Debates Online sobre Diagnóstico Psiquiátrico Confiam frequentemente na Retórica em vez de Fatos

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Um novo artigo publicado no Journal of Mental Health, os pesquisadores Bethany Garner, Peter Kinderman e Phillip Davis examinam debates on-line sobre o diagnóstico psiquiátrico. O estudo deles explora vários blogs, tanto a favor quanto contra a psiquiatria, e examina as polêmicas que posicionaram os participantes de maneira diferente para fazer avançar o seu lado no debate.

De acordo com os autores, a polêmica deste debate leva os pesquisadores a confiarem em “concessões retóricas” e truques linguísticos em vez de fatos para reforçar os seus argumentos. Esta dependência da retórica impacta negativamente a discussão em torno do diagnóstico em psiquiatria. Portanto, para fazer avançar a conversa em torno do diagnóstico, os pesquisadores pedem que os autores dos blogs se envolvam com fatos em vez de participar de jogos linguísticos mesquinhos.

“Nesses relatos, os tons polêmicos tendem a sobrepor-se aos argumentos fundamentais. Nesta análise, a polêmica entre autores tem impedindo o surgimento de soluções”, escrevem Garner, Kinderman, e Davis. “Esta divisão em oposições beligerantes vem ocorrendo há anos, e o risco é que isto continue. Os diferentes modelos conceituais produzem uma retórica combativa. Os debates on-line ainda são polêmicos”.

A psiquiatria como disciplina tem abraçado em grande parte as convenções de diagnóstico – os proponentes do diagnóstico psiquiátrico apontam para vários fatores benéficos na defesa desta prática. O diagnóstico oferece uma linguagem compartilhada entre usuários e prestadores de serviços, e permite aos usuários de serviços nomear o seu sofrimento. O diagnóstico também pode dar aos usuários de serviços acesso a serviços especializados e ajudar a determinar quais intervenções psiquiátricas podem funcionar melhor para ajudar a aliviar o seu sofrimento.

Mais recentemente, porém, as vozes de dentro da psiquiatria vem se tornando mais desconfiadas do aparelho de diagnóstico, e o modelo biomédico em que se baseia passou a ser fortemente criticado.  Os autores chegam ao ponto de chamar o diagnóstico psiquiátrico de uma fraude baseada na “ficção prejudicial” da doença mental enquanto uma doença biológica. Estes autores apontam as circunstâncias da vida em vez de estados e anormalidades cerebrais como a principal causa de transtornos mentais.

Os pesquisadores críticos do projeto de diagnóstico têm frequentemente citado o efeito estigmatizante do diagnóstico e o modelo biomédico da saúde mental tên sobre os usuários do serviço. A experiência dos indivíduos estigmatizados pode comumente se manifestar como preconceito e discriminação. Também é comum que os encontros clínicos de saúde mental resultem em injustiça epistêmica, uma situação em que as preocupações e conhecimentos dos usuários dos serviços são desconsiderados em favor da narrativa dos prestadores de serviços.

Os críticos do diagnóstico psiquiátrico também têm apontado para preconceitos dos prestadores de serviços que afetam o diagnóstico e o tratamento subsequente. Pesquisas têm demonstrado que o preconceito racial provavelmente desempenha um grande papel no diagnóstico psiquiátrico. Os pacientes negros têm o dobro da probabilidade de serem diagnosticados com esquizofrenia do que os pacientes brancos, mesmo quando os seus sintomas são semelhantes. Ter um diagnóstico psiquiátrico também duplica seu risco de sofrer um erro médico.

A pesquisa em tela examina o debate em torno do diagnóstico, analisando seis blogs que tomam várias posições sobre o diagnóstico psiquiátrico. Os autores escolheram blogs que foram tanto críticos do diagnóstico como de apoio, bem como blogs que tomam uma abordagem mais intermediária do debate. Vários temas estavam presentes em cada um dos blogs examinados pelos autores: afirmação de autoridade, concessão retórica, apelos à clareza moral e posicionamento do oponente.

Para promover seus argumentos,uma afirmação de autoridade é uma tática retórica pela qual um autor faz uma afirmação baseada apenas em sua autoridade e não em evidências ou fatos. Os autores encontraram evidências de uma afirmação de autoridade no uso de termos como “simplesmente”, para descrever uma doença mental enquanto “simplesmente” uma doença cerebral, bem como em frases como “eu tenho exercido a prática há muito tempo”. A evidência de uma afirmação de autoridade também pode ser encontrada nos blogs anti-diagnóstico, com o uso de frases como “não tão comumente compreendido”, implicando que o autor do blog sabe melhor do que a maioria dos psiquiatras.

Concessões retóricas são truques linguísticos nos quais um autor oferece uma concessão vestigial ao seu oponente, para parecer mais razoável para o seu público. Por exemplo, a presente pesquisa encontrou evidências de concessões retóricas na afirmação do blog pró-diagnóstico de que “algumas doenças” são causadas por fatores situacionais, “mas” a maioria são biológicas. Da mesma forma, os autores do blog anti-diagnóstico usaram concessões retóricas quando escreveram que têm o “maior respeito” pelos psiquiatras, “mas a medicalização da infância foi longe demais”.

Tanto os autores de blogs pró e anti-diagnóstico se empenharam em apelos à clareza moral quando afirmaram que sua abordagem é o único serviço que os usuários “merecem”. Estes blogs também tentam posicionar os seus oponentes como “moralmente falidos ou cientificamente analfabetos”.

A pesquisa atual argumenta que estes truques linguísticos e posicionamento retórico se desviam de uma conversa importante que deveria estar ocorrendo dentro das ‘disciplinas psi’ em torno da utilidade do diagnóstico.

Garner e seus colegas acreditam que estes blogs poderiam ser um local para criar um “espaço especulativo mais rico” se os autores se engajassem em fatos e não em polêmicas destinadas apenas a fazer avançar suas posições. Eles escrevem:

“Esta análise demonstra o potencial do pensamento matizado e onde ele é sabotado”. Estas peças de escrita deveriam estar criando um espaço para o pensamento, não movido por extremos polêmicos pré-determinados, mas igualmente não apenas dividindo a diferença. A criação de um espaço especulativo mais rico para a investigação permitiu que o pensamento desafiasse a opinião e fizesse dos blogs não necessariamente uma polêmica, mas idealmente um lugar para uma maior disseminação do pensamento e um debate público mais produtivo”.

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Bethany Garner, Peter Kinderman & Phillip Davis (2022): The ‘rhetorical concession’: a linguistic analysis of debates and arguments in mental health, Journal of Mental Health, DOI: 10.1080/09638237.2021.2022631 (Link)

Afastando-se da ECT e antidepressivos para a depressão

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Em um novo artigo publicado em Psycological Medicine, John Read e Joanna Moncrieff destacam a ineficácia dos antidepressivos e da terapia eletroconvulsiva (ECT) para o tratamento da depressão. Além de sua ineficácia, estas intervenções têm efeitos negativos e alteram a função cerebral de forma imprevisível. Em vez de se apegar a essas abordagens antiquadas e biomédicas, Read e Moncrieff recomendam uma perspectiva socialmente informada que reconhece a depressão como resultado de circunstâncias difíceis.

Esta visão da depressão está se tornando cada vez mais comum dentro das disciplinas-psi é atualmente endossada pelas Nações Unidas, pela Organização Mundial da Saúde e por vários movimentos de usuários de serviços. Os autores escrevem:

“Esta perspectiva exige que abordemos as condições sociais que tornam a depressão provável e sugere que uma combinação de política e senso comum precisa nos guiar na prestação de ajuda uns aos outros quando estamos sofrendo desta forma”. Esta visão alternativa é cada vez mais endossada em todo o mundo, inclusive pelas Nações Unidas, pela Organização Mundial da Saúde e pelos usuários de serviços que sofreram consequências negativas de tratamentos médicos que modificam as funções cerebrais de maneiras não bem compreendidas”.

Embora ainda seja muito comum, o uso de antidepressivos para tratar a depressão tem sido cada vez mais criticado por vozes dentro das disciplinas-psi. Vozes destacadas de dentro do campo argumentam, por exemplo, que os antidepressivos provavelmente são excessivamente prescritos.

Pesquisas recentes descobriram que o uso de antidepressivos é em grande parte ineficaz no tratamento da depressão, ao mesmo tempo em que provavelmente piora os resultados a longo prazo. O uso de antidepressivos também tem sido ligado a vários efeitos colaterais leves e severos, incluindo insensibilidade emocional, sensação de despersonalização, disfunção sexual, sonolência e incapacidade de sentir empatia. Além destas reações comuns aos antidepressivos, as pesquisas também associaram o uso de antidepressivos ao aumento do risco de morte, ao aumento do risco de suicídio e ao aumento do risco de violência.

As pesquisas descobriram que o ECT é ineficaz em comparação com um placebo para tratar a depressão e prevenir o suicídio enquanto coloca os usuários dos serviços em maior risco de disfunção cerebral e mortalidade. As auditorias do uso do ECT revelaram problemas com a administração e monitoramento do procedimento, tornando impossível garantir a segurança dos usuários dos serviços que recebem ECT. Além disso, o ECT pode resultar em perda permanente de memória e tem causado perturbações cognitivas em alguns usuários de serviços suficientemente severas para evitar que eles voltem ao trabalho.

O trabalho atual aparece na Psychological Medicine, uma revista internacional líder dentro das disciplinas-psi. Este artigo foi encomendado pelo editor da revista, o proeminente psiquiatra Sir Robin Murray. A inclusão deste artigo em uma revista de grande circulação a pedido de um psiquiatra conhecido pode sugerir que uma mudança de paradigma está ocorrendo dentro das disciplinas-psi, afastando-se da compreensão biomédica da depressão como uma doença cerebral em direção a um modelo socialmente informado que entende a depressão principalmente como uma reação a circunstâncias difíceis da vida.

Read e Moncrieff começa com uma crítica ao modelo biomédico de saúde mental. Antidepressivos e ECT são ambos uma tentativa de corrigir uma questão biológica subjacente que supostamente está causando a depressão. No entanto, os defensores desses tratamentos foram incapazes de identificar quaisquer biomarcadores ou mostrar qualquer evidência significativa de que algumas disfunções biológicas realmente causam depressão. Eles escrevem:

“Nós, e outros, fornecemos revisões detalhadas de evidências demonstrando que nenhuma disfunção biológica que possa ser corrigida pelos tratamentos atuais foi encontrada”.

Embora muitos dentro das disciplinas-psi subscrevam um modelo biopsicossocial de doença mental, as camadas psicológica e social são comumente entendidas como secundárias à suposta disfunção biológica subjacente primária. Uma disfunção que, se de fato existe, somos atualmente incapazes de tratar.

Segundo os autores, isto resulta do domínio do modelo biomédico de doença mental. Enquanto muitos dentro do campo dedicam-se às causas psicológicas e sociais da depressão, o modelo biomédico os força a priorizar as causas biológicas e, portanto, soluções biológicas como os antidepressivos e a ECT, apesar de sua ineficácia e possíveis efeitos negativos.

De acordo com os autores, os antidepressivos provavelmente não são melhores do que placebos para aliviar a depressão. Quando a pesquisa compara os antidepressivos com placebo em termos da escala de classificação de Depressão Hamilton comumente usada, os antidepressivos resultam em uma diferença de 2 pontos. Pesquisas demonstraram que uma diferença de 3 pontos ou menos indica nenhuma mudança, com uma mudança de 8 pontos indicando uma leve melhora clínica.

Os autores observam que a eficácia do antidepressivo dentro destes conjuntos de dados é artificialmente inflada devido ao viés de publicação, o que significa que a vantagem real sobre o placebo é provavelmente ainda menor do que a indicada pela mudança da escala de classificação de Depressão Hamilton de 2 pontos.

Os testes com placebo são normalmente conduzidos por empresas farmacêuticas com interesse financeiro em placebos com desempenho superior. Ainda assim, estes medicamentos raramente produzem melhores resultados do que um placebo e muitas vezes se tornam ainda piores na prática clínica onde são usados para tratar um suposto desequilíbrio químico. Os autores escrevem:

“Apesar das afirmações de organizações profissionais e da indústria farmacêutica de que a depressão é devida a um desequilíbrio químico que pode ser retificado por medicamentos (por exemplo, APA, 2021b), não há evidências de que existam quaisquer anormalidades neuroquímicas em pessoas com depressão, muito menos anormalidades que possam causar depressão”.

Em vez de considerar os antidepressivos como corrigindo um provável desequilíbrio químico mítico, o presente trabalho considera os antidepressivos como uma droga psicoativa que altera a atividade mental normal. Algumas dessas mudanças podem ser desejáveis em pessoas que sofrem de depressão (tais como uma diminuição das emoções). Entretanto, muitos desses efeitos das drogas, tais como disfunção sexual e síndrome de abstinência, variam de irritante a agonizante para os usuários.

Os autores sugerem que os professionais-psi e usuários de serviços precisam avaliar realisticamente os efeitos negativos e positivos dessas drogas em vez de afirmar que elas corrigem um desequilíbrio químico ainda não descoberto.

Semelhante aos antidepressivos, a ECT supostamente corrige algumas disfunções biológicas subjacentes, ainda não vistas, para tratar a depressão. Este tratamento funciona danificando o cérebro, às vezes resultando em um alívio temporário dos sintomas depressivos. Walter Freeman, um proponente do ECT, escreveu em 1941:

“Quanto maior o dano, mais provável é a remissão dos sintomas psicóticos…. Talvez seja demonstrado que um paciente mentalmente doente pode pensar de forma mais clara e construtiva com menos cérebro em funcionamento real”.

Novamente, semelhante aos antidepressivos, a ECT tem mostrado pouca vantagem sobre os tratamentos com placebo conhecidos como ECT falsos. Os autores escrevem:

“Uma revisão da literatura sobre respostas placebo ao ECT foi concluída: “Pacientes endógenos deprimidos rigorosamente definidos se saíram excepcionalmente bem com o ECT falso, assim como com o ECT real… Nenhum estudo mostrou que o ECT supera o placebo além do final do período de tratamento”.

Além do tratamento de curta duração, não melhor que o tratamento placebo de sintomas depressivos, a ECT também está associada à perda de memória e a deficiências cognitivas.

Os autores afirmam que os antidepressivos e a ECT, ao invés de tratar uma doença subjacente, alteram a atividade cerebral normal e ocasionalmente obscurecem os sintomas depressivos. Embora estas intervenções possam parecer úteis para aliviar a depressão aguda a curto prazo, seus efeitos a longo prazo não são bem compreendidos e têm sido prejudiciais para muitas pessoas.

Os autores apontam para uma mudança de paradigma, que se afasta do modelo biomédico de doença mental dentro das disciplinas-psi, como necessário para abordar as verdadeiras causas subjacentes da depressão: circunstâncias difíceis da vida. Eles escrevem:

“Compreender a depressão e a ansiedade como reações emocionais às circunstâncias da vida, ao invés das manifestações de uma suposta patologia cerebral, exige uma combinação de ação política e senso comum. Há evidências antigas de como a privação e a adversidade social tornam as pessoas vulneráveis à depressão”.

Ajudar alguém em sofrimento não é principalmente uma atividade científica – é uma atividade essencialmente humana”. O senso comum sugere que as condições necessárias para levar uma vida emocionalmente equilibrada e satisfatória, relativamente livre de grandes preocupações e angústias, incluem uma renda confiável, moradia, emprego seguro e gratificante, atividades sociais envolventes e oportunidades para formar relacionamentos próximos”.

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Read J, Moncrieff J (2021). Depression: why drugs and electricity are not the answer. Psychological Medicine 1–10. https://doi.org/10.1017/S0033291721005031

Michael Hengartner: Prescrição de antidepressivos com base em falsas evidências

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No podcast Mad in America desta semana, ouvimos do Dr. Michael Hengartner. Michael é Pesquisador Sênior e Palestrante da Universidade de Zurique de Ciências Aplicadas na Suíça. Suas áreas de especialização incluem epidemiologia psiquiátrica, saúde mental pública, medicina baseada em evidências e conflitos de interesse em pesquisa psicológica e biomédica.

Ele foi avaliador especializado do Conselho Europeu de Pesquisa e da Organização Mundial da Saúde e atualmente é membro da Escola Suíça de Saúde Pública, da Sociedade Alemã de Psiquiatria Social e da Associação Europeia de Saúde Pública.

Nesta entrevista, discutimos o livro de Michael recentemente lançado intitulado “Evidence-biased Antidepressive Prescription, Over-medicalisation, Flawed Research, and Conflicts of Interest” [“Prescrição de Antidepressivos Baseada em Falsas Evidências, Medicalização Excessiva, Falsa Pesquisa e Conflitos de Interesse”]. O livro aborda a prescrição excessiva de antidepressivos e examina criticamente as atuais evidências científicas sobre a eficácia e a segurança dos medicamentos.

A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.

James Moore: Michael, bem-vindo. Muito obrigado por se juntar a mim hoje para o podcast Mad In America. Estamos aqui para falar de seu trabalho e, em particular, de seu novo livro intitulado ‘Evidence-biased Antidepressive Prescription, Overmedicalisation, Flawed Research, and Conflicts of Interest’, que foi publicado pela Springer em 2021.

E primeiramente, quero agradecer-lhe por ter escrito esse livro, pois, esta é uma área tão importante da indústria da saúde mental sobre a qual se deve escrever. Minha reflexão ao ler o livro primeiro foi que ele é abrangente, reúne um monte de coisas que eu acho que precisavam ser reunidas em um só lugar. Não consigo imaginar que tenha sido uma tarefa fácil fazer toda a pesquisa para ele.
Você começa o livro escrevendo sobre como você chegou aqui, o que me parece um bom lugar para começar. Então, você pode nos falar um pouco sobre você e o que o levou a se interessar pelo trabalho de pesquisa?

Dr. Michael Hengartner: Obrigado por me receber e por me dar uma plataforma para falar sobre o meu livro, eu realmente o aprecio.

Enquanto eu escrevia o livro, eu estava trabalhando como Associado de Pesquisa no Hospital Universitário Psiquiátrico em Zurique. Estávamos fazendo pesquisas epidemiológicas comuns e uma das minhas principais tarefas era a análise de dados.

Assim, fiquei realmente interessado no processo científico, na ambiguidade dos dados e também nas decisões, às vezes arbitrárias, que você toma ao analisar dados e relatar resultados estatísticos. Isso sempre foi porque senti que o interesse me tornava um pesquisador melhor. E depois houve esta crise de replicação em psicologia, onde se descobriu que os estudos seminais não se replicavam em avaliações  e estudos independentes. Isso foi realmente interessante.

Então eu comecei a olhar para a depressão e para o tratamento da depressão, eu estava realmente interessado em todos esses preconceitos que foram relatados, como a dragagem de dados (também chamada de P-hacking porque o valor P representa o significado estatístico dos resultados). Foi quando descobri todo este universo de pesquisa feita em uma das áreas onde eu estava mais interessado, a epidemiologia da depressão, que também inclui tratamento e resultados. Descobri aqueles estudos nos quais eles mostraram claramente como resultados seletivos de ensaios com antidepressivos foram relatados e como estudos com resultados negativos simplesmente permaneceram em uma gaveta de arquivos. Todas essas práticas de pesquisa questionáveis ou problemáticas realmente me afetaram.

Foi por isso que eu me aprofundei um pouco mais nesta literatura e descobri tantas coisas que estavam terrivelmente erradas a meu ver. Comecei a fazer mais pesquisa e também comecei a escrever sobre isso e uma das principais áreas onde isto foi realmente documentado e pesquisado foi no domínio dos antidepressivos. Foi por isso que na verdade eu me concentrei um pouco nos antidepressivos. Não porque eu tivesse a intenção, “Oh, eu devo mostrar ao mundo que a base de evidências por trás dos antidepressivos é discutível”, mas porque este era um dos melhores tópicos de pesquisa, e foi aí que eu lentamente e passo a passo entrei nisto. E também pode dizer, onde eu fiquei preso.

Foi também um momento difícil porque tive uma separação pouco antes de entrar para o Exército e é nessa época que se faz a transição da adolescência para a idade adulta jovem, por isso é sempre muito confuso. Você se pergunta: Quem sou eu? Onde eu estou? Qual é o meu futuro, e tudo isso? Hoje você diria, eu estava ficando deprimido.

Moore: Parece que você pensava que isso era uma coisa situacional, você considerava que poderia estar deprimido ou que não era algo que lhe ocorria na época?

Hengartner: Para mim, estava claro que eu não estava me sentindo e me comportando como de costume. Nunca havia experimentado um tempo tão longo de infelicidade. Era bastante claro que eu estava me sentindo deprimido, mas também muito claro que isso se devia à situação em que eu estava e que era uma consequência de estar em um lugar difícil e num momento difícil.

Foi também o que eu vivi perto do fim do meu serviço militar. Então, sabendo que, ok, tudo termina em duas ou três semanas, senti imediatamente um novo otimismo crescente e o meu humor estava melhorando rapidamente. Para mim, estava claro que era situacional e devido às circunstâncias.

Moore: Obrigado por compartilhar isso, estou feliz por não ter durado muito, e estou feliz que você tenha encontrado uma saída para essa situação.

Portanto, vamos passar a ver algumas das coisas que me interessaram na leitura do livro. A primeira parte do livro é sobre o uso de antidepressivos na prática clínica. Há um fio muito claro no livro que a evidência para o uso de antidepressivos em depressão leve a moderada é realmente muito pobre. Vimos algum reconhecimento disso no Reino Unido, particularmente porque o nosso órgão de evidência, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE), deixou de recomendar os antidepressivos como tratamento de primeira linha para a depressão leve a moderada.

Ouvimos com bastante frequência – na verdade, em voz bem alta – que os antidepressivos funcionam melhor e têm mais utilidade no que é chamado de “episódios depressivos graves”. Então eu me pergunto se isso seria algo que era apoiado pelas evidências dos ensaios ou do uso no mundo real quando você olhava para isso?

Hengartner: Essa é uma das maiores perguntas sem resposta porque não há provas inequívocas ou conclusivas de que eles funcionam melhor porque a literatura científica é bastante mista. A maioria das análises de dados individuais de pacientes em larga escala na verdade não acha que o efeito do tratamento seja maior no que chamamos de depressão severa do que na depressão leve a moderada.

Algumas análises fizeram, uma foi muito influenciada pela Fournier e colegas publicada no Journal of the American Medical Association em 2010, mas que foi baseada em uma amostra muito pequena de 700 pessoas. Estudos muito maiores que utilizaram dados individuais de vários milhares de pacientes não foram capazes de replicar que a eficácia aumenta maciçamente na depressão severa.

Portanto, eu diria, com base nesta literatura, que há poucas ou pelo menos muito insuficientes evidências para a afirmação de que os antidepressivos claramente funcionam melhor em depressão grave. Mas a questão é mais complicada porque, no final, o que é depressão grave? A distinção entre depressão leve, moderada ou grave geralmente é feita simplesmente com base em escalas de classificação, como a Escala de Classificação de Depressão Hamilton, que na verdade dá o mesmo peso a todos os itens. Portanto, se você tem uma pontuação, digamos 24, você é considerado moderadamente deprimido, se é menos de 16, é depressão leve.

Isso é muito problemático, porque, imagine que alguém relata principalmente problemas de sono, problemas de apetite, problemas de concentração e a pessoa tem uma pontuação de 24. Outra pessoa tem anedonia grave, retardo psicomotor grave ou ideação suicida, mas tem a mesma pontuação de 24 porque a pessoa não tem problemas de sono, não há mudanças no apetite, portanto é a mesma pontuação. Portanto, as pessoas diriam que têm a mesma gravidade, o que na verdade é bastante absurdo porque há sintomas claros que são mais indicativos de um episódio de transtorno grave como, especialmente, ideação e comportamento suicida e também retardo psicomotor, que são indicadores claros de um episódio mais grave.

Esse é o problema, se classificarmos apenas em leve, moderado ou grave com base nessas pontuações, chegamos a conclusões que na verdade carecem de validade suficiente. Então outra questão é que todas as pessoas estão firmemente excluídas dos testes de eficácia. Os testes com drogas geralmente excluem pessoas que são agudamente suicidas, excluem pessoas que têm sintomas psicóticos, excluem pessoas que abusam de substâncias. Eles também excluem pessoas com transtornos mentais ou físicos comórbidos e geralmente, estas são as pessoas com episódios verdadeiramente graves.

Portanto, o que chamamos de depressão grave nesses experimentos é discutível. Não sabemos realmente como as drogas funcionam nestas, digamos, mais verdadeiramente, ou mais genuinamente, pessoas gravemente deprimidas. É por isso que eu digo que ainda falta responder se as drogas realmente funcionam melhor em depressão grave, mas com base nas evidências disponíveis, não podemos tirar conclusões sólidas.

Moore: A natureza subjetiva das escalas de classificação é uma questão bastante grande, não é? Você pode ver por que a psiquiatria acadêmica passou tanto tempo procurando biomarcadores ou medidas mais tangíveis do que um transtorno pode ou não ser, mas eles não fizeram tanto progresso, não é mesmo? Você obtém a mesma ferramenta de classificação como a escala Hamilton e poderia ser aplicada por três psiquiatras diferentes e você poderia obter um diagnóstico ou resultado diferente de cada uma dessas três pessoas.

Hengartner: Certo, e pontuações diferentes. Mas você também precisa estar ciente, eu não sei se isso é mencionado no livro, mas eles incluem preferencialmente pessoas em testes com pontuação de linha de base alta, porque se as pessoas têm pontuação de linha de base baixa é muito difícil encontrar o efeito do tratamento, já está baixa, portanto não pode ficar mais baixa. O objetivo é ter testes mais positivos e incluir pessoas com altas pontuações na linha de base para que os centros de recrutamento estejam sob pressão para, às vezes, inflar as pontuações. Digamos que se o critério de inclusão seja uma pontuação de pelo menos 24, e então a aplicação da Escala de Classificação Hamilton dê uma pontuação de 22, às vezes seria “tudo bem, basta somar um ou dois pontos, e então são 24 e podemos incluir o paciente”.

É tudo sobre a regressão à média, o que quer que se faça, se você reavaliar essas pessoas após duas ou três semanas, você vê às vezes um declínio realmente notável nos sintomas, o que provavelmente nem reflete a verdadeira melhora delas porque os resultados foram inflados na linha de base. Assim, você eventualmente verá um declínio que na verdade não reflete a verdadeira melhora na doença ou transtorno.

Moore: No livro, você fala sobre a transformação do conceito de depressão entre os anos 70 e 2000. Assim, nos anos 70, você escreve que a depressão foi caracterizada como uma “doença rara, mas grave, que quase sempre melhorava com pouca ou nenhuma intervenção”. Mas agora, é claro, vemos a depressão e a ansiedade como altamente prevalecentes, até mesmo chamadas de crise global.

As pessoas às vezes ficam bastante surpresas quando dizemos que pode não ser uma condição crônica ou contínua. Muitas pessoas melhoram sem nenhum tratamento ou intervenção realmente agressiva. Portanto, eu me pergunto o que você encontrou quando estava escrevendo sobre como concebemos a depressão agora em comparação com os anos 60 e 70.

Hengartner: Acho importante ressaltar que não é apenas a minha opinião ou a minha leitura da literatura. É por isso que cito cuidadosamente os especialistas em psicofarmacologia, aqueles considerados os mais importantes ou mais eminentes especialistas neste domínio que afirmam claramente que, na maioria dos casos, é episódico. O que quer que se faça também sem tratamento, a maioria das pessoas irá melhorar. As pessoas poderiam dizer “Bem, que Hengartner tem uma leitura muito estranha da literatura”. Portanto, esta era na verdade a visão comum até o início dos anos 70. E então as coisas começaram a mudar.

Eu acho que o fator mais importante foi a necessidade de ter uma nova definição e diagnóstico da depressão baseado nos sintomas. E foi também quando organizações como a Organização Mundial da Saúde começaram a aplicar questionários de sintomas a populações maiores.

Assim, a depressão passa a apresentar mais claramente “sintomas centrais” específicos, como o humor realmente baixo, ou anedonia, mas também muitos outros sintomas que são completamente inespecíficos. É claro que as pessoas com depressão frequentemente têm esses outros sintomas, mas a maioria das pessoas que têm esses sintomas não tem depressão. Coisas como mudança de apetite, dificuldades para dormir, problemas de concentração, cansaço e assim por diante. Estes são sintomas de estresse muito comuns e também podem ser sintomas de outra condição médica física ou devido a um tratamento médico.

Portanto, estes são muito pouco específicos e uma vez que começaram a aplicar estas escalas baseadas nos sintomas, é claro, chegaram a resultados de sintomas por vezes bastante altos. Mas se olharmos quais sintomas são os mais responsáveis por essas altas pontuações de depressão, veremos que são problemas de sono, mudanças de apetite, problemas de concentração, esses sintomas inespecíficos.

E estas são pessoas que provavelmente estão mais constantemente em um ambiente ou em uma situação de alta carga de trabalho ou tensão no trabalho ou problemas de relacionamento constante, problemas conjugais. Ou mesmo se você tem um recém-nascido. Eu tenho três filhos pequenos e durante seis anos eu não conseguia realmente dormir. Assim, durante meses e anos, tive problemas para dormir. E claro, porque eu estava sempre tão cansado, tinha problemas de concentração e às vezes também faltava apetite porque se você está tão cansado geralmente não está com muita fome.

Portanto, se durante este período, no qual eu era um dos homens mais felizes do mundo por ter tido essas crianças pequeninas e elas eram tão lindas, se se aplicasse uma escala de depressão, isso resultaria em “Oh, você tem uma depressão leve porque tem problemas de sono”. E assim, esta abordagem, que foi feita totalmente baseada nos sintomas, aumentou maciçamente a taxa de prevalência de diagnósticos de depressão.

Isso é agravado pelos questionários de depressão porque, pelo menos com os critérios diagnósticos, é necessário que um ou dois dos sintomas principais estejam presentes. Mas os questionários sobre depressão, você pode basicamente indicar que não tem humor baixo, nenhuma anedonia, mas apenas problemas de sono. O questionário ignora completamente isto, apenas lhe dá uma pontuação, que indica “Oh, você tem uma depressão leve”. Esse foi um grande passo em direção a uma abordagem baseada em sintomas.

Também foi fortemente apoiado pela indústria farmacêutica que anunciou também aos médicos de clínica geral que eles devem estar sempre atentos à “depressão mascarada”, pois há muitos pacientes que não apresentam claramente baixo astral ou anedonia, mas com mudança de apetite ou problemas de sono. Então isso é “depressão mascarada”, é por isso que precisamos avaliar esses sintomas e a mensagem colocada simplesmente é que assim que alguém tiver aumentado a pontuação nessas escalas de depressão, isso provavelmente é depressão, mesmo que você não sinta que a pessoa esteja deprimida ou que tenha um humor depressivo.

Portanto, este é um resumo muito breve, porém alguns dos desenvolvimentos mais importantes que realmente mudaram toda a definição e também a percepção da depressão durante este momento crucial.

Moore: Há um tema no livro sobre os fabricantes farmacêuticos que se intrometem ou se envolvem fortemente no campo da saúde mental. Esse período dos anos 70 e 90 foi caracterizado por uma campanha ativa para redefinir a depressão e a ansiedade e para tratá-las de forma agressiva. A teoria do desequilíbrio químico surgiu e a depressão começou a ser vista como uma condição crônica muito incapacitante, mas muito tratável, para a qual as pessoas poderiam ter que tomar medicamentos para toda a vida. Então o conceito mudou porque foi empurrado até um certo ponto, não foi?

Hengartner: Sim e foi empurrado pela indústria farmacêutica, mas havia também uma verdadeira preocupação entre psiquiatras e associações psiquiátricas de que estávamos deixando passar um problema terrível aqui, porque se não olharmos para esses sintomas, perdemos tantos casos de depressão. Durante os anos 60 e 70, as taxas de prevalência foram, em sua maioria, tão baixas que provavelmente havia pessoas com depressão que não eram corretamente detectadas e diagnosticadas. Mas a situação que temos agora é completamente diferente. Agora temos um diagnóstico exagerado, é um dos maiores problemas porque assim que se apresenta a um médico de clínica geral com todos os tipos de sintomas não específicos, obtém-se o diagnóstico de depressão, às vezes prematuro, e às vezes também é realmente um diagnóstico falso-positivo.

Então agora temos estas campanhas de conscientização que se seguiram no final dos anos 80, e elas se dirigem especificamente ao público e aos médicos de família para dizer ‘ei, você perdeu tantos casos de depressão porque é preciso ter cuidado com os sintomas de depressão inespecíficos como a angústia e devemos tratá-los caso contrário eles têm depressão crônica’. Embora não haja absolutamente nenhuma evidência de que se você tratar pessoas com depressão leve, elas terão um resultado melhor.

De fato, há estudos que mostram claramente, independentemente de os médicos de família detectarem ou não a depressão e se a tratam ou não, o resultado após um ano é quase o mesmo. Portanto, na verdade, não faz diferença se eles detectam ou não esses casos de depressão leve ou de sublimidade. Mas a mensagem tornou-se clara, é necessário diagnosticar mais, é preciso tratar mais, é preciso prescrever mais medicamentos e, claro, isso foi muito bem-vindo para a indústria farmacêutica. Mas não foi apenas a indústria que impulsionou esta nova narrativa, foi também um medo profundo dentro da psiquiatria de que eles estejam a serviço de tantas pessoas.

Moore: Passando a outro tema do livro que são as falhas na pesquisa de antidepressivos. Os truques e jogadas que acontecem na pesquisa são bastante reveladores, mesmo a forma como as drogas são licenciadas. Você escreve sobre a forma como as drogas são licenciadas por reguladores como a Food and Drug Administration nos EUA e a Medical and Healthcare Products Regulatory Agency no Reino Unido.

Eu suponho que eu tinha esta visão de que antes de uma licença de medicamentos ser concedida, o medicamento passa por muitos anos de testes com centenas de milhares de participantes, e há muitos testes positivos que mostram um claro benefício. Portanto, é bastante surpreendente descobrir que na verdade apenas dois ensaios positivos são necessários para licenciar um novo medicamento, às vezes nem mesmo dois e os ensaios mais positivos são selecionados e muitos não são selecionados.
Então eu me perguntava se poderíamos falar um pouco sobre a sua opinião e o que sua pesquisa lhe diz sobre a forma como os medicamentos são licenciados e se deveríamos nos preocupar com isso?

Hengartner: Este é um tópico muito importante porque logo no início uma das respostas mais frequentes que recebi quando enviei artigos críticos sobre a base de evidências questionáveis que sustentavam a eficácia do medicamento era que toda a discussão era desnecessária porque os reguladores do medicamento não teriam aprovado os medicamentos se eles não estivessem funcionando claramente e se os efeitos não fossem prática ou clinicamente significativos.

Ouvi este argumento mesmo de professores de psiquiatria muito conhecidos e isso obviamente revela que essas pessoas aparentemente não estão realmente cientes de como as agências de medicamentos licenciam os medicamentos. É por isso que eu disseco meticulosamente e detalho no livro como isso acontece. E como você disse, o padrão para a aprovação de medicamentos é colocado muito baixo. Simplificando, se você pode ganhar de um placebo em um ou dois testes, você obtém sua licença, independentemente de a maioria dos testes ter sido realmente negativa. E se nos testes selecionados houve uma diferença marginalmente pequena entre o placebo e o medicamento, mas foi estatisticamente significativa e isso foi o suficiente para o licenciamento.

Cito muito a FDA dos EUA, que é considerada a agência reguladora de medicamentos mais importante, para deixar claro que eles estão apenas analisando se existe evidência estatística para um efeito e não se este efeito tem alguma relevância prática. Assim, eles deixaram claro que se este efeito é estatisticamente significativo, não importa quão pequeno seja apenas um ou dois pontos na escala Hamilton, eles o consideram como evidência de que o medicamento demonstrou eficácia porque foi estatisticamente melhor do que um placebo. Se você olhar realmente para a magnitude desta diferença, você descobrirá que esta é uma diferença muito pequena, mas que foi suficiente para licenciar o medicamento.

Moore: Falamos anteriormente sobre a Escala de Classificação da Depressão Hamilton, que eu acho que é de 30 pontos no total, isso é correto?

Hengartner: Existem várias versões, você tem a Hamilton 17 itens, 19 itens, 21 itens, mas a medida mais amplamente aplicada é a Hamilton 17 itens da qual você pode marcar de 0 a 52 pontos.

Moore: E ainda assim, a diferença entre o medicamento e o placebo em testes positivos selecionados é frequentemente algo como dois pontos.

Hengartner: Sim, ou até menos. Em análises mais recentes, é mais em torno de 1,7 ou 1,8 em uma escala de 0 a 52.

Moore: Como consumidor de saúde, quando você lê que este medicamento é eficaz, você imagina que a eficácia é grande ou altamente significativa. Mas quando você investiga os detalhes, como os do seu livro e descobre que as diferenças de placebo do medicamento são tão pequenas e isso é até mesmo dado que as cartas já foram empilhadas a favor do medicamento em estudo por tantas outras formas de relatar os dados, isso é bastante assombroso, eu acho.

Hengartner: É sempre preciso considerar que esta diferença é provável que seja inflada devido a suposições que o modelo fez, como por exemplo, como ele lida com os dados ausentes. Na verdade, há evidências bastante claras de que as abordagens estatísticas para análise de dados, como a última observação levada adiante, onde se um participante desistir de sua última classificação é mostrado como o resultado geral do estudo ou núcleo final, leva a uma inflação de diferenças. A FDA conduziu a sua própria análise, e eles mostram que isto inflaciona a taxa de falso-positivo. Quase todos os medicamentos foram aprovados com base nesta intenção de tratar usando o último método de observação levado adiante. Eu não quero entrar em detalhes porque é um pouco estatístico, mas está explicado no livro.

Em essência, o que as pessoas precisam saber é que não podemos sequer ter certeza de que o verdadeiro efeito seja realmente dois pontos. Talvez seja ainda menor do que isso, por causa dos preconceitos que sabemos que existem que tendem a superestimar as diferenças entre droga e placebo.

Há também outros fatores como a utilização de uma análise por protocolo em vez de uma intenção de tratar a análise, e às vezes também certos centros foram excluídos porque os dados não pareciam suficientemente bons nesses centros. Portanto, você restringe a população do estudo àqueles onde parece haver um efeito maior, você não informa os resultados de todos os participantes do estudo. Portanto, existem realmente vieses sistemáticos que sugerem que talvez esta pequena diferença seja muitas vezes uma superestimativa

Moore: Você explica muito claramente no livro como estes problemas na pesquisa se acumulam e se tornam aditivos e há uma presunção de aprovação de medicamentos pelo regulador. Então, você falou sobre algumas das questões; publicação seletiva, ensaios de curto prazo, mudança de métodos estatísticos na metade de um ensaio, amostragem inadequada, escrita com fantasmas e assim por diante.

Diante de tudo isso, eu me pergunto o que você acha que talvez seja o maior fator de distorção na base de provas que apoia o uso de antidepressivos?

Hengartner: O maior fator, em minha opinião, certamente é a comunicação seletiva, que também inclui o viés de publicação. Portanto, sabemos com certeza que apenas cerca da metade dos testes são positivos, mas na literatura publicada esta taxa está próxima de 100%.

Se você olhar apenas para a literatura, você tem a impressão de que, na maioria dos ensaios, a eficácia foi demonstrada quando na verdade não é, é apenas na metade dos ensaios, o que na verdade já é bastante preocupante se o medicamento só funciona em cada segundo ensaio.

Mas o relato seletivo também inclui apenas o relato seletivo dos resultados que foram favoráveis. Mesmo que o resultado primário seja a escala de depressão Hamilton, você pode usar essa escala de maneiras muito diferentes. Você pode dicotomizar, pode fazer categorizações arbitrárias entre pessoas que melhoraram ou não melhoraram, pode usar diferentes abordagens de modelagem estatística para olhar as pontuações dos pontos finais ou mudanças a partir da linha de base.

Então você também pode usar uma combinação de critérios, assim, por exemplo, as pessoas têm uma pontuação de depressão mais baixa com base em outro método de avaliação e foram então consideradas como respondentes. Você pode combinar tantos métodos diferentes, com apenas uma escala você tem muitos resultados diferentes que você pode definir.

Foi o que aconteceu no infame Estudo 329, o julgamento da Paroxetina. Isso foi sobre a comunicação de novas escalas que não foram declaradas como os resultados primários. Portanto, há muitas coisas que caem na rubrica de relatórios seletivos. No final, se você tem duas ou três escalas de depressão diferentes e depois tem algumas escalas globais de melhoria, como a impressão clínica global, às vezes você tem uma escala para o funcionamento global, você pode ter uma escala para a qualidade de vida. Portanto, se você tem tantas escalas diferentes, você pode definir o resultado de muitas maneiras diferentes. Assim, no final, você pode ter 40 ou 50 formas diferentes de definir seu resultado.

Mesmo que o julgamento tenha sido negativo no resultado primário pré-especificado, você pode começar a pesquisar os dados, e pode começar a transformar e mudar tudo. Você inevitavelmente sairá com alguma definição de resultado onde você pode demonstrar um efeito estatisticamente significativo. Mas isso é apenas uma mudança post-hoc, que na maioria das vezes é apenas aleatória para que você capture resultados falso-positivos, isso acontece muito.

Assim, além de publicar seletivamente as provas, as que são publicadas também são relatadas de forma seletiva. Não todas, mas há muitas reportagens seletivas acontecendo.

Moore: Acho que tudo isso destaca como é difícil para as pessoas fazer uma avaliação informada sobre se o tratamento antidepressivo é adequado para elas e se o medicamento é suficientemente eficaz para realmente fazer a diferença. Parece ser ensaio e erro para a pessoa em vez de podermos confiar em uma base de provas consistente e confiável para apoiar uma decisão sobre se deve ou não os tomar.

Hengartner: É verdade. E depois há a outra questão que falamos no início que, mesmo que pudéssemos dizer que temos um efeito claro e robusto, você ainda não tem garantia de que realmente irá melhorar ou se beneficiar deste efeito.

Há muitas pesquisas com usuários onde fica claro que, para alguns, este efeito foi útil a curto prazo, mas depois com o tempo ele se tornou um fardo ou se transformou em um efeito adverso. E para alguns, logo desde o início, foi um efeito adverso desagradável. Portanto, mesmo que tivéssemos provas claras e sólidas de que esta droga realmente faz a diferença, em nível de usuário individual, não podemos ter certeza de que você realmente se beneficiará deste efeito.

Moore: Pergunto-me se poderíamos abordar as últimas seções do livro, que falam sobre soluções para a reforma e também captar um pouco da sua experiência de ter escrito criticamente sobre estas questões.

Você compartilha como é difícil dar mensagens que contradizem esta narrativa principal e escreve que “houve momentos em que me senti exausto e abatido, desmoralizado pelos insultos nas mídias sociais e pelos irritantes ataques ad hominem por revisores anônimos”.
Para mim, para alguém que olha para este mundo e não é um acadêmico, parece haver uma pressão real para proteger a reputação dos antidepressivos como drogas seguras e eficazes por parte dos principais líderes de opinião, as vozes mais importantes da psiquiatria. Eu me pergunto se você também já sentiu isso e me pergunto como foi escrever um livro de uma perspectiva crítica como esta, porque sei que será bem recebido por muitos, mas sei que será um desafio também.

Hengartner: Sim, por isso hesitei por muito tempo porque, como descrevi no livro no seu início, eu era muito ingênuo e pensei: “ok, esta é uma análise científica interessante sobre a base das evidências”. Mas rapidamente percebi que não se trata apenas da ciência que está por trás da eficácia.

Há muitos interesses aqui que às vezes provocam respostas muito raivosas. Como praticante, você sempre precisa considerar como essas pessoas foram treinadas. Elas não conhecem esses estudos, mais de 1.000 estudos que menciono em meu livro, porque quando falo em clínicas ou hospitais, o público é, na maioria das vezes, muito receptivo. E tive grandes discussões após as apresentações onde psiquiatras e outros médicos vieram até mim para dizer: ‘oh uau, isso é realmente novidade para mim’. Eu nunca soube de todos aqueles estudos sobre publicação seletiva” e eles também ficaram bastante chocados.

Portanto, não creio que a maioria dos profissionais apenas tente defender algo que a indústria farmacêutica quer, eles estão realmente convencidos de que as drogas funcionam. O que torna as coisas ainda mais difíceis é que eles observam melhorias em sua prática diária, mas como eles prescrevem drogas para a maioria das pessoas que vêem, eles não podem realmente julgar se este é um efeito de droga ou se ele teria ocorrido mesmo sem a droga.

Eles foram treinados para ver melhorias. Frequentemente vão a programas de educação médica contínua que muitas vezes são patrocinados ou apoiados pela indústria farmacêutica, com um importante líder de opinião dando mensagens de marketing. E, de repente, aparecem algumas pessoas estranhas que desafiam esta visão de mundo, este sistema de crenças. É por isso que fui chamado de crente da terra plana e esse foi um dos ataques ad hominem mais simpático. Para eles, é completamente absurdo, é tão claro, há tantas evidências. Nós fomos treinados na faculdade de medicina que isto funciona e depois temos aquelas apresentações e temos aqueles eventos educacionais e vemos isto. Então, de repente, alguém vem e diz que o efeito do tratamento às vezes é bastante incerto e eles simplesmente não conseguem acreditar nisso. Na verdade, acho que a maioria das pessoas simplesmente não está ciente destas questões. E para elas, é inimaginável que isso possa ser bem diferente do que foram treinadas e ensinadas e do que observaram.

Penso que a questão principal é saber que a avaliação crítica dos dados científicos não é uma coisa crucial nas escolas de medicina. A maioria dos médicos é mal treinada em análise de dados e estatísticas, portanto, a maioria não entende realmente e para eles, é “oh foi um efeito estatisticamente significativo, portanto, fim da discussão”. Eles não vêem que os métodos são muito mais complicados do que isso.

Não quero denegrir o conhecimento científico dos médicos, mas a maior parte de sua formação é sobre a prática e não sobre a ciência. Portanto, eles confiam no que seus supervisores lhes dizem ou nas pessoas que apresentam palestras ou eventos de educação médica e nas visitas de representantes de vendas farmacêuticas que, em sua maioria, entregam mensagens de marketing.

Moore: Ao pensar em reforma e no futuro, eu me perguntava o que você achava que talvez fosse a maior mudança que poderíamos fazer em toda esta área para que pudéssemos tentar garantir que mais pessoas sejam ajudadas e menos pessoas sejam expostas a danos potenciais. O que poderíamos fazer de diferente?

Hengartner: Acho que, antes de tudo, precisamos mudar a maneira como definimos e diagnosticamos a depressão. Por isso, faço a sugestão de tornar a definição mais conservadora para excluir reações emocionais mais normais a eventos estressantes da vida. Precisamos de uma definição mais rigorosa que estabeleça a barra um pouco mais alta, porque agora o diagnóstico é tão exagerado. Apenas duas semanas de sentimento de depressão por qualquer razão se qualifica como um grande episódio depressivo. Uma das coisas mais ridículas é que você pode ter uma depressão leve e grave, o que é contraditório, por isso precisamos de uma definição diferente.

Então eu acho que um dos fatores mais importantes é que toda a abordagem de licenciamento das drogas precisa ser mais rigorosa. Apenas vencer um comprimido de placebo em um ou dois testes não é suficiente. Acho que um novo medicamento deve demonstrar claramente que é melhor do que os medicamentos estabelecidos, mais baratos, que já estão no mercado há anos. Um novo medicamento deve demonstrar que é melhor que um tratamento estabelecido e não uma pílula de açúcar, caso contrário, não tem valor agregado quando se trata de um perfil de efeito adverso semelhante.

Além disso, se você pode conduzir quantas provas quiser, basta mostrar que duas foram positivas. É uma abordagem muito estranha. Como pênalti no futebol, se eu acerto o gol a cada dez ou a cada oito vezes, isso não faz um bom pênalti. Se a partir de dez chutes, dois foram bem sucedidos, se eu apenas acertei 20% é uma taxa muito ruim. Portanto, eu acho que a maioria das tentativas precisa ser claramente positiva. Então, é claro, melhorando o pré-registro do estudo, aderência clara aos protocolos de estudo para minimizar todo o efeito da comunicação seletiva.

O que precisamos claramente é de uma separação bastante rigorosa entre os interesses da indústria e a prática médica, de modo que a indústria financie a educação médica contínua e o apoio financeiro dos chefes de departamento e de departamentos médicos inteiros que fazem a maior parte de sua renda com dinheiro farmacêutico. Precisamos de uma separação mais clara porque, caso contrário, se você souber quem paga por seu trabalho e quem paga por sua pesquisa, você é responsável perante essa pessoa. Você precisa entregar porque a pessoa que paga espera algo em troca, então os cientistas, mesmo que inconscientes, tentarão apresentar resultados que satisfaçam os pagadores.

Na verdade, precisamos acabar com o imenso emaranhado entre a prática clínica e os interesses financeiros da indústria farmacêutica.

Moore: Você compartilhou recentemente na mídia social que além de ser um pesquisador você está começando a se formar como um terapeuta psicológico. Esta é uma notícia tão bem-vinda, Michael. Você pode nos contar um pouco sobre sua decisão de se tornar um clínico, bem como um pesquisador?

Hengartner: Eu tinha razões diferentes. Para mim, trata-se de desenvolvimento e de ter uma nova perspectiva. Fazer mais do que apenas pesquisa, o que às vezes pode ser gratificante, mas na maioria das vezes pode ser um processo muito frustrante e difícil.

Ao fazer toda esta pesquisa, eu estava sempre me perguntando: existe outra maneira de eu poder fazer mais, talvez? Também fazer algo além de apenas se sentar na frente de um computador escrevendo artigos, analisando dados, pesquisando a literatura, o que é muito interessante, mas às vezes dependendo das reações que sua pesquisa provoca, também pode ser bastante desafiador.

Assim, cheguei à decisão de que também quero entrar na prática clínica para tentar ajudar diretamente as pessoas porque a ciência pode ser indireta e se há realmente uma transferência da ciência para a prática é uma grande incógnita. Se minha pesquisa realmente muda alguma coisa, quem sabe, se muda, talvez seja apenas um pouquinho. Portanto, para fazer mais, também preciso trabalhar na prática e tentar ajudar diretamente as pessoas com o que eu posso oferecer. Então, isso seria psicoterapia, já que não sou médico.

Moore: Michael, obrigado. Foi um prazer conversar com você hoje. Seu livro é facilmente compreensível. É convincente, é abrangente e está bastante claro nas 84 páginas de referências quanto esforço de pesquisa foi feito para montar este quadro de um sistema bastante quebrado, no qual muitas pessoas dependem para ajudá-las a sair de alguns lugares muito difíceis.

Espero que seu livro abra essa conversa crítica a muito mais pessoas e nos permita interagir uns com os outros com um pouco mais de civilidade sobre como melhoramos, pois a melhoria é desesperadamente necessária. Estou muito grato a você por se juntar a mim hoje e também por seus esforços para escrever o livro.

Hengartner: Muito obrigado, James. Foi um grande prazer para mim conversar com você.

O Novo DSM Está Chegando e Essa Não é Uma Boa Notícia

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A mais nova edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM) está prevista para chegar em março. Se você não está alarmado, você deveria.

O DSM é o livro de onde provêm todos os nossos diagnósticos de saúde mental. Está conosco desde 1952, quando tinha na época um pouco mais de cem diagnósticos e era praticamente desconhecido. Ele agora oferece mais de quinhentos diagnósticos que os médicos fazem com tanta frequência que 46% dos adultos americanos e 20% das crianças e adolescentes americanos receberão um em suas vidas.

A nova edição (DSM-5-TR) não está recebendo muita publicidade, principalmente porque a Associação Psiquiátrica Americana (APA), a organização privada que publica e lucra com o DSM, não está divulgando essa nova versão. Por quê? A edição anterior (o DSM-5) provocou um verdadeiro alvoroço. As críticas variaram desde os vínculos dos autores com a Big Pharma até a forma como o DSM patologizou pensamentos, comportamentos e emoções normais e inventou novos diagnósticos para fazer com que os critérios fossem afrouxados, para facilitar o diagnóstico dos transtornos, até o fato de que as brigas políticas, e não a ciência, é que ditam o que é considerado como uma doença mental.

O problema fundamental dos diagnósticos DSM é que eles são cientificamente inválidos e em grande parte não confiáveis e têm sido chamados de “cientificamente inúteis“. Nenhum deles pode ser provado objetivamente por um teste, raio-x ou algum outro marcador biológico e não são entidades de doença discretas. (As únicas exceções são demência e doenças cromossômicas raras.) As categorias de diagnóstico não existem fora dos sintomas auto-relatados pelo paciente e pelo médico que as diagnosticou. Elas não atendem a um padrão de confiabilidade, ou seja, as chances de dois clínicos concordarem com o mesmo diagnóstico no mesmo paciente estão em algum lugar entre o lançamento de uma moeda  e o zero.

O DSM-5-TR (TR para revisão de texto) poderia ter sido um ato heróico. Os arquitetos do DSM poderiam ter passado a última década removendo ou, no mínimo, reavaliando os muitos, muitos diagnósticos inválidos, não confiáveis e suspeitos do DSM.

Em vez disso, um novo diagnóstico foi adicionado (o transtorno de luto prolongado, que essencialmente diz que se você chorar por um ente querido por mais de um ano e o seu luto tornar a vida difícil, você tem uma doença mental), há também a potencial inclusão da ideação suicida e da automutilação como sendo transtornos mentais. Os outros diagnósticos permanecem intactos.

É difícil exagerar o quão perturbador isto deve ser para nós. Isso significa que ainda estamos aceitando diagnósticos duvidosos.

Para dar um exemplo do tipo de diagnóstico que permanece no DSM-5-TR, usaremos o transtorno alimentar compulsivo [em inglës bing eating disorder (BED) ].  Dada a forma como o excesso de comida passou a ser considerado uma doença mental, a publicidade com atores envolvidos, a invalidez e falta de confiabilidade do diagnóstico, e os perigos que representa para pacientes insuspeitos sendo diagnosticados com ele, é difícil imaginar por que o DSM-5-TR não se apressou a removê-lo ou pelo menos levou tempo para reconsiderá-lo.

Um questionário diz: “Transtornos alimentares”: Você está em risco”? As opções são caixas de seleção para “Sim” e “Não”.

Nasce um diagnóstico

O BED começou como uma teoria. Nos anos 50, o psiquiatra Albert J. Stunkard, um pioneiro na pesquisa da obesidade, publicou um artigo sobre o que ele chamou de “síndrome da alimentação noturna”. Esta condição era caracterizada por hiperfagia noturna (fome extrema à noite), insônia (insônia) e anorexia matinal (não comer na manhã seguinte). Tendia a ocorrer durante períodos estressantes e estava intrinsecamente ligado à obesidade. Todos os participantes do estudo inicial do Stunkard tinham algum tipo de transtorno de peso.

Vinte e cinco anos depois, o consumo excessivo apareceu na terceira revisão do DSM (o DSM-III) como um sintoma de bulimia nervosa. Aqueles que sofrem de bulimia comem, muitas vezes em excesso, e depois tentam evitar o ganho de peso por vômitos, usando laxantes, ou fazendo exercícios. A próxima revisão (DSM-IV) colocou o consumo excessivo por conta própria na categoria de Transtorno Alimentar Não Especificado de Outra Forma (EDNOS). A próxima revisão (DSM-5) fez dele um diagnóstico completo.

Como em muitos diagnósticos DSM, o critério decidido para BED é excessivamente geral ou o que é chamado de “frouxo”, ou seja, fácil de ser aplicado em qualquer pessoa:

  1. Comer, em um período de tempo discreto (por exemplo, em qualquer período de 2 horas), uma quantidade de alimentos que é definitivamente maior do que a maioria das pessoas comeria em um período de tempo semelhante em circunstâncias semelhantes e

2. A sensação de falta de controle sobre a alimentação durante o episódio (por       exemplo, uma sensação de que não se pode parar de comer ou controlar o         que ou quanto se está comendo)”.

Os episódios de BED só precisam estar “associados” a pelo menos três dos seguintes itens:

  • comer muito mais rapidamente do que o normal
  • comer até se sentir desconfortavelmente cheio
  • comer grandes quantidades de alimentos quando não se sente fisicamente faminto
  • comer sozinho por se sentir embaraçado com o quanto se está comendo
  • sentir-se enojado consigo mesmo, deprimido ou muito culpado depois de comer em excesso

Não há parâmetros reais. Como o peso corporal não é um fator no diagnóstico de bulimia, a compulsão alimentar não está mais associada à obesidade. O diagnóstico não esclarece a quem, exatamente, “a maioria das pessoas” se refere. As “circunstâncias similares” não são especificadas. Muitas pessoas sentem vergonha de comer sozinhas, mas por razões que nada têm a ver com o número de entradas que encomendam. E os sentimentos de prazer, felicidade e libertação depois de comer demais, a ponto de ter que desabotoar as calças, parecem ser respostas inadequadas à situação.

Critérios frouxos poderiam ser justificados se o diagnóstico pudesse ser validado, mas não podem. O BED não tem validade. O diagnóstico é baseado inteiramente no que o paciente e o médico percebem enquanto uma “quantidade maior” ou “mais rápida que o normal” ou “desconfortavelmente cheia”. Mesmo a sua característica central de “perda de controle” não tem “nenhuma métrica clara”. Uma vez dado o diagnóstico, nenhum teste objetivo pode confirmar que o paciente tem a construção chamada BED.

Ele também tem confiabilidade indeterminada. Usando critérios de diagnóstico DSM, dois clínicos não podem diagnosticar com confiabilidade o mesmo paciente. Nos testes de campo do DSM-5, o BED teve um escore de confiabilidade kappa de .56, caindo abaixo de .70 que necessitava para ser considerado meramente “satisfatório”. O diagnóstico ganhou acordo apenas metade das vezes. Mas “satisfatório” não significa muito no DSM-5. Após testes de campo terem produzido escores desanimadores para novos diagnósticos como o BED e até mesmo os já experimentados e verdadeiros como o transtorno depressivo maior, os autores do DSM corrigiram o problema ao baixar os escores kappa para permitir que diagnósticos com índices de confiabilidade inaceitáveis fossem adotados ou mantidos.

Um diagnóstico é construído

Entra em ação a Big Pharma. Em 2011, quando o transtorno da compulsão alimentar estava sendo considerado como um diagnóstico oficial do DSM, a Shire Pharmaceuticals já havia procurado comercializar o seu medicamento Vyvanse, uma anfetamina, como o único medicamento disponível para tratar o transtorno. Com uma taxa de prevalência de 6,9% nos Estados Unidos, um diagnóstico DSM criaria pelo menos 21 milhões de novos clientes potenciais e traria uma estimativa de US$ 200 ou US$ 300 milhões para a empresa anualmente.

Vyvanse tornou-se o medicamento oficial do transtorno de compulsão alimentar porque havia um diagnóstico DSM para o transtorno. A agência Food and Drug Administration (FDA) parecia não se importar que não tinha sido comprovado como um tratamento eficaz para o transtorno alimentar além de suas propriedades inibidoras do apetite. Um porta-voz da FDA disse que o medicamento havia sido aprovado simplesmente porque não havia outro medicamento para tratar o transtorno alimentar compulsivo recém cunhado.

(Antes de Vyvanse, os “tratamentos de escolha” para aqueles que tinham comportamentos compulsivo alimentares eram terapias psicológicas: Terapia Cognitiva Comportamental e Psicoterapia Interpessoal – nenhuma das quais rendia dinheiro para a Big Pharma. Outros medicamentos já haviam sido experimentados: estimulantes, antidepressivos e medicamentos anticonvulsivos, mas muitos deles haviam perdido suas patentes, ou seja, as empresas farmacêuticas não estavam mais lucrando. Nenhum era muito eficaz.

Para aproveitar ao máximo a situação, a Shire lançou uma campanha de conscientização sobre a doença. A empresa não divulgou o medicamento Vyvanse; ela comercializou o diagnóstico do BED. Ela fez parceria com grupos de defesa de pacientes como a Binge Eating Disorder Association e a National Eating Disorder Association (NEDA), que, ironicamente, patrocinam a campanha de conscientização sobre transtornos alimentares desta semana para supostamente “educar o público sobre as realidades dos transtornos alimentares” sem, é claro, revelar seus vínculos com a Big Pharma. Por sua vez, a NEDA ajudou a inundar a internet com histórias pessoais de compulsão alimentar.

Foi feito um anúncio com a estrela do tênis Monica Seles, “a cara” do BED. O anúncio afirmava falsamente que o transtorno era o resultado de um desequilíbrio químico. Shire exortou os consumidores a se auto-diagnosticar com base em uma lista de sintomas do DSM e a conversar com os seus médicos, presumivelmente para obter o diagnóstico e uma prescrição para Vyvanse, ambos determinados pelos sintomas auto-diagnosticados do paciente com base nas listas de sintomas subjetivos do DSM e na opinião do médico.

O BED tornou-se, desde então, o distúrbio alimentar mais comumente diagnosticado. Podemos atribuir isso, em parte, à Big Pharma, mas sem o DSM não haveria nenhum diagnóstico para que a FDA aprovasse medicamento.

Os defensores do DSM argumentam que o diagnóstico ajudará a combater a epidemia de obesidade, mas a patologização do comer em excesso age como um bode expiatório para os problemas reais em nossa sociedade. Não é surpreendente que 4 em cada 5 de nós comam regularmente em excesso. Considerando os nossos alimentos altamente processados, os tamanhos enormes das porções e os alimentos frescos limitados entre as populações de baixa renda, o BED parece praticamente inevitável. A comida de plástico é projetada para ser cozinhada. Um Oreo atua sobre o sistema de recompensa humana, não muito diferente da heroína. Como Michael Moss, autor de Salt Sugar Fat and Hooked, e outros mostraram, gigantes da alimentação como Nestlé, Coca-Cola e General Mills projetam alimentos não apenas para torná-los deliciosos, mas viciantes. Somos alvo de campanhas publicitárias para fast food, bebidas açucaradas, doces e lanches insalubres. Celebridades recebem milhões para nos influenciar a comprar as opções mais insalubres. Comer demais normalmente resulta do estresse e somos das pessoas mais estressadas do mundo. Para aqueles com recursos econômicos, a comida é abundante e pode ser entregue em nossas portas.

O BED é apenas um dos diagnósticos que continuaremos a receber como resultado da falha da APA em corrigir os erros do passado dos DSMs. Ficamos com os diagnósticos projetados para serem facilmente entregues, aceitos e identificados com. Como o psiquiatra Michael First e o acadêmico Jerome Wakefield disseram, “praticamente todos os sintomas psiquiátricos característicos de um transtorno do DSM podem ocorrer em algumas circunstâncias em uma pessoa que funciona normalmente”. Quando o DSM-5-TR chegar em março, ele deve ser visto pelo que é – uma oportunidade perdida para melhorar o cuidado com a saúde mental onde ele começa: o DSM.

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O MAD recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para uma discussão – psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

As empresas farmacêuticas ocultaram das entidades reguladoras os estudos sobre medicamentos com TDAH que falharam?

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Medical breakthrough concept and a successful medication discovery symbol as a healthcare medicine solution with a capsule pill breaking through a maze or labyrinth.

Em um novo artigo no Journal of Clinical Epidemiology, os pesquisadores examinaram os processos decisórios das agências reguladoras de medicamentos e o uso de ensaios clínicos ao aprovar um medicamento de liberação prolongada usado para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (ADHD). Os pesquisadores descobriram que faltavam ensaios clínicos em mais da metade das solicitações examinadas. Eles concluem oferecendo sugestões para melhorias no sistema regulatório de medicamentos, tais como a exigência de transparência total, incluindo todos os ensaios relevantes na tomada de decisões, entre outras recomendações.

Os autores, liderados por Kim Boesen do Nordic Cochrane Centre, escrevem:

“Ao nosso conhecimento, este pode ser o primeiro relatório que investiga sistematicamente se as agências reguladoras de medicamentos tomam decisões com base em amostras completas ou selecionadas de ensaios clínicos. Em nossa coorte de 13 aplicações de metilfenidato de liberação prolongada para TDAH em adultos, identificamos ensaios ausentes em 7 (54%) solicitações”.

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As agências reguladoras de medicamentos, como a US Food and Drug Administration (FDA), baseiam as suas decisões sobre se um novo medicamento será aprovado em ensaios clínicos apresentados por empresas farmacêuticas. Entretanto, o patrocínio da indústria por empresas farmacêuticas faz com que esses ensaios sejam comumente publicados seletivamente em revistas médicas.

Os resultados dos ensaios também são frequentemente relatados de forma seletiva. Como resultado, pode haver diferenças nos estudos publicados em revistas médicas, que são acessíveis ao público em geral, em relação aos dados brutos submetidos aos reguladores de medicamentos, sendo que os dados omitidos nos relatórios publicados frequentemente incluem informações relacionadas aos resultados relatados pelos pacientes e aos danos do medicamento.

Na União Europeia (UE), foi aprovada legislação que exige relatórios precisos dos resultados dos ensaios de medicamentos. Entretanto, um estudo recente descobriu que mais da metade dos novos ensaios clínicos na União Europeia não cumpriram esta legislação.

Além disso, além das preocupações éticas sobre como os resultados são relatados, as abordagens das empresas farmacêuticas ao recrutamento de participantes em seus ensaios clínicos também foram criticadas, pois exploram indivíduos pobres que estão desesperados por dinheiro enquanto “cobaias”.

Boesen e colegas escrevem:

“Em 2008, foi relatado que 31% dos ensaios de antidepressivos incluídos em pedidos de novos medicamentos submetidos à Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA) nunca foram publicados em periódicos médicos. A maioria destes ensaios não publicados não favoreceu o antidepressivo e foram considerados ‘negativos’ pela FDA”.

Embora a norma internacional exija que todas as empresas farmacêuticas apresentem um documento ao solicitar a autorização de comercialização, incluindo informações relacionadas à garantia de qualidade, dados de ensaios clínicos e estudos não clínicos, tais como estudos toxicológicos, estudos constataram que nem sempre é este o caso.

Por exemplo, uma revisão dos reguladores de medicamentos na Europa e no Reino Unido descobriu que os ensaios com antidepressivos eram incompletos e internamente inconsistentes. Além disso, uma revisão de um medicamento para influenza descobriu que a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e a FDA “ignoraram em grande parte” o maior ensaio de medicamentos em seus processos de aprovação.

No estudo atual, os pesquisadores examinaram documentos regulamentares de medicamentos disponíveis publicamente relacionados ao metilfenidato de liberação prolongada para TDAH adulto. As agências reguladoras de medicamentos incluídas nesta análise abrangeram os EUA, Austrália, Canadá, Japão e Europa.

Os pesquisadores descobriram que 7 (54%) ensaios estavam faltando em 13 pedidos de medicamentos que eles analisaram. Quando chegaram às agências reguladoras de medicamentos para perguntar sobre os ensaios em falta, a FDA, a Health Canada e a Australian Therapeutic Goods Administration (TGA) não responderam diretamente às suas perguntas. O Bundesinstitut für Arzneimittel und Medizinprodukte (BfArM), por outro lado, confirmou que eles não examinaram um ensaio que estava faltando.

Boesen e colegas destacam o potencial impacto negativo de ensaios ausentes através de um exemplo em que a FDA aprovou um medicamento TDAH com base em dois ensaios patrocinados pela Janssen Pharmaceuticals. O revisor médico da FDA levantou preocupações sobre os perigos do medicamento, destacando riscos cardiovasculares potenciais, e sugeriu que um terceiro ensaio fosse concluído como condição para que o medicamento fosse aprovado.

Entretanto, esta recomendação foi descartada pelo Chefe de Equipe e Diretor de Divisão da FDA, pois eles não acreditavam que fosse viável ou ético concluir ensaios clínicos adicionais devido ao tempo e à logística que isso exigiria. Além disso, embora houvesse informações sobre quatro ensaios adicionais controlados por placebo apresentados junto com este pedido, a FDA optou por não solicitar estes ensaios.

Além disso, o mesmo medicamento para TDAH foi aprovado pela Health Canada com base em um desses ensaios e foi aprovado pela TGA com base em dois desses ensaios, com a TGA também listando dados relacionados aos efeitos prejudiciais do medicamento de um terceiro estudo patrocinado pela Janssen.

Curiosamente, o pedido do medicamento foi rejeitado por uma agência reguladora de medicamentos britânica com base nos três ensaios Janssen, com comentários de um dos revisores:

“A totalidade dos dados é, portanto, fraca, com um sucesso, um fracasso na fronteira, e um julgamento claramente fracassado”.

Estes exemplos enfatizam a importância de incluir todos os ensaios nos processos de tomada de decisão. Como no caso do último exemplo, a adição do terceiro julgamento “claramente fracassado” influenciou a decisão da agência regulatória britânica de rejeitar o medicamento.

Além disso, a linguagem utilizada nos requisitos para novas aplicações de medicamentos é amplamente ampla e pouco clara, deixando-a aberta à interpretação. Por exemplo, tanto a FDA como a EMA têm diretrizes que declaram que todos os ensaios de medicamentos que são “pertinentes” ao medicamento proposto devem ser incluídos no pedido. A Health Canada usa a linguagem “todos os ensaios essenciais”, o que mais uma vez deixa às empresas farmacêuticas a margem para interpretar isso de forma a tornar suas aplicações mais favoráveis às agências reguladoras.

A falta de clareza na linguagem utilizada pelas agências reguladoras de medicamentos pode ser explicada pela linguagem utilizada pela agência na qual as agências reguladoras se baseiam, o Conselho Internacional de Harmonização (ICH), cuja diretriz afirma que devem ser incluídos ensaios que sejam “pertinentes à eficácia do produto medicinal”.

Boesen e colegas oferecem várias explicações para o porquê de alguns ensaios clínicos não serem incluídos em documentos públicos, tais como empresas farmacêuticas deliberadamente decidindo excluí-los e o fato de as agências reguladoras de medicamentos não solicitarem explicitamente que todos os ensaios sejam apresentados.

Além disso, eles apontam que as agências reguladoras não completam suas próprias revisões de bancos de dados de ensaios de medicamentos, mas, em vez disso, confiam no material do pedido, as agências reguladoras nem sempre se certificam de que o que está listado no pedido foi realmente submetido, e as próprias agências reguladoras podem decidir excluir certos ensaios com base em suas próprias determinações.

As limitações do estudo incluem sua dependência de documentos públicos e um pequeno tamanho de amostra.

Os autores concluem com várias recomendações para melhorias no sistema regulatório de medicamentos, tais como maior transparência a inclusão de todos os ensaios de medicamentos relevantes, que poderiam ser abordados em parte pelas agências reguladoras fazendo suas próprias revisões sistemáticas dos bancos de dados de ensaios de medicamentos, esclarecendo os requisitos de aplicação para evitar lacunas, responsabilidade para as empresas farmacêuticas que não submetem todos os dados, e maior parceria entre as agências reguladoras de medicamentos internacionalmente.

Outros sugeriram que fosse adotado um modelo de “relatórios registrados” para revisão e publicação por pares, onde antes mesmo do início do estudo, as questões e critérios da pesquisa precisariam ser claramente definidos e aprovados pelos revisores por pares antes que o ensaio de drogas pudesse começar, o que poderia evitar uma possível flexão de regras após a coleta dos dados ter sido feita.

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Boesen, K., Jørgensen, K. J., Gøtzsche, P. C. (2021). Clinical trials were missing from regulatory documents of extended-release methylphenidate for ADHD in adults: A case study of public documents. Journal of Clinical Epidemiology, 7(3). https://doi.org/10.1016/j.jclinepi.2021.10.027 (Link)

O Aumento da Incerteza Social e Existencial Ligada ao Sofrimento Mental

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Um artigo recente publicado no Journal of Mental Health explora a relação entre a incerteza e a saúde mental. Especificamente, os autores analisaram dados de ambientes médicos, cenários de desastres e conflitos, e ambientes ocupacionais e universitários. Eles encontraram uma relação positiva entre a incerteza – especialmente em torno de questões médicas – e o agravamento da saúde mental, particularmente depressão, ansiedade, transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), estresse e sofrimento psicológico em geral.

“Acredita-se que as mudanças climáticas, o aumento de conflitos armados e perigos naturais, o deslocamento e grandes fluxos de refugiados, e a austeridade, contribuem para desencadear uma incerteza generalizada a nível individual, comunitário e social. Atualmente, a pandemia da COVID-19 exacerbou ainda mais as incertezas pré-existentes e gerou novas incertezas, com os meios de comunicação chegando ao ponto de falar de uma ‘pandemia de incerteza'”, escrevem os autores.

“Nunca a ligação entre incerteza e saúde mental foi tão central nos discursos públicos e acadêmicos”. No entanto, há poucas evidências sistemáticas a respeito da ligação entre a incerteza e a saúde mental”.

Pesquisas mostram que crises em nossos ambientes sociais e ecológicos podem aumentar o sofrimento mental. Da pandemia COVID-19 à mudança climática, os estudos apoiam a noção de que forças caóticas e destrutivas no mundo mais amplo podem impactar a saúde mental dos indivíduos.

De uma perspectiva geral, a incerteza pode estar na raiz de grande parte dessa angústia, pois pandemias e futuros incertos podem aumentar a ansiedade. Pesquisas sugerem, por exemplo, que a incerteza em torno das políticas econômicas pode aumentar o suicídio nos homens. Outro estudo aponta a “insegurança existencial” como um fator significativo para a saúde mental das crianças palestinas que vivem na Faixa de Gaza.

O estudo atual é uma revisão abrangente da literatura de pesquisa examinando a relação entre a incerteza e a saúde mental. Os autores, baseados em Londres e na Palestina, examinaram 101 artigos “abordando a associação entre incerteza e saúde mental”.

O estudo foi uma “revisão de escopo”, que normalmente consiste em: “projetos exploratórios que mapeiam sistematicamente a literatura disponível sobre um tópico, identificando conceitos-chave, teorias, fontes de evidência e lacunas na pesquisa”.

Os autores foram seletivos com os estudos incluídos, examinando, por exemplo, estudos sobre tópicos relacionados como insegurança e risco, estudos que não enfocavam a saúde mental ou a associação entre incerteza e saúde mental, estudos que não foram revisados por pares, e estudos publicados antes do ano 2000.

Foi escolhida uma abordagem de “revisão narrativa” para sintetizar e relatar os resultados do estudo. Isto incluiu estatísticas descritivas para resultados numéricos e a geração de temas narrativos para aspectos qualitativos.

Os autores reconhecem que a incerteza nem sempre é uma coisa ruim: “a incerteza pode ser avaliada não apenas como uma ameaça, mas também como uma oportunidade”, dependendo de fatores contextuais.

A maioria dos estudos (91%) foram trabalhos de pesquisa originais, com artigos de revisão (6%), trabalhos utilizando conjuntos de dados secundários, e trabalhos teóricos/comentários que compõem o restante.

A maior parte da pesquisa foi transversal (67%) e veio de campos como medicina e enfermagem (59%), seguida por psicologia/psiquiatria/neurociência (11%) e outros campos relacionados.

Os Estados Unidos foram o local da maior parte dos estudos, com 61 dos 101 estudos. Entretanto, alguns dos estudos também vieram de países como o Reino Unido e Taiwan, assim como alguns outros.

A incerteza foi examinada em três cenários diferentes:

Ambientes médicos (n=92)

Configurações de desastre e conflito (n=4)

Configurações ocupacionais e universitárias (n=4)

Em ambientes médicos, que constituíram a grande maioria dos estudos, a incerteza foi frequentemente investigada em relação a questões médicas como “câncer, outras doenças não transmissíveis, doenças infecciosas, gravidezes de alto risco, aconselhamento genético, transplantes de órgãos e recebimento de dispositivos implantados”. A incerteza neste contexto se centrava em torno da própria doença e do tratamento e prognóstico.

A incerteza em si foi mais comumente medida usando a Escala de Incerteza de Mishel na Doença (MUIS), com 45%, mas outras como a Escala de Percepção de Incerteza dos Pais e coisas como questionários também apareceram nos estudos.

Em termos de categorias de saúde mental analisadas, as mais comuns foram depressão (23%), ansiedade (19%), angústia psicológica (15%), TEPT (10%) e estresse (10%). Estes dados foram coletados usando uma variedade de instrumentos em todos os estudos.

A maioria dos estudos (79%) encontrou uma associação positiva entre incerteza e problemas de saúde mental. Alguns estudos (15%), entretanto, encontraram resultados mistos, significando que resultados específicos de saúde mental tinham uma associação positiva com a incerteza enquanto outros não tinham. 6% não encontraram nenhuma relação estatística significativa.

Motivar esta pesquisa foi uma preocupação em torno do conflito Israel-Palestina, com os autores afirmando que em território palestino ocupado:

“…a incerteza é uma experiência crônica, generalizada e estrutural, dada a contínua ocupação militar israelense, restrições de movimento, condições de cerco, confisco de terras, construção de assentamentos israelenses em terras palestinas, invasões periódicas, exposição à violência política e escassez de medicamentos”.

Os autores mencionam várias limitações ao estudo e à literatura de pesquisa de forma mais ampla.

Como a maioria dos dados eram transversais, é difícil estabelecer a causa. Além disso, devido a quão diferentes eram os padrões de análise nos estudos (como tipo de estudo e instrumentos utilizados), os autores foram forçados a fazer uma “revisão de escopo” em vez de uma meta-análise convencional. A não inclusão de estudos sobre “insegurança” ou “risco” pode ter deixado de fora importantes insights.

Outra limitação significativa observada pelos autores é que, apesar da pesquisa qualitativa mostrar que indivíduos e comunidades podem mudar a sua relação para a incerteza através de mecanismos de enfrentamento, em vez de serem passivos, pouca pesquisa explorou isto em detalhes estatísticos.

Além disso, eles afirmam que a análise de estudos qualitativos poderia acrescentar mais nuances à relação entre incerteza e saúde mental e oferecer uma visão dos mecanismos eficazes de enfrentamento.

Os autores realizaram uma revisão separada examinando estudos qualitativos, que serão publicados separadamente.

Eles concluem:

“Nos últimos anos, houve uma mudança na abordagem da saúde mental através de um modelo puramente biomédico e para uma compreensão mais holística da saúde mental como um fenômeno bio-psico-social intimamente ligado a fatores sociais, econômicos e políticos. A revisão atual aponta para a importância de investigar como a incerteza em torno dos principais determinantes sociais pode impactar a saúde mental”.

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Massazza, A., Kienzler, H., Al-Mitwalli, S., Tamimi, N., & Giacaman, R. (2022). The association between uncertainty and mental health: A scoping review of the quantitative literature. Journal of Mental Health, 1–12. (Link)

 

Porque é que a Psiquiatria é tão defensiva em relação à crítica?

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Selective focus on the word "psychiatry". Many more word photos for you in my portfolio...

Em 6 de janeiro de 2022, Awais Aftab, MD, psiquiatra e professor clínico da Case Western, publicou um artigo no Psychiatric Times. O título é  It’s Time for Us to Stop Being So Defensive About Criticisms of Psychiatry [É hora de se parar de ficar na defensiva com os críticos da psiquiatria]. 

O trabalho do Dr. Aftab é essencialmente uma resposta a um outro trabalho, publicado também no Psychiatric Times. Este último artigo é intitulado It’s Time For Us To Stop Waffling About Psychiatry [ É hora de se parar de falar da psiquiatria pelos cotovelos] de Daniel Morehead, MD, diretor de treinamento para a residência geral de psiquiatria na Tufts. O Dr. Morehead reconheceu a generosa assistência que recebeu de Ronald Pies, MD, na redação do artigo.

Tudo isto é um pouco complicado. Mas a essência é esta: O Dr. Morehead escreveu um artigo condenando os críticos da psiquiatria. O Dr. Aftab responde sugerindo uma abordagem mais moderada, e expressando a opinião de que “…precisamos reconceptualizar a relação da psiquiatria com a crítica de uma maneira mais produtiva”.

E embora o apelo do Dr. Aftab à moderação pareça positivo e conciliatório, e ele certamente evita a vituperação explícita do artigo do Dr. Morehead, ele também se agarra a uma imagem da psiquiatria que, em minha experiência, não está de acordo com as realidades teóricas e práticas que realmente sustentam e impulsionam a psiquiatria moderna, com a sua profusão de profundos fracassos e erros contínuos.

ENTÃO, VAMOS DAR UMA OLHADA

Aqui estão algumas citações do trabalho do Dr. Aftab, intercaladas com as minhas observações e opiniões.

“O Dr. Morehead e eu concordamos sobre muitas coisas: a legitimidade fundamental da psiquiatria como ramo da medicina; o papel essencial que a psiquiatria tem a desempenhar no tratamento de problemas de saúde mental; que uma defesa da psiquiatria é garantida contra críticas graves e equivocadas; e que o valor da psiquiatria deve ser transmitido aos legisladores, às seguradoras e ao público em geral”.

As afirmações do Dr. Aftab nesta citação são essencialmente lugares-comuns não comprovados – e provavelmente não comprováveis. Ele aparentemente está expressando algumas de suas próprias crenças fundamentais sobre estes assuntos.

Por exemplo, ele afirma “a legitimidade fundamental da psiquiatria como um ramo da medicina”. Se por esta afirmação ele quer dizer que as várias escolas de psiquiatria receberam as Autorizações do Estado apropriadas e passaram nas várias inspeções de qualidade de ensino, etc., então, é claro, ele está correto. Mas não é isso que os críticos têm em mente quando desafiam a psiquiatria sobre esta questão em particular. O que está em jogo aqui não é a conclusão bem sucedida de várias expectativas burocráticas, mas sim se o assunto da psiquiatria é suficientemente tangível, coerente e válido para constituir um corpo de pensamento definível e ensinável de forma confiável, e se este corpo de pensamento tem se mostrado eficaz na melhoria de doenças reais. A legitimidade acadêmica e profissional não são coisas que possam ser conjuradas por comitês para adequar-se ao estado de espírito do momento ou para obscurecer problemas sociais profundos, tais como pobreza, desigualdade, discriminação, desemprego, racismo, habitação precária, abuso/negligência infantil, etc.

Ele também menciona “o papel essencial que a psiquiatria tem que desempenhar no tratamento de problemas de saúde mental”. O que é particularmente interessante aqui é que o Dr. Aftab aparentemente não pode sequer imaginar um mundo sem psiquiatria (“o papel essencial que a psiquiatria tem que desempenhar”), e parece inteiramente impassível pelo fato de que muitos dos críticos da psiquiatria podem.

Assim, ficamos com a noção de que “o valor da psiquiatria deve ser transmitido aos legisladores, às seguradoras e ao público em geral”, o que, naturalmente, nos leva a perguntar por quê? Se a psiquiatria tivesse um valor genuíno, estes indivíduos não estariam cientes disso, e não seria uma perda de tempo visá-los da maneira mencionada? Por outro lado, se legisladores, seguradoras e o público em geral não estiverem convencidos do valor da psiquiatria, isto não sugere que a psiquiatria tem alguns problemas profundamente enraizados? Afinal, não existem outras profissões médicas (e com relação à psiquiatria, uso o termo vagamente) sobre as quais os legisladores, seguradoras e o público em geral entretêm este tipo de desconfiança, pelo menos não tanto quanto eu saiba.

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“A psiquiatria é uma profissão com uma rica história intelectual…”

Esta história, aliás, inclui o hospital de Bethlehem em Londres, onde os moradores eram encorajados a visitar as instalações pelo preço de alguns centavos, e a serem “entretidos” pelas artimanhas dos “lunáticos” que lá estavam alojados em condições terríveis. Outros “tratamentos” usados na “rica história intelectual” da psiquiatria incluem: terapia da febre, incluindo terapia da malária; terapia do estado de coma da insulina; a cadeira tranquilizante; o berço Utica; lobotomia; terapia do sono profundo; terapia de rotação; hidroterapia, incluindo banhos de gelo; mesmerismo; convulsões induzidas quimicamente; choques elétricos de alta voltagem no cérebro, etc.

“… que exemplifica um pouco do melhor que a medicina tem a oferecer”.

Ao qual eu só posso abanar a cabeça e me perguntar em que mundo o Dr. Aftab tem passado o seu tempo.

O Dr. Aftab não sabe que, ao contrário do que acontece com os verdadeiros especialistas médicos, que com muito cuidado e através de anos de estudo, descobrem as suas doenças na natureza, a psiquiatria dispensa esta formalidade cansativa, e simplesmente as faz ajustar-se à moda do momento? Basta um voto do comitê DSM da APA, como se a natureza tivesse o menor interesse na regra da maioria. E além disso, não conheço nenhum avanço psiquiátrico que mereceu uma vela como foi para a vacinação contra a varíola, a descoberta da penicilina, ou o transplante bem sucedido de um rim ou fígado.

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“Há razões compreensíveis para que a psiquiatria seja examinada de forma mais minuciosa do que outras especialidades médicas. Ela, por exemplo, exerce controle social sobre a vida dos indivíduos sob seus cuidados até um grau exercido por nenhuma outra especialidade; está sujeita a desacordos de maior valor; tem que trabalhar através de múltiplas disciplinas e perspectivas difíceis de integrar; tem um legado histórico tumultuado; o estado de desenvolvimento científico ainda é comparativamente rudimentar; e lida com condições estigmatizadas e mal compreendidas, etc.”.

Vamos comentar este parágrafo.

“Ela [psiquiatria]… exerce controle social sobre a vida dos indivíduos sob seus cuidados até um grau exercido por nenhuma outra especialidade;”

Isto é de fato verdade. As audiências para compromissos civis em hospitais psiquiátricos são em grande parte meras formalidades, às vezes realizadas dentro do próprio “hospital”. Aos “pacientes” é designado um advogado com quem eles normalmente se reúnem por apenas alguns minutos antes da audiência. Muitos pacientes concordam em se apresentar voluntariamente porque as probabilidades de eles prevalecerem na área jurídica são minúsculas. Mas em muitas jurisdições, uma vez internados, eles não podem revogar o seu acordo voluntário. Eles só podem ser liberados quando e se as autoridades hospitalares os declararem aptos a serem liberados. Como processo legal, trata-se de uma farsa. Mas o que é particularmente importante aqui é que a psiquiatria nunca foi forçada a assumir este papel. Ao contrário, eles a abraçaram de boa vontade e a consideraram parte integrante da gestão dos asilos, e do “tratamento” psiquiátrico.

“…ela [psiquiatria] tem um tumultuado legado histórico”.

Eu diria que o legado histórico da psiquiatria não tem sido particularmente tumultuado. Eu o descreveria como cruel, incomum, e destinado a quebrar o espírito das pessoas. Os antigos asilos eram pouco mais do que câmaras de tortura nas quais o bem-estar dos “pacientes” era freqüentemente subordinado às ambições, caprichos e preconceitos de seus tratadores. Além de instituições que abraçavam a filosofia e a prática do tratamento moral, os asilos podiam reivindicar pouco em termos de eficácia ou mesmo o respeito básico aos direitos humanos.

“…e ela [psiquiatria] lida com condições estigmatizadas e mal compreendidas, etc.”.

Esta afirmação é difícil de conciliar com a brilhante autopromoção que se encontra em sites de proeminentes instituições psiquiátricas e outros grupos pró-psiquiatria, os quais transmitem a impressão de que as causas fundamentais das “doenças mentais” são bem compreendidas, e que qualquer estigma associado a estas “doenças” é uma função das reivindicações imprudentes do movimento anti-psiquiatria. Esta noção é fortemente instigada dentro do contexto da “rica história intelectual” da psiquiatria, embora as evidências há muito tenham indicado que é a ávida promoção das doenças mentais como desequilíbrios neuroquímicos que tem sido a principal fonte de estigma. [Angermeyer, MC, et al (2018)Lee, AA, et al (2013)Read J, et al 2006Deacon, BJ (2013)]

………..

“Estes e outros fatores garantem que a psiquiatria estará sob os holofotes (assim como podemos esperar que a força policial será quase sempre mais escrutinada do que o serviço postal). Este escrutínio adicional se cruza com a desordem dentro da própria casa da psiquiatria, dando aos críticos muito material inflamável para trabalhar. Mesmo os problemas que estão presentes em todos os medicamentos – como a influência da indústria e a corrupção de medicamentos baseados em evidências – são mais perceptíveis no contexto da psiquiatria graças ao escrutínio adicional.3 Há também muitos “clientes infelizes” quando se trata de psiquiatria, por assim dizer: receptores de cuidados psiquiátricos que ficaram traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por suas experiências. Tem havido [uma] tendência dentro da profissão de não levar tais indivíduos a sério, pelo menos não sem serem forçados a fazê-lo”.

Assim, diz-nos o Dr. Aftab, há “desordem” dentro da psiquiatria, o que dá aos críticos muito “material inflamável para se trabalhar”. Isto é uma boa imagem, é claro, mas quando reduzida à prosa simples, significa simplesmente que existem problemas dentro da prática psiquiátrica que fornecem aos críticos amplas oportunidades e incentivos legítimos para criticar. Se existe “desordem” em uma profissão médica, então é correto e apropriado que isto seja identificado e corrigido. Mas o imaginário do Dr. Aftab sutilmente transfere a culpa por isso para os críticos, que são retratados como pesquisadores maliciosos de “material inflamável com o qual trabalhar”.

É uma experiência bastante comum na sociedade que indivíduos que não limpam os seus próprios atos, mais cedo ou mais tarde, terão alguém para vir e limpá-los para eles. E isto é exatamente o que está acontecendo com a psiquiatria. Durante décadas eles chafurdaram em ciência espúria e corrupção, e mentiram descaradamente a seus clientes a respeito da natureza de seus problemas e da eficácia dos tratamentos. Havia, e ainda há, dissidentes ocasionais, mas a maioria dos psiquiatras alinhava com o ardil da doença, a rotina de 15 minutos de checagem médica e a pílula para sempre que, coletivamente, passou a constituir uma prática psiquiátrica estabelecida. E agora o movimento anti-psíquiátrico está convocando-os, exigindo provas de eficácia, expondo conflitos de interesse, expondo os efeitos nocivos dos tratamentos psiquiátricos, etc. Estas são coisas que precisam ser ditas, e precisam ser ditas repetidamente e de forma convincente, no entanto, o Dr. Aftab nos compara aos incendiários à procura de alvos fáceis.

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Há também muitos “clientes infelizes” quando se trata de psiquiatria, por assim dizer: os receptores de cuidados psiquiátricos que ficaram traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por suas experiências. Tem havido [uma] tendência dentro da profissão de não levar tais indivíduos a sério, pelo menos não sem serem forçados a fazê-lo”.

E isto vem de um psiquiatra que anteriormente afirmou sem ambiguidade “a legitimidade fundamental da psiquiatria como ramo da medicina”; “o papel essencial que a psiquiatria tem que desempenhar no tratamento de problemas de saúde mental”; que a psiquiatria deve se defender “contra críticas graves e equivocadas”; “que o valor da psiquiatria deve ser transmitido aos legisladores, às seguradoras e ao público em geral”; e que “a psiquiatria é uma profissão com uma rica história intelectual que exemplifica alguns dos melhores do que a medicina tem a oferecer”.

Mas agora ele reconhece que a psiquiatria tem muitos “clientes infelizes”. E estes são: “receptores de cuidados psiquiátricos que ficaram traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por suas experiências”. O fato é que a psiquiatria precisa ser responsabilizada pelos clientes infelizes que foram traumatizados, desencantados, e devastados por suas experiências. E se os líderes da psiquiatria não estão dispostos ou preparados para responsabilizar os culpados, alguém pode culpar o movimento antipsiquiatria por ter entrado nesta brecha? Também vale a pena perguntar o que exatamente os psiquiatras estão fazendo que deixa “muitos” de seus clientes traumatizados, desiludidos e devastados por suas experiências?

E então:

“Tem havido [uma] tendência dentro da profissão de não levar tais indivíduos a sério, pelo menos não sem ser forçado a fazê-lo”.

De fato, existem “razões compreensíveis para que a psiquiatria seja mais escrutinada do que outras especialidades médicas”. Essas razões são: porque sistematicamente mentem a seus clientes a respeito da origem e causas de seus males; administram drogas perigosas e eletrochoques sem explicar o potencial de danos e até mesmo de morte; rotineiramente induzem a um sentimento de dependência, impotência e indignidade em seus clientes; e então tendem a não levar esses indivíduos a sério a menos que e até que sejam forçados a fazê-lo.

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. . “A psiquiatria tem sido vulnerável a modismos de diagnóstico. A profissão tem se permitido ser explorada por empresas farmacêuticas. A teoria psiquiátrica tem sido vulnerável às ‘mitologias de mensagem única’ e ao reducionismo zeloso.4 Seus líderes têm negligenciado os determinantes estruturais da saúde. O estado da ciência é o que ela é; podemos criar condições favoráveis à pesquisa científica, mas as descobertas e progressos não podem ser apressados ou forçados. Embora reconhecendo o estado da ciência psiquiátrica deva levar a uma atitude de humildade, muitos psiquiatras em posições de poder e influência têm frequentemente feito reivindicações grandiosas – e às vezes têm demonstrado uma arrogância impressionante”.

No parágrafo acima, o Dr. Aftab afirma que a psiquiatria “tem se permitido ser explorada por empresas farmacêuticas”. Então, temos estes médicos altamente qualificados (10 anos de treinamento universitário) sendo “explorados” por …o quê? Representantes de vendas bem vestidos que trazem amostras grátis? Anúncios farmacêuticos? Apresentações enganosas? Pagamentos para fazer apresentações de medicamentos aos colegas? E estes médicos altamente instruídos na verdade se apaixonam por este papo furado. Pobres cordeiros! Será que eles simplesmente nasceram ingênuos, ou existe algum nepenthe doado a estagiários de psiquiatria que os faz esquecer o básico da ciência, e engolir sem sentido o pablum de autocongratulações que passa pela educação profissional nas escolas de psiquiatria?

Os psiquiatras não têm se deixado explorar pela indústria farmacêutica; ao contrário, eles abraçaram ativa e voluntariamente uma relação de mão na luva com a indústria farmacêutica para seus próprios fins. Isto vem acontecendo nos níveis acadêmico e prático há décadas. Caracterizar isto como exploração é perder de vista a questão.

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“… mas as descobertas e os avanços não podem ser apressados ou forçados”.

No entanto, é exatamente isso que a psiquiatria tem feito com a teoria do desequilíbrio químico, que afirma que a depressão não é causada por eventos adversos ou por circunstâncias adversas permanentes, mas sim por desequilíbrios neuroquímicos. Esta noção espúria tem sido promovida pela psiquiatria por várias décadas, tem sido reforçada pelas declarações de neutralidade de causas em sucessivas edições do DSM, e tem induzido milhões de pessoas no mundo inteiro, que de outra forma não o teriam feito, a tomar drogas psiquiátricas, às quais muitas delas são agora viciadas.

“Embora reconhecendo o estado da ciência psiquiátrica deva levar a uma atitude de humildade, muitos psiquiatras em posições de poder e influência têm frequentemente feito reivindicações grandiloquentes – e às vezes têm demonstrado uma arrogância impressionante”.

Eu diria que uma boa maioria dos psiquiatras se enquadra neste último grupo. Em minha experiência, a grandiosidade, a arrogância e as invenções autodidatas são praticamente a norma nos círculos psiquiátricos.

“Isto não quer dizer que a psiquiatria não enfrenta críticas injustas”. Há uma hostilidade desenfreada, desinformação, argumentos mal orientados, etc., bem exemplificados pela Cientologia, Szasz, e outros atores. É preciso ter cuidado com eles e reagir contra eles, mas, ao mesmo tempo, muitos psiquiatras têm sido muito apressados com alegações de ” antipsquiatria” e têm colocado todo tipo de crítica sob a mesma bandeira.”

Assim, o Dr. Aftab nos diz: “Há uma hostilidade desenfreada, desinformação, argumentos mal orientados, etc., bem exemplificados pela Cientologia, Szasz, e outros atores”. Parece-me que as várias falhas na teoria e prática psiquiátrica, que o próprio Dr. Aftab admitiu, justificam uma dose de hostilidade abundante, desenfreada ou não. Se a Cientologia, Thomas Szasz, e outros atores também promovem “desinformação, argumentos mal orientados, etc.” depende da perspectiva de cada um. Eu responderia que quem afirma a “legitimidade fundamental da psiquiatria como ramo da medicina” e promove a noção de que a psiquiatria é “uma profissão com uma rica história intelectual”, ao mesmo tempo e no mesmo jornal, reconhece que muitos psiquiatras em posições de poder e influência “muitas vezes têm feito reivindicações grandiloquentes – e às vezes demonstraram uma arrogância impressionante”, e que “os receptores de cuidados psiquiátricos muitas vezes têm sido deixados traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por sua experiência” não está sendo totalmente consistente. O Dr. Aftab descreve corretamente um estado de coisas verdadeiramente terrível, mas desvaloriza certos membros selecionados do movimento contra a psiquiatria com o argumento de que sua hostilidade à psiquiatria é “desenfreada” e que na opinião do Dr. Aftab suas afirmações constituem “desinformação” e “argumentos mal orientados”.

Talvez, se ele estabelecesse exatamente quais argumentos da Cientologia, Thomas Szasz, e os “outros atores” não especificados, constituem desinformação, nós poderíamos formar os nossos próprios julgamentos sobre quem está mal orientado ou mal informado. Ou o Dr. Aftab está sugerindo que devemos apenas deixar estas questões espinhosas para ele decidir, e passar para o resto de nós os resultados de seu conhecimento e sabedoria superiores?

Note, a propósito, que o Dr. Aftab usa a frase “alegações de ‘antipsiquiatria” como se fosse algum tipo de crime, e que somente as críticas aprovadas pelo Dr. Aftab têm validade genuína. Este é um exemplo da “espantosa arrogância” que ele atribuiu anteriormente a “muitos psiquiatras em posições de poder e influência”?

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“Como mencionei, com base no papel social que a psiquiatria ocupa atualmente, é inevitável um escrutínio excessivo”.

Note a afirmação implícita de que o escrutínio é inevitável e excessivo, e decorre do “papel social” da psiquiatria. Em resposta a esta afirmação do Dr. Aftab, eu sustento que, baseado no papel quase policial que a psiquiatria abraçou e continua a abraçar de bom grado, e no dano feito a seus clientes nestes e outros contextos, um alto nível de escrutínio, e até mesmo condenação, não só é inevitável, mas também justificado.

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“Morehead faz referência ao trabalho de 2012 de Phillips et al sobre questões conceituais e de definição no diagnóstico psiquiátrico.20 Este artigo destaca alguns dos nomes mais proeminentes da filosofia da psiquiatria e revela as dificuldades filosóficas que envolvem a noção de doença mental e a indefinição de uma definição satisfatória. Este tem sido um tema de meu interesse por muitos anos, e meu próprio trabalho filosófico nesta área reflete as inadequações conceituais de nossa noção de doença mental.″

Esta é a questão central em todo o debate. Mas a noção de doença mental não é elusiva; na verdade, ela é cristalina. É um erro – mas não é elusivo em nenhum sentido comum do termo.

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Este post, entretanto, está se tornando longo. Retornarei a este tema em meu próximo post.

Devo também mencionar de passagem que, embora discorde de grande parte do artigo do Dr. Aftab, ele é, no entanto, uma corajosa matéria escrita. Ele chama a atenção para muitas das contradições e erros da psiquiatria, e a questão principal em minha mente é por que ele não troca as especialidades por algo mais válido e útil, e deixa os comentários inúteis da psiquiatria para  os seus tagarelas fúteis, que aliás é que não faltam.

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Mad recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão -psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

Como a Classe Socioeconômica Afeta a Terapia?

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Quando se trata de prever o resultado de tratamentos psicológicos, a aliança terapêutica é uma das variáveis mais amplamente investigadas. Por exemplo, uma meta-análise recente de 295 estudos sobre a associação entre a aliança terapêutica e o resultado geral em psicoterapias para adultos revelou que a aliança estava positivamente relacionada ao resultado do tratamento em todas as formas de terapias, contextos culturais e características do cliente. No entanto, existem poucas pesquisas sobre como os fatores sociais e econômicos relacionais, como a classe, afetam a qualidade da relação terapêutica.

Um novo trabalho liderado por Martin Wolgast na Universidade de Lund, na Suécia, revela que pessoas de baixo status socioeconômico têm mais dificuldades para estabelecer uma aliança terapêutica. Pessoas de baixa condição socioeconômica e de minorias étnicas tipicamente experimentam um número maior de eventos adversos à vida, mais “estresses de vida”  (como o endividamento), e um sofrimento psicológico mais significativo. No entanto, a maioria das intervenções terapêuticas foi desenvolvida para abordar as questões e preocupações da classe média educada, e as queixas de sintomas são tratadas de forma diferente em clientes de diferentes status socioeconômicos.

Sem surpresa, então, Wolgast e seus colegas relatam que a “pesquisa disponível sugere que a psicoterapia não é ‘isenta de classe’, e que clientes da classe trabalhadora ou de posições socioeconômicas mais baixas podem estar sistematicamente em desvantagem nos contextos psicoterapêuticos”.

Enquanto as definições tradicionais de classe social delimitam as classes com base em aspectos como a relação dos indivíduos com os meios de produção e propriedade do capital, um marcador mais facilmente mensurável das relações de classe consiste em diferenças quantitativas no status socioeconômico. Os pesquisadores previram que o status socioeconômico estaria positivamente correlacionado à percepção do cliente sobre a qualidade da aliança terapêutica; em outras palavras, eles previram que os participantes com status socioeconômico mais elevado (SES) classificariam a aliança terapêutica como melhor do que os participantes com SES mais baixo.

Os resultados apoiam esta hipótese. Usando a modelagem da equação estrutural de 217 pesquisas dos entrevistados, os pesquisadores encontraram um padrão de afastamento dos clientes com SES inferior do contexto terapêutico.

Os pesquisadores explicam que tal distanciamento do contexto terapêutico “pode implicar tanto experiências nos clientes de não serem compreendidos e como inferiores em relação ao seu terapeuta, como também percepções entre os terapeutas de clientes da classe trabalhadora como sendo menos adequados e receptivos à psicoterapia”.

Estes resultados foram mais substanciais nos clientes que participam da terapia psicodinâmica versus terapia cognitiva comportamental, talvez devido aos diferentes papeis do psicoterapeuta dentro destas modalidades de tratamento.

Estas descobertas, os autores observam, também podem ser entendidas para sugerir “que existem preconceitos internalizados baseados na classe entre os terapeutas, refletindo o fato de que eles próprios pertencem à classe média e que o modelo terapêutico que praticam é baseado nas normas da classe média”.

Estes resultados sugerem uma profunda necessidade de mudança no treinamento psicoterapêutico, na pesquisa e no desenvolvimento de métodos.

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Wolgast, M., Despotovski, D., Lachonious Olsson, J., and Wolgast, S. (2021). Socioeconomic Status and the Therapeutic Alliance: An Empirical Investigation Using Structural Equation Modeling. J Clinical Psychology, 1-16. (Link)

Johann Hari: “Foco Roubado” – Porque a gente não consegue mais prestar atenção?

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Esta semana, no podcast do Mad in America, ouvimos de Johann Hari. Johann é um autor internacionalmente best-seller cujos livros apareceram em 38 idiomas, e foi nomeado duas vezes Jornalista Nacional do Ano pela Anistia Internacional.

Johann esteve conosco em 2018 sobre o seu novo livro de então Conexões Perdidas: Descobrindo as Causas Reais da Depressão e as Soluções Inesperadas [Lost Connections: Uncovering the Real Causes of Depression and the Unexpected Solutions]. Hoje, iremos falar sobre o último livro de Johann, Foco Roubado: Por que não conseguimos prestar atenção [ Stolen Focus: Why You Can’t Pay Attention], lançado no dia 6 de janeiro de 2022 no Reino Unido e 25 de janeiro nos EUA e Canadá.

Para escrever o livro Foco Roubado, Johann fez uma jornada de três anos para descobrir as razões por de trás da nossa incapacidade de focalizar e entender como esta crise afeta o nosso bem-estar e a sociedade. De forma crucial, ele aprendeu como podemos recuperar o nosso foco roubado se estivermos preparados para lutar por ele.

A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.

 

James Moore: Johann, bem-vindo. Muito obrigado por se reunir comigo hoje para o podcast Mad in America. Falamos pela última vez em 2018 e discutimos o seu novo livro na época Conexões Perdidas: Descobrindo as Causas Reais da Depressão e as Soluções Inesperadas, que com toda a razão se tornou um best-seller internacional.

Aqui estamos nós em 2022, e seu novo livro Foco Roubado analisa a razão pela qual estamos lutando para prestar atenção. Seu trabalho escrevendo Conexões Perdidas levou diretamente ao seu desejo de escrever Foco Roubado, ou houve um evento precipitante que criou o desejo de saber mais?

Johann Hari: Acho que há uma espécie de conexão perdida, que é o que todos os meus livros são: uma pergunta à qual quero responder e que não sei a resposta com antecedência. É claro que eu tinha várias ideias, suposições. Então, como você disse, com Conexões Perdidas, a pergunta era: por que tantas pessoas estão deprimidas? Por que tantas pessoas estão ansiosas? O que podemos fazer a respeito disso? Para o Foco Roubado houve – não vou dizer um evento precipitante – mas uma espécie de evento culminante onde percebi que eu tinha que pensar sobre isso.

Quando o meu afilhado tinha nove anos de idade, ele desenvolveu uma breve mas assustadoramente intensa obsessão com Elvis Presley. Assim, ele fazia obsessivamente a clássica imitação de Elvis, sacudindo a pélvis e fazendo um baixo crooning. É engraçado porque eu nem sei como ele chegou ao Elvis, deve ter sido no Youtube. Lembro-me dele exigindo que eu lhe contasse a história de Elvis. Dei a ele um pouco do resumo da história e obviamente pulei o final. No decorrer disso, mencionei que ele tinha construído um tipo de palácio para a sua mãe quando se tornou famoso e o chamou de Graceland.

Lembro-me de uma noite em que o aconchegava e que ele disse: “Johann, você vai me levar à Graceland um dia?”. Eu disse: “Sim, claro”, da maneira como se faz com as crianças quando elas lhe fazem perguntas completamente hipotéticas. Eu não pensei mais nisso até 10 anos depois, quando as coisas realmente deram errado. Ele já tinha 19 anos e havia abandonado a escola quando tinha 15. Eu estava muito preocupado com ele, em parte porque parecia que ele simplesmente não era capaz de se concentrar em nada. Ele passava a vida alternando entre o seu iPad e o seu telefone e o seu laptop, e a algo indistinto entre Youtube, Snapchat e pornografia. Ele era uma pessoa adorável, mas parecia que não havia nada que pudesse ter força em sua mente. Parecia que naquela década ele havia se tornado um homem que estava meio quebrado e fragmentado. Ele era um exemplo extremo, mas eu senti que isso estava acontecendo comigo e pensei que isso também estava acontecendo com muitas pessoas que eu conhecia.

Havia algumas provas sugestivas que eu conhecia, um pequeno estudo dos estudantes universitários americanos que descobriu que eles se concentravam em média em qualquer coisa durante 65 segundos. O trabalhador médio de escritório, de acordo com a pesquisa de Gloria Mark, concentrava-se durante três minutos em qualquer coisa. A nossa vida inteira se dissolvendo em uma espécie de tempestade de granizo de 65 segundos ou três minutos.

Um dia, lembro que nós estávamos sentados em meu sofá aqui em Londres e eu estava olhando para o meu telefone, olhei para o meu sobrinho e disse: “Vamos para Graceland”. Ele nem se lembrava dessa obsessão do Elvis. Eu disse: “Temos que quebrar este tipo de rotina entorpecida, vamos para Graceland”. Ele disse: “Você está falando sério?” Eu disse: “Mas só o farei se você prometer que não vai olhar para o telefone o tempo todo, que vai deixar o seu telefone no hotel”. Ele disse: “Sim, sim, eu prometo”.

Apenas algumas semanas depois, fomos para Nova Orleans e diferentes partes do Sul e depois para Graceland. Quando você faz um tour por Graceland agora não há mais um ser humano que lhe mostre a cidade. O que acontece é que você chega e eles lhe dão um iPad e você coloca fones de ouvido e o iPad fala com você e explica a história. Estávamos andando por Graceland e todos estavam apenas olhando para os seus iPads. Cabeças para baixo, olhando para o iPad deles, e eu tentando fazer contato visual com as pessoas.

Uma pessoa olhou para mim e eu queria dizer: “Oh, olha, somos as pessoas que viajaram milhares de quilômetros para realmente olhar para o lugar para onde viajamos”. Então percebi que ele olhou para mim só porque desviou o olhar do iPad para tirar o seu telefone e para tirar uma fotografia de si próprio. Finalmente, chegamos à Sala da Selva que era a sala favorita de Elvis na mansão. Esse casal estava ao meu lado e ele se virou para a sua esposa e disse: “Querida, isto é incrível”. Se você deslizar para a esquerda no iPad você pode ver o Salão da Selva para a esquerda, e se deslizar para a direita você pode ver o Salão da Selva para a direita”. Eu olhei e vi a sua esposa começando a deslizar o mouse para a esquerda e para a direita. Fiquei tão nervoso que apenas disse: “Mas senhor, vocês percebem que há uma forma antiquada aqui de passar o mouse. Se pode simplesmente virar a cabeça, porque estamos na verdade na Sala da Selva, você não precisa olhar uma representação dela em seu iPad, estamos literalmente lá, estamos na Sala da Selva“. É claro, eles saíram da sala e claramente pensaram que eu era algum tipo de lunático.

Voltei-me para o meu afilhado para rir sobre isso, e ele estava apenas no canto, olhando para o Snapchat, porque não conseguia cumprir com a sua promessa. Ele estava constantemente mandando mensagens de texto, olhando para o Snapchat, incapaz de estar presente. Eu apenas comecei a gritar e ele saiu de forma totalmente justificável e eu não o vi mais até aquela noite. Estávamos hospedados no Hotel Heartbreak, que fica ao fundo da rua de Graceland. Encontrei-o perto desta piscina que tem o formato de um violão e eles estão sempre tocando Suspicious Minds lá. Ele apenas disse: “Eu sei que algo está realmente errado, mas não sei o que é” e voltou a olhar para o telefone dele.

Eu me lembro de sentir raiva. Não estava bravo com ele, estava realmente bravo comigo mesmo porque podia sentir aquelas forças pesando sobre mim mesmo, não era tão severo quanto com ele ou pelo menos o resultado não era tão severo. Foi então que eu pensei que realmente precisava investigar isto. Talvez estas anedotas não representem uma realidade mais ampla, ou talvez elas representem. Acabei viajando muito pelo mundo, do Rio a Moscou, de Miami a Melbourne, para tentar descobrir o que realmente estava acontecendo. Acredito que há fortes evidências de que estamos enfrentando uma verdadeira crise de atenção e obtive muitas informações das pessoas que conheci e do estudo de suas pesquisas sobre a razão pela qual isto está acontecendo conosco e o que podemos fazer a respeito.

Moore: Foi de partir o coração ler esse relato da alegria da infância ficando obscurecida ao se ficar olhando para as telas. É claro, quando se está lendo o livro, a gente reconhece muito desse comportamento em nós próprios. Eu me peguei dizendo à minha filha para não olhar tanto para a tela enquanto eu segurava um iPad, isso é completamente ridículo.

Hari: Eu acho que você está tão certo, isto é algo que está pesando sobre todos e não apenas por causa das mudanças tecnológicas que vem acontecendo, embora elas sejam uma parte fundamental. Mas muitas vezes pode se sentir muito ambiente, muito escorregadio e foi realmente impressionante para mim aprender com esses cientistas incríveis que há realmente boas evidências científicas para 12 fatores diferentes que estão indiscutivelmente acabando com a nossa atenção. Mas que uma vez que entendemos o que isso significa, podemos começar a lidar com o que está acontecendo. Há técnicas, algumas delas são técnicas pessoais e outras são mudanças sociais maiores, que podemos implementar e que realmente nos ajudarão a lidar com isso. Não é que a sua atenção tenha falhado, a sua atenção foi roubada por essas forças maiores e precisamos mudar a forma como pensamos sobre isso.

Se eu penso em como me comportei com meu afilhado, mas também como me comportei comigo mesmo, foi como uma forma de reprovação. É como “você está sendo preguiçoso, você está sendo fraco, se recomponha”, o que não funciona, não funciona muito bem para nada, mas particularmente não funciona para isto porque existem estas causas maiores. Precisamos pensar sobre isto de uma maneira muito diferente e ter uma disposição muito diferente para os nossos próprios problemas de atenção e para os problemas de atenção de nossos filhos.

Moore: O livro examina uma série de forças profundas que trabalham para prejudicar a nossa atenção. Será que poderíamos tocar em duas coisas que se destacaram para mim? A primeira foi o esgotamento de nossos estados de fluxo. O livro fala de uma crise em como passamos o nosso tempo e mantemos superficialmente a atenção, mas também fala de uma mudança real em como vivemos o momento presente. As pessoas podem ter ouvido falar do conceito de “estado de fluxo”, mas será que você poderia nos dizer um pouco sobre isso, por que é tão importante para nós e por que é muito mais difícil de se alcançar nos últimos tempos?

Hari: Aprendi muito sobre isto com Mihaly Csikszentmihalyi que é o cientista que descobriu isto pela primeira vez e que eu entrevistei em Claremont na Califórnia. Tive muita sorte em poder entrevistá-lo porque ele morreu muito recentemente, o que foi uma verdadeira perda. Acho que a história de Mihaly realmente nos ajuda a entender o conceito de fluxo. O que ele descobriu é que todos os seres humanos têm a capacidade de focalizar muito profundamente de forma que se sinta sem qualquer esforço em certas circunstâncias e que a maneira atual de viver não permite essas circunstâncias.

Eu sempre penso nele no início do relato quando ele tinha nove anos de idade, quando ele estava em um lugar chamado Fumei na Itália e era o auge da Segunda Guerra Mundial e o lugar estava sendo bombardeado até o inferno. Um dia, um bombardeio começou e Mihaly correu para tentar encontrar abrigo, e ele correu para o açougue local porque era o prédio sólido mais próximo e havia adultos tentando entrar na loja. Eles eventualmente conseguiram entrar, mas quando entraram descobriram que os três açougueiros haviam sido assassinados e estavam pendurados nos ganchos do açougue. Ele teve que se esconder ali ao lado dos corpos até que o bombardeio tivesse terminado.

Mihaly era de uma família húngara, seu pai era um diplomata húngaro e eles estavam basicamente fugindo por diferentes partes da Europa tentando encontrar segurança durante toda a guerra. Ele se torna um adolescente nas ruínas da Europa e está convencido de que os adultos realmente não sabem como viver, eles destruíram o mundo e não sabem como viver. Ele acabou em um campo de refugiados por um tempo, tendo tido uma vida muito dura.

Um dia ele se aproxima para se tornar membro do grupo escoteiro local e eles começam a levá-lo para as montanhas, o que ele nunca havia feito antes. Ele começa a ter este sentimento incrível que não consegue articular, mas quando estava fazendo algo bastante difícil e desafiador, como andar por um barranco, ele sentia como se seu senso de ego tivesse derretido, que ele tinha este sentimento profundo. Ele não tinha uma palavra para isso, mas mais tarde ele chamou de fluxo, este momento que muitas pessoas terão vivido. Para algumas pessoas, seria tocar o violão, para algumas pessoas, seria exercitar-se. Para mim, seria escrever. Quando se está fazendo algo e se está totalmente envolvido nisso. Você está nesse momento e você está fluindo e seu senso de tempo e ego desaparecem e você está prestando muita atenção. Mas não ‘sente’ que você está prestando atenção, não sente que você tem que prestar atenção, há apenas um jorro de atenção.

Mihaly tem estas experiências incríveis e decide que estar em um campo de refugiados não é maneira de viver. Ele decide ir para Roma quando tem apenas 13 anos. Ele vai para Roma por conta própria e se torna tradutor e  garçom. Na verdade, ele serviu a Humphrey Bogart uma vez. Ele decide que quer estudar psicologia e se dirige aos Estados Unidos Quando ele chega aos Estados Unidos, ele tem esta descoberta realmente sóbria. Ele descobre que a psicologia americana naquela época estava dominada por uma visão realmente sombria. É uma visão que realmente tomou conta de grande parte do mundo em que vivemos agora.

Um homem chamado B. F. Skinner era o psicólogo mais famoso dos Estados Unidos na época. Skinner tinha construído este modelo de psicologia que mais tarde foi usado para projetar o Instagram e as mídias sociais com as quais a sua filha é sem dúvida obcecada e com as quais a maioria das crianças e a maioria de nós é obcecada. E vem de uma forma loucamente simples de psicologia.

As pessoas podem tentar isto em casa, se quiserem ver como funciona. Por exemplo, se você pegar um pombo e colocá-lo em uma gaiola, os pombos estão fazendo movimentos aleatórios o tempo todo, eles bicam em volta. Você pode selecionar um movimento aleatório, como quando o pombo move a sua asa esquerda, e decidir recompensar esse movimento. Toda vez que ele levanta a sua asa esquerda, você libera um pouco de semente para dentro da gaiola. Muito rapidamente, o pombo começará a levantar obsessivamente a sua asa esquerda porque aprendeu “oh, é assim que eu recebo uma recompensa”. Você pode escolher qualquer coisa, você pode escolher quando ele levanta a cabeça ou quando ele a agacha, não importa, é completamente arbitrário.

Skinner havia descoberto que quando se dá recompensas arbitrárias a um ser vivo, a gente pode treiná-lo para fazer todo tipo de loucura que ele não faria de outra forma. Você pode treinar um pombo para jogar ping-pong, você pode treinar um porco para aspirar, você pode treinar coelhos para pegar moedas e colocá-las em cofrinhos de porquinho. Você pode treinar um animal para se concentrar em coisas sem sentido, se você lhe der o padrão certo de recompensas. É claro que estas são as principais ideias que mais tarde foram usadas conscientemente para projetar o Instagram e assim por diante.

Mas Mihaly pensou que “tudo o que eles estão fazendo é se concentrar neste aspecto muito sombrio e redutor da natureza humana”. Isto não é o que queremos ser, apenas sacudindo e contorcendo arbitrariamente de acordo com o roteiro de outra pessoa. Ele acreditava que deve haver mais do que isso na psicologia humana. Ele decidiu estudar algo positivo, algo generativo. Ele começou simplesmente estudando um grupo de pintores em Chicago. Ele lhes dizia: “Posso apenas observá-los durante meses enquanto estão pintando, apenas observar o seu processo?”. Ao observá-los, ele começa a observar exatamente esta coisa de fluxo. Quando um pintor está pintando, eles entram neste estado quase hipnótico, aonde a atenção vem muito facilmente, onde estão muito absorvidos no que fazem.

Skinner tinha argumentado que toda a psicologia humana era sobre gratificações, mas Mihaly notou que uma vez que um pintor tinha terminado a sua pintura, eles não passavam anos apenas olhando para a pintura, eles não ficavam obcecados com o dinheiro que iriam receber. Geralmente, eles simplesmente colocavam o quadro de lado e faziam um outro. Que, na verdade, se toda a psicologia fosse sobre esta recompensa arbitrária, como você explicaria isso? Não se pode explicar. Ele descobriu que deve haver mais do que isto na psicologia. Deve haver uma força positiva e generativa, isto é o que o levou a estudar o que ele chamou de estados de fluxo.

Depois de conversar com esses pintores, ele começou a olhar para toda uma gama de pessoas como escaladores de montanhas, jogadores de xadrez. Inicialmente, ele só olhava para pessoas não-profissionais. Ele descobriu que a maneira como eles descreviam as suas experiências era incrivelmente semelhante e muitas vezes eles usavam uma palavra como ‘fluxo’. Sente-se apenas como se estivesse fluindo. Foi assim que ele identificou os estados de fluxo que são realmente importantes. Primeiramente, eles são a forma mais profunda da atenção humana. Em segundo lugar, eles são uma capacidade humana inata, se você souber onde perfurar pode liberar este jorro de atenção dentro de você de uma forma que não lhe parece trabalhosa.

Ele descobriu que existem certos parâmetros para a maneira como você entra no fluxo. Primeiramente, é preciso escolher um objetivo claro. Você tem que dizer “eu quero tocar este violão”, “eu quero pintar esta tela” e colocar de lado todos os seus outros objetivos. Esse objetivo tem que ser significativo para você. “Não sei nada sobre o violão, não me importo com o violão, gosto do som dos violões, nunca vou tocá-lo”. Se eu escolhesse assim o violão, isso não funcionaria, eu não entraria em fluxo.

O parâmetro seguinte e eu acho que este é o mais importante, é que ele tem que ser algo no limite de suas habilidades. Se você está fazendo algo muito fácil, você não entra em um estado de fluxo. Se você fosse um montanhista de nível médio, você não gostaria de subir o muro do seu ardim, assim como não gostaria de escalar o Monte Kilimanjaro que vai ser muito assustador. Você quer escalar algo um pouco mais alto e mais difícil do que a última coisa que você escalou.

Mihaly fez todas estas incríveis descobertas sobre o fluxo, sobre a importância que ele tem para a psicologia humana, sobre a facilidade com que produz a atenção. Mas ele também descobriu que os estados de fluxo são muito frágeis. Fundamentalmente, se você estiver perturbado, uma vez que todos nós estamos sendo interrompidos o tempo todo atualmente, seu sentido de fluxo simplesmente se dissolve. O fluxo é quase como se fosse um sonho. Se você for sacudido o tempo todo, você não sonhará. Se você for interrompido o tempo todo, você não vai fluir.

Vivemos em uma cultura que agora nos interrompe constantemente. Estamos passando por muitas interrupções de fluxo e, de certa forma, sinto que o que vivemos é um conflito entre o mundo que Skinner queria construir e o mundo que Mihaly identificou. Vivemos em um mundo dominado por tecnologias literalmente baseadas nos insights de Skinner. Quando você olha as pessoas posando interminavelmente para selfies para obter likes no Instagram, as pessoas são como os pombos de Skinner. Queremos ser os pombos de Skinner ou queremos ser como os pintores de Mihaly? Acho que essa é a escolha que enfrentamos agora.

Moore: Ler isso realmente me fez perceber como era fácil entrar nesse estado quando eu era mais jovem e, no entanto, desde que me envolvi muito mais com as pressões do trabalho e com as tensões diárias, tenho muito menos desses sentimentos hoje em dia.

Hari: Mas não é o envelhecimento, acho que é realmente importante porque Mihaly olhou para a idade e a idade não se correlaciona com os estados de fluxo. O que é, é a maneira como trabalhamos agora que é bem diferente de como trabalhávamos no passado. Não é para romantizar o passado, muitas coisas são melhores agora.

Entrevistei no Instituto de Tecnologia de Massachusetts um dos principais neurocientistas do mundo, um homem chamado Professor Earl Miller. Ele disse: “Olhe, você tem que entender uma coisa mais do que qualquer outra, você só pode pensar conscientemente em uma coisa de cada vez”. Esta é simplesmente uma limitação fundamental do cérebro humano e não mudou por 40.000 anos”. Você só pode pensar em uma coisa de cada vez. O que aconteceu é que passamos a nos envolver em uma espécie de ilusão, que é que podemos pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. Acreditamos que posso falar com você, ao mesmo tempo que verifico os meus textos e também vejo a televisão em segundo plano. Mas o que o professor Miller e muitos outros cientistas descobriram é que quando você pensa que está fazendo muitas coisas ao mesmo tempo, na verdade, você está fazendo malabarismos entre elas. Você está fazendo malabarismos mentais. Sua consciência lida com o processo de malabarismo, mas o que você está fazendo é malabarismo. Isso vem acompanhado por quatro custos realmente grandes.

O primeiro é chamado de “custo da comutação”. Se eu olhar para meu telefone agora e olhar para você, eu apenas olho para as minhas mensagens, isso levaria apenas dois segundos, mas não leva porque a minha mente tem que se voltar para o que estávamos falando. Foi perturbada. Eu não perdi apenas o fluxo, na verdade perdi o trem do meu pensamento por um segundo.

O segundo custo é que ao fazer isso, você começa a cometer erros, inevitavelmente você comete erros quando está comutando entre as coisas, sua taxa de erros aumenta e você tem que voltar atrás para corrigir esses erros. O terceiro é que há um grande custo para a sua criatividade. Com o tempo, sua mente vai começar a se associar livremente, vai começar a fazer conexões entre diferentes coisas que você já experimentou. Se a sua mente estiver atolada, uma grande parte da sua capacidade está sendo utilizada na comutação e correção, você perde uma quantidade significativa desse tempo que produz criatividade. Quarto, você se lembra menos porque é necessária energia mental para codificar as suas experiências em memórias. Se você está gastando grande parte de sua capacidade de comutação, você não está fazendo nada disso.

A maneira como o professor Miller me disse é que estamos vivendo uma perfeita tempestade de degradação cognitiva como resultado da distração. Estamos atolados com isto. Os resultados disto são bastante duros se você olhar para alguns dos estudos. Houve um pequeno estudo que foi feito para a empresa de tecnologia Hewlett-Packard. Eles pegaram um grupo de trabalhadores e os dividiram em dois grupos. O primeiro grupo foi informado, “basta fazer seu trabalho e você não vai receber nenhuma distração por telefone, texto ou e-mail”. O segundo grupo foi perturbado com telefonemas, mensagens de texto e e-mails a uma taxa normal, e eles mediram o QI deles enquanto isso acontecia.

As pessoas que estavam distraídas, como resultado da distração, tinham um QI que era 10 pontos mais baixo do que as pessoas que estavam apenas fazendo uma coisa. Para dar um senso de comparação, isso é o dobro de seu QI quando você está chapado. Seria melhor se você estivesse sentado à sua mesa fumando um enorme baseado e apenas fazendo uma coisa do que sentado à sua mesa e tentando responder às constantes distrações enquanto faz o seu trabalho.

Houve outro estudo da Universidade Carnegie Mellon onde eles conseguiram 138 alunos, dividiram-nos em dois grupos e fizeram todos o mesmo exame. A um grupo foi dito “condições normais de exame, basta fazer apenas o exame, você não pode ter o seu telefone”. Ao segundo grupo foi dito: ‘você pode receber e enviar mensagens de texto’. O segundo grupo, o que recebeu mensagens de texto, se saiu em média 20% pior no exame. Atualmente, todos nós estamos perdendo esses 20% de capacidade cerebral o tempo todo, praticamente o tempo todo. Pode-se ver que isso não é algo a ser feito, oh, eu sou apenas mais velho agora do que era então, mas não é que você seja mais velho, é que houve uma mudança profunda no ambiente. Essa não é a única, mas houve uma mudança profunda no ambiente que degrada profundamente a nossa capacidade de nos concentrarmos e prestar atenção.

Moore: Ao longo do livro, há este tema da expansão da tecnologia que pode nos rastrear e manipular. Você tocou em questões que têm estado no radar muito recentemente, o uso crescente das mídias sociais, o aumento da vigilância digital. Alguns ouvintes podem ter visto o filme “O Dilema Social” e você passou um tempo com os autores desse filme, Tristan Harris e Aza Raskin, embora o seu livro considere questões muito mais amplas do que apenas o uso da tecnologia. Quando estamos considerando a mídia social e os mecanismos de busca, como o Google, parece que está sendo planejada intencionalmente essa distração. Foi isso que você encontrou em sua pesquisa para o livro?

Hari: Sim, isto é algo que aprendi com muitas das pessoas no Vale do Silício que realmente projetaram o mundo em que vivemos agora e que se sentem realmente desconfortáveis com o que suas criações fizeram. Acho que é realmente importante se entender e isto é algo que realmente mudou a minha maneira de pensar sobre o assunto. Parte desta distração é inerente à tecnologia, mas uma grande parte da degradação de nossa atenção não se deve à tecnologia em si, mas sim ao atual modelo de negócios da tecnologia e à forma como esta é projetada.

Vamos começar com uma pergunta realmente básica que é, o Facebook vai lhe dizer muitas coisas. Ele lhe dirá o aniversário de sua avó, lhe dirá se houve um ataque terrorista e se seus amigos e entes queridos estão seguros. Mas há algo que o Facebook não faz. Muitas vezes você estará sentado em casa e pensará “oh eu me pergunto quais dos meus amigos estão livres e gostariam de me encontrar?” Não há nenhum botão no Facebook que diga, “quais dos meus amigos estão por perto e livres e gostariam de me encontrar?“. Esse seria um botão realmente popular. Tenho certeza de que todos os que estão nos ouvindo pensariam “oh, eu gostaria de ter essa opção”. Por que o Facebook não oferece essa opção?.

Quando você segue o rastro da resposta a essa pergunta, acho que isso nos ajuda a entender muito do que está acontecendo. O modelo de negócios do Facebook no momento e de todos os principais sites de mídia social é essencialmente ganhar dinheiro com duas coisas. A primeira é obviamente que eles vendem publicidade, você olha para o Facebook e vê um anúncio. Ok, isso é muito simples.

A segunda é cada vez que você faz alguma coisa no Facebook, que você envia uma mensagem para sua avó, que você gosta de alguma coisa, você não gosta de alguma coisa, o que quer que seja. Essa informação está sendo classificada e selecionada. As informações são coletadas e selecionadas para construir um perfil de você, que depois são vendidas para os anunciantes para que estes possam direcionar anúncios para você.

Assim que você pousa o seu telefone, a cada minuto que você não está olhando para o seu telefone, essas empresas estão perdendo dinheiro porque não recebem a publicidade e recebem menos informações sobre você. A cada minuto que você olha para o seu telefone, elas ganham mais dinheiro. Sua distração é o combustível delas. Cada vez que você recupera a sua atenção para fazer algo mais, isso é um desastre para elas. Seus designers, que não são pessoas más de forma alguma, são pessoas muito espertas e sofisticadas, dedicando toda a sua energia para descobrir como manter as pessoas navegando.

Agora, quando você entender que pode perceber por que esse botão não existe. Se dissesse, bem, oh meu amigo Bob está na esquina e quer ir beber um Chopp, eu desligaria o meu telefone. Eu desligaria o telefone, eu iria e me sentaria com Bob no barzinho. Eu não falaria com Bob através do Facebook, eu falaria com ele no mundo real que todos nós sabemos que nos faz sentir muito melhor. Isso seria um desastre para o preço de suas ações.

Tudo o que eles fazem é resultado do modelo de negócios, não como resultado da crueldade individual por parte das pessoas. Elas não são vilões do James Bond, mas o modelo de negócios toma essa decisão por elas. Os produtos são projetados para nos distrair, eles são projetados para perturbar a nossa atenção. Há muitas maneiras pelas quais estes modelos prejudicam a nossa atenção que fluem diretamente deste modelo de negócios. A solução para isso é que temos que lidar com o modelo de negócios.

Nos anos 70, as pessoas costumavam pintar as suas casas com tinta à base de chumbo e depois descobriu-se que isto causava danos profundos à atenção das crianças e ao QI. O que nós fizemos? Proibimos o chumbo na pintura. Não proibimos a pintura, eu estou sentado em uma sala que é pintada, você também está. Acabamos de nos livrar do chumbo na tinta. Da mesma forma, podemos proibir esse modelo de negócio específico de exploração da atenção, isso não significa que não teremos mídia social, significa apenas que ele funcionará com princípios muito diferentes.

Moore: Eu acho que a gente começa a sentir-se muito diferente quando começa a perceber que a nossa atenção é um produto que os gigantes das mídias sociais querem. Isso dá um giro bem diferente em vez de ver isso como uma atividade simples e benigna que é ver o que seus amigos estão fazendo.

Hari: Exatamente, Tristan Harris, que é uma das pessoas que mais admiro, é um ex-engenheiro do Google que trabalhou profundamente nisto. Há um momento que realmente me arrepia. Ele trabalhou na equipe do Gmail na época em que ela estava sendo desenvolvida. Houve um momento em que alguém disse: “Ei, por que não fazemos com que toda vez que alguém recebe um e-mail, o seu telefone vibre?” Todos disseram: “oh, isso é uma boa ideia”. Então ele descreve que apenas em poucas semanas, caminhando por São Francisco em Palo Alto, onde ele estava era só ouvindo e vendo os telefones das pessoas vibrando, e se dando conta de que isso estava acontecendo no mundo inteiro. Na verdade, como resultado dessa decisão, houve 11 bilhões de intervenções todos os dias e ele pensou “oh meu Deus, o que estamos fazendo?”

Há estes momentos em que você percebe como foram tomadas estas decisões em um contexto específico e que podemos desfazer. Não tem que ser assim. As pessoas que o projetam não gostam. Um dos antigos engenheiros do Google que eu entrevistei, James Williams, falou uma vez em uma conferência de tecnologia, centenas e centenas de pessoas estavam lá. Estas são pessoas que estão projetando o mundo em que vivemos. Ele disse: “Qualquer um aqui que levante a mão se quiser viver no mundo que estamos projetando?”. Nem uma só pessoa levantou a mão. Trata-se de mudar os incentivos para essas pessoas, os incentivos financeiros para que possamos chegar a um modelo mais são.

Moore: Acho que muitos de nós lutamos contra essa sensação de ter que conspirar com as mídias sociais, quase sentindo que é um mal necessário ou sentindo a sensação de perder se você não o usa ou tem que usá-lo para fins promocionais. Como não marcharmos ao seu ritmo? Há maneiras de pensarmos de forma diferente sobre o uso da tecnologia para fins promocionais ou de conexão?

Hari: É uma pergunta realmente importante. A primeira coisa é o que podemos fazer enquanto indivíduos, e como você sabe, eu tentei uma solução muito extrema para o meu livro. Passei três meses inteiramente sem a Internet e conto essa história no livro. Isso ajudou enormemente a minha atenção, e então voltei e estava tão mal quanto jamais tinha estado. Fui ver James Williams, o antigo engenheiro do Google, que agora é um filósofo realmente importante da atenção. Ele estava em Moscou e eu fui vê-lo lá.

Lembro-me de James me dizer: “Johann, você está pensando nisto da maneira errada. Tentar ter uma desintoxicação digital individualmente está bem se você quiser, isso o ajudará um pouco.” Mas, disse ele, “é como pensar que a solução para a poluição do ar é usar uma máscara de gases um dia por semana“. Quero dizer, tudo bem, não sou contra máscaras de gases, elas nos podem dar algum alívio, mas a gente tem que ir até a raiz do problema.

Acho que há muitas coisas que podemos fazer como indivíduos. Não sei se você pode ver em meu escritório aqui, eu tenho o que é chamado de kSafe. É um cofre plástico cronometrado onde você pode levantar a parte superior, colocar o telefone e girar a parte superior e ele vai trancar o seu telefone por quanto tempo você disser para ele. Eu uso isso todos os dias para guardar o meu telefone por pelo menos quatro horas. Em meu laptop que estou falando com você através de Freedom, um aplicativo que o desliga da internet. Eu tenho muitas coisas pessoais que faço e sobre as quais escrevo no livro. Sou a favor de todas essas intervenções, elas são valiosas e importantes. Também sou a favor de ser honesto com as pessoas, o que só vai levar você até aqui.

Há uma camada mais profunda de solução para isto, que é que temos que realmente assumir as forças que estão roubando o nosso foco e derrotá-las. Temos que impedi-las de fazer isso. No momento, é como se alguém estivesse derramando pó de mico sobre nós e depois as pessoas nos dissessem: “você sabe, você pode querer meditar, isso o ajudaria com todos os arranhões“. Precisamos ir às fontes destes problemas, que incluem a tecnologia. Lembro-me de quando pensei pela primeira vez sobre este pensamento, ‘”sso soa realmente assustador”. Como James Williams me disse, “problemas sistêmicos exigem soluções sistêmicasp” e comecei a pensar sobre isso em relação a uma luta social mais ampla.

Estou com 42 anos por mais algumas semanas. Quando minhas avós tinham 42 anos de idade, isso era 1962. Pensei em suas vidas. Uma de minhas avós era uma mulher escocesa da classe trabalhadora que vivia nos cortiços escoceses. A outra era uma camponesa suíça, que é como a teriam descrito na época, vivendo em uma montanha na Suíça. Minhas avós deixaram a escola quando tinham 13 anos, porque ninguém se importava em educar meninas. Minha avó suíça era realmente brilhante no desenho e na pintura. Ninguém queria ouvir isso, era “calar a boca, se casar”. Minha avó escocesa foi trabalhar em uma lavanderia. Ela queria ficar na escola, ninguém se importava com ela estar fora da escola.

Quando tinham 42 anos, a idade que eu tenho agora, minha avó suíça nem sequer tinha direito a voto. Quatro por cento dos membros do Parlamento na Grã-Bretanha eram mulheres. Não havia mulheres chefes de empresas, não havia mulheres policiais ou mulheres oficiais superiores da polícia. Os homens controlavam quase tudo. Era legal que minhas avós fossem estupradas por seus maridos. Elas não podiam ter contas bancárias em seus próprios nomes porque eram mulheres casadas. O grau de poder masculino é difícil de se entender.

Agora, ainda há um longo caminho a percorrer e eu valorizo o fato de que para as mulheres que estão ouvindo é extremamente irritante ouvir um homem explicar isto a alguém. Mas se eu olhar para a minha sobrinha que agora tem 17 anos e adora desenhar como a sua bisavó adorava desenhar, a lacuna entre a vida da minha avó e a vida da minha sobrinha é espantosa. Agora, quando a minha sobrinha desenha, dizemos: “É maravilhoso que você vá para a escola de arte, nós te amamos, você é ótima“. Mesmo os misóginos malucos não sugerem que a minha sobrinha não deve ter uma conta bancária, não deve ter direito a voto, ou que deveria ser legal estuprá-la. Estas coisas são hoje em dia insondáveis e impensáveis e com toda a razão.

Por que essas mudanças aconteceram? Não aconteceram porque as pessoas poderosas decidiram entregá-las de cima para baixo. Aconteceu porque mulheres comuns e alguns homens simpáticos se uniram e disseram “isto é uma merda, não vamos tolerar mais isto, isto não está certo“. E eles lutaram, e eles lutaram, e eles lutaram, e eles lutaram. Eventualmente, em muitas questões eles prevaleceram, ainda há um longo caminho a percorrer, sublinho que novamente e de certa forma temos andado para trás em algumas áreas.

Houve uma grande luta, assim como o movimento feminista tornou possível que as mulheres recuperassem os seus corpos. Acho que precisamos, e já existe um movimento da atenção para reivindicar as nossas mentes. Precisamos enfrentar as forças que estão fazendo isso conosco. Elas não são populares. Elas são poderosas em alguns aspectos, mas são fracas em outros. Há diferentes maneiras de nossa sociedade funcionar e administrar, que não nos destroem e invadem o nosso foco.  Temos que enfrentar essas pessoas, temos que enfrentar essas forças e temos que prevalecer sobre elas.

Isso requer uma mudança em nossa psicologia porque, embora haja coisas que os indivíduos podem fazer e eu falo muito sobre elas no livro, também precisamos sair desta mentalidade de nos culpar ou apenas pedir pequenas coisas. Nós não somos camponeses medievais na Corte do Rei Zuckerberg implorando por migalhas de atenção da sua mesa. Somos os cidadãos livres da democracia e podemos reclamar as nossas mentes se quisermos.

Moore: O livro fala sobre os impactos combinados da falta de atenção, má alimentação, poluentes ambientais, falta de tempo na natureza, falta de sono, excesso de trabalho, estresse crônico e muito mais. É difícil ler o livro e não sentir que tudo isso não poderia ser mais bem projetado para nos impedir de responder a crises e problemas sociais. O fator comum parece ser o de colocar o lucro à frente das pessoas. Você acha que o impulso para o crescimento econômico sustentado é realmente a questão por trás de tudo isso?

Hari: Há esta pergunta que surgiu no início da minha pesquisa e que eu me afastei um pouco do pensamento por um longo tempo. Fui a Copenhague, na Dinamarca, para entrevistar o primeiro cientista a provar que a  atenção coletiva está realmente diminuindo. Este é o Professor Sune Lehmann, um incrível cientista da Universidade Técnica da Dinamarca, é professor de matemática aplicada. Sune fez esta descoberta realmente importante e ele a fez por uma razão pessoal. Ele tem estes dois jovens filhos que ele ama que vêm e saltam em sua cama e saltam por cima dele todas as manhãs. Todas as manhãs ele instintivamente pegava seu telefone antes de tocá-los, e ele pensava “há algo errado aqui”, então ele decidiu fazer uma pesquisa.

Inicialmente, ele fez um estudo bastante pequeno, mas ele realmente se incorporou a esta coisa maciça envolvendo muitos cientistas. Ele olhou inicialmente no Twitter. Como qualquer pessoa que escuta e usa o Twitter sabe, há certos tópicos de tendências que são as coisas de que um grande número de pessoas está falando. Eles são identificados pelo Twitter e têm uma tendência e você pode olhar para eles. Inicialmente, ele observou quanto tempo dura um tópico de tendências. Em 2013, o tópico de tendências duraria em média 17,5 horas, então as pessoas falariam de uma coisa por 17,5 horas. Quando se chegou a 2016, isso foi reduzido para 12 horas e continuou a diminuir. Isso é interessante, mas talvez seja uma peculiaridade do Twitter.

Ele começa a olhar para uma enorme variedade de outros conjuntos de dados para ver se estamos falando de uma coisa a menos e menos. Ele descobriu em toda a Internet (com uma exceção, Wikipédia, que é interessante e inexplicável) se são pesquisas no Google, Reddit, o que quer que seja, as pessoas estavam se concentrando cada vez menos em uma coisa qualquer. Acontece que isto era verdade em coisas como quando um filme é um sucesso, quanto tempo as pessoas continuam a vê-lo depois de ter havido um splash inicial, coisas assim.

Eles olhavam para livros que remontam à década de 1880, portanto, de 1880 até os dias de hoje. Há uma forma técnica que pode identificar novos conceitos que surgem nos livros, é denominada detecção de engramas. Pense em uma frase como “no deal Brexit”. Ninguém usou a frase “no deal Brexit” antes de 2016 , e suponho que dentro de cinco anos ninguém mais usará “no deal Brexit”. Então a frase emerge e depois desaparece, há frases como essa ao longo da história.

Você pode treinar um algoritmo para detectar estas novas frases, detectar o engrama e ver quanto tempo as pessoas falam sobre cada novo tópico. É efetivamente uma maneira de descobrir o equivalente ao que se esperava no Twitter no passado, é um método realmente inteligente. O que eles descobriram é realmente marcante. Desde a década de 1880, a cada década que passou, as pessoas discutiam novos conceitos por períodos cada vez mais curtos. O gráfico se parece exatamente com o gráfico do Twitter desde que o Twitter foi criado até os dias de hoje. O que é fascinante e bizarro.

Lembro-me de Sune dizer o mesmo quando olhou para os dados, “caramba, isto está realmente acontecendo, há realmente uma diminuição da atenção coletiva“. Ele está tentando descobrir por que isso aconteceria? Eles construíram um equivalente dos modelos que preveem as mudanças futuras no clima. Eles basicamente descobriram que se você quer fazer a informação se comportar assim, o que você tem que fazer é inundar o sistema com informação. Se você inundar o sistema com informações, qualquer um nesse sistema será capaz de lidar cada vez menos com essas informações. É como se estivéssemos bebendo de uma mangueira de incêndio, é como ele pensa, somos pulverizados com essa enorme quantidade de informação.

Quando você bombeia massivamente as pessoas com informações, você degrada a quantidade que elas possivelmente podem processar por razões óbvias. Foi realmente desafiador porque a tentação é dizer “oh isto é um problema que tem a ver com a internet” e, claro, os fatores que acabamos de falar são muito reais. Mas na verdade o que Sune mostrou é que a atenção tem sido degradada para toda a minha vida, para toda a vida de seus pais ou para a vida de seus avós. Na verdade, na vida de nossos bisavós, isso tem sido consistente. Qual é a coisa subjacente que está causando isso?

Há um grande debate sobre isto e eu ofereço isto muito mais cautelosamente do que ofereci as outras evidências porque não está claro. Mas pessoas como Thomas Hylland Eriksen, que é um dos principais cientistas sociais da Noruega, argumentaram que o que está acontecendo está relacionado com o fenômeno do crescimento econômico. Vivemos em uma economia e uma sociedade construída inteiramente em torno do princípio do crescimento econômico. Se os líderes políticos garantem o crescimento econômico, eles são reeleitos na maioria das vezes, se não supervisionarem o crescimento econômico, são expulsos. O mesmo acontece com os chefes de empresa, se a empresa cresce, eles são recompensados, se a empresa encolhe, eles são enxertados.

O professor Eriksen está falando sobre como podemos garantir o crescimento. Há duas maneiras: você pode identificar um novo mercado ou pode conseguir que um mercado existente consuma mais da mesma coisa. Por exemplo, se eu conseguir que você veja televisão e ao mesmo tempo olhe o seu telefone, eu dupliquei o mercado para publicidade. Você está exposto ao dobro da quantidade de publicidade a que estava exposto antes. Claramente, ainda há novos mercados sendo identificados, mas muito crescimento econômico está vindo atualmente desta invasão.

Por que dormimos menos, uma das principais causas dos problemas de atenção de que falo no livro? Bem, um grande fator é que estamos sempre amparados para estar comprando coisas e fazendo coisas. Estamos neste estado de agitação constante. Enquanto construímos um movimento de atenção que está tentando pensar sobre as razões pelas quais não podemos pensar tão claramente quanto queremos, mais cedo ou mais tarde teremos que contar com o fato de que temos um modelo baseado no crescimento econômico que requer níveis cada vez maiores de consumo quando na verdade, para recuperar a nossa atenção, temos que consumir menos.

A propósito, vamos ter que lidar com este modelo de crescimento econômico de qualquer maneira por causa das consequências ecológicas do mesmo. Não se pode ter um crescimento infinito em um planeta finito. Há muitas razões pelas quais vamos ter que lidar com o crescimento econômico e avançar em direção a modelos que existem, baseados no que é chamado de economia de estado estável, onde não se tenta crescer, tenta-se ficar onde se está.

Curiosamente, a COVID foi a primeira vez em nossas vidas e em muito tempo que algo diferente do crescimento econômico se tornou o princípio organizador de nossas sociedades. Isso aconteceu por causa de uma emergência, o que não é a circunstância ideal para fazê-lo, é claro, mas isso foi interessante. Foi um momento em que decidimos coletivamente desacelerar. Não quero ser loquaz quanto a isso, perdemos cinco milhões de pessoas em uma estimativa conservadora, isso causou muita dor psicológica e todo tipo de problemas.

Mas também para muitos de nós, houve um sentimento de alívio no mundo, além de todo esse estresse e horror. Um sentimento de que talvez não precisemos todos correr o tempo todo, talvez haja uma maneira diferente de ser. Acho que essa percepção pode ser valiosa quando a levamos adiante ao sairmos da pandemia, o que esperamos um dia vir a acontecer.

Moore: Você menciona a mudança climática e o meio ambiente. Como sabemos, o mundo está enfrentando o que só pode ser descrito como o desafio mais significativo e potencialmente transformador que já enfrentou em relação à mudança climática. Para enfrentá-lo será necessário que deixemos de lado as diferenças culturais e políticas e colaboremos em uma escala antes desconhecida na história da humanidade. Seu livro pinta um quadro bastante nítido do efeito do capitalismo de vigilância e de um mundo construído sobre o crescimento econômico. Você tem esperança de que podemos realmente responder às mudanças climáticas de forma significativa se estivermos permanente e poderosamente distraídos?

Hari: Não podemos se estivermos permanentemente distraídos, mas podemos absolutamente se ultrapassarmos esta crise. Eu acho que você está totalmente certo, e isto foi realmente sóbrio para mim, muitas das cidades onde passei o tempo pesquisando este livro foram então sufocadas pelos incêndios.

Lembro-me de estar com Tristan Harris, o antigo engenheiro do Google, que foi tão corajoso ao falar sobre tudo isso. Um dia, Tristan e eu estávamos andando por São Francisco apenas conversando e ele estava dizendo, o que mais me preocupa nisto é – ele não colocou as coisas assim, mas – estamos perdendo nossa superpotência, nossa capacidade de prestar atenção no momento em que mais precisamos dela. Então, exatamente um ano depois, houve os enormes incêndios florestais na Califórnia. A própria casa de Tristan ardeu e as ruas que pisamos foram sufocadas pela fumaça e pela laranja brilhante no meio do dia.

Eu passei muito tempo em Sydney porque tenho muitos amigos lá e um dia estava ao telefone. Era o auge do verão negro de 2019 quando em um ponto toda a costa do estado de New South Wales estava em chamas. Três bilhões de animais morreram queimados ou tiveram que fugir. Talvez duas ou três semanas depois daquele verão negro e eu estava ao telefone com meu amigo Andy em Sydney. Ele vive no centro de Sydney, não é como no meio do campo nem nada. O alarme de fumaça começou a disparar, e ele disse: “oh, temos este problema”. O que aconteceu foi que, por toda Sydney em escritórios e casas, os alarmes de fumaça começaram a disparar porque a densidade da fumaça no ar era tão grande que os edifícios pensavam que estavam pegando fogo mesmo que os incêndios fossem realmente muito longe.

A gente percebe naqueles momentos que os sistemas que construímos em nossas casas para nos manter seguros estão funcionando, mas o sistema político maior que foi projetado para nos manter seguros não está funcionando. Acho que é realmente importante entender a forma como isto está perturbando a nossa capacidade de lidar com o aquecimento global.

A gente volta ao que estávamos dizendo sobre o modelo de negócios para as mídias sociais. Quanto mais tempo você navegar, mais dinheiro eles recebem. Esse é o único objetivo do algoritmo é mantê-lo navegando. Quando esses algoritmos escaneam as pessoas e descobrem o que o mantém navegando, eles esbarram em uma peculiaridade da psicologia humana chamada viés de negatividade. Basicamente, você olhará para algo assustador e irado por mais tempo do que para algo que o faz sentir-se bem. É por isso que em uma autoestrada, se você já passou por um acidente de carro, você olha para o acidente de carro por mais tempo do que olha para as lindas flores ao lado da autoestrada. Provavelmente por uma razão evolutiva perfeitamente boa, faz mais sentido ficar olhando para algo que pode machucá-lo do que para algo que não o machucará. Você pode até mesmo ver isso quando bebês de 10 semanas de idade olham para um rosto zangado por mais tempo do que olham para um rosto sorridente exatamente por essa razão.

Mas isto cria um efeito desastroso on-line. Um estudo da NYU descobriu que se você inserir um desacordo moral furioso em seus tweets, é 20% mais provável que eles sejam compartilhados. Na verdade, houve um estudo horrível no Facebook, o Pew Research Center descobriu que, se você colocar uma repulsa moral em seus tweets, você dobra a quantidade que eles são apreciados e compartilhados. Se é revoltante, é envolvente. O algoritmo começará a selecionar coisas que o deixam irritado, não porque o algoritmo queira que você fique irritado, o algoritmo não se importa com o que você sente. Mas o algoritmo sabe que se você estiver com raiva, é mais provável que você continue navegando.

Agora, o que isso faz é produzir parte desta polarização catastrófica que estamos vendo em todas as nossas sociedades. O fato de estar acontecendo em todos os lugares nos diz algo. O fato de que estamos presos em faixas crescentes de ódio profundo. Se estamos sendo constantemente alimentados para ficarmos artificialmente irritados e incompreendidos uns com os outros, tribalizados, polarizados, não vamos absolutamente lidar com o aquecimento global.

Como você pode ver pela resposta da COVID. Fizemos algumas coisas boas, mas isso promoveu a polarização artificial e a polarização anticientífica de todos os tipos. Foi aí que as empresas de mídia social procuraram bloquear e, mesmo ali, o algoritmo buscando tão fortemente assim mesmo não conseguiram impedir que as suas máquinas promovessem a polarização. Esta não é apenas a minha opinião ou a de Tristan, é o que diz a pesquisa interna do Facebook quando nos foi divulgada por Frances Haugenno ano passado.

Não podemos lidar com nenhum de nossos problemas se não tivermos a capacidade de nos concentrar, prestar atenção, distinguir a verdade das mentiras e responsabilizar as pessoas ao longo do tempo. Eu diria que um pré-requisito para resolver a crise climática, que não temos muito tempo para fazer, mas precisamos continuar, é resolver esta crise de atenção. Se estamos interagindo através de videogames baseados na raiva, que é essencialmente o que a mídia social se tornou, então não seremos capazes de resolver isto. Trata-se de ignorar as diferenças, de nos unirmos, de nos unirmos, de ter o poder de prestar contas.

Tenho 42 anos, os ouvintes mais jovens talvez nem se lembrem disso, mas quando éramos mais jovens eu me lembro de estar aterrorizado com a destruição da camada de ozônio. Havia um componente químico chamado CFC que estava em sprays e geladeiras e em várias coisas, e que estava causando um buraco na camada de ozônio que nos protege dos raios do sol. Estávamos muito preocupados com isso, com razão.

O que aconteceu foi que o mundo foi avisado sobre as evidências científicas. Ouvimos as evidências científicas. Vimos que era verdade e responsabilizamos os nossos políticos. Fizemo-los fazer a coisa certa, proibimos os CFCs e os sprays de cabelo e conseguimos diferentes tipos de geladeiras e os responsabilizamos e agora a camada de ozônio está sarando. Não creio que se essa crise acontecesse agora, nós faríamos isso. Acho que você teria teóricos malucos da conspiração dizendo que a camada de ozônio não existe, ou que o buraco foi feito por lasers espaciais judeus lançados por George Soros ou o que quer que seja. Não seríamos capazes de distinguir a verdade da mentira e responsabilizar os nossos políticos.

Além disso, acho que não teríamos o espaço de atenção, como você vê pela resposta da COVID. Estou entediado agora, tentamos distanciamento social e máscaras por alguns meses, vamos apenas fingir que o vírus desapareceu. Não acho que seremos capazes de fazer essas coisas na atual ecologia da informação que criamos. Mas não temos que viver nesta ecologia da informação. Como James Williams me disse, o machado existiu por 1,4 milhões de anos antes que alguém pensasse em colocá-lo em prática. A Internet existe há menos de 10.000 dias. Podemos mudar estas coisas, temos absolutamente em nosso poder para mudar estas coisas, mas temos que entender o que realmente está acontecendo e então temos que lidar com isso.

Moore: Johann, muito obrigado. A leitura do livro foi tantas coisas ao mesmo tempo. Foi aterrador, foi sóbrio, foi fascinante, mas também foi esperançoso porque você fala de passos que poderíamos dar em direção a soluções. Gosto da maneira como você o descreve, não como um livro de autoajuda que tem uma boa solução arrumada no final, mas como coisas em que as pessoas podem começar a se engajar para começar a mudar a narrativa e mudar a abordagem. Acho que é incrivelmente oportuno e estou tão grato que você possa ter tido tempo para se juntar a nós hoje para falar sobre isso.

Hari: Muito obrigado, eu realmente gostei muito. Agradeço imensamente o seu envolvimento com o livro. Qualquer pessoa que quiser mais informações sobre o livro pode ir ao site StolenFocusBook.com. Você pode obter o livro ou o audiolivro. Você também pode ouvir gratuitamente as entrevistas com muitos dos especialistas de que falamos como Mihaly Csikszentmihalyi, acho que foi a última entrevista que ele fez. Tristan Harris, muitas e muitas das pessoas que você pode ouvir áudio com eles.

Eu acredito absolutamente que podemos lidar com isto e isto não precisa acontecJohann Hari: Foco Roubado – Porque não se pode prestar atençãoer, mas precisamos entender o que realmente está acontecendo conosco e que nossa atenção está sendo ro

A patologização do sofrimento psíquico

Face of schizophrenic woman reflected in broken mirror

Os psicotrópicos modificaram a paisagem da loucura, esvaziaram os manicômios e substituíram a camisa-de-força e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa. Embora não curem as denominadas “doenças mentais”, eles revolucionaram as representações do psiquismo e fabricaram um novo sujeito, o sujeito contemporâneo. Receitado tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm como função normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico sem lhes buscar significação. Assim, a clínica hoje, com os impasses que se delineiam em seu campo, se impõe como um problema em pauta. Tantas e tantas vezes as pessoas buscam ajuda com seu (auto) diagnóstico pronto. O que querem é a confirmação de algo que elas já sabem, que ouviram dizer ou que buscaram nas redes ou na internet.

Quanto mais surgem “novas” patologias, mais surgem identificações com a (s) nova (s) doença (s).

Joel Birman (2018) ressalta a articulação entre os discursos provenientes da psiquiatria biológica, do cognitivismo e da terapia comportamental que procurou desarticular o dispositivo da clínica do psíquico, na medida em que os registros do sujeito e da singularidade são colocados em questão no campo terapêutico. Patologizar, medicalizar, psicopatologizar esse é o tom do mercado, é a bola da vez. Num paradigma naturalista de cientificidade, fundado nos discursos teóricos da biologia e das neurociências, cada vez com mais descobertas que prometem explicar a condição humana, não há espaço para aquilo que não cabe entre as sinapses neuronais, para a política, a história, as relações, a cultura, o social, a dor de existir, as insatisfações humanas quando tudo deveria estar tão bem (por que não está?). Esses diferentes discursos, essas linhas de força que se conjugam, que pretendem explicar tudo, também lançam fórmulas e protocolos para que todos caibamos na mesma forma, com etapas bem definidas e métodos para reduzir (e por que não extirpar?) os sofrimentos existenciais.  Essas narrativas se articulam na série de reconfigurações produzidas do DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) e CID, agora em sua nova roupagem, a 11а versão.

Em consonância ao pensamento de Joel Birman, Tenório (2016) ratifica que a intenção declarada das modificações em torno das classificações psiquiátricas foi estabelecer o maior consenso possível para qualquer que fosse a escola adotada pelo psiquiatra. Para tanto, o DSM e, posteriormente, a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) proclamaram-se “ateóricos”, excluindo as categorias que implicavam pressupostos psicodinâmicos e pretenderam basear a classificação exclusivamente em sintomas que pudessem ser empiricamente observados, descritos e quantificados. Contudo, nota-se como efeito dessas mudanças a supressão da referência às teorias psicodinâmicas. Ademais, o apoio exclusivo nos sintomas para a descrição de psicopatologias favoreceu a ênfase cada vez maior na ação farmacológica no tratamento do sofrimento psíquico. Assim, a primeira resposta para o cuidado com o sofrimento advém do medicamento e das terapias a ele relacionadas.

Uma série de mal-estares humanos vem sofrendo cada vez mais um deslocamento progressivo de sentido. A pluralidade de abordagens contempladas quando se tratava de explicar as vicissitudes individuais, foi capturada por concepções que tendem a reduzi-la a sua dimensão biológica.

Data de 1952 a primeira sintetização de um psicofármaco utilizado em tratamentos psiquiátricos. Desde então, a indústria farmacêutica investe massivamente, ano após ano, cada vez mais recursos no estabelecimento de pesquisas na área da psicofarmacologia e investe grande parcela de recursos no marketing de novas drogas. Há uma assustadora inversão na construção da lógica diagnóstica contemporânea, posto que o remédio participa da nomeação do próprio transtorno. Não há mais uma etiologia e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.

A partir de uma auto-nomeação designada pelo diagnóstico podemos pensar na produção de identidades patológicas (Silva Júnior, 2018). Estas são declarações em que o sujeito se nomeia como o objeto de um saber, especificamente de um saber médico sobre o sofrimento em geral. Tais formas de auto-nomeação são transnosográficas. Diversos tipos de sujeitos frequentemente evocam um diagnóstico sobre o qual não tem qualquer dúvida e ao qual se conformam como quem descreve a cor dos cabelos. No entanto, esta auto-nomeação a partir de um quadro psiquiátrico descreve uma disfunção.

Podemos fundamentar tal raciocínio desde as proposições freudianas. No texto “Mal-estar na civilização” (1930/2011,) Freud esclarece que a vida, tal como nos coube, é muito difícil, traz demasiadas dores, decepções e tarefas insolúveis, assim, para suportá-la não podemos dispensar o uso de paliativos. O uso de substâncias lícitas e ilícitas insurge com vistas a aplacar a angústia e com a promessa de felicidade. Neste texto, Freud fala que o sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que fadado ao declínio e à dissolução, não podendo sequer dispensar a dor e o medo como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis e destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta última fonte é experimentado mais dolorosamente do que qualquer outro tipo de sofrimento.

O crescimento vertiginoso de categorias diagnósticas e a presença massiva de descrições de transtornos psiquiátricos fez com que Whitaker (2017) constatasse uma epidemia diagnóstica. Na psiquiatria mais restrita ao paradigma médico, o diagnóstico é um ato de observar corretamente um sinal e, a partir do saber médico, atribuir a este o seu verdadeiro significado disponível na nosografia. Nesse paradigma, o sintoma é como um significante a espera do seu “verdadeiro” significado. Um significado universal, fixo, não-particular daquele sujeito, uma vez que disponível no “tesouro semiológico” do médico. Nota-se o efeito de fechamento: diante de um sintoma/sinal, o médico “completa” o par com o verdadeiro significado. O desafio que se apresenta consiste em interrogar de modo a fazer do sintoma questão, manejando-o segundo um endereçamento. Não basta que o sujeito se queixe de um sintoma. É preciso que essa queixa se transforme numa demanda endereçada e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo e criar (Tenório, 2000).

Retomemos a clínica do psíquico, a história, a geografia, a ecologia, as construções e representações sociais, o panorama político-econômico-social, a antropologia, a cultura, os dissensos e os consensos que potencializam e alicerçam as lógicas de mercado (incluindo a compreensão de como os sujeitos “devem” ser – devem?) antes de patologizar a existência humana.

Referências

Birman, J. (2018) Genealogia da clínica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 21 (3), 442-464.

Tenório, F. (2000). Desmedicalizar e subjetivar: A especificidade da clínica da recepção. Cadernos IPUB, 6 (17), 79-91.

Whitaker, R. (2017). A anatomia de uma epidemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Silva Júnior, N. (2018). O mal estar no sofrimento e a necessidade de sua revisão pela psicanálise. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (Orgs.). Patologias do social. Belo Horizonte: Autêntica editora.

Freud, S. (2011). O mal-estar na civilização. V. XXI. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).

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