar, a noção de histórias, mitos e lendas enquanto veículo de verdades é algo que muito apoiado pelo PTMF. É por isso que o modelo defende a narrativa em geral, não apenas o tipo particular de narrativa chamada de ‘formulação’ (por nós no Reino Unido). Se formos além da prática convencional baseada em evidências e da verdade histórica, e também considerarmos a ‘verdade narrativa’ (Spence, 1982, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p. 83), podemos valorar as histórias de acordo com o fato de elas parecerem se encaixar de uma maneira que “torne a mudança concebível e alcançável” (Schafer, 1980, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p.82). Em segundo lugar, como um dos participantes comentou para mim, as histórias Maori mostraram temas claros que poderiam ser descritos como poder, ameaça e significado. Não estou sugerindo que eles precisem ser traduzidos nesses termos, mas simplesmente estou observando pontos comuns entre as duas perspectivas de Māori purakau e os temas centrais do PTMF. Em terceiro lugar, as reações do público me deram uma ideia de como esse purakau poderia ser usado para refletir, explorar e curar dilemas e lutas humanas. Isso também ecoa o PTMF, que se refere à ‘Competência narrativa … a capacidade de os seres humanos absorverem profundamente, interpretarem e responderem apropriadamente às histórias dos outros’ (Grant, 2015, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p.78), e recuperação enquanto “recuperar nossa experiência para retomar a autoria de nossas próprias histórias” (Dillon e May, 2003, citado em Johnstone e Boyle, 2018a, p. 75).

A segunda metade da manhã consistiu em um painel informal com 7 de nós. Um intervalo de tempo relativamente longo foi alocado para isso, e fiquei impressionada com a maneira como se desenrolou. De acordo com a sessão anterior, alguns dos oradores de Maori responderam aos pontos indiretamente ao contar uma história tradicional, e da mesma forma, alguns da audiência, embora Pakeha, começaram suas contribuições contando histórias sobre si mesmos. O sentido era o desdobramento de uma conversa fluente que ia mais fundo do que o debate acadêmico usual. Em vários momentos do dia anterior, quando expliquei o conceito de ‘formulação’, lembrei-me, acertadamente, que esse processo de co-construção de uma história é essencialmente sobre duas pessoas que estão profundamente em contato uma com a outra e que tocam o coração uma da outra. Isso não é do meu conhecimento, em qualquer definição oficial de ‘formulação’ que eu conheça, e, no entanto, me pareceu absolutamente verdadeiro.

Sugeri que a discussão poderia querer voltar às perguntas que fiz no começo do primeiro dia. Não houve respostas diretas – não foi esse tipo de conversa, e ainda não sabemos como será o resultado do Inquérito que está sendo feito no país. No entanto, houve forte endosso da inclusão dos fatores causais do PTMF que são omitidos da maioria dos modelos psiquiátricos e psicológicos, como o ‘impacto do colonialismo’, ‘trauma intergeracional’, ‘negação e perda do conhecimento tradicional’ e o papel do poder ideológico em todas essas áreas. Alguns dos participantes foram fortemente a favor de se abandonar o modelo baseado no DSM, junto com a defesa do PTMF como uma alternativa, embora imperfeita e ainda em desenvolvimento para nos levar adiante.

Um dos membros do painel foi uma jovem mulher maori, uma sobrevivente de serviços de saúde mental que agora está treinando para ser psiquiatra a fim de provocar mudanças no sistema. Ela havia encontrado o PTMF por acaso e lido o documento principal em sua totalidade. Ela reconheceu que o Modelo precisaria se adaptar às necessidades locais, mas sentiu que havia espaço para isso ser oferecido. Como tal, ela estava muito entusiasmada com seu potencial para apoiar entendimentos indígenas e nos disse que já está sendo usado para informar o pensamento em um serviço de saúde mental Maori.

O Inquérito inclui um resumo das respostas especificamente maori (“Whakamanawa: Honrar as vozes e as histórias de Maori”). Um extrato ilustra as semelhanças com as mensagens do PTMF:

“A voz maori do Inquérito reconhece o sofrimento mental como uma resposta razoável a ambientes mais adversos. Dentro de um paradigma de bem-estar, a angústia mental não é medicalizada, patologizada ou criminalizada; os caminhos para a cura são baseados em whānau, incluindo elementos espirituais e apoiados por um ambiente saudável mais amplo. O ponto focal de uma mudança de paradigma de bem-estar pressupõe que a saúde mental é uma dimensão de experiência relevante para todos os membros da sociedade.”

Reflexões

Eu acho que todo o workshop foi uma experiência profundamente provocante e enriquecedora. Ao contrário de algumas experiências de treinamento, senti que recebi muito mais do que dei, tanto em termos de ideias e desafios, como também em termos de cordialidade, conexão e a oportunidade de experimentar o sabor de uma cultura muito diferente.

Eu quero evitar fazer generalizações simplistas sobre uma cultura que não é familiar para mim, e estou ciente de que tem havido muita mistura de sangue e ideias entre os europeus e os maori ao longo dos anos. Como resultado, as pessoas agora vivem em ambos os mundos e possuem diferentes graus de identificação com práticas e perspectivas tradicionais. Por exemplo, muitos Maori se converteram ao cristianismo no século XIX.

Dito isto, concordo com o Inquérito de que as cosmovisões dos Maori e das Ilhas do Pacífico têm muito a oferecer a todos os neozelandeses e, gostaria de acrescentar, às perspectivas ocidentais em geral. É muito evidente que, pelo menos no Reino Unido, perdemos o senso de comunidade, espiritualidade, identidade e conexão com o mundo natural que é tão altamente valorizado pelos neozelandeses indígenas, com impactos no bem-estar amplamente documentados. Tentamos reconhecer isso no PTMF, incorporando  referências como o impacto do colonialismo e do trauma intergeracional, a inseparabilidade do indivíduo em relação ao grupo social e a necessidade de integrar a mente, o corpo, o espírito e o mundo natural. Incluímos também, como possíveis formas de reivindicar poder, identidade e agência:

  • Significados, crenças e formas de expressão específicas da cultura
  • Práticas, rituais e cerimônias apoiadas culturalmente
  • Narrativas comunitárias, valores, credos e crenças espirituais, para apoiar a cura e integração do grupo social
  • Conexões com o mundo natural
  • Lidar com traumas coletivos / transgeracionais e perda de identidade, cultura, patrimônio e terra
  • Produção narrativa através da arte, poesia, literatura, música
  • Ação política

(Johnstone e Boyle, 2018b, p.216-217; Johnstone e Boyle, 2018 a, p. 77-79).

Após minha breve e direta exposição a uma cultura muito diferente, percebo que esse reconhecimento não vai longe o suficiente. Embora obviamente não seja apropriado que os próprios autores da PTMF adaptem o documento para as perspectivas não-ocidentais, acredito que as futuras edições precisam dar mais ênfase a essas necessidades humanas universais.

E algumas reservas …

Não tenho nenhum desejo de idealizar as perspectivas que aprendi. Especificamente, tenho preocupações sobre a infiltração do pensamento medicalizado nessas abordagens originalmente não-ocidentais. Depois de descrever sua abordagem “Te Whare Tapa Wha”, um serviço de saúde mental comunitário maori acrescenta esses parágrafos que poderiam vir de qualquer livro psiquiátrico padrão:

O que é doença mental?

A doença mental é um comportamento clinicamente significativo ou um distúrbio psicológico que está associado à angústia ou incapacidade … Uma doença mental pode … limitar nossa capacidade de funcionar como a sociedade normalmente esperaria de nós e pode colocar nós e outras pessoas em risco. A doença mental é, portanto, um termo amplo que abrange problemas que vão desde distúrbios menores a graves.

Esquizofrenia

A esquizofrenia é um transtorno mental grave que afeta cerca de 1% da população geral. É uma doença complexa caracterizada por ‘psicose’, palavra usada para descrever desordem de pensamentos (por exemplo, delírios – falsas crenças mantidas apesar da evidência de que não são reais), percepções (por exemplo, alucinações – ver, ouvir ou sentir coisas que não estão lá), discurso desorganizado e comportamento grosseiramente desorganizado, que não são experimentados por outros e que não são vistos como anormais pelo sofredor. Esses quatro sintomas são frequentemente chamados de ‘Sintomas Positivos’ da esquizofrenia, porque são o resultado do processo da doença.

Da mesma forma, o Inquérito, juntamente com a sua progressiva “chamada ao bem-estar e soluções comunitárias – para ajudar nas tempestades da vida, para ser visto como uma pessoa completa, não como um diagnóstico”, inclui muitas frases que implicam o próprio modelo diagnóstico, como “doença psiquiátrica duradoura” e “doença mental grave” (que parecem ser conceitualizadas como algo fundamentalmente diferente de outras formas de sofrimento). Entre as recomendações bem-vindas para lidar com os determinantes sociais da angústia estão várias que simplesmente implicam “mais do mesmo” (por exemplo, “Expandir o acesso a serviços a mais pessoas com necessidades mentais e de dependência leve a moderada e moderada a grave”). Um serviço culturalmente consciente não é uma garantia contra a infiltração de ideias biomédicas.

Em conclusão, o resultado do Inquérito da Nova Zelândia continua a ser produzido. Não tenho dúvidas de que essa iniciativa ousada resultará em algumas melhorias reais, mas parece provável que fique aquém de um desafio fundamental à abordagem diagnóstica. No entanto, se o PTMF puder ajudar nesse sentido, eu e os outros autores ficaremos encantados. Enquanto isso, vou sempre valorizar a conexão vitalícia que agora foi forjada com o marae em Manawanui.

Com agradecimentos a Ingo Lambrecht, Debra Lampshire e o resto do comitê doISPS NZ.

Durie, M. (1994). Whaiora: Māori health development. Auckland: Oxford University Press.

Durie, M. (1999). Te Pae Mahutonga: A model for Māori health promotion. In Health Promotion Forum of New Zealand Newsletter, 49, 2-5.

He Ara Oranga: Report of the Government Inquiry into Mental Health and Addiction (2018) Available at  www.mentalhealth.inquiry.govt.nz/inquiry-report

Johnstone, L. & Boyle, M. with Cromby, J., Dillon, J., Harper, D., Kinderman, P., Longden, E., Pilgrim, D. & Read, J. (2018a). The Power Threat Meaning Framework: Overview. Leicester: British Psychological Society. Available from www.bps.org.uk/PTM-Overview

Johnstone, L. & Boyle, M. with Cromby, J., Dillon, J., Harper, D., Kinderman, P., Longden, E., Pilgrim, D. & Read, J. (2018b). The Power Threat Meaning Framework: Towards the identification of patterns in emotional distress, unusual experiences and troubled or troubling behaviour, as an alternative to functional psychiatric diagnosis. Leicester: British Psychological Society.

McNeill, H. (2009) Māori models of mental wellness. Te Kaharoa, 2, 96-115.

Pitama, S., Huria, T., and Lacey, C. (2014)Improving Māori health through clinical assessment: Waikare o te Waka o Meihana. Journal of theNew Zealand Medical Association, 127, pp 107 – 119.

O problema não são as drogas, são os humanos

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Publicado em Correio 24 horas, artigo da Dra. Mônica Nunes – médica-psiquiatra, professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e representante da região Nordeste na diretoria da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

“Diferentemente da ‘internação compulsória’, determinada pela Justiça em decorrência do cometimento de atos ilícitos por pessoas inimputáveis, a internação involuntária de pessoas em uso abusivo de substâncias psicoativas por um período máximo de 90 dias, como preconiza a Lei 13.840 de 2019, é um mecanismo que atribui uma autoridade extrema a profissionais de saúde de deliberarem sobre a necessidade de internar pessoas contra a sua vontade e sem o aval da sua própria família.”

A Dra. Mônica Nunes  fala dos resultados alcançados em uma recente pesquisa realizada: “Em pesquisa que realizamos recentemente na Bahia, um dos resultados interessantes a que chegamos é que, mesmo entre aquelas que passam por tratamentos extremos, como o de serem internadas em Comunidades Terapêuticas, aquelas que eventualmente se beneficiam desse procedimento são as que haviam aderido plenamente, por exemplo, através de conversão religiosa prévia, à proposta de internação. Ou seja, a mudança em relação ao uso abusivo de substâncias psicoativas depende do que as pessoas entendem e acreditam que é realmente oferecido para ser colocado no lugar que as drogas ocupam nas suas vidas.”

Artigo na íntegra →

Eu sei que as dificuldades para deixar de tomar antidepressivos é Real

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"Os pacientes devem ser advertidos sobre como é difícil se livrar dos antidepressivos quando lhes são prescritos". Foto: Jack Sullivan / Alamy Stock Photo

Do The Guardian : “É muito fácil simplesmente afirmar que os médicos precisam ouvir mais os pacientes. Que há necessidade de mais pesquisas adequadas. Mas também se está dizendo que as histórias dos pacientes não têm sido suficientes para produzir mudanças nas diretrizes de prescrição e para a abstinência: isso apenas está acontecendo agora porque clínicos, como o Dr.Taylor que também foi um paciente, experimentaram o processo de retirada dos antidepressivos e estudaram seus resultados. Taylor disse ao The New Yorker que se ele não tivesse sofrido com a abstinência, ele provavelmente continuaria a aceitar as diretrizes padrão.

A falta de pesquisas sobre os efeitos da retirada de medicamentos pelas empresas farmacêuticas, levando seus remédios pelo mundo afora, também é, sem dúvida, um fator. Como é também a minimização, por parte das empresas farmacêuticas, que tais pesquisas existam. ‘Destacam a natureza benigna dos sintomas de descontinuação, em vez de discutir sobre sua incidência’, dizia um memorando interno visto pelo The New Yorker . . .

Um em cada seis adultos na Inglaterra toma medicação antidepressiva: 7.3 milhões de pessoas em 2017-8 receberam prescrição de antidepressivos, 70.000 das quais tinham menos de 18 anos. Essas pílulas são frequentemente prescritas em consultas que levam menos de 10 minutos. Amigos descreveram haver visto o médico a consultar o GPs Google antes de prescrever antidepressivos. Os pacientes que sofrem com a abstinência e precisam desesperadamente de apoio ficam a definhar, sem contar com o suporte necessário. Os serviços de saúde mental não estão preparados para lidar com isso.

Nada disso é para dizer que os antidepressivos sejam ruins, que eles não possam ser transformadores, ou que não possam resgatar às pessoas suas vidas. Sou grata pelo que os antidepressivos fizeram por mim em tempos de profunda angústia, mas gostaria de ter conhecido a natureza da jornada em que estaria embarcando; que parar o trem porque você quer saltar fora seria esse tamanho pesadelo.

Por que, quando a saúde de tantas pessoas está em jogo, demora-se tanto para ouvir os pacientes?”

Artig

“Os pacientes devem ser advertidos sobre como é difícil se livrar dos antidepressivos quando lhes são prescritos”. Foto: Jack Sullivan / Alamy Stock Photo

O poder de cura dos jardins: Oliver Sacks diz da sua experiência clínica

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De Brain Pickings: “Eu trabalho como um jardineiro”, escreveu o grande pintor Joan Miró em sua meditação sobre o ritmo adequado para o trabalho criativo. Não é por acaso que Virginia Woolf teve sua epifania eletrizante sobre o que significa ser um artista enquanto caminhava em meio aos canteiros de flores no jardim de St. Ives. De fato, jardinagem – mesmo que seja apenas para estar em um jardim – é nada menos que um triunfo de resistência contra a corrida impiedosa da vida moderna, tão compulsivamente focado na produtividade à custa da criatividade, da lucidez, da sanidade; um lembrete de que somos criaturas enredadas com a grande teia do ser, na qual, como o grande naturalista John Muir observou há muito tempo atrás, “quando tentamos descobrir qualquer coisa por si só, achamos que ela se atrelou a tudo o mais no universo”; um retorno ao que é mais nobre, o que significa mais natural em nós.

Essas recompensas incomparáveis, tanto psicológicas quanto fisiológicas, são o que o amado neurologista e escritor Oliver Sacks (9 de julho de 1933 a 30 de agosto de 2015) explora em um pequeno ensaio intitulado “Por que precisamos de jardins”, encontrado em Everything in Its Place: First Loves and Last Tales (public library) – a maravilhosa coleção póstuma que nos deu Sacks sobre o poder das bibliotecas para alterar as vidas. Ele escreve:

Como escritor, considero os jardins essenciais para o processo criativo; como médico, levo meus pacientes a jardins sempre que possível. Todos nós tivemos a experiência de vagar por um exuberante jardim ou por um deserto atemporal, andando junto a um rio ou oceano, ou escalando uma montanha e nos achando simultaneamente acalmados e revigorados, engajados na mente, refrescados em corpo e espírito. A importância desses estados fisiológicos na saúde individual e comunitária é fundamental e abrangente. Em quarenta anos de prática médica, descobri que apenas dois tipos de “terapia” não-farmacêutica são de vital importância para pacientes com doenças neurológicas crônicas: música e jardins.

Tendo vivido e trabalhado em Nova York por meio século – uma cidade ‘às vezes suportável … apenas por seus jardins’ – Sacks relata os efeitos tônicos da natureza em seus pacientes neurologicamente debilitados: um homem com síndrome de Tourette, afligido por severas ticos verbais e gestuais no meio urbano, passa a ficar completamente livre de sintomas enquanto caminha no deserto; uma mulher idosa com doença de Parkinson, que muitas vezes se encontrava congelada em um lugar imaginário, pode não apenas recuperou facilmente os movimento no jardim, mas também passou a subir e a descer as rochas sem ajuda; várias pessoas com demência avançada e doença de Alzheimer, que não sabem como realizar operações básicas da civilização como amarrar os sapatos, sabem exatamente o que fazer quando apanham mudas e colocam-nas diante de um canteiro de flores. Sacks reflete:

Não posso dizer exatamente como a natureza exerce seus efeitos calmantes e organizadores em nossos cérebros, mas tenho visto em meus pacientes os poderes reparadores e curativos da natureza e dos jardins, mesmo para aqueles que são profundamente deficientes neurologicamente. Em muitos casos, os jardins e a natureza são mais poderosos do que qualquer medicamento.

Mais de meio século depois, a grande bióloga marinha e pioneira do meio ambiente, Rachel Carson, afirmou que “existe em nós uma resposta profundamente assentada ao universo natural, que é parte de nossa humanidade“, acrescenta Sacks:

Claramente, a natureza chama para algo muito profundo em nós. A biofilia, o amor pela natureza e pelos seres vivos, é uma parte essencial da condição humana. A hortofilia, o desejo de interagir, gerenciar e cuidar da natureza, também é profundamente incutida em nós. O papel que a natureza desempenha na saúde e na cura torna-se ainda mais crítico para pessoas que trabalham longos dias em escritórios sem janelas, para aqueles que moram em bairros sem acesso a espaços verdes, para crianças em escolas da cidade ou para instituições institucionais, como lares de idosos. Os efeitos das qualidades da natureza na saúde não são apenas espirituais e emocionais, mas físicas e neurológicas. Não tenho dúvidas de que eles refletem mudanças profundas na fisiologia do cérebro e talvez até mesmo na sua estrutura”.

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Atualização sobre Marci Webber: o pesadelo terminará?

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Em 2010, Marci Webber era uma mãe solteira de uma filha de três anos de idade e era estudante de direito. Foi quando lhe foi prescrito uma crescente gama de medicamentos psiquiátricos para lidar com o seu estresse. O médico continuou a prescrever sem o devido acompanhamento médico e negligenciando a renovação da prescrição de Zoloft. Marci experimentou um episódio psicótico induzido por medicação. Sob a ilusão de que sua filha de quatro anos, Maggie, estava prestes a encontrar um destino terrível, ela a matou para “salvá-la” e, depois tentou, sem sucesso, se matar. Ela foi considerada inocente – por motivo de insanidade –  e foi internada em uma instituição mental estadual no estado de Illinois, uma pena de 99 anos.

A história de Marci foi publicada anteriormente em Mad in Brasil em 13 de dezembro de 2016 (“Um Pesadelo de Mãe: terrível”), e atualizada em 21 de fevereiro de 2018 (“O pior pesadelo de uma mãe continua“).

Durante seu confinamento, Marci tem regularmente se envolvido com o pessoal do manicômio judiciário. Marci tem sido muito sincera sobre a causa real de seu crime. Ela se recusa a concordar com a equipe de que ela está mentalmente doente. Em resposta, os funcionários confiscaram todos os seus bens pessoais há mais de um ano, e se recusam a devolvê-los. A equipe intencionalmente a priva de tudo, nega que se exercite, a pegar ar fresco, a lanches, a visitas e qualquer outra coisa que tornaria sua vida tolerável. Eles retêm sua correspondência e a sujeitam a frequentes buscas no quarto e buscas em suas cavidades corporais. Pior de tudo, eles mentem sobre seu comportamento e status mental para o tribunal, em um esforço para mantê-la trancada indefinidamente.

De acordo com a lei, quando um paciente em um manicômio judiciário não é mais mentalmente doente e perigoso, ele deve ser liberado. Marci tem se recusado a tomar qualquer medicação psiquiátrica, há mais de cinco anos,  e não tem demonstrado sinal algum de psicose ou periculosidade. Agora temos um psiquiatra e dois psicólogos, de fora da instituição, que avaliaram Marci de forma independente e não encontraram evidências de doença mental.

Eu também posso garantir a sanidade de Marci. Eu tratei Marci de 2002-2008 para o estresse quando ela estava passando por uma longa batalha de divórcio e custódia. Eu tenho mantido contato com Marci por telefone várias vezes por semana, desde a sua prisão. Eu nunca detectei qualquer evidência de psicose ou qualquer outra doença mental grave.

Marci solicitou a alta e tem uma audiência de alta marcada para este mês de junho de 2019. É fundamental convencer o juiz de que Marci deveria ser liberada. Marci está achando cada vez mais difícil tolerar sua vida nas circunstâncias atuais. O ônus da prova é alto, e o manicômio e o Estado de Illinois estão se opondo à sua libertação.

Acreditamos que precisamos de mais um psiquiatra para avaliar Marci e testemunhar por ela, mas estamos sem fundos. Também estamos com falta de fundos para pagar os provedores de saúde mental atualmente programados para testemunhar. Eu criei um fundo para a defesa legal dela.

Marci também recebe de bom grado orações e apoio emocional das pessoas. É um momento muito difícil para ela. Você pode contatá-la pelo correio:Elgin Mental Health Center, 750 S. State St. Elgin, IL 60123. Ela não tem acesso a e-mail ou à internet. Você também pode ligar para ela no telefone (847) 429-5748. Ela geralmente está limitada a telefonemas limitados a alguns minutos.

Comunidades Terapêuticas: aceitar Jesus ou porrete

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Em seu 10º. Episódio da 3ª. temporada do Greg News, com Gregório Duvivier. O tema é as Comunidades Terapêuticas. Com muito humor, Gregório nos apresenta uma contundente crítica do que representam as Comunidades Terapêuticas para o tratamento de dependentes químicos.

As Comunidades Terapêuticas (CTs), como espaço de tratamento para dependentes químicos, passaram a ser prioridade do Governo Bolsonaro. Cerca de 82% das comunidades terapêuticas são vinculadas a igrejas e a organizações religiosas. Nomes como ‘Comunidade Jesus Luz do Mundo’, ‘Fazenda do Senhor Jesus’’, ‘Jesus em Damasco’, ‘Dr. Jesus’.  É verdade que desde o governo Lula, uma das prioridades das comunidades evangélicas têm sido assegurar que o dinheiro público financie essas comunidades terapêuticas. Exemplo disso, a ‘Dr. Jesus’, do deputado federal pastor sargento Isidório, recebe R$ 10 milhões do Estado por ano do governo da Bahia. Isidório se diz “ser apenas laranja de Deus”.

A destinação pública de recursos públicos para sustentar as CTs não é recente.  Desde 2013, vem ocorrendo o financiamento federal das CTS. Em 2013, a então chefe da Casa Civil do governo Dilma, Gleise Hoffman, fazia lobby para a liberação de R$ 230 milhões para as CTs.

Sabe-se bem que práticas terapêuticas são as dominantes nas CTs. Denúncias de maus tratos se multiplicam. Como é bem lembrado por Gregório Duvivier, não é apenas Jesus a quem se recorre para a cura dos dependentes químicos, mas à violência física propriamente dita. O deputado federal pastor sargento Isidório faz da missionária Tereza como a principal técnica terapêutica em sua CT. E quem é Tereza? Um porrete de madeira que ele diz ser a responsável pela recuperação dos dependentes químicos. Essa orientação terapêutica é mais comum do que se pode imaginar nas CTs: castigos físicos, trabalho análogo à escravidão, medicação injustificada, privação de liberdade e eletrochoque. Quem ganha com a nova lei de drogas do governo Bolsonaro? Os donos das clínicas e das comunidades terapêuticas, como é bem mostrado nesta reportagem do Intercept.

Enquanto isso, os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) que fazem atendimento diário com supervisão médica e psicológica, que praticam a redução de danos recomendada pela própria OMS, estão sendo desativados por falta de suporte financeiro e pela carência de profissionais.

Veja o vídeo na íntegra aqui.

Dois anos reduzindo um antidepressivo – uma experiência de mudança de vida que eu não queria

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Comecei a redução do meu antidepressivo em 12 de maio de 2017. Pouco mais de dois anos depois, através de uma determinação muito séria e severa, consegui chegar hoje a 25% da minha dose inicial. Os últimos 755 dias têm sido uma batalha quase que constante, enfrentando uma série de desafios físicos e psicológicos. Eu acordo de manhã sentindo-me completamente exausto e tão fatigado que não consigo pensar direito, e o dia geralmente se passa desse modo.

Meus próprios desafios de saúde mental têm sido terríveis para mim e para a minha família. Luto com pensamentos ansiosos, uma intensa sensação de desolação e uma fobia de vômito, e essas questões me custaram a minha carreira, a nossa família em casa, a perda de amigos e colegas, juntamente com minha dignidade e qualquer auto-respeito. Em retrospecto, minha experiência de retirada parece muito pior do que aqueles momentos duros e cheios de terror de antes. Meus sentimentos de desespero absoluto ou pânico absoluto e irracional não são constantes, eles diminuíram, há vezes em que desaparecem completamente. A experiência de abstinência não é algo a ser simplesmente abatido, é um companheiro indesejável, quase que enjoativo e permanente, e que passou a dominar minha vida e a afetar fundamentalmente a minha família.

Embora eu perceba que nem todo mundo experimenta tanta dificuldade saindo das drogas, tem ficado evidente que a retirada do antidepressivo necessita de mais atenção. Uma revisão sistemática recentemente feita pelo professor John Read e o doutor James Davies descobriu que, em média, em vários estudos, 56% dos usuários de antidepressivos relataram sintomas de abstinência. Críticos (principalmente pesquisadores psiquiátricos proeminentes) foram rápidos em apontar que pesquisas auto-selecionadas não são necessariamente livres de preconceitos e que uma pequena amostra não prova que o problema seja considerável. No entanto, aqui está a coisa, essas drogas estão em uso há décadas, milhões de libras foram gastas investigando-as para tentar entender como elas funcionam. Então, por que não sabemos mais sobre os efeitos a longo prazo, incluindo as dificuldades de retirada e a capacidade desses medicamentos de resultar em dependência? Efeitos de abstinência foram observados durante o estágio de uso da técnica de ‘washout placebo’,  em ensaios clínicos de drogas psiquiátricas. No início do estudo, os participantes são retirados de medicamentos ativos e recebem um placebo. A intenção é reduzir a influência de drogas concorrentes e identificar os respondentes ao placebo. O que isso realmente faz é colocar os participantes do estudo em retirada quando eles já estavam a usar uma droga psiquiátrica. Sabemos que esses efeitos foram observados em ensaios clínicos, ainda que os defensores dos pacientes muitas vezes enfrentem denúncias e acusações falsas de terem ‘vergonha da droga’ ou de serem adeptos da anti-ciência.

Os artigos que discutem a retirada são quase impossíveis de serem encontrados nos destacados periódicos médicos, muitas vezes aparecendo em publicações menores e independentes. Quando um artigo aparece, como o recente estudo do Doutor Mark Horowitz em Lancet Psychiatry, fica claro que as únicas respostas permitidas são aquelas críticas ao que o artigo mostra. Eu sei porque enviei minha própria resposta e auxiliando a redação de uma outra resposta feita por vários colegas profissionais; ambas apoiando o estudo e ambas foram recusadas, pois só o que desejavam era publicar respostas críticas ao artigo do Dr. Horowitz. Isso apesar de Lancet Psychiatry querer encorajar mais ‘opiniões de pacientes’, com a sessão Service User Reviewers (‘Revisões feitas por Usuários dos Serviços’), em seu número de setembro de 2018,  ao ser feia a seguinte pergunta:

“Como se pode garantir que aqueles com maior participação nas decisões tomadas sobre o futuro da psiquiatria – pessoas com experiência pessoal de problemas de saúde mental – sejam uma parte substancial, na verdade, uma parte importante do impulso em direção a um melhor atendimento?”

Em toda a Inglaterra, em 2018, foram prescritos 71 milhões de antidepressivos, quase o dobro em uma década. Esta figura surpreendente não apresenta de fato a história completa, pois exclui a prescrição em prisões, hospitais e clínicas psiquiátricas privadas. O The Guardian informou recentemente que existem 4 milhões de usuários de antidepressivos a longo prazo na Inglaterra. Algumas dessas pessoas podem querer confiar nas drogas para o resto de suas vidas, essa é a escolha delas e que deve ser respeitada, mas algumas pessoas terão tentado e não conseguiram sair dos antidepressivos. Elas podem ter visitado seu médico ou psiquiatra, reclamando de sintomas de abstinência, mas foram informadas de que haviam tido recaída e que seus problemas de saúde mental haviam ressurgido. É uma cruel ironia que os sintomas de abstinência sejam, às vezes, muito difíceis de serem distinguidos dos problemas de saúde mental, pois abrangem uma gama muito ampla de efeitos físicos e psicológicos adversos. Muitas pessoas que experimentaram a abstinência, no entanto, descreverão sintomas indicadores que nunca apareceram como parte de sua condição originalmente diagnosticada, mas que só se tornaram manifestados quando começaram a reduzir as drogas. Para mim, isso significa dores de cabeça esmagadoras e visão turva, um sinal claro de que meu corpo está a implorar para que eu ‘diminua a velocidade’.

Agora é geralmente aceito pelos médicos que as drogas benzodiazepínicas, como Valium e Lorazepam, podem muito rapidamente resultar em dependência e que deve-se ter cuidado ao prescreve-las. Muitos psiquiatras proeminentes têm insistentemente afirmado que os antidepressivos não resultam em dependência. Recentemente o Royal College of General Practitionersfez circular um guia para os ‘Dez Medicamentos que mais criam Dependência’, do qual os medicamentos antidepressivos estão omitidos. Na minha opinião, nunca foi provado que os antidepressivos não criam dependência quando tomados por mais de alguns meses. Cabe, portanto, à psiquiatria provar o que ela diz é evidentemente verdadeiro. Em 2014, o professor Peter Gøtzsche na época diretor da Cochrane Collaboration, escrevendo para Lancet Psychiatry, fez a seguinte declaração:

“Notamos que os sintomas de abstinência foram descritos em termos semelhantes para benzodiazepínicos e ISRSs (Inibidores Seletivos de Recaptação da Serotonina) e foram muito semelhantes em 37 dos 42 sintomas identificados. No entanto, eles não foram descritos como dependência para ISRSs. Definir problemas semelhantes como ‘dependência’ no caso dos benzodiazepínicos e como ‘reações de abstinência’ no caso dos ISRSs é irracional. Para os pacientes, os sintomas são os mesmos; pode ser muito difícil para eles interromper qualquer tipo de droga. ”

Em 29 de maio, o Royal College of Psychiatrists emitiu um comunicado de imprensa que sinalizou uma mudança de posição, ao aceitar que algumas pessoas lutam com experiências difíceis de retirada. Também publicou uma declaração de revisão da política, pedindo ao NICE (National Institute for Care and Health Excellence) para atualizar suas diretrizes de retirada. Este desenvolvimento, que é bem-vindo, segue os muitos meses de trabalho do Council for Evidence-based Psychiatry (Conselho de Psiquiatria Baseada em Evidências), junto com membros da comunidade de antidepressivos prescritos. Embora devamos celebrar esse significativo progresso, precisamos estar cientes do posicionamento das declarações formais. No final da declaração de posição sobre antidepressivos e declaração de política revista para a depressão, há uma seção que observa que a dependência de antidepressivos é uma questão de ‘percepção pública’. Portanto, embora essa mudança de posição seja bem-vinda, ainda há claramente um abismo entre o conhecimento experiencial adquirido ao tomar e tentar parar as drogas e aquele conhecimento adquirido através da leitura de artigos e da observação clínica. No entanto, pontes estão sendo construídas e eu gostaria de reconhecer publicamente todos os esforços que têm sido feitos para nos levar a esse ponto.

“Se não há luta, não há progresso” – Frederick Douglass

Ao longo de minha própria retirada, eu tenho me interessado por soluções para esse problema e tenho feito ativamente campanhas por uma maior conscientização e compreensão, lançando um podcast e iniciando uma petição que agora tem mais de 10.000 assinaturas. Aplaudo em voz alta o excelente trabalho realizado pelo doutor Peter Groot, na Holanda, para desenvolver as tiras de afunilamento. Uma solução baseada em evidências, desenvolvida a partir de uma perspectiva de experiência vivida e independente dos fabricantes de medicamentos. Esperemos que possamos ir adiante, pensando o suficiente para adotar soluções, em vez de fazer grandes declarações e, ao mesmo tempo, alcançar pouco valor prático para aqueles que estão sofrendo.

Nos meus esforços de campanha, ao lado de outros, eu defendo:

  • Suporte para aqueles afetados pela dependência aos antidepressivos.
  • Verdadeiro consentimento informado e discussão no momento da prescrição, que ajude a minimizar as chances de alguém se tornar dependente.
  • Adequadas ao propósito, que existam diretrizes baseadas em evidências que forneçam fatos não adulterados, não meramente teóricos.
  • Maior conhecimento entre médicos e psiquiatras, permitindo-lhes reconhecer e responder à retirada difícil.
  • Que o uso de medicamentos antidepressivos seja proporcionado com as pessoas controlando o que elas tomam e seu processo de parar de tomar.

Acredito que tais objetivos sejam ações de senso comum que minimizem os danos e levem a uma melhor prescrição. Certamente, um objetivo louvável tanto para a medicina quanto para a sociedade.

Quanto a mim, ainda tenho a parte mais difícil da minha retirada frente a mim, estou cansado além das palavras e desanimado além da crença. Eu não me sinto preparado para o desafio que está por vir. Minha vida foi em grande parte reduzida a ver os outros seguirem suas vidas, mais ou menos como a observar o mundo de dentro de um aquário. Tenho muita sorte de poder trabalhar com colegas que me dão apoio, que entendem que eu posso estar trabalhando um dia e acamado no dia seguinte. Meu coração se apega a qualquer um que esteja sofrendo de abstinência, mas especialmente aqueles cercados por pessoas julgadoras que negam apoio, e aqueles que estão tão doentes que não podem trabalhar e que estão lutando ao navegar por um sistema de ‘benefícios” insincero e cínico . A negação e a minimização da retirada tornam ainda mais difícil o acesso para ajuda àqueles que sofrem, somos tantos os que buscam apoio ou entendimento. O único crime deles é estarem experimentando dificuldades criadas por um tratamento prescrito, e que são tratados como párias dos médicos.

Se você confiar mesmo em seu médico ou psiquiatra para a retirada ou aconselhamento para a redução, você pode experimentar uma abordagem muito imprevisível. Retirada de drogas antidepressivas pode ser um desafio significativo e precisa ser abordada com cuidado, com compreensão e uma abordagem de tomada de decisão compartilhada. Quero agradecer aos corajosos clínicos gerais, psiquiatras, psicólogos e pesquisadores que se afastaram da linha de partida para apresentar a verdade crua e inalterada sobre as drogas psiquiátricas, incluindo sua capacidade de resultar em experiências de abstinência, por vezes, excruciantes.

Não tenho o menor desejo de amedrontar ninguém, por isso é importante saber, ao ler isto, que nem todos experimentarão uma retirada tão difícil. No entanto, essa questão se resume a mais do que uma diferença de opinião: temos que avaliar cuidadosamente se a falta de uma discussão completa e franca entre prescritores e pacientes está causando danos à sociedade.

Para qualquer pessoa que esteja lendo isso e que não consiga encontrar ajuda e suporte, há alguns recursos on-line que podem ser recomendados. Mad in America mantém um Diretório de Provedores, listando os terapeutas que estão dispostos a apoiar as pessoas que fizeram a escolha de parar. O site bem conhecido Surviving Antidepressants tem há anos fornecido suporte para a redução e interrupção. Outra excelente fonte de informação é o Inner Compass e o Withdrawl Project de Laura Delano.

Eu sinceramente espero que eu não esteja escrevendo outro blog em 1.095 dias, mas estou longe de estar confiante.

“Sem desvios da norma, o progresso não é possível” – Frank Zappa

Antidepressivos e a Reinternação Psiquiátrica

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Um grupo de pesquisadores liderados por Michael P. Hengartner, pesquisador sênior em psicologia da Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique, publicou recentemente um artigo no Frontiers in Psychiatry investigando a relação entre o uso de antidepressivos e a reinternação em hospitais psiquiátricos. Os autores descobriram que os usuários de antidepressivos foram hospitalizados em uma taxa maior do que os pacientes semelhantes que não tomaram as drogas, e que eles permaneceram no hospital por mais tempo após a readmissão. Os antidepressivos, concluem os autores, podem impactar negativamente a recuperação, por meio de hospitalizações psiquiátricas cada vez mais prolongadas.

“Nossos dados sugerem que o uso de antidepressivos durante o internamento na fase aguda, em comparação com o não uso, pode aumentar o risco e a duração de reinternações subsequentes ao longo de 12 meses de follow-up em pacientes com transtornos principalmente afetivos e não afetivos”, escrevem os autores. autores.

 “Nossas descobertas, portanto, desafiam o suposto benefício de longo prazo dos antidepressivos e levantam a possibilidade de que, a longo prazo, os antidepressivos podem fazer mais mal do que bem.”

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Tem havido um aumento contínuo na prescrição de antidepressivos nos últimos 30 anos, um aumento que não se correlacionou com a queda da prevalência global de ansiedade e depressão, que se manteve estável. Incapacidade por transtornos afetivos, entretanto, tem aumentado, levando muitos a questionar os benefícios da farmacoterapia antidepressiva.

Grande parte da evidência da eficácia dos antidepressivos vem das pesquisas de descontinuação, em que os pacientes que tomam antidepressivos mantêm seu uso típico da droga ou recebem uma mudança repentina para o placebo. A partir dessas pesquisas, os pesquisadores concluíram que a continuação dos antidepressivos previne a recaída da depressão, embora essas conclusões se baseiem em motivos incertos.

Primeiro, sugerem os autores, esses estudos incluem apenas indivíduos que responderam ao tratamento medicamentoso agudo, ignorando aqueles que se recuperam espontaneamente ou que não respondem às drogas. Em segundo lugar, o grupo de controle – o grupo que mudou de repente para placebo – consiste em indivíduos que naturalmente experimentam sintomas de abstinência ao interromper a medicação.

Os sintomas de abstinência podem ser diagnosticados erroneamente como recaída depressiva, ou podem, eles próprios, causar uma deterioração da depressão. Finalmente, os antidepressivos alteram a função neurobiológica de tal forma que a densidade de receptores é diminuída devido ao aumento da concentração de neurotransmissores. Isso pode causar problemas emocionais e psicossomáticos após o uso de antidepressivos a longo prazo, que são de natureza iatrogênica, devido às adaptações neurobiológicas relacionadas à droga.

Outros estudos ainda observam que apenas cinco por cento dos indivíduos tratados continuamente apresentaram remissão sustentada, que os antidepressivos podem não melhorar as taxas de remissão ou que os antidepressivos não diferiram do placebo, mas foram significativamente piores que a psicoterapia na melhora do comprometimento funcional, dos sintomas de depressão e das tendências suicidas.

Muitos experimentos não têm grupos de controle não medicados ou contêm amostras não representativas. Enquanto esta lacuna é preenchida por uma variedade de estudos observacionais naturalistas que sugerem que a eficácia do uso de antidepressivos em pessoas com transtornos afetivos é limitada, estudos observacionais recebem críticas empiricamente infundadas de especialistas em psiquiatria sobre vieses de seleção e outras afirmações desse tipo.

Os autores construíram o atual estudo deles sobre a ideia de que o uso de antidepressivos tem mostrado, às vezes, uma relação negativa com os resultados do tratamento da depressão, e os autores postularam que poderia haver uma relação entre o uso de antidepressivos após a alta e a reinternação. Para investigar isso, eles fizeram uma combinação de 45 usuários de antidepressivos com 45 não usuários de dois hospitais psiquiátricos em Zurique, combinando os pares em uma variedade de resultados clínicos, incluindo gravidade da doença, déficit funcional e comprometimento psicossocial.

O presente estudo teve como objetivo expandir pesquisas anteriores, ao ampliar as amostras passadas de pacientes com depressão, bem como concentrando suas análises em resultados objetivos e imparciais, tais como os registros de hospitalização. Para fazer isso, os autores extraíram dados de um estudo projetado para testar o resultado de uma intervenção de gerenciamento de caso em dois hospitais psiquiátricos suíços. Os participantes foram avaliados enquanto estavam internados, assim como aos três e 12 meses após a alta. Os resultados primários do estudo foram frequência e duração das readmissões em hospitais psiquiátricos, bem como uso de antidepressivos e variáveis sociodemográficas.

Os resultados foram impressionantes: os autores descobriram que o uso de antidepressivos durante a internação aguda levou a um aumento de 350% no risco de reinternação e a um aumento de 250% nos dias reinternados.

“Nossos resultados até levantam a possibilidade de que a farmacoterapia antidepressiva pode aumentar as taxas de recaída e prejudicar a recuperação a longo prazo”, escrevem os autores.

“Estas descobertas estão de acordo com uma metanálise abrangente de ensaios clínicos de longo prazo … e conflitam com os resultados dos ensaios de descontinuação, que visam estimar a prevenção de recaída em longo prazo em pacientes tratados com drogas continuamente em comparação com pacientes cuja medicação foi descontinuada rapidamente e substituída por placebo.”

Existem vários pontos fortes do estudo, incluindo ser prospectivo, controles para evitar vieses de seleção e apresentar resultados imparciais. No entanto, também existem fragilidades, incluindo falta de causalidade, devido ao fato de os grupos não serem randomizados, possíveis confusões não mensuradas, uma modesta combinação em n = 90, razões desconhecidas para reinternação e não ter informações sobre quanto tempo os antidepressivos foram usados após a alta hospitalar.

“As taxas de reinternação nos usuários de antidepressivos podem ser devidas a reações adversas ao uso prolongado de antidepressivos ou a reações graves de abstinência após a interrupção da droga”, escrevem os autores.

“Esses mecanismos potenciais são provisórios e ainda inconclusivos, mas fornecem uma importante via para futuras pesquisas sobre os efeitos a longo prazo dos antidepressivos”.

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Hengartner M.P., Passalacqua S., Andreae A., Heinsius T., Hepp U., Rössler W., & von Wyl A. (2019). Antidepressant Use During Acute Inpatient Care Is Associated With an Increased Risk of Psychiatric Rehospitalisation Over a 12-Month Follow-Up After Discharge. Frontiers in Psychiatry, 10:79. doi: 10.3389/fpsyt.2019.00079 (Link)

Psiquiatras reivindicam mais atenção aos danos iatrogênicos

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Photo Credit: Creative Commons

Um recente editorial em Psicoterapia e Psicossomática chama a atenção para os danos iatrogênicos que os usuários podem experimentar como resultado do tratamento psiquiátrico. Os autores definem a iatrogenia como sendo os efeitos colaterais e os riscos associados à intervenção médica, incluindo erro médico, reações adversas a medicamentos e negligência.

A iatrogênese psiquiátrica normalmente se manifesta como complicações do tratamento com drogas psicotrópicas, como discinesia tardia, resistência à insulina, distúrbios cardíacos / metabólicos e resultado de toxicidade direta, intoxicação, abstinência ou interação medicamentosa.

O editorial observa que, tradicionalmente, a psiquiatria tem sido avaliada apenas em relação à melhoria dos sintomas psiquiátricos, com pouco foco, no entanto, nos impactos psicológicos e comportamentais negativos do tratamento e nos efeitos colaterais considerados inevitáveis. Os autores, Giovanni Fava, psiquiatra e professor da Universidade de Buffalo, e Chiara Rafanelli, psiquiatra e professora da Universidade de Bolonha, escrevem:

“Os atuais sistemas de classificação em psiquiatria não consideram os componentes iatrogênicos da psicopatologia relacionados à toxicidade comportamental. Distúrbios afetivos causados ​​por medicamentos, bem como efeitos paradoxais, manifestações de tolerância (perda de efeito clínico, o caráter refratário), distúrbios de abstinência e pós-abstinência, são cada vez mais comuns devido ao uso disseminado de drogas psicotrópicas na população em geral. Essa negligência é séria, uma vez que as manifestações de toxicidade comportamental dificilmente respondem aos tratamentos psiquiátricos convencionais e podem ser responsáveis ​​pelo amplo espectro de perturbações incluídas na rubrica genérica de resistência ao tratamento.”

Há muito os médicos estão conscientes da necessidade de considerar os efeitos das drogas psicotrópicas nos sintomas do distúrbio que estão tratando. Não obstante, foi apenas a partir dos anos 90 que passou a surgir uma revisão da sintomatologia residual do tratamento com drogas psiquiátricas, perguntando-se como um número limitado de sintomas duradouros em usuários de antidepressivos a longo prazo, insuficientes para o diagnóstico clínico, deveria ser avaliado.

Detre e Jarecki propuseram o conceito de ‘fenômeno da reversão’, em que, à medida que a doença remite, ocorre uma progressiva repetição de sintomas e estágios em ordem inversa sobre como ela se desenvolveu. Desde então, tem sido argumentado que a redução ou a remoção de sintomas residuais pode resultar em melhores resultados a longo prazo, o que favorece o tratamento sequencial.

DiMascio e colegas definiram a ‘toxicidade comportamental’ como sendo a ação de uma droga que, dentro da faixa de utilidade clínica, produz mudanças no humor, percepção, cognição e função psicomotora, limitando assim a capacidade de um indivíduo ou constituindo um risco para seu bem-estar. Eles também introduziram o conceito ‘efeitos paradoxais das drogas’, que são alterações de humor opostas ao resultado clinicamente desejado, bem como são os efeitos pendulares das drogas, que inicialmente seguem na direção pretendida, mas que agem de tal forma que o estado do indivíduo se move para a condição oposta para a qual a droga havia sido prescrita.

Estes conceitos, afirmam os autores , receberam pouca atenção na literatura científica até muito recentemente. Argumentam ainda que a abstinência pode constituir uma forma de ‘toxicidade comportamental’ e que pode variar desde sintomas leves, de recuperação espontânea até sintomas prevalentes e duradouros. A ocorrência de abstinência parece não ser afetada pelo processo de redução da dose e, após a perda do efeito clínico, é improvável que o aumento da dose restaure uma resposta.

Há muito se discute como os medicamentos podem ter impacto na farmacodinâmica muito tempo após a cessação da medicação, embora Baldessarini tenha observado que mudanças a longo prazo podem ocorrer nos níveis da plasticidade do receptor, do disparo neuronal, da síntese do transmissor e do controle genético da função neuronal. O acompanhamento desses conceitos tem sido escasso, e ainda não está claro se as alterações farmacodinâmicas da medicação são reversíveis.

Há ‘a tolerância oposicionista’, que consiste em forças que se desenvolvem quando um mecanismo homeostático, sujeito a perturbação farmacológica prolongada, tentando trazer o sistema de volta ao equilíbrio.  Por conseguinte, o modelo oposicionista de tolerância argumenta que a continuação do tratamento medicamentoso pode levar a processos que se opõem aos efeitos iniciais de um medicamento, o que pode fazer com que a doença se torne mais maligna e não responda ao tratamento. Se o tratamento for interrompido, os processos de oposição não terão mais resistência, o que resulta em novos sintomas de abstinência, sintomas de rebote e resistência ao tratamento.

A definição de comorbidade de Feinstein é ‘qualquer entidade clínica distinta que exista ou que ocorra durante o curso clínico, além da doença em estudo’. A ‘comorbidade iatrogênica’, por sua vez, refere-se a modificações no curso, nas características e respostas ao tratamento em relação à terapia prévia, e pode explicar a resistência a um fármaco anteriormente efetivo, a persistência de efeitos colaterais assim como o surgimento de novos sintomas.

“O conceito mal definido de resistência ao tratamento está baseado na suposição não comprovada de que o tratamento estava certo inicialmente e a incapacidade de responder é inteiramente transferida (e implicitamente responsabilizada) pelas características do paciente”, escrevem os autores.

A ‘iatrogênese em cascata’ é o conceito de que o desenvolvimento de múltiplas complicações médicas pode progredir após um primeiro evento inofensivo, que despertou pouca atenção. Quando os sintomas de toxicidade comportamental são mal interpretados ou ignorados, os eventos em cascata podem levar à deterioração da doença, simplesmente a partir das escolhas do clínico.

À medida que a atual frequência de uso de drogas e que a polifarmácia aumenta, o acesso aos danos dos medicamentos e à polifarmácia torna-se cada vez mais crucial nas avaliações psiquiátricas. As definições atuais do DSM e do CID assumem que exista um paciente livre de drogas, um paciente que é cada vez menos provável que exista de fato, já que a maioria dos casos psiquiátricos na prática clínica envolve algum tratamento medicamentoso. Isso pode resultar em uma falta de ênfase na coleta de informações relacionadas ao tratamento anterior, o que reflete a razão da crescente necessidade de tratamento psiquiátrico.

Um primeiro passo crucial deve ser avaliar a eficácia, bem como a ‘toxicidade comportamental’ dos medicamentos psicotrópicos anteriores. Em seguida, o clínico colocar essa informação no contexto da morbidade psiquiátrica e médica. A taxonomia clínica tradicional não inclui considerações iatrogênicas, na medida que estão relacionadas à ‘toxicidade comportamental’. Os autores advogam, em vez disso, por um modelo de vias concêntricas, em que fatores psicológicos, biológicos, sociais e iatrogênicos formem uma teia concêntrica, todos contribuindo para a condição clínica. A partir daí os autores sugerem a ‘macroanálise’ que assuma as relações funcionais entre áreas problemáticas que irão flutuar durante o curso da sintomatologia.

A incorporação de fatores iatrogênicos, anteriormente ignorados na psiquiatria, exigirá um renascimento da psicopatologia e um exame minucioso dos modelos conceituais atuais. Para fazer isso, os autores fazem vários comentários orientadores.

  • Em primeiro lugar, os autores argumentam que os sintomas de abstinência muitas vezes podem ser mal interpretados como sendo um sinal de recaída, isto é, mal interpretados. Seu diagnóstico, ao contrário, requer a coleta de novos sintomas que não fazem parte da sintomatologia anterior, embora essa questão seja complicada pela coexistência de sintomas de recaída e abstinência.
  • Em segundo lugar, é importante distinguir a não resposta do novo tratamento da tolerância à terapia prévia ou à perda de resposta durante a terapia de manutenção.
  • Terceiro, a identificação de distúrbios afetivos secundários ou sintomáticos pode ter implicações críticas para as síndromes psiquiátricas induzidas por drogas; os autores sugerem considerar essas síndromes relacionadas a drogas até que se prove o contrário – nos casos em que os agentes produzem sintomas psiquiátricos concordantes.
  • Em quarto lugar, os autores argumentam que devemos considerar se é o tratamento antidepressivo ou a depressão o que está na causa dos distúrbios pós-abstinência.
  • Finalmente, como Richardson e Doster sugerem, os autores propõem que sejam considerados: o risco inicial do transtorno sem tratamento, a falta de resposta ao tratamento e a vulnerabilidade a efeitos adversos do tratamento, ao ser tomada uma decisão médica. Isso deve ser adaptado a cada paciente, afastando-se assim da estrita dependência aos critérios diagnósticos convencionais.

“A noção de doença psiquiátrica não está mais de acordo com o espectro de saúde hoje conhecido e com a interação complexa de fatores biológicos, iatrogênicos e psicossociais”, observam os autores.

“A consideração de fatores iatrogênicos desafia a maioria das práticas atuais de prescrição de drogas psicotrópicas. O reconhecimento de fatores iatrogênicos na psicopatologia contraria os principais interesses comerciais e, não surpreendentemente, é censurado em revistas médicas convencionais, nas reuniões científicas e pelas diretrizes oficiais. ”

Finalmente, os autores declaram que o compromisso com a medicina baseada em falsas evidências e o marketing da indústria farmacêutica são atualmente os principais responsáveis ​​pela tomada de decisão dos psiquiatras. Em contrapartida, pedem aos psiquiatras que para entenderem os componentes iatrogênicos da psicopatologia, usem o seu já complexo julgamento clínico bem como as suas habilidades de entrevista.

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Fava, GA, & Rafanelli, C., (2019). Fatores Iatrogênicos em Psicopatologia. Psicoterapia e Psicossomática, 14 , 1-12. doi: 10.1159 / 000500151 (Link)

Abordagem do Diálogo Aberto Reduz a Necessidade Futura de Serviços de Saúde Mental

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Um estudo recente, publicado no International Journal of Nursing Studies, investiga os resultados da saúde mental dinamarquesa associados à abordagem do Diálogo Aberto ao tratamento psiquiátrico. Os resultados do estudo da juventude de coorte baseada em registros sugerem que o Diálogo Aberto pode levar a um risco reduzido a longo prazo de hospitalização psiquiátrica de emergência, bem como à redução da utilização de serviços gerais de saúde.

Os pesquisadores, liderados por Niels Buus da Universidade de Sydney, escrevem que “enquanto a relação entre fatores sociais e saúde mental está bem estabelecida, as intervenções biopsicossociais tendem a se concentrar em mecanismos psicológicos e farmacológicos em vez de ampliar o apoio social e a intervenção comunitária”.

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O Diálogo Aberto (D.A.) é uma abordagem ao tratamento psiquiátrico que enfatiza a colaboração, a transparência e as intervenções não-diretivas, envolvendo uma variedade de profissionais de saúde, bem como familiares e outros membros da comunidade. O D.A. foi proposto como uma alternativa aos modelos psiquiátricos padronizados, que mantêm separadas as atividades dos profissionais de saúde e, muitas vezes, consistem em tomada de decisão hierárquica com base na expertise assumida de psiquiatras, enfermeiros e terapeutas.

“Na abordagem do D.A. os terapeutas se esforçaram para adotar um uso de linguagem aberta, não-diretiva e não patologizante e, se possível, todas as decisões importantes, como o início do tratamento médico ou a internação hospitalar, foram discutidas da maneira colaborativa durante as reuniões para otimizar transparência no processo ”, explica a equipe de pesquisa.

“O tratamento e o planejamento do tratamento também foram adaptados às necessidades e os vários outros métodos de intervenção em saúde mental foram organizados em um processo de tratamento integrado. As reuniões da rede geralmente aconteciam na casa do paciente, mas também podiam acontecer na escola do paciente, no local de trabalho ou na associação de moradores da comunidade. ”

Embora a abordagem, originada na Finlândia, tenha relatado resultados extremamente promissores para o tratamento precoce e colaborativo  da psicose e tenha iniciado a implementação do programa piloto nos Estados Unidos, uma crítica tem sido a falta de amostras de dados diversificados para apoiar a eficácia internacional do Open Dialogue.

No presente estudo, Buus e colegas examinaram dados de vários registos dinamarqueses nacionais, comparando as intervenções do D.A. com modelos padrão de tratamento psiquiátrico para jovens em risco, com idades entre os 14 e os 19 anos. Os pesquisadores compararam os dois modelos em vários resultados, incluindo a utilização de serviços de saúde psiquiátrica e serviços de clínicos gerais pelos pacientes, bem como tentativas de suicídio e outras medidas relacionadas à saúde e ao status social.

Embora os pacientes do D.A. inicialmente tivessem uma taxa de contato ambulatorial 24% maior após um ano em comparação com o grupo de modelos padrão, esse número caiu nos acompanhamentos subsequentes. A assistência psiquiátrica de emergência na marca de um ano foi 79% mais baixa do que o grupo de comparação.

Para os serviços de clínica geral, o grupo D.A. apresentou uma taxa de utilização 10% mais baixa do que o grupo de comparação, que aumentou para 15% mais baixa após dez anos. Os autores oferecem uma explicação especulativa desses resultados, afirmando que “é possível que a intervenção tenha influenciado o comportamento da doença dos jovens usuários e sua rede social; potencialmente, eles podem ter aprendido a acessar e usar os serviços de emergência psiquiátrica de maneira diferente ”.

“As reduções de longo prazo nos serviços de tratamento de emergência psiquiátrica e de medicina geral indicam que o uso excessivo de serviços de saúde foi evitado a probabilidade de excesso de medicalização de jovens que sofrem problemas de saúde mental .”

A equipe de pesquisa descobriu que o grupo D.A. experimentou mudanças positivas no status de emprego em períodos posteriores do follow-up, e eles sugerem que isso pode ser resultado de uma melhor integração social. Curiosamente, Buus e colegas não encontraram diferença estatisticamente significativa entre as tentativas de suicídio dos dois grupos ou o tempo de internação psiquiátrica. Eles observam, no entanto, que isso poderia ser o resultado do “escopo limitado da intervenção, que não estava especificamente direcionada para essas questões, ou o próprio tamanho da amostra”.

Buus e seus colegas acrescentam, neste estudo, o conjunto de dados que apoiam a eficácia do D.A. como um modelo psiquiátrico alternativo. Os estudos originais finlandeses eram promissores, mas permanecia inconclusivo se o modelo poderia ser efetivamente traduzido em um contexto sociocultural diferente.

Embora as descobertas atuais não tenham mostrado melhora estatística em todos os resultados e este estudo não tenha sido experimental, impedindo uma demonstração de causalidade, as reduções significativas na utilização de serviços psiquiátricos e clínicos gerais de emergência sugerem que o Diálogo Aberto (D.A.) pode ser mais rentável e mais eficaz no incentivo às formas comunitárias de cuidado.

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Buus, N., Kragh, JE, Bojesen, AB, Bikic, A., Müller-Nielsen, K., Aagaard, J., & Erlangsen, A. (1 de Março de 2019). The association between Open Dialogue to young Danes in acute psychiatric crisis and their use of health care and social services: A retrospective register-based cohort study. International Journal of Nursing Studies, 91, 119-127. (Link)

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