Um “não” à internação e ao eletrochoque: CNDH recomenda suspensão da Nova Política de Saúde Mental

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Do CEE, FIOCRUZ, publicado no site GGN: “Na última quinta-feira, 14/3/2019, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) aprovou, em sua 45ª Reunião Ordinária, documento que recomenda a imediata suspensão das medidas da Nova Política Nacional de Saúde Mental, em execução pelo atual governo, bem como sua ampla discussão em audiências públicas por todo o país. A Nova Política prevê ações que vão na contramão da legislação vigente – a Lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica) –, tais como como a inclusão de hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial, financiamento para compra de aparelhos de eletrochoque (eletroconvulsoterapia), possibilidade de internação de crianças e adolescentes e abstinência como opção de tratamento a usuário de drogas.”

Em recente entrevista, o sanitarista Paulo Amarante, coordenador do Laboratório de Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (LAPS/Ensp/Fiocruz), classificou a nova legislação como ‘uma bomba sobre uma política que vem sendo construída há quase 40 anos’. Na oportunidade, Paulo, que é integrante do GT de Saúde Mental da Abrasco e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), destacou que trazer o hospital novamente para o centro da rede de atenção é privilegiar um modelo que explora a internação e no qual as pessoas perdem o direito à cidadania e por vezes à vida.”

 

 

 

 

 

 

 

Leia a matéria na íntegra →

A Vida de Celina

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Talvez um pouco atrasada no momento em que envio esta tradução para compartilhar com os colegas do Brasil este texto que reflete o processo da psiquiatria durante 74 anos no corpo de Celina, 74 anos de asilo de loucos. “Os avanços da ciência” durante esses 74 anos de confinamento fizeram muito no corpo de Celina: Celina viveu com tortura e privação de liberdade por 74 anos sem que ninguém soubesse qual era sua nacionalidade. Aqui está a triste história com trechos de parágrafos de sua história médica. A Lic. Julia Cicuttin colaborou na tradução desta nota. Uma companheira na caminhada, em fazer o caminho da praxis para o futuro que é a vida sem asilos de loucos.

Lucila López

Essa é a história: a vida de Celina …

A vida de Celina, 74 anos no asilo, por Camila Azzerboni

CAPER · QUARTA-FEIRA, 15 DE MARÇO, 2017

Celina Trezeguet

Data da primeira entrada 12.12.1941 aos 22 anos. Solteira, Trabalhadora do frigorífico. Católica, 4º ano do ensino fundamental. Nascimento…Peru? Espanha? Filha de Marciel e Alejandra.

Admissão: melancolia, abstração, delírio

É assim que a história clínica dela começa… eu quase não a conheci, mas sim sabia onde morava desde os 22 anos de idade. Contaram-me sobre ela e eu li sua “história”, demorei um pouco mais de uma hora para ler 70 anos de hospitalização.

Nós sabemos tão pouco sobre ela que ainda não conhecemos sua nacionalidade. É registrado que ela entrou, além de melancolia, com delírio e abstração, por causa de uma briga com seu irmão.

O que sabemos é que um dia a levaram para o hospital e lá morreu 70 anos depois. Ela conheceu – pela força – a história do hospital e os “avanços” da psiquiatria.

O que Celina teria dito se a tivéssemos ouvido com amor e menos ciência?

O que seus olhos nos dizem, suas rugas e um corpo devastado pela instituição?

O que ela gostava de fazer? Como foi sua infância? Sua adolescência? Ou seu trabalho?

Em sua história nos dizem … “Ela entra numa atitude um tanto estática, sua cabeça flexionada em seu peito. As pálpebras baixas, negativista na frente do interrogatório, às vezes chora, mas seu choro não parece responder a um conteúdo emotivo “(12 de julho)

O que estava errado com ela, o que a fez sofrer, o que a fez chorar?

Assim, com 20 anos de idade, começam seus dias neste lugar escuro onde são mantidos, escondem-se, são depositados e estão trancados para aqueles que não querem ver ou ouvir, aqueles que não podem “ser” ou querem saber, abraçar-se e cuidar de si mesmos. Alguns chamam esse lugar “Hospital neuropsiquiátrico especializado em pessoas agudas e crônicas (um lugar de “cuidados de saúde”)”, eu prefiro dizer asilo, local de confinamento, tortura e morte.

Como foram seus anos no asilo? Os médicos dizem que ela não queria falar, que ficava isolada, evitando os olhos …. “Não tendo mudado a sua imagem mental e persistindo seu negativismo contra os alimentos, descartadas as possíveis contraindicações somáticas, o tratamento convulsivo é iniciado com 5  da solução pentametilentetrazolal 10%, preparado no hospital, obtendo um choque típico “(04.09.41)

Parece que a psiquiatria “avança” e encontra esta solução torturante “Após o segundo choque obtido com a mesma dose, a imagem e o comportamento dos sintomas mudaram fundamentalmente. Ela atende, percebe e evoca sem dificuldade, incluindo o que aconteceu nos dias da sua admissão: ela explica que ela ouviu o que lhe foi dito e que teve que responder, mas “ela não poderia fazê-lo”; também em relação à comida, ela estava na mesma situação, queria comer, mas não podia “perder a vontade” de acordo com sua própria expressão. Ela também lembra que ela teve “como sonhos”, sendo acordada: viu figuras humanas que se mexiam; também ouvia um som como de máquinas. Ela acha que tudo isso aconteceu, que era “fraqueza cerebral” ou doença; Agora ela está muito melhor, mas não está tudo bem, porque às vezes ela se sente um pouco nervosa à noite quando é hora de dormir. Aceita permanecer e continuar o tratamento por mais alguns dias. (9/8/1941)

“Após o 8º choque da 2ª série (11 no total), ela parece calma e explica que tudo o que aconteceu com ela foi por causa duma aversão que ela teve por uma pessoa: um “menino” a quem ela não quer chamar de namorado,  sobre o qual “aquelas que se chamavam amigas” fizeram comentários que a machucavam, ela sempre pensou nessa pessoa, e recentemente, durante os dias que ela passava em casa, quando estava sozinha de noite, sentia ouvir a voz dele e não podia dormir: ficava com medo e ligava para seus parentes. Ele critica esta situação e acredita que algo análogo não acontecerá de novo. O tratamento é continuado “(4/10/1941)

11/4/1941: Após a 16ª injeção, da segunda série (19 no total), observa-se uma nova remissão dos sintomas, não muita completa, mas parece ser mais estável do que a anterior.

15/12/1941: A remissão foi mantida e a adaptação ativa melhorou.

Agora sim, após 4 meses de fornecimento intenso de medicação, foi possível conseguir que ela fale e que possa adaptar-se ao funcionamento do Estabelecimento da Saúde.

Não estava no `40, mas acho que não mudou tanto e que estarão se referindo a que ela possa se levantar às 5 da manhã, tomar a medicação para comer, banhar-se com água fria, ficar de pé, sentir, conversar, ficar quieta, comer, dormir e voltar a levantar-se quando é dito, estar ajeitada, mas não excessivamente.

E por que eles queriam que ela contasse tudo? Como sua situação podia mudar? Passaram 12 anos de hospitalização e do grande progresso que fizeram com o choque típico.

“A paciente não é muito acessível, fazendo o interrogatório difícil, respondendo em monossílabos ou com gestos; atitudes de estereótipos claros; ela muitas vezes olha no espelho que ela carrega no seu bolso, as possibilidades intelectuais dela são pobres, seus julgamentos são pueris. Do ponto de vista afetivo, ela é indiferente, tendo pouco interesse na perspectiva de retornar aos seus parentes”. (21 de dezembro de 1953)

Já na década de 1950, Celina aprenderá sobre a nova Revolução da Psiquiatria, que para suas “doenças” terão novas pílulas que tentarão reparar o anterior, sobre tudo, que não seja tão apática, que possa conversar novamente, recontar o que aconteceu, e dizer aos novos médicos que se sente convulsionar por um choque de drogas. E possa se mostrar mais ativa no confinamento da sala de jantar…mas não tão ativa, porque será necessário sedá-la.

É adicionada, portanto, nova medicação:

“Excitação noturna ocasional, grandes comprimidos 1-1-2”. (6/10/1958)

“Doente tranquila. Trabalho em tratamento. Bom físico”. (Dezembro de 1963)

“Mesmo tratamento. Sem variantes” (agosto dos 64) “Mesmo Estado “. (Julio de 1965)

“Continua bem adaptada à sala. Trabalhadora Cuida da sua limpeza pessoal. “(26.04.1969)

Sim, também estou impressionado com o fato de ter conhecido a história de Celina 10 anos após a incorporação de novos medicamentos, parece que tudo está indo bem: ainda está adaptada, mantenha-se em forma, e bom, não há muito mais a dizer sobre os próximos 5 anos.

Estamos conhecendo-a com seus 50 anos de vida e 28 anos de hospitalização. Sim, ela viveu dentro do asilo por mais tempo do que viveu fora. Mas com os médicos que são incorporados, e que assumimos que estão mais atualizados, chegam boas notícias:

Lúcida e calma. Boa orientação tempo-espacial. É visitada assiduamente por sua família. A paciente será convocada para ver a possibilidade de lhe dar a alta médica” (01.04.74.)

Passaram mais dois anos tentando fazê-la partir, mas os médicos perceberam algo que eles não tinham pensado ou talvez sim, mas isso seria pior. Sua família, como ela, continuava envelhecendo… E não haverá ninguém para cuidar dela. Por isso, os planos mudam:

“Falamos com seus parentes que são idosos e não podem assumir o controle. O pedido de seu irmão é considerado coerente. É conveniente que a paciente permaneça hospitalizada”. (06.07.1976)

Quantos médicos ela conheceu até então? Quantas companheiras entraram?
Quantas morreram? Quanto medicação ela tomou? Quantas vezes preguntaram por
que ela entrou?

Desde o momento em que lhe disseram que ela poderia sair, mais oito anos se passaram.
Oito anos com a mesma rotina adaptada para se levantar, tomar café da manhã, tomar
medicação, cochilar, estar na sala de jantar ou no quintal, limpar, jantar e dormir. Oito
invernos, verões, primaveras e  outonos atravessados no corpo, na mente, no olhar. Novos médicos e psicólogos acreditam que tem possibilidades de sair, não é agressiva, adapta-se
facilmente, não tem grandes problemas … tem 60 anos … sei lá!
Que ela viva sua vida, mas as evoluções nos dizem: “Paciente tranquila. Adaptada à sala. Colaboradora. Limpa. Os parentes dela a visitam periodicamente. Possui possibilidades de desospitalização, mas dado o tempo de 5 hospitalizações (38 anos) e a impossibilidade dos parentes devido à falta de conforto, é aconselhável permanecer na sala de reabilitação. Continuar o tratamento.”(27, 10.82)

Embora seja difícil de acreditar, ela esteve na sala de reabilitação há 38 anos. Ela esteve
sempre numa sala de “Reabilitação?”

“Tranquila, higiene pessoal excessiva. Recebe visita periódica”.(19.9.86)

“Inalterada. Hiperadaptada” 3/3/87

Depois de um trabalho árduo: “os membros da sua família querem a alta hospitalar , mas a paciente se nega completamente. Bom estado geral, atenção especial em seu cuidado pessoal. Adaptada à sala onde ela colabora ativamente.” (23 / 12/87) … e é claro que a palavra do paciente é respeitada acima de todas as coisas e se o desejo dela é de ficar …
“É visitada regularmente pelos membros da sua família que a visitam mensalmente e
trazem o que pede Celina, especialmente “cosméticos”. Ela está localizada no tempo e
no espaço e tenazmente se recusa a ser desospitalizada por seus parentes para quem
ela espera ser visitada, mas diz “Estou mais acostumada aqui” quando pergunto sobre a
questão da sua desospitalização.” (12/23/88)

Celina está cansada, eu acredito que deve de estar farta, descrente … Eu não sei se será porque há 40 anos ela foi trancado ou algo mais aconteceu com ela? Porque 40 anos não é tanto … Ela tem ainda muito por fazer. “Paciente de 70 anos de idade que vem à entrevista por seus próprios meios, limpa, ajeitada. Muito cooperativa. Ela diz que foi hospitalizada há 40 anos por “um problema com o irmão” Adaptada à sala. Colabora com as tarefas da culinária. “Agora eu trabalho pouco, trabalhei 28 anos” Resignada a viver no hospital “Eu não quero sair mais” Os parentes dela a visitam mensalmente. Ela se alimenta e descansa bem. Medicada com Hydergina, 2 por dia, e Nifelat a cada 8 horas?”(16/11/89)

“Estável. Calma. Muito pouco comunicativa, retraída, apática-passiva social. Não
recebe medicação psiquiátrica, ela continua com medicação para doença cardíaca”
(05/11/92).

Ainda querem que ela se comunique? Agora, felizmente, eles não lhe dão mais
medicação … parece que, depois de tanto tempo e com a idade que ela tem, ela não
precisa mais disso …

A história de Celina continua do mesmo jeito pelos próximos 24 anos, já não faz sentido
contar-lhes o que a história clínica diz, porque agora ela se tornou uma mulher velha, que
não se preocupa, que se acostumou com tudo, aos pombos no seu prato, à água fria, ao
calor, ao frio, às pílulas, às perguntas sem sentido, aos gritos, conhecer enfermeiros,
médicos, assistentes sociais, acostumou-se ao confinamento, às moscas em seu corpo,
morar com mais de 30 pessoas, comer comida feia e estragada.

Sobre sua família também não soubemos mais, eles provavelmente morreram. Eu não sei
se haverá alguém que pergunte por ela, alguns trabalhadores sei que sim … eles vão vê-
la, dão uma olhada, ou cumprimentá-la… Mas o que vamos dizer? O que vamos dizer a ela? Tudo o que aconteceu em 70 anos… Mudou a política, a economia, a tecnologia, a Segunda Guerra Mundial, a queda do Muro de Berlim, a Ditadura Militar, Menem, Rua, Cristina, o Macrismo, Internet, o Peso Argentino que a gente precisa, que nasceu minha mãe e eu. e que ela estava sentada lá na sala de jantar o tempo todo? Com qual sentido? Celina morreu em 2015, após 74 anos de confinamento. Espero que conhecer sua história e todo esse sofrimento que sofremos nos sirva para chorar e gritar DEVEMOS TERMINAR COM A MORTE, O CONFINAMENTO, A TORTURA E O MANICÔMIO!

Conexão é uma necessidade humana fundamental, mas estamos muito mal a respeito

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Publicado em Medium: “Em seu livro Lost Connections, Johann Hari fala sobre suas décadas de trabalho nos campos do trauma e saúde mental e por que ele acredita que a raiz de quase tudo que sofremos é uma conexão cortada que nunca descobrimos como consertar .

Em um determinado ponto do livro, Hari fala sobre uma clínica para tratamento da obesidade, onde os pacientes que estavam acima do peso até o ponto da crise médica foram colocados em uma dieta líquida supervisionada em um esforço para tentar salvar suas vidas. O tratamento funcionou, e muitos dos pacientes deixaram a clínica com centenas de quilos mais leves e com uma nova vida – a princípio. O que aconteceu depois foi um efeito colateral que nenhum médico previu. Alguns dos pacientes recuperaram todo o peso e depois alguns. Outros sofreram rupturas psicóticas e um morreu por suicídio.

Depois de examinar por que muitos desses pacientes tiveram tais reações emocionais adversas, os médicos descobriram algo importante: o tempo em que cada paciente começou a comer demais geralmente se correlacionava com um evento traumático em que não tinham outro mecanismo de enfrentamento. Hari resumiu as descobertas da seguinte forma: “O que pensávamos ser o problema muitas vezes era um sintoma de um problema sobre o qual ninguém sabia nada”.

Conexão é a experiência da unidade. É compartilhar experiências, sentimentos relacionados ou ideias semelhantes.

Naturalmente, a implicação não é que cada pessoa com excesso de peso está sofrendo algum tipo de trauma subconsciente. A questão é que muitos dos problemas em curso que não podemos resolver são, na verdade, sintomas de problemas mais profundos dos quais podemos não estar cientes. Na verdade, Hari faz uma analogia com a fumaça de uma casa em chamas: você pode continuar soprando para longe das nuvens, mas sem apagar o fogo, seus esforços serão inúteis ”.

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Não vamos exagerar a respeito da ECT

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Em uma discussão por e-mail na Internet em um grande grupo de profissionais de saúde mental supostamente esclarecidos, poucos se prontificaram a condenar ou proibir diretamente a ECT. Um participante respondeu aos meus comentários dizendo: “Me preocupa como esse debate esteja tão polarizado. Eu aprecio a oposição de Peter à ECT. Mas isso não significa que a ECT não tenha ‘ajudado as pessoas’, mesmo que possa ser um efeito placebo.” Outra pessoa declarou que estava “na moda” criticar a ECT, mas que todos os tratamentos tinham seus prós e seus contras. A maioria parecia concordar que “às vezes funciona”.

Essa recusa em dizer ou aceitar algo polarizador é um marco da maioria dos chamados reformadores no campo da saúde mental. E a lobotomia – que a maior parte dos seus defensores parou de defender após a minha campanha nos anos 1970? E quanto à terapia por coma insulínica? Ou a cadeira giratória? E quanto aos banhos congelantes? E quanto ao sangramento e aos purgantes? E todas as outras atrocidades cometidas pela psiquiatria em “pacientes” indefesos? Será que nunca deveríamos simplesmente ter dito “Pare!”?

Algumas coisas vale a pena ser polarizadas

Sabemos o suficiente sobre os danos causados ​​pela ECT  para concluir que seria antiético até mesmo experimentar em pessoas (e talvez mesmo animais) em busca daquela pessoa que supostamente poderia dela se beneficiar. Uma vez me pediram para dar a minha orientação enquanto consultor em um estudo da ECT feito num país estrangeiro, a fim de garantir que os efeitos prejudiciais fossem revelados pelas medições. Teria sido como estar a participar de um estudo sobre espancamento de crianças e adultos para garantir que os autores catalogassem corretamente todos os danos. A única orientação ética possível, decidi, foi insistir no fim do experimento e recusar-me a participar.

Recusar-se a adotar uma postura sólida contra as atrocidades resulta em pessoas e instituições violentas que se viram com coisas como ECT e lobotomia, e palmadas severas ou espancamentos de crianças, para esse assunto. Como os psiquiatras que se recusam a rejeitar a ECT para uso em crianças ou adultos, muitos educadores defendem por sua vez a  “punição corporal” como um benefício para algumas crianças desde que usadas judiciosamente. Linguagem suave assim impediria a abolição desses abusos e daria poder a aqueles que desejam dar eletrochoque, lobotomizar ou espancar crianças e adultos, dizendo que apenas quando for “necessário”.

O que queremos dizer com a ECT “algumas vezes funciona”?

Talvez a ECT “funcione” com a mesma frequência que uma surra severa infligida a uma criança. Contos como esse não nos dizem nada, porque mesmo se fosse verdade que algumas pessoas foram supostamente ajudadas pela ECT, mesmo como efeito placebo, não temos como separar a potencial vítima de ECT que parece ser ajudada daquelas milhares de pessoas que sabemos que são prejudicadas. O mesmo seria verdade se olhássemos para o espancamento de crianças, que muitos pais até hoje ainda juram que funciona. Alguns adultos acreditam que seus espancamentos na infância os transformaram em adultos melhores, uma conclusão que eles também costumam infligir a seus próprios filhos.

Quem está fazendo tal julgamento que a ECT funciona? Quase sempre são os médicos que preferem um rosto de pedra a um triste ou irritado. São também os enfermeiros que preferem um paciente mais complacente, aquele que nunca “reclama”. Às vezes é um membro da família opressivo que prefere um marido, esposa ou filho mais dócil, ou um ente querido equivocado que confunde passividade e falta de queixas verbalizadas por uma melhoria.

A maioria dos pacientes de ECT, especialmente aqueles que são “ajudados”, estão muito prejudicados para avaliar ou entender completamente o que lhes aconteceu. Como eu descrevo comparando alguns efeitos semelhantes de neurotoxicidade de drogas psiquiátricas e danos cerebrais induzidos por ECT , a disfunção do lóbulo frontal diminui faculdades finamente sintonizadas, tais como autoconhecimento ou autoconsciência. Além disso, essas vítimas podem estar dizendo que foram ajudadas a fim de evitar serem submetidas a mais do mesmo, assim como crianças em lares violentos e internos em hospitais psiquiátricos agirão gratos pelo que estão recebendo, a fim de evitar mais danos. De fato, os pacientes ensinam uns aos outros a concordar com tudo no hospital psiquiátrico, para que possam sair mais rápido e com mais segurança.

Protegendo os sentimentos das pessoas que não sabem que estão prejudicadas?

E quanto às sensibilidades das pessoas que pensam que foram ajudadas pela ECT? Eu frequentemente sou consultado por pessoas que se sentem lesadas pela ECT ou pelas drogas psiquiátricas. Eu até já vi pessoas que foram feridas por psicocirurgia. Todas essas pessoas são quase sempre mais prejudicadas do que imaginam, e, no entanto, quando eu falo com elas de maneira cuidadosa e honesta sobre esses danos, elas se sentem aliviadas e profundamente gratas. Finalmente, depois de tantos profissionais minimizar ou negar o dano causado a elas, elas se sentem compreendidas e se sentem reconhecidas. Elas se sentem melhor sabendo o que foi feito com elas e contar com um médico que empaticamente compreende suas perdas, tristezas e indignação. O que eu descrevo em  The Heart of Being Helpful como uma ” presença de cura “requer uma combinação de ser honesto, respeitoso e atencioso.

Depois de discutir os danos com a vítima e dar apoio aos membros da família de forma compreensiva, posso então compartilhar com elas outra verdade – que nós seres humanos temos tão grandes recursos psicológicos e espirituais que podemos aprender a viver bem, apesar dos danos causado em nosso funcionamento mental.  Às vezes, podemos construir vidas muito melhores – às vezes melhor do que nunca – aprendendo a viver da maneira mais responsável e amorosa possível. Mas quanto melhor teria sido evitar o trauma físico e emocional da ECT e, em vez disso, ter sido ajudado na construção de uma vida boa pelos primeiros profissionais de quem procuramos ajuda.

A mulher que deu um depoimento sobre a ECT

Em uma grande conferência da ECT financiada pelo governo, onde eu era o único especialista em danos causados ​​pelo tratamento, uma mulher testemunhou no pódio que a ECT a ajudou. Ela parecia muito triste enquanto falava. Depois, na coletiva de imprensa oficial, ela gentilmente apertou meu braço quando passou por mim e colocou uma nota rabiscada em meu bolso. Sua nota dizia: “Dr. Breggin, obrigado por falar. Mesmo sendo essa mulher que professou em público que a ECT a ajudou, fico secretamente grata por senhor haver dito abertamente que isso machuca as pessoas e que deveria ser interrompido”.

É hora de se abandonar a busca pelas bases genéticas da depressão

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Photo Credit: Max Pixel

Um novo estudo rigoroso, publicado no American Journal of Psychiatry , analisou de perto 18 genes candidatos, supostamente a base genética da depressão. Apesar das alegações que vem sendo feitas de que esses polimorfismos genéticos podem servir como biomarcadores confiáveis, adequados para identificar o desenvolvimento posterior de “Transtorno Depressivo Maior”, os resultados desse recente estudo não encontraram nenhum suporte para essa associação. Com base nessas descobertas, a equipe de pesquisa, liderada por Richard Border e Dr. Matthew Keller no Colorado, pede ao campo que seja abandonada a ideia de que a depressão é genética.

“De acordo com as recentes recomendações do Grupo de Trabalho sobre Genôma do Instituto Nacional de Saúde Mental, nós concluímos que é hora para que as pesquisas sobre depressão abandonem as históricas hipóteses de genes candidatos e de que haja alguma interação gene e ambiente”.

Os pesquisadores afirmam que dados anteriores que apoiam a associação provavelmente representem resultados falso-positivos:

“Os resultados sugerem que as hipóteses iniciais sobre os genes candidatos à depressão estavam incorretas e que o grande número de associações relatadas na literatura sobre genes candidatos à depressão provavelmente é de falso-positivos”.

Os pesquisadores estão se referindo aqui a numerosos estudos que relataram a promessa de haver biomarcadores genéticos da depressão. Para explorar essa associação, pesquisas anteriores examinaram os efeitos diretos de mutações genéticas, a interação entre mutações genéticas e estressores ambientais, e os efeitos de diferentes tipos de mutações dentro dos mesmos genes candidatos.

No entanto, esses estudos anteriores apresentaram tamanhos amostrais pequenos e foram insuficientes. Por conseguinte, apesar de seus resultados indicarem uma associação entre variações genéticas e depressão, essa relação pode ser um resultado falso positivo.

Muitos pesquisadores que são céticos sobre essa associação têm questionado a validade dessas descobertas anteriores de marcadores genéticos para a depressão. Há várias razões para isso. Primeiramente, a equipe de pesquisadores aponta para o problema significativo colocado em se desenhar pesquisas com baixo poder de investigação, particularmente no contexto da abordagem de pesquisa específica usada para identificar mutações em todo o genoma.

“Levando-se em consideração os pequenos tamanhos das amostra que são tipicamente empregadas, a pesquisa de genes-candidatos provavelmente tem sido severamente fraca. Isso, por sua vez, pode sugerir que a taxa de descoberta falsa para muitos dos relatos positivos na literatura de genes-candidatos seja alta ”, escrevem os pesquisadores.

“Consistente com essa possibilidade, estudos de associação genética direcionados e bem guarnecidas com dados sobre depressão e outros fenótipos psiquiátricos, feitos em grandes amostras, não têm dado suporte algum a essas hipóteses de genes-candidatos.”

Em segundo lugar, os pesquisadores expressaram preocupações com relação a projetos com “métodos analíticos incorretos e controle inadequado”. Terceiro, a utilidade clínica da identificação de mutações genéticas individuais não é em nada clara. Os autores questionam a aplicação de alegações de que mutações genéticas, bem como que a interação de mutações genéticas com estressores ambientais pensados ​​enquanto indutores do início tardio de sintomas depressivos, que possam moldar construtivamente intervenções clínicas.

Finalmente, e mais importante, Border e coautores relatam que tem havido um viés significativo de publicações nesse corpo de literatura, o que é especialmente evidenciado por uma revisão de todas as interações entre gene e interações gene-ambiente entre os anos de 2000 e 2009.

Para investigar adequadamente os genes-candidatos comumente estudados e a sua associação hipotética com depressão, Border e equipe empregaram métodos de pesquisa rigorosos. Eles escrevem:

“O presente estudo é a investigação mais abrangente e bem alimentada sobre o histórico candidato que é o polimorfismo, e sobre as hipóteses de haverem genes-candidatos para a depressão, do que foi feito até o momento.”

Eles identificaram 18 candidatos a genes comumente estudados, que apareceram em periódicos revisados ​​por pares, com alegações de sua associação com a depressão. Eles adotaram uma abordagem abrangente e aprofundada, que incluiu investigar as mutações genéticas e a maneira como elas poderiam interagir com os estressores ambientais. Um exemplo de um estressor ambiental é a exposição de alguém a eventos traumáticos, explicam eles.

Além disso, Border e colegas empregaram um limiar tolerante para o ponto de corte para determinar a associação e incluíram uma gama mais ampla de diagnósticos que se enquadrariam na conceituação da depressão, incluindo “depressão ao longo da vida”, depressão “atual” e assim por diante.

Eles procuraram examinar se “os grandes conjuntos de dados da era de dados obtidos do genoma completo suportariam quaisquer hipóteses anteriores de genes candidatos à depressão”. E o que encontraram? Eles encontraram poucas evidências de que qualquer efeito observado fosse maior do que o esperado pelo acaso. Ao examinar as mutações genéticas, todas, exceto uma, apareceram associadas à depressão, usando seu ‘”limiar tolerante”.

Quer dizer, não foi encontrado suporte algum para a interação entre genes e estressores ambientais para predizer a depressão. Curiosamente, no entanto, todos os estressores ambientais medidos foram significativamente associados à depressão. Por exemplo, a exposição a traumas de infância e a traumas recentes aumentaram notavelmente o risco de depressão.

“Apesar do alto poder estatístico, nenhum dos polimorfismos mais estudados dentro desses genes demonstrou que hajam contribuições substanciais para a responsabilização pela depressão”, escrevem Border e seus colegas pesquisadores. “Não encontramos evidências que apoiem a mediação dos efeitos do polimorfismo para a exposição a eventos traumáticos ou adversidades socioeconômicas. Também encontramos poucas evidências para apoiar contribuições de outros polimorfismos comuns dentro desses genes para a responsabilização pela depressão…”

As descobertas deste estudo “estão em total contraste” com a literatura existente sobre esses 18 genes candidatos. O que diferencia esse estudo é o seu rigor metodológico, incluindo um exame minucioso das apresentações da depressão para além de uma conceituação singular da depressão.

“Talvez o mais importante”, escrevem os autores, “ao contrário das metanálises que usam descobertas de genes-candidatos que foram publicadas anteriormente, nossos resultados não podem ser afetados por publicações seletivas ou práticas de relatórios que possam inflar erros do tipo I e levar a representações tendenciosas de evidências para hipóteses de genes candidatos .”

Dadas essas considerações exaustivas feitas com relação aos dados, eles escrevem que “é extremamente improvável que tenhamos deixado de detectar quaisquer associações verdadeiras entre fenótipos de depressão e esses genes-candidatos. A implicação de nosso estudo, portanto, é que os resultados anteriores a respeito do efeito principal positivo ou do efeito de interação para esses 18 genes-candidatos em relação à depressão têm sido falsos positivos. ”

Eles concluem que a depressão pode ser muito mais complicada do que se esperava originalmente.

“Nossos resultados demonstram que os polimorfismos do gene-candidato à depressão histórica não têm efeitos detectáveis ​​nos fenótipos de depressão. Além disso, os próprios genes-candidatos (com a possível exceção do DRD2) não estiveram mais associados a fenótipos de depressão do que os genes escolhidos aleatoriamente ”.

A confiança deles em suas descobertas é apoiada pelo reconhecimento de que evidências semelhantes surgiram de investigações bem-desenvolvidas que examinaram associações entre genes-candidatos e esquizofrenia.

Assim, eles concluem com a sugestão de que a pesquisa abandone a hipótese de que mutações genéticas ou a interação entre genes e ambiente seja relevante para a depressão. Eles escrevem isso no espírito de promover a boa ciência:

“O potencial de autocorreção é uma força essencial do empreendimento científico; é com esse mecanismo em mente que apresentamos essas descobertas ”.

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Border, R., Johnson, E. C., Evans, L. M., Smolen, A., Berley, N., Sullivan, P. F., & Keller, M. C. (2019). No Support for Historical Candidate Gene or Candidate Gene-by-Interaction Hypotheses for Major Depression Across Multiple Large Samples. American Journal of Psychiatry, appi-ajp. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2018.18070881

Problemas com a saúde mental não são “distúrbios cerebrais”, dizem pesquisadores

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Os giros do cérebro do pensador como um labirinto de escolhas na ética biomédica. Scraperboard desenho por Bill Sanderson, 1997. (Wikipedia Commons)

O periódico Behavioral and Brain Sciences apresenta vários pesquisadores proeminentes em sua última edição desmentindo a noção de que problemas com a saúde mental são “distúrbios cerebrais”. Começa com um artigo de pesquisadores holandeses argumentando que a neurobiologia nunca explicará de forma convincente quaisquer problemas de saúde mental. O restante da edição inclui dezenas de comentários de pesquisadores influentes, alguns apoiando a premissa inicial e outros tentando argumentar contra ela. Em resposta, os autores do estudo inicial apontam que nenhuma das respostas pode fornecer qualquer evidência convincente de que o reducionismo neurobiológico tenha tido sucesso de uma maneira significativa.

O artigo principal e a resposta aos comentários foram escritos por Denny Borsboom, da Universidade de Amsterdã, Angélique Cramer, da Universidade de Tilburg, e Annemarie Kalis, da Universidade de Utrecht, todos na Holanda.

Nenhum dos comentaristas parece capaz de apontar evidências convincentes de que, genericamente falando, os transtornos mentais são distúrbios cerebrais”, escrevem eles, “na verdade, parece que a maioria dos comentaristas nem se incomoda. Isso nos leva à primeira conclusão importante dessa resposta aos comentários: a tese de que os transtornos mentais são distúrbios cerebrais não possui apoio apreciável. ”

Os giros do cérebro do pensador como um labirinto de escolhas na ética biomédica. Scraperboard desenho por Bill Sanderson, 1997. (Wikipedia Commons)

Os pesquisadores apresentam um experimento de pensamento que habilmente delineia o quanto a ideia de distúrbios cerebrais se saiu mal: imagine um mundo em que o reducionismo biológico tenha sido bem-sucedido. A neurobiologia dos transtornos mentais seria compreendida, e os tratamentos seriam adaptados a essa biologia e teriam uma alta taxa de sucesso. E agora imagine que neste mundo os pesquisadores escrevam um artigo revisado por especialistas em um periódico de alto nível argumentando que os distúrbios cerebrais não existem.

 

Nesse mundo, só podemos imaginar que os pesquisadores iriam reunir pilhas de evidências científicas para mostrar que as mudanças cerebrais são responsáveis ​​pelos problemas com a saúde mental. Cada comentário simplesmente apontaria para numerosos estudos demonstrando esse ponto. Não haveria debate. Em vez disso, no nosso mundo real, em resposta a esse argumento, nenhum comentarista é capaz de apontar para tal evidência, e “a maioria nem se incomoda” em tentar produzir tal evidência.

“A posição reducionista sobre transtornos mentais enquanto distúrbios cerebrais não representa uma conclusão cientificamente justificada, como é frequentemente suposto nas literaturas populares e científicas, mas é uma hipótese”.

Borsboom e seus colegas argumentam, em um periódico de alto perfil, que a hipótese do reducionismo biológico não explica suficientemente a experiência humana. Em vez disso, uma variedade de outras explicações funciona tão bem quanto, se não melhor.

Os autores sugerem que a psiquiatria deve se concentrar na intencionalidade – o significado das experiências -, pois é a única característica definidora de toda explicação humana dos problemas mentais e emocionais. Concentrar-se na neurobiologia tem sido, segundo os pesquisadores, um fracasso, que ignora os aspectos fenomenológicos da experiência humana e, portanto, perde essencialmente a base dos problemas com a saúde mental.

De acordo com Borsboom, Cramer e Kalis:

“É altamente improvável que a sintomatologia associada à psicopatologia possa ser conclusivamente explicada em termos de neurobiologia. Portanto, manter a ideia de que os transtornos mentais são distúrbios cerebrais pode ser contraproducente e pode levar a um programa de pesquisa míope. ”

Os pesquisadores argumentam que nunca serão encontradas explicações simples para reduzir estados mentais a diferenças biológicas, e isso por várias razões. Os diagnósticos de saúde mental são baseados em grupos de “sintomas”, que são ligados à cultura e que mudam com o tempo (como em cada nova edição do DSM, a “bíblia” da psiquiatria), o que torna impossível supor que encontraríamos algo biológico correlacionado com uma lista arbitrária de sintomas muito diferentes. Por exemplo, a depressão pode incluir ganho de peso, perda de peso, insônia, fadiga, sono excessivo, assim como vários estados emocionais que podem ou não estar presentes. Assumir que todas essas características contraditórias podem ser devidas aos mesmos substratos biológicos é falho.

Além disso, como a correlação não pode provar a causalidade, é tão provável que quaisquer alterações neurobiológicas detectadas sejam o resultado de um estado mental, e não da causa. Ou seja, mudanças nos níveis de neurotransmissores de uma pessoa seriam realmente esperadas após mudanças drásticas nos estados de sono, alimentação e humor – as mudanças biológicas poderiam ser causadas por mudanças de rotina como essas, ou ambas poderiam ser parte de algum outro processo.

E mais ainda, os pesquisadores argumentam que identificar os “sintomas” dos diagnósticos psiquiátricos requer atenção ao contexto ambiental e à experiência da pessoa. Ou seja, os sintomas são descritos no DSM usando linguagem experiencial contextual, em vez de linguagem objetiva. Por exemplo, os critérios para depressão “sentimentos de culpa excessiva ou inadequada” exigem que o clínico examine contextualmente a fonte da culpa e decida se é inadequado, dado o conteúdo dos sentimentos de culpa.

O influente cientista de Stanford, John Ioannidis, escreveu um dos comentários publicados com este artigo. Ioannidis discute como a pesquisa sobre problemas com a saúde mental deve prosseguir, dado o que ele chama de “beco sem saída” da agenda de pesquisa neurobiológica.

Ele sugere que as intervenções em saúde mental devem se concentrar nas mudanças ambientais, e não nos correlatos neurobiológicos da saúde mental. Ou seja, o contexto da vida de uma pessoa tem muito mais impacto sobre sua saúde mental do que sua neurobiologia. De acordo com Ioannidis:

“Nossas sociedades podem precisar considerar mais seriamente o impacto potencial sobre os resultados da saúde mental ao tomar decisões trabalhistas, educacionais, financeiras e outras decisões sociais / políticas nos níveis de local de trabalho, estadual, nacional e global”.

Borsboom e seus co-autores vão ainda mais longe:

“No esquema atual, o reducionismo explicativo é uma possibilidade remota, não um alvo de pesquisa realista. Não temos biomarcadores que sejam suficientemente confiáveis ​​e preditivos para o uso em diagnóstico. Não identificamos genes específicos de distúrbios e que expliquem uma quantidade apreciável variantes. Não obtivemos informações sobre as vias patogenéticas no cérebro que são suficientemente seguras para informar o tratamento. Se alguma coisa há, deveríamos nos perguntar por que os investimentos massivos em pesquisa, que deveriam ter descoberto esses fatores, não afastaram a prevalência de transtornos mentais comuns em um único ponto percentual ”.

Eles escrevem que as explicações biológicas reducionistas da saúde mental “não devem ser entendidas como ciência, mas como ficção científica”.

Por que muitos médicos são autoritários – e prejudiciais

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Durante vários anos, achei ser importante iluminar a natureza autoritária dos profissionais de saúde mental – especialmente aqueles que não se rebelaram de alguma forma contra a ‘socialização’ profissional. Neste artigo, vou resumir uma análise convincente do Journal of Medical Ethics sobre as variáveis ​​da cultura médica contemporânea, uma formação que produz médicos autoritários e nocivos. Primeiro, no entanto, algumas definições e as minhas observações pessoais.

Autoritário é definido como “relacionado a, ou favorecendo a submissão cega à autoridade”. Autoritários com poder exigem obediência inquestionável daqueles com menor patente, e os subordinados aos autoritários cumprem todas as exigências das autoridades.

Em contraste, os anti-autoritários rejeitam – para si e para os outros – uma obediência inquestionável à autoridade, e acreditam ser importante desafiar e resistir à autoridade ilegítima. Em contraste com a obediência inquestionável aos autoritários, os anti-autoritários avaliam se as autoridades realmente sabem do que estão falando e se são competentes, honestas, têm integridade e se preocupam com as pessoas que estão confiando nelas. E quando os antiautoritários se dão conta que uma autoridade é ilegítima, eles (elas) resistem a essa autoridade – não importa se essa autoridade é seu pai, professor ou médico.

Há sempre uma tensão entre autoritários e anti-autoritários, e quando os autoritários têm poder sobre os anti-autoritários, esta tensão resulta em várias formas de violência.

Em fevereiro de 2012, Mad in America publicou “ Por que os anti-autoritários são diagnosticados como doentes mentais ”, com minhas observações pessoais sobre o autoritarismo de profissionais de saúde mental e como isso resulta em danos para seus pacientes. (Este artigo foi republicado em outros sites com títulos como ” Nós teríamos drogado Einstein? Como o anti-autoritarismo é considerado um problema de saúde mental“.) Nenhum outro artigo que eu publiquei resultou em mais e-mails (que eu continuo até hoje a receber), a maioria das pessoas que relatam sentir-se desvalorizadas e acreditam que o seu antiautoritaríssimo – ou o do seu filho(a) – resultou em diagnósticos de doença mental.

Nesse artigo, eu simplesmente relatei minhas observações sobre como a seleção e a socialização dos profissionais de saúde mental geram antiautoritários. Eu notei que ser aprovado na pós-graduação, em uma faculdade de medicina, se tornar um psicólogo ou um psiquiatra, exige muita obediência comportamental e ser atencioso às autoridades, mesmo àquelas autoridades pelas quais não se tem respeito. Salientei que aqueles com escolaridade prolongada viveram por muitos anos em um mundo onde rotineiramente estão em conformidade com as exigências das autoridades, e foi a minha experiência que a maioria dos psicólogos e psiquiatras não é apenas extraordinariamente complacente com as autoridades, mas também inconsciente da magnitude da sua obediência. Concluí que os pacientes não complacentes criam uma enorme ansiedade para os médicos autoritários,

Enquanto pesquisava para o meu livro atual Resistindo à autoridade ilegítima (Resisting Illegitimate Authority) me deparei com um artigo do Journal of Medical Ethics de julho de 2012 intitulado “ Uma longa sombra: médicos nazistas, vulnerabilidade moral e cultura médica contemporânea ” (A Long Shaddow: Nazi Doctors, Moral Vulnerability and Contemporary Medical Culture) de autoria de Alessandra Colaianni. Argumentando como os médicos na Alemanha nazista permitiram atrocidades nazistas, Colaianni deixa claro que a “cultura médica contemporânea” também permite danos. Mencionei brevemente o artigo de Colaianni em Resisting Illegitimate Authority, mas achei que a comunidade do Mad seria um bom lugar para fornecer um resumo mais detalhado da análise feita por ela.

Colaianni começa relatando: “Mais do que 7% de todos os médicos alemães se tornaram membros da SS nazista durante a Segunda Guerra Mundial, em comparação com menos de 1% da população geral. . . . Em 1945, metade de todos os médicos alemães haviam se juntado ao partido nazista.” Colaianni ressalta:“ Médicos se juntaram ao partido nazista e às operações de morte, não com uma arma na mão, não pela força, mas por vontade própria ”(não há um único reportado caso de um médico que tenha sido baleado, encarcerado ou penalizado de alguma forma por se recusar a participar nas operações de genocídio).

No entanto, Colaianni não apenas reitera a história de como o autoritarismo entre os médicos na Alemanha nazista permitiu atrocidades nazistas. Sua contribuição original é uma descrição daquelas variáveis ​​que continuam a existir hoje na ‘cultura médica contemporânea’ e que resultam no autoritarismo e na nocividade dos médicos. A seguir, um resumo dessas variáveis:

Hierarquia e socialização: “A cultura médica é”, conclui Colaianni “de muitas maneiras, uma hierarquia rígida”. A essência do autoritarismo é a obediência inquestionável, e Colaianni aponta: “Aqueles no extremo inferior da hierarquia estão acostumados a fazer o que os superiores pedem, muitas vezes sem entender exatamente o porquê. . . . Questionar os superiores é muitas vezes desconfortável, por medo de consequências negativas (retaliação, perda do respeito do superior) e de estar errado. ”

Ambição de carreira: Colaianni observa: “Tornar-se um médico não requer pouca ambição. . . . O estudante pré-médico típico é impiedosamente competitivo, disposto a fazer qualquer coisa para progredir ”. Ela observa que “existe uma linha tênue entre estar motivado para ter sucesso e estar disposto a comprometer a integridade para alcançar o sucesso”, que, para os psiquiatras em treinamento, mesmo que tenham receio de ‘tratamentos’ prejudiciais, como o eletrochoque (ECT), eles reconhecem que a recusa em administrar ECT pode ameaçar a sua carreira. A triste realidade é que, para muitos médicos, a ambição de carreira – e uma compulsão de agradar a autoridade – superam suas apreensões morais.

A ‘Licença para o Pecado’: Colaianni ressalta: “Médicos e até mesmo estudantes de medicina podem realizar ações que, em outros contextos, são tabus.” Ela relata como, na faculdade de medicina, ela e colegas “dissecaram o cadáver de uma mulher com 98 anos de idade, cortando os músculos com bisturis e cortando os ossos com uma serra. ”Essa licença para pecar ”, conclui ela, pode resultar em arrogância prejudicial.

Infringindo dor: Colaianni observa: “Os médicos devem sentir-se confortáveis ​​infligindo dor transitória e desconforto em seus pacientes em benefício próprio, na forma, por exemplo, de pontos e biópsias.” Sentir-se confortável para infligir dor pode levar a”, Colaianni aponta, “ médicos que não se preocupam o suficiente sobre se estão machucando seus pacientes ”. Isso resulta, por exemplo, na superutilização de procedimentos e tratamentos perigosos e às vezes necessários.

Terminologia e eufemismo médicos: Colaianni observa como a medicina e os pesquisadores científicos usam uma linguagem que os protege das realidades do sofrimento. “Os cientistas usam eufemismos e a voz passiva em artigos de periódicos . . .” escrever “os animais foram sacrificados” no final do experimento é menos chocante do que admitir que “eu matei 20 ratos segurando seus pescoços e puxando suas caudas até que suas espinhas quebrassem”. Eufemismos também fornecem aos médicos autoenganos e decepções para pacientes sobre verdades que, quando claramente estabelecidas, reduzem a autoridade do médico; ela dá esses exemplos: “Usamos rotineiramente as palavras ‘idiopática’ ou ‘criptogênica’ para significar ‘não sabemos’ e ‘iatrogênica’ ou ‘nosocomial’ para significar ‘nós causamos’.”

Desprendimento: Colaianni descobriu que “a profissão médica requer imperturbabilidade diante de coisas que os outros considerariam repugnantes, horríveis ou de outra maneira sufocante”. Ela relata ter sido advertida contra se envolver emocionalmente demais com seus pacientes; e ela foi ensinada a ter “um distanciamento clínico ou preocupação desapegada”, o que significa “demonstrar empatia e carinho, mas não tanto que você se queime emocionalmente ”. Colaianni relata:“ Está bem documentado que os estudantes de medicina se tornam menos empáticos e menos éticos na medida em que avançamos na escola de medicina. ”

Embora existam médicos como Colaianni que têm angústia em relação à sua socialização profissional, muitos não o fazem.

Entre psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde mental, há um punhado que arrisca a sua carreira para resistir à autoridade prejudicial, mas a maioria não o faz; e acredito que os pacientes antiautoritários deveriam se preocupar especialmente com psiquiatras e psicólogos autoritários – talvez até mais do que com outros médicos autoritários. Enquanto um cirurgião cardiotorácico autoritário pode ser um idiota abusivo para uma equipe de enfermagem, esse cirurgião ainda pode efetivamente realizar um desvio de artéria necessário para um paciente antiautoritário. Entretanto, psiquiatras e psicólogos autoritários sempre causam danos a seus pacientes antiautoritários, porque o não-consentimento antiautoritário cria ansiedade e muitas vezes até mesmo vergonha para os médicos autoritários, e sua ansiedade e vergonha alimentam diagnósticos e tratamentos prejudiciais.

CNDH recomenda que Nova Política Nacional de Saúde Mental seja suspensa e discutida em audiências públicas

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O Conselho Nacional dos Direitos Humanos – CNDH aprovou ontem (14), em sua 45ª Reunião Ordinária, “Recomendação sobre a ‘Nova Política Nacional de Saúde Mental’, elaborada e em execução sem ser legitimamente formulada”.

O CNDH recomendou ao Ministério da Saúde que suspenda a execução de todas as normativas incompatíveis com a estabelecida Política Nacional de Saúde Mental, submetendo todas as normativas ao debate público, especialmente por meio das conferências de saúde e dos conselhos de saúde; e que convoque audiências públicas, com antecedência e ampla convocação, garantindo a plena e efetiva participação dos usuários da RAPS e suas organizações, para discussão da proposta de “Nova Política Nacional de Saúde Mental”.

No documento, o conselho considera que “não se pode estabelecer alterações na política de saúde, formulada com participação social, sem a realização prévia das necessárias conferências de saúde e sem amplo debate com a sociedade e as entidades representativas de usuários, especialmente no âmbito dos conselhos nacional, estaduais e municipais de saúde”, de acordo com diretrizes da Constituição Federal de 1988, de legislações nacionais e de uma série de tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

A Recomendação ainda afirma que o Ministério da Saúde não atendeu à Recomendação nº 01, de 31 de janeiro de 2018, do Conselho Nacional de Saúde – CNS de revogação de sua Portaria nº 3.588/2017 e de outros normativos relativos a retrocessos à Política Nacional de Saúde Mental e que propõem a desestruturação da lógica organizativa da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, tendo sido editada sem consulta ou debate com a sociedade civil ou com o Conselho Nacional de Saúde.

Segundo o presidente do CNDH, Leonardo Pinho, a autointitulada “Nova Política de Saúde Mental” é ilegal, pois contraria a legislação vigente (Lei nº 10.216) e por não ter sido aprovada no pleno do Conselho Nacional de Saúde. “Ela precisa ser imediatamente suspensa e ser colocada em debate pública, no CNS e em audiências públicas por todo o país”, afirma.

Leia aqui a “Recomendação sobre a ‘Nova Política Nacional de Saúde Mental’, elaborada e em execução sem ser legitimamente formulada”, na íntegra →

Contactos:

Assessoria de Comunicação do CNDH
+55 61 2027-3348 / [email protected]
Facebook: https://www.facebook.com/conselhodedireitoshumanosTwitter: https://twitter.com/conselhodh

A sobrevivência da reforma psiquiátrica

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Nunca é demais lembrar que a proposta da Reforma Psiquiátrica, entre nós, parte de (1) uma decisão no campo dos Direitos Humanos para enfrentar o “tratamento” manicomial; (2) de uma proposta inclusiva da loucura pela sociedade; e de (3) construir serviços substitutivos ao manicômio para que ela acontecesse. Qualquer ferimento a estes princípios pode ser mortal a sua continuidade. Portanto, não há como melhorar o manicômio; o tratamento em liberdade e na comunidade é necessário; e, um serviço substitutivo não aceita a existência do hospital especializado. Essa é sua radicalidade.

Nunca é demais lembrar que falhamos na firmeza dessa radicalidade. Primeiro, aceitamos alguns serviços comunitários não como substitutivos, mas alternativos ao manicômio. No Rio é fácil verificar a convivência das CAPS com os antigos manicômios federais que deveriam ser substituídos. Segundo, a função gestora local ao terceirizar mão-de-obra pelas Organizações Sociais (OSs) quebrou a espinha dorsal da formação de servidores comprometidos com a reforma (pela precariedade do vínculo e/ou pela rotatividade). Além do que ao entregar a gestão dos serviços para as OSs privatizou-se o que seria necessariamente público e isso tem  implicações na proposta. Desconfigura os serviços que necessariamente são públicos.

Nunca é demais lembrar a discordância de alguns médicos – formados nas certezas da neurobiologia americana – com a proposta da Reforma. São os que nunca aceitaram a reforma DA psiquiatria, mas uma reforma NA psiquiatria, nos seus métodos. E a tentativa de subordinar saberes transdisciplinares necessários à proposta reformista tenta anular conhecimento de outros campos científicos e saberes que possa substituir conhecimentos médicos. Esse um grande campo de discórdia, que devemos enfrentar para consolidar uma proposta transdisciplinar onde todos os envolvidos têm seu núcleo de saber, mas atuam conjuntamente no campo do conhecimento que envolve os vários núcleos. Na reforma não há hierarquia de conhecimentos, mas complementaridade. O psicanalista tem que poder explicar à equipe o efeito produzido por seus conhecimentos, assim também o médico tem que discutir com a equipe métodos biológicos ou neuroestimulativo que usará. É na discussão do núcleo de saber de cada membro da equipe que deverá ser feita as ações no campo comum do conhecimento.

Nunca é demais lembrar que enquanto lutávamos contra os manicômios permitimos a entrada em cena das Comunidades Terapêuticas ligadas a entidades religiosas e ávidas por financiamentos públicos. O que parecia uma nova parceria era o velho manicômio, disfarçado, sem controle e comandados pela fé. Essa estranha mistura de fé e ciência resultou em torturas e castigos, disfarçados de penitência com sedação química. E hoje essas comunidades religiosas são candidatas a exercer o papel manicomial e o retorno do que queríamos superar.

Nunca é demais lembrar que a constituição de uma fraca rede de atenção psicossocial (a chamada RAPS) tirou o protagonismo dos CAPS de uma “teia” de cobertura psicossocial para a introdução de dispositivos frágeis e permitir a reintrodução de antigos serviços antirreformistas na rede, como ambulatório de especialidades e emergência psiquiátrica.

Nunca é demais lembrar que a tibiez na radicalidade reformista permitiu seu enfraquecimento e os ataques disfarçados atuais que tentam retomar a tal RAPS, sem que os CAPS sejam serviços substitutivos, e reintroduzindo sem desfaçatez o hospital psiquiátrico especializado – precursor inconteste do velho manicômio. Isso faz parecer que não houve uma ruptura, mas o canto da sereia esconde uma contrarreforma e a anulação dos princípios que chamo atenção de não pudermos abrir mão. É isso.

E é muito importante que, agora, no momento de enfrentamento anunciado, que discutamos os nossos equívocos para não sermos capturados numa alteração de nossa prática que inviabilize uma retomada do processo de consolidação permanente da Reforma Psiquiátrica brasileira. Porque ela é uma construção permanente, nunca terminada.

O clareamento dos princípios reformistas ajudará na nossa prática diária – lugar de resistência por excelência – o soerguimento de uma trincheira construída por trabalhadores, usuários, familiares e sociedade. O hospital psiquiátrico especializado é o precursor do manicômio, pois, segundo Basaglia, não é manicômio que deformou o hospital psiquiátrico, mas o saber psiquiátrico que produziu o manicômio. Por isso a reforma DA psiquiatria é necessária e não uma reforma nos métodos da psiquiatria. Tratar em liberdade é terapêutico, por isso a proposta ética de inclusão da loucura na sociedade. Os CAPS são substitutivos da internação hospitalar e devem ser comunitários, nunca apêndices hospitalares.

A favor de nossa prática temos que desaprendemos a trabalhar no modo antigo e nem os usuários aceitam mais voltar ao manicômio. Para isso precisamos esclarecer que não aceitamos o disfarce do hospital para não sermos capturados pelo manicômio no futuro. Muito necessário o trabalho dos profissionais junto à sociedade para que ela não aceite ser seduzida pelo canto da sereia do hospital modernizado. Os CAPS como locus da resistência poderão recuperar o protagonismo que o caracterizou na reforma: espaço comunitário terapêutico com a possibilidade de contraposição à internação hospitalar. Serviço substitutivo.

Portanto, acredito que a sobrevivência da Reforma Psiquiátrica precisa de uma afirmação dos seus princípios, entre nós, para o enfrentamento que apenas se anuncia. E nesse enfrentamento vamos ter que lidar com a asfixia financeira dos serviços pelas instâncias de transferências de recursos que a aprovação da “PEC do fim do mundo” já nos impôs. Se aprovada a PEC de desvinculação das despesas (em saúde, educação, segurança, por exemplo) os estados e municípios estarão dispensados de fornecer os recursos – que hoje são forçados por lei e já insuficientes – o caos pode se instalar ainda pior do que já se encontra hoje em dia.

A nossa luta deverá se aliar à defesa do SUS e da democracia. Sem um e sem outro não existe saúde mental. Portanto a sobrevivência da Reforma Psiquiátrica está atrelada a lutas políticas de hoje.

Os perigos dos antidepressivos: minha luta pessoal com a medicina convencional

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Eu nunca precisei tomar aquela pílula, é tudo o que conseguia dizer a mim mesma, sentindo-me fraca e envergonhada. Existem muitos outros mecanismos de defesa que eu poderia ter usado para minha ansiedade. Por que eu não fiz a minha própria pesquisa? O que eu estava pensando?! Por que eu confiei nos médicos? Esses pensamentos se repetiram na minha cabeça depois que eu finalmente decifrei o código e descobri o que estava causando meus sintomas horríveis e bizarros. Por que os médicos não admitem isso? Por que o psiquiatra apenas quer que eu tome mais drogas e não acredita em uma palavra do que eu digo? Está tudo na internet e muitos têm contado suas histórias de horror em inúmeros fóruns. Eu pensei que ia morrer ou enlouquecer. Por um tempo, até pensei que poderia estar sob ataque espiritual.

Eu sabia que, se sobrevivesse, contaria a minha história. Eu tentaria ajudar os outros a passar por isto, aqueles cujas vozes são ignoradas pela psiquiatria e a medicina convencional. Eu sabia que queria ser uma defensora da vida holística e espalhar avisos para os outros sobre os perigos dessas drogas psiquiátricas e de algumas das grandes empresas farmacêuticas que as apoiam.

Tudo começou depois que meu médico gastro me colocou em uma droga chamada amitriptilina. Este é um antidepressivo muito antigo da classe dos tricíclicos. Eu tinha lido na internet através de várias fontes que esta classe de drogas geralmente não era a escolha preferida de medicamentos antidepressivos nos dias de hoje, pois há novos e mais seguros no mercado atual. Claro, eu não tinha ideia sobre nada disso no dia em que o médico a prescreveu para mim. Eu apenas confiei nele. Eu descobri tudo sobre seus perigos por conta própria, mais tarde.

Eu acreditava que meu médico sabia melhor sobre minha saúde do que eu mesma. Eu confiava que ele sabia que seria seguro me trocar de uma droga ansiolítica que eu estava tomando por vários anos consecutivos e me colocar nessa nova droga. Foi só durante o horror pelo qual passei depois é que por conta própria descobri tudo sobre essa maldita droga.

Muitos diziam que poderia ser ruim continuar lendo na internet. No meu caso, porém, serviu como um farol de verdade e apoio – verdade e apoio que não recebi da comunidade médica ou psiquiátrica.

Todos os sintomas começaram no meu sono. De repente o sono se transformou de algo confortável e relaxante em o maior medo e ansiedade da minha vida. A primeira coisa foram os ruídos – não eram sons externos, mas um estranho conjunto de sons bizarros na minha cabeça. No começo, eu os ignorei, mas eles só pioraram em frequência e intensidade. Sendo que tudo isso começou logo depois que meu médico aumentou a dose da amitriptilina.  Meu instinto me disse que a droga era a culpada de tudo isso. Liguei para o consultório imediatamente e disse-lhes que gostaria de parar de tomar o remédio e perguntei se poderiam, por favor, dizer-me a melhor maneira de sair desse remédio. Eles me disseram apenas: pare de tomá-lo completamente!

Minha intuição me disse que não isso parecia certo, mas eu confiei neles e fiz o que eles disseram. Mais uma vez, acreditei no meu médico e no pessoal da saúde. Eu estava esperando algum alívio. Mas eu estava errada. Este foi apenas o começo do horror.

Pouco depois de tomar a minha última dose de amitriptilina, as coisas pioraram muito. Um bizarro grupo de sintomas começou. Muitos eram estranhos para mim, algo eu nunca havia experimentado antes em minha vida. Os sintomas estavam principalmente em meu sono, embora tenham ocorrido alguns em meu estado de vigília também. Adicionado aos sons na minha cabeça enquanto eu estava dormindo, eu sentia uma sensação de choque na minha cabeça. Isso me assustava como se eu estivesse à morte. Fiquei perplexa com o que estava se passando. Algumas dessas sensações de choque elétrico eram mais intensas do que outras. Essas sensações só ocorriam quando eu estava adormecendo. Elas me acordavam a cada vez, às vezes a noite toda, roubando-me do sono precioso. Logo logo mais sintomas foram sendo adicionados, como os movimentos involuntários que me acordavam do sono profundo,

Ataques de pânico eram frequentes. Eu me sentia desligada de mim mesma. Eu sentia uma sensação de desgraça iminente e um intenso medo, um medo do que poderia acontecer comigo em seguida. Eu estava com medo de morrer indo a dormir. Eu estava em um estado de zumbi tentando lutar contra o sono. Parecia os filmes de Freddie Krueger onde as vítimas tinham medo de dormir porque era quando todas as coisas assustadoras aconteciam. Eu tinha crises choro. Algumas noites eu dormia por apenas uma hora ou nem isso. O que me levou a perceber o quanto eu tinha tomado o sono como algo tão natural antes. Comecei a pensar em muitas coisas sobre as quais nunca havia pensado antes, como o sono é vital para nossas vidas e como ele proporciona equilíbrio. Meu equilíbrio estava fora de sintonia, e eu senti como se estivesse em um pesadelo da vida real. Apenas escrever sobre isso me dá os mesmos sentimentos de medo que senti quando tudo isso estava acontecendo.

Eu não conseguia descobrir o que havia de errado comigo. Eu já tinha estado fora da amitriptilina por várias semanas e ela estaria fora do meu sistema por ter uma meia-vida de duração no meu corpo, e os médicos me disseram isso. É claro, verifiquei outras fontes, como na internet, e a maioria das fontes mencionou a meia-vida de 20 horas. Mais tarde, descobri por outras fontes da internet que, só porque a amitriptilina pode ter sido eliminada do meu plasma, isso não significaria que seus metabólitos também tenham sido eliminados. Meus médicos me disseram que não havia como a amitriptilina estar a causar os meus sintomas. Comecei a adivinhar o que poderia estar errado comigo e fiquei muito paranoica. Aos meus provedores de saúde, comecei a solicitar todos os exames médicos que eu poderia imaginar. Eles olhavam para mim como se eu fosse louca e alguns me disseram que era a minha ansiedade.

Meu médico da atenção primária me pediu uma ressonância magnética cerebral. Eu estava com medo de que talvez eu tivesse um tumor no cérebro. Eu estava tendo convulsões? Esses choques elétricos eram horripilantes. Eu de repente desenvolvi uma doença neurológica? Comecei a aprofundar a minha pesquisa e a pesquisar palavras-chave mais precisas na Internet. Foi quando comecei a descobrir todas as informações surpreendentes que a medicina convencional e psiquiátrica ignora. Incontáveis ​​pessoas em diferentes fóruns contavam suas histórias de horror sobre sintomas de abstinência de antidepressivos. Havia muitas subcategorias dentro desses fóruns com informações sintéticas ainda mais precisas. Havia uma categoria inteira de amitriptilina com pessoas contando suas experiências que eram como as minhas. Foi aí que finalmente encontrei o termo apropriado para um dos meus sintomas mais assustadores: ‘zaps cerebrais’. Esses eram os choques elétricos que eu sentia na minha cabeça. Finalmente, eu tinha um termo para nomear isso. Eu abri uma pasta com as impressões de todas as coisas que encontrava e comecei a colecioná-las. Eu passava o dia inteiro pesquisando, tentando desesperadamente encontrar alguém que pudesse me ajudar. Era sempre um beco sem saída com os profissionais da medicina convencional e os psiquiatras a quem eu havia me voltado. Como eles poderiam não saber o termo ‘cérebro zaps’ quando eles estavam prescrevendo essas drogas ?! Eu então me voltei para um grupo de reabilitação que disse que eles poderiam me ajudar por US $ 60.000 em seu local de internação distante.

Seria uma farsa? Eu estava tão desesperada por ajuda que tentei descobrir como chegar a ter US $ 60.000 até que percebi que não podia fazer isso; como eu mesmo saberia se as alegações deles eram verdadeiras? O único apoio verdadeiro que eu tinha era que as outras pessoas que frequentavam os fóruns conversassem comigo e / ou respondessem às minhas perguntas. Na comunidade online foi-me apresentada uma opção: restabelecer o mesmo medicamento ou um antidepressivo diferente para tentar ajudar nos sintomas graves de abstinência. Eu estava com medo de restabelecer a amitriptilina e colocar essa droga maligna de volta no meu corpo. No entanto, eu estava tão desesperada para tentar diminuir esses sintomas horríveis que me impediam de dormir. Eu perguntei ao meu médico de cuidados primários sobre essa opção. Ela disse que faria se isso fosse o que eu queria. Parecia que ela não tinha ideia se funcionaria ou não. Ou eu restabelecia a amitriptilina ou voltava ao Zoloft, a droga que eu vinha usando há anos sem problemas antes da amitriptilina. Eu escolhi o Zoloft, rezando para que ajudasse meus sintomas de abstinência.

Eu estive dentro e fora da sala de emergência em quatro vezes diferentes e em locais diferentes. Todos os médicos do pronto-socorro me falaram informações semelhantes. Eles olhavam para mim como se eu fosse louca, dizendo-me novamente que a amitriptilina estaria fora do meu sistema naquele momento, então isso não poderia ser a causa dos meus sintomas. Nenhum deles sabia o que eram ‘zaps de cérebro’. O primeiro médico me disse para que eu fosse ver meu psiquiatra, pois ele era apenas um médico de emergência e não via necessidade de eu me tratar com ele. O outro médico da emergência me disse que eu deveria fazer o teste para apneia do sono. Ainda outro médico do pronto socorro apenas olhou confusamente para mim e nunca me deu uma resposta exata. Toda vez que eu tentava explicar a eles sobre a síndrome de descontinuação, eles olhavam para mim como se eu estivesse falando uma língua estrangeira.

Depois de ver todos esses médicos dizerem coisas semelhantes e não mostrarem nenhum reconhecimento da síndrome de descontinuação, percebi que eu nunca conseguiria chegar a lugar algum, muito menos receber ajuda de alguém na medicina convencional. Percebi que ou eles não reconhecem a síndrome de descontinuação devido à sua educação limitada das empresas farmacêuticas que lhes fornecem os medicamentos de que eles lucram, ou não querem admitir que os antidepressivos sejam viciantes para a neuroquímica do seu corpo. Ao longo da minha pesquisa, vi repetidamente a mesma mensagem: que uma das piores coisas que você pode fazer para aumentar o risco de efeitos colaterais mais sérios é parar com antidepressivos de repente. Fiquei indignada ao pensar que o meu médico que me prescreveu essa droga não só nunca me avisou dos potenciais efeitos colaterais,mas também nem sequer me informou sobre o modo apropriado de fazer o desmame dessa droga.

Eu fiz tantas viagens e telefonemas para os meus médicos de cuidados primários. Parecia que minhas interações com eles eram de uma inversão de papéis – eu era o único que lhes fornecia informações, e eles basicamente tomavam nota disso. Parecia que eles apenas espelhavam de volta para mim o que eu estava dizendo a eles. Parecia que, independentemente da quantidade de evidências que eu lhes apresentasse, eles ainda não queriam reconhecer a síndrome de descontinuação. Como outros profissionais de saúde que eu já frequentei, minha médica de atendimento primário me disse que ela achava que era ansiedade. Ela até chegou a sugerir que talvez eu estivesse sofrendo algum tipo de ataque espiritual! Comecei a perder toda a esperança nos médicos.

Eu também não tinha muita esperança no mundo psiquiátrico, como foi o que se passou com primeiro psiquiatra que procurei e que praticava o modelo médico convencional da psiquiatria. Eu não senti nenhum reconhecimento dele sobre o que eu estava ali dizendo e o que fez foi me rotular. Ele apressadamente disse que o que eu tinha era ansiedade, e que algum evento estressante tinha acabado de ‘disparar’ esses choques elétricos na minha cabeça! Fiquei chocada com sua falta de reconhecimento pelo que eu tinha a dizer e por sua maneira ignorante de encarar a realidade. Ele disse que não havia como a amitriptilina causar meus sintomas. Eu conhecia meu corpo, e sabia que não havia nenhum evento estressante em minha vida que causasse esses sintomas físicos bizarros – tinha que ser uma substância química! Sua solução foi me prescrever mais duas drogas antidepressivas e me levar até a porta.

Eu tentei outro consultório psiquiátrico. Lá eu vi uma enfermeira. Ela disse que às vezes havia visto médicos prescrevendo antidepressivos quando não deveriam, pois não era a área de especialização deles. Ela concordou comigo que eu nunca deveria ter sido instruída a parar com a droga assim de supetão, e que deveria ter sido submetida a um processo gradual (uma redução gradual da droga) que levaria meses. Ela me disse que não havia garantia de que meus sintomas iriam embora! No entanto, ela disse que já havia visto os sintomas desaparecerem em várias pessoas e que todos somos diferentes uns dos outros. Eu tive que continuar fazendo perguntas e sondando para conseguir que ela respondesse. Ela me receitou outra droga do sistema nervoso (gabapentina) para tentar ajudar a acalmar meus ‘zaps do cérebro’. Ela disse que, se a droga não funcionasse, talvez ela tentasse algum outro tipo de droga com composição semelhante à amitriptilina. No entanto, parecia que ela estava basicamente adivinhando como tratar meus sintomas. Não havia remédio exato, devido aos danos que já haviam sido causados por não diminuir a droga da maneira correta! Fiquei indignada que isso estivesse acontecendo comigo.

Cheguei à conclusão de que eu estava experimentando um conjunto de sintomas que foram todos mencionados pelo Dr. Flavio Guzman, MD, em um artigo e apresentação em PowerPoint para o Instituto de Psicofarmacologia. Esses sintomas são distúrbios do sono, desequilíbrio, sintomas sensoriais, sintomas afetivos, sintomas gastrointestinais e sintomas somáticos gerais. Sua pesquisa também mencionava como a síndrome de descontinuação é frequentemente diagnosticada erroneamente pelos médicos e tratada como outras doenças ou sintomas em desenvolvimento dentro do paciente.

Quanto mais eu lia na internet, mais horrorizada ficava. Os médicos me disseram para não ler tanto na internet senão eu apenas me assustaria. Os médicos também insinuaram que as pessoas na internet não estavam contando histórias válidas ou estavam deixando de fora informações vitais. No entanto, no meu caso, a internet foi uma das únicas fontes de verdade que me deparei. Ouvir histórias de recuperação de outros e saber que havia luz no fim do túnel ajudou-me a sobreviver quando quase me senti pronta para desistir.

Até hoje, ainda tenho zaps cerebrais às vezes em meu sono. Eu ainda sinto esses ‘tempos sombrios’ onde me sinto com medo e sem esperança de que os sintomas nunca desapareçam. Minha esperança é que meu sistema nervoso esteja se curando lentamente todos os dias. Eu decidi começar meu próprio blog e fórum chamado zappingantidepressants.com, como sendo a minha contribuição para ajudar a apoiar outras pessoas que estejam passando por tempos difíceis em suas vidas de drogas antidepressivas. Eu convido os leitores a se juntarem ao meu fórum, participarem da comunidade e contar sobre suas experiências com drogas antidepressivas e / ou medicina convencional e psiquiátrica.

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