Freud não era psiquiatra; ele era um neurologista que deixou a prática da medicina para estudar o funcionamento interno da mente, a maneira como as sociedades operam e a interação entre os dois. Ele era antes de tudo um psicólogo/sociólogo/filósofo. Ele viveu em tempos vitorianos quando, ao contrário de hoje, o sexo era reprimido e as mulheres eram desvalorizadas; isto explica em grande parte porque algumas de suas ideias parecem estranhas ou ofensivas para muitos agora. Mas se olharmos além destas falhas, há alguns conceitos que valem a pena.
Freud considerava a psicanálise mais dentro da psicologia do que da medicina, e insistia que ela não fosse medicalizada. Ele acreditava que qualquer pessoa com a devida aptidão poderia ser treinada para fazer análise, mas que o treinamento médico limitaria a capacidade de uma pessoa de ter uma visão livre. Ele mostrou desdém pelos psiquiatras: “Na faculdade de medicina um médico recebe treinamento que é mais ou menos o oposto do que ele precisaria como preparação para a psicanálise. . . . Isso lhes dá uma atitude falsa e prejudicial”.(1) Assim Freud percebeu a falsidade e a nocividade da medicina, e foi o primeiro antipsiquiatra.
Somente nos Estados Unidos os psiquiatras avidamente monopolizaram a análise contra a vontade de Freud e criaram termos obscuros como “superego” ou “id” que só eles usam. Os psiquiatras que patologizaram publicamente o candidato presidencial Goldwater em 1964 eram pessoas famintas de poder e de mentalidade política. Os verdadeiros freudianos não o teriam feito, pois acreditam que todos nós temos conflitos; Freud fundamentou isto ao explicar logicamente os sonhos,(2) piadas,(3) e erros (4) que agora são conhecidos como “lapsos freudianos”.
Diz-se com frequência que as suas teorias foram desmascaradas. Isto se deve à alegação de que os problemas emocionais/comportamentais provaram ser doenças genéticas ou biológicas do cérebro (como a psiquiatria moderna profetiza ilogicamente), em vez de reações a questões e eventos inconscientes/conscientes que podem ter origem na infância, como ele racionalmente deduziu. Nunca as suas ideias foram realmente refutadas.
Vamos comparar as duas abordagens: Os terapeutas freudianos não aplicam rótulos ostracizantes ou estigmatizantes, já que todos nós temos lutas. Eles deixam que os clientes estabeleçam as suas próprias metas e façam o trabalho ativo na terapia, uma vez que as ideias só serão significativas e produtivas se os próprios clientes as desenvolverem. Eles escutam, compreendem e se conectam profunda, paciente e respeitosamente. Seus clientes pensam por que agem como agem, exploram e expressam as questões que surgem da vida em sociedade, e aprendem a tratá-las de maneiras à sua escolha. Eles usam os seus cérebros para aumentar a autossuficiência e o controle sobre as suas vidas.
Mas os psiquiatras modernos apressam-se a rotular os clientes de forma impessoal/jurídica/autoritária como doentes e anormais. Eles incitam os clientes a empurrar os problemas para baixo da superfície, em vez de descobri-los e tratá-los, a negar o seu livre arbítrio já que é ‘genético’ e a seguir passivamente as ordens. Suas drogas de tamanho único calam os clientes, desativam os seus cérebros e criam zumbis eternamente dependentes e indefesos para as suas linhas de montagem. Portanto, eles são exatamente opostos em todos os sentidos: O ‘Anti-Freud’ é o ‘modelo pró-médico’. Os psiquiatras freudianos nos anos 50-60 lutaram contra a psiquiatria biológica, por isso foram os mais próximos à antipsiquiatria. O primeiro DSM (1952, quando Freud reinava) não tratava de categorizar os sintomas em doenças que soavam como sendo científicas, mas de explorar possíveis questões sociais/psicológicas causais.
Em anos posteriores, o objetivo de Freud foi menos de ‘tratar doenças mentais’ e mais melhorar a sociedade, aumentando a autoconsciência e diminuindo a repressão social (o que ele fez), devido a pensar que esta era a principal causa de descontentamento.(5) Se ele estivesse vivo agora, provavelmente diria que o problema é mais a repressão emocional do que a repressão sexual, e culparia a “medicalização da vida cotidiana” da psiquiatria, como disse Szasz.(6) Ele culparia a nossa crise de incapacidade, suicídio, violência, uso de drogas e overdose com o envenenamento da nossa cultura pelo modelo médico e repreenderia: “Eu avisei isso!
Eis como ele analisaria a nossa sociedade doente:
O modelo médico faz com que as pessoas reprimam os sentimentos normais/ desagradáveis/ inaceitáveis, como tristeza pela perda, preocupação com o futuro ou raiva dos outros, para evitar serem chamadas de “doentes mentais” se elas mostrarem esses sentimentos ( é o “ter” depressão, ansiedade ou bipolaridade; ou personalidade limítrofe se elas expressarem os três).
Muitos que são autoconscientes são levados a pensar que algo está errado com eles (uma doença cerebral), e atraídos para a tentativa infrutífera de medicar os seus problemas/sentimentos. Alguns vão aos psiquiatras para suprimi-los através de drogas; outros tentam a medicalização alternativa, culpando toxinas, efeitos de drogas, dieta etc. Portanto, “normal” agora é a repressão emocional e a autoconsciência; isto abafa o domínio dos desafios da vida. Devido à medicalização, a porcentagem de pensamentos/sentimentos das pessoas que estão inconscientes (ou sedadas) é maior do que nunca. Isto tem tido resultados desastrosos.
É claro que algumas das muitas ideias de Freud são inválidas ou não se aplicam mais, porém que até Szasz aceitou as suas principais ideias sobre o inconsciente e como questões e sentimentos reprimidos podem levar a ações ou problemas sem o nosso conhecimento.(7) Portanto, um antídoto para a infestação do modelo médico de nossa cultura seria reintroduzir algumas das teorias de Freud (não por terapia, mas por educação) para o público. Afinal, o oposto do modelo médico não seria o melhor meio de contra-atacá-lo? Combinar esta educação com a contínua desvalorização das mentiras da psiquiatria será a melhor maneira de acabar com seu reinado. Não será difícil, já que as ideias de Freud já estão dentro de nós; só precisamos trazê-las de volta à superfície.
Freud ainda é valorizado em muitas nações europeias. Talvez seja por isso que seu povo seja menos vulnerável a traficantes de drogas legais/ilegais e, portanto, porque não estão morrendo de overdoses. Então, pessoas da comunidade MAD: Por que não deixar Freud se juntar à nossa equipe? Ele está do nosso lado, ele tem boas ideias e começou a nossa causa!
Notas:
1. Freud, S. The Question of Lay Analysis. Brentano (NY) 1926, pp. 62,63.
2. Freud, S. The Interpretation of Dreams. Brill (London, NY)1900.
Freud, S. Jokes and Their Relation to the Unconscious. Norton (New York) 1905.
Freud, S. The Psychopathology of Everyday Life. Norton (New York) 1901.
Freud, S. Civilization and Its Discontents. 1930.
Szasz, T. The Medicalization of Everyday Life. Syracuse University Press, 2007.
Wyatt, R. Thomas Szasz Interview, Psychotherapy.net Dec 2000.
Em um novo artigo publicado no Psychoanalytic Inquiry, Nancy McWilliams explora como a contenção de custos, os interesses da indústria farmacêutica e as mudanças no mundo acadêmico têm levado a que a abordagem de tratamento de doenças mentais seja de um único formato. A autora argumenta que ao invés de aplicar cegamente tratamentos “baseados em evidências” que dependem de categorias diagnósticas específicas, os clínicos devem considerar a constelação única de sintomas, desafios, preferências, crenças etc., na adaptação de tratamentos para usuários de serviços. Ela escreve:
” Durante a vida de muitos de nós, o campo da saúde mental passou por uma mudança gradual, porém profunda, afastando-se da tentativa de entender o paciente único e passando a atribuir rótulos baseados em categorias de sofrimento psicológico sobre as quais os especialistas acadêmicos concordam”, escreve ela.
“Junto com esta mudança vieram fortes pressões para restringir o tratamento do cliente a procedimentos específicos que têm sido mostrados, em pesquisas que dependem de condições artificiais e de médias estatísticas, para reduzir os sintomas mensuráveis que definem essas categorias de transtornos reificados”. Como na maioria das mudanças de cima para baixo, certas eficiências resultaram, mas a um preço oculto elevado”.
O presente trabalho explora o desenvolvimento e as deficiências do estilo dominante de diagnóstico na psiquiatria contemporânea. A autora, também editora do Manual de Diagnóstico Psicodinâmico (PDM), aponta o PDM como um guia para clínicos que incorpora tanto as descrições diagnósticas categóricas presentes em publicações como o Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM), como também formulações diagnósticas “biopsicossociais” que se baseiam mais em entendimentos contextuais e individualizados de doenças mentais.
O presente trabalho traça o foco em categorias diagnósticas distintas na psiquiatria às mudanças na década de 1970 destinadas a remediar várias dificuldades enfrentadas pela psiquiatria. Primeiro, a mudança para categorias diagnósticas discretas no DSM teve como objetivo racionalizar a pesquisa em saúde mental. As categorias diagnósticas poderiam retirar grande parte do trabalho de adivinhação do diagnóstico, permitindo aos participantes da pesquisa receber diagnósticos após um exame rudimentar, em vez de meses ou anos de terapia da palavra.
Em segundo lugar, as versões anteriores do DSM tinham se baseado principalmente em entendimentos psicanalíticos de doenças mentais. Entretanto, com abordagens biológicas, humanísticas, cognitivas etc., ganhando popularidade, a psiquiatria precisava de uma linguagem que pudesse falar com a amplitude cada vez maior de entendimentos dentro da disciplina. As categorias discretas e simples oferecidas pelo DSM-III poderiam ser muito mais facilmente aplicadas através destas abordagens emergentes.
A autora aponta para três circunstâncias adicionais que impulsionam a adoção excessiva dessas categorias de diagnóstico e sua abordagem de tamanho único para o tratamento de doenças mentais.
A primeira é o esforço para limitar os custos. As empresas de seguro de saúde e os governos tendem a favorecer tratamentos econômicos hoje em dia, com pouca consideração das consequências a longo prazo. Isto significa que o financiamento é raramente mantido para tratamentos mais caros tais como terapias de fala e é frequentemente desviado para terapias cognitivas de curto prazo. Embora a autora acredite que a terapia cognitiva seja eficaz para muitos usuários de serviços, esta abordagem de tamanho único limita o acesso a tratamentos mais caros que podem ser muito mais adequados para tratar alguns usuários de serviços.
Em segundo lugar, a indústria farmacêutica está interessada em descrever o sofrimento mental como um transtorno discreto e tratável. Uma vez que definimos o sofrimento mental como uma doença, podemos medicá-lo. Embora o autor acredite que os medicamentos podem ser úteis para alguns usuários de serviços, os interesses da indústria farmacêutica têm levado a uma compreensão inútil do sofrimento mental como sendo principalmente um transtorno que pode ser corrigido quimicamente. Esta compreensão da doença mental pode nos levar a abandonar outros tratamentos que poderiam ser úteis para muitos usuários de serviços.
Em terceiro lugar, a psiquiatria acadêmica tem exigido cada vez mais o uso exclusivo de “práticas baseadas em evidências”, às vezes colocando-as em desacordo com clínicos experientes que preferem individualizar os tratamentos. De acordo com a autora, estas práticas baseadas em evidências estão enraizadas em condições laboratoriais irrealistas nas quais vastas porções de participantes são excluídas, muitas vezes incluindo aqueles com alguma comorbidade.
Um número limitado de tratamentos para o sofrimento mental provavelmente prejudica os usuários do serviço. A autora faz esta observação comparando a depressão a um coxear. Desenvolvemos um coxear a partir de um certo tipo de dano que pode vir de diferentes lesões. Com base no que é lesionado e em até que ponto traumaticamente, podemos precisar aconselhar um paciente sobre como caminhar normalmente novamente ou sobre como chegar a um acordo para nunca mais caminhar normalmente. Da mesma forma, a depressão pode ter origem em várias causas. O que o paciente precisa depende de suas circunstâncias específicas. Ao preferir algumas intervenções a outras em todas as circunstâncias, estas discretas soluções diagnósticas categóricas prolongam inevitavelmente o sofrimento de alguns usuários dos serviços.
A autora e editora do PDM oferece o PDM como uma alternativa às categorias de diagnóstico discreto do DSM. Embora o PDM inclua algumas categorias similares ao DSM, ele também valoriza as circunstâncias individuais e engloba opções de tratamento mais variadas. A autora conclui:
“Nenhum sistema de diagnóstico pode captar a complexidade da psicologia de qualquer pessoa nem a singularidade de uma pessoa individual. Mas os terapeutas, especialmente os clínicos menos experientes, precisam de algum ‘mapa”‘ geral do território psicológico relevante, ou então correm o risco de se sentirem desamparados diante da infinita variedade humana. Precisamos ter cuidado para que os mapas que nos são fornecidos descrevam os elementos mais importantes do terreno clínico e não apenas aqueles que são úteis para corporações farmacêuticas, administradores de planos de saúde, e um grupo restrito de pesquisadores. ”
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McWilliams, N. (2021). Diagnosis and its discontents: Reflections on our current dilemma. Psychoanalytic Inquiry, 41(8), 565–579. https://doi.org/10.1080/07351690.2021.1983395 (Link)
Dana Becker é professora emérita de serviço social e de pesquisa social na Bryn Mawr College e tem trabalhado como psicoterapeuta por mais de três décadas. Com um doutorado em psicologia e um mestrado em serviço social, ela tem sido uma crítica da igualdade de oportunidades em seu trabalho sobre os efeitos da cultura terapêutica na mulher nos EUA.
Estes temas são explorados em seus livros, Through the Looking Glass: Women and Borderline Personality Disorder (Westview Press, 1997) e The Myth of Empowerment: Women and the Therapeutic Culture in America (NYU Press, 2005). Seu livro mais recente, One Nation under Stress: The Trouble with Stress as an Idea (Oxford University Press, 2014), aborda os efeitos da cultura terapêutica através de um exame do trabalho ideológico que atualmente realizado através conceito de estresse. Seu trabalho foi premiado pela Society for the Psychology of Women.
Becker é conhecida por seu trabalho sobre o uso do transtorno de personalidade limítrofe para medicalizar os problemas da mulher. Ela também tem feito algumas críticas significativas à maneira como falamos e lidamos com o estresse em nossa sociedade e constatou como é que a psicoterapia feminista tem sido enfraquecida em seu potencial revolucionário.
A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.
Ayurdhi Dhar: Você poderia nos dizer brevemente o que é “cultura terapêutica” e suas preocupações e críticas?
Dana Becker: É a cultura na qual estamos todos mergulhados, impregnados de conceitos psicológicos, valores e de instituições baseadas neles.
Na cultura terapêutica, a psique é o principal objeto de nossa atenção. A psicologia é vista como a principal fonte de problemas em nossa sociedade e a saúde de nossas “psiques” é o objetivo final. Estas suposições compartilhadas sobre a psique e a sua importância, assim como a importância do eu, moldam os nossos valores, comportamentos e até mesmo as instituições.
Esta ênfase sobre a Psique e o Eu torna o mundo, os problemas da sociedade e os problemas estruturais e institucionais menos visíveis para nós. Nossa confiança americana em idéias sobre o individualismo também molda a cultura terapêutica.
Dhar: Como você traz esta consciência sobre a cultura terapêutica para o seu trabalho como terapeuta com os seus clientes? Como isso influencia o seu trabalho?
Becker: Temos que trazer o contexto social para a terapia, mas não podemos parar no consultório. Uma sessão de 45 minutos não cria um mundo.
Por exemplo, as mulheres cujos problemas são há muito tempo medicalizadas vêem os seus próprios problemas enquanto problemas médicos, mas nós como terapeutas temos que ver todos os problemas de uma forma bem mais ampla. Isso não significa que, se alguém sofre de depressão clínica, não iremos ajudá-las a obter a medicação. Mas como terapeuta familiar que tem trabalhado muito com mulheres, eu vou perguntar não apenas sobre o contexto familiar e de relacionamento, mas também entender a perspectiva do cliente sobre o mundo e sobre gênero – como as mulheres se vêem a si mesmas.
Passei várias décadas fazendo este trabalho; e quando comecei, ninguém chegava dizendo: “Eu sou bipolar”. Você nunca ouvia isso. Ninguém estava fazendo auto-diagnóstico. Com o tempo trabalhando, as mulheres chegam dizendo: “minha mãe pensa que eu sou bipolar”.
Eu não gosto que as pessoas se chamem a si mesmas com um diagnóstico. Elas não dizem “eu tenho transtorno bipolar” hoje em dia. Elas dizem: “Eu sou isto, eu sou aquilo”. Nos anos 80, havia um livro chamado Mood Swings, e alguns clientes e seus pais ou parceiros liam estas coisas e diziam imediatamente: “Oh, se você está mais zangado hoje do que no último dia, isso deve significar que você tem mudanças de humor, e isso significa que você é bipolar”.
Para mim, como terapeuta, trata-se de descobrir o contexto em que essas idéias surgiram. O que está acontecendo lá? Às vezes a mulher se sente justificadamente zangada, mas seu parceiro ou seus pais dizem: “há algo de errado com isso, e isso significa que você tem mudanças de humor”, o que significa um diagnóstico. É assim que a emoção é medicalizada.
Não estou dizendo que não exista tal coisa como bipolar. Quando se toma uma posição como esta, as pessoas sempre criticam; não é tão extremo quanto as pessoas supõem. Como terapeuta, você tem que se aprofundar o suficiente para entender o contexto do que o cliente está trazendo.
Dhar: Portanto, a cultura terapêutica não é apenas psiquiatria, mas uma narrativa social e cultural maior que existe, mudando a nossa autodefinição. Tenho estudantes que entram dizendo: “Sou isto ou sou aquilo (um diagnóstico), mas meu terapeuta não me dá um diagnóstico, mas sei que sou isto”.
Becker: Existem outros conceitos, também, não apenas diagnósticos. Eu tive clientes dizendo: “Estou me sentindo realmente terrível esta semana. Estou com pena de mim”. De onde vem a ideia de que as mulheres, quando estão tristes ou chateadas com algo que está acontecendo, devem ter pena de si mesmas? O aspecto ter pena de si próprio é depreciativo.
Para um terapeuta, não ficar curioso sobre isso é problemático. Se eu entendo algo sobre socialização de gênero, então eu vejo que aquela mulher que me traz essa ideia traz todo um mundo de associações de gênero.
Dhar: A primeira coisa que fazemos quando algo acontece é olhar para dentro e olhar para as nossas emoções e não para as questões maiores, externas, sistêmicas. Por que você acha que estas narrativas psicologizadas ou terapêuticas se tornaram tão poderosas e difundidas? É uma questão do que elas se beneficiam?
Becker: Em primeiro lugar, certamente há um benefício para as profissões psicológicas. Há um benefício na medicalização dos problemas humanos. Não há dúvida sobre isso. Quando o Manual de Diagnóstico e Estatística saiu pela primeira vez, ele tinha menos de um centímetro de espessura e agora está tão inchado que qualquer coisa pode ser chamada de problema psicológico. As profissões se beneficiaram muito, e o número de profissões psicológicas proliferou. Você tem aconselhamento profissional e assistente social, que costumavam ser um tipo diferente de profissão.
A outra parte é sobre a natureza do gênero das ideias sobre emoção, porque as mulheres sempre foram as principais candidatas à psicoterapia, aos livros de autoajuda e ao aconselhamento psicológico. Com a Oprah e outros, tornou-se popular falar sobre problemas que tinham sido ocultados do ponto de vista público. Além disso, há a veneração da ciência – a partir do século XIX, tem havido uma enorme cientificação de todos os fenômenos. Isto também influenciou a medicalização.
O próprio Freud nunca quis que a psiquiatria se tornasse uma profissão médica. Mas, nos Estados Unidos, foi decidido que era preciso se tornar um médico para se tornar um psiquiatra.
Dhar: Recentemente, você escreveu sobre a ausência de contexto na terapia feminista, a qual, você escreve, ficou desdentada. Você poderia falar mais sobre isso?
Becker: Em certo sentido, não existe hoje nenhuma terapia feminista, nenhuma pessoa que se intitula terapeuta feminista. Há pessoas que são feministas que fazem psicoterapia, mas isso é diferente.
No início, havia a conscientização – um fenômeno de classe média e branca. Esta era uma crítica à terapia para as mulheres – queremos realmente que as pessoas olhem para dentro e não para fora, para a origem de seus problemas? Muito rapidamente, as ideias que a conscientização trouxe para a terapia, que estava trazendo o contexto social para dentro do consultório de terapia e ajudando as mulheres a alcançar um maior ativismo fora do consultório, rapidamente se tornaram subsumidas à medida que a profissionalização tomou conta.
Foi um período bastante curto. Hoje, para as mulheres, o trauma tornou-se a palavra de ordem. Trauma e mulheres se tornaram um pacote que muitos terapeutas que se consideram feministas consideram estar juntos – “Vamos descobrir como você foi traumatizada”.
Agora, falar de eventos traumáticos se tornou muito mais estigmatizado, assim como ter problemas psicológicos, o que é muito útil. Mesmo nos anos 80, era raro que as terapeutas perguntassem a uma mulher se ela tinha sido abusada sexual ou fisicamente. Agora é rotina. É uma boa notícia que estes problemas saiam do armário e que o contexto social e social dos problemas psicológicos seja visível.
Dito isto, quando tudo no mundo é rotulado de traumático, há uma perda de sentido. Se eu estou traumatizada porque tenho muitas mensagens de texto em vez de ter sido prisioneiro de guerra… São coisas que hoje em dia são rotuladas de traumáticas, e a idéia de trauma perdeu sentido.
O outro problema é que aqueles que praticam terapia, particularmente nos Estados Unidos, assumem que todo desastre induz a traumas em todos. Este não é o caso. Por exemplo, depois dos tsunamis que aconteceram há uma década, os psicólogos americanos passaram a oferecer ajuda psicológica às vítimas de trauma. As pessoas diziam: “não temos casa, calor, e a família não tem comida”. E você está falando comigo sobre estar traumatizado!”.
Os acontecimentos do 11 de setembro foram lançados firmemente dentro da narrativa dos traumatismos. Mesmo dez anos mais tarde, o psicólogo americano da Associação Americana de Psicologia precisou colocar em questão uma apologia de pesquisa para todo o trabalho psicológico que insistia que todos iriam ficar traumatizados. Todos os que tinham testemunhado, ou visto na TV, ou as crianças expostas – todos iriam sofrer. A pesquisa descobriu que esta era na verdade uma porcentagem muito pequena da população. Mas agora, quando a pesquisa for feita, uma alta porcentagem da população dirá que passou por pelo menos um ou mais eventos traumáticos em sua vida.
Dhar: Está ligado à idéia de Ian Hacking do conceito de “looping” – uma narrativa popular que muda a sua autodefinição e, em seguida, a sua experiência. Eu me pergunto se trauma é a próxima grande coisa depois da narrativa de medicalização. Você pode dar exemplos de como especificamente o trauma foi cooptado e usado para medicalizar ainda mais os problemas das mulheres?
Becker: No DSM III, os eventos que eram causadores do TEPT tinham que ser considerados fora do âmbito da experiência humana. Muitas feministas protestavam para que estes critérios fossem ampliados para que a experiência das mulheres em relação ao abuso sexual e físico fosse incluída. Inicialmente, eu me sentia realmente tomada por isso porque estava estudando o diagnóstico limite, que não podia aceitar, e o TEPT era o único diagnóstico com causas situacionais externas reais. Eu pensava, “isto é maravilhoso”. Então, expandimos o diagnóstico. E mudei a minha posição.
Eu fiz um giro completo 360º e fiquei horrorizada com a freqüência com que o diagnóstico de TEPT era apenas um tapa nas mulheres. Elas não preenchiam todos os critérios. Não quer dizer que não devamos tomar nota do abuso e de seus efeitos nocivos, mas se tornou mais uma ferramenta para medicar o sofrimento das mulheres. É assim que eu penso sobre a narrativa de trauma que alimenta o diagnóstico de TEPT.
Houve uma pesquisa fantástica feita por Jeanne Marecek e Diane Kravitz nos anos noventa, onde entrevistaram aquelas que se chamavam terapeutas feministas. Elas diziam: “Este é o único diagnóstico que eu já dei. Não é que eu o dê a todas as mulheres”. Eu digo às pessoas que você tem TEPT, e que esta é uma reação normal ao trauma”. Em primeiro lugar, os sintomas do TEPT não são uma reação normal ao trauma; caso contrário, não estaríamos chamando isso de transtorno. O TEPT como diagnóstico havia sido muito ampliado.
Dhar: O TEPT sendo uma reação normal ao trauma não se traduz quando olhamos para outros lugares do mundo.
Becker: Não, culturalmente é simplesmente um terrível absurdo
Dhar: E a segunda questão é que precisamos de verbalização – que falar de trauma é a única maneira saudável de lidar com ele e processá-lo. Você tem que ir a um profissional. Simplesmente, isso não funciona assim.
Becker: Não. Como culturas, nós decidimos o que é normal e o que não é. Derek Summerfield fala sobre isso – em uma sociedade, decidimos o que dizemos que devemos suportar ou não.
Após o bombardeio de Londres, os londrinos não estavam se chamando traumatizados. Não havia nenhuma linguagem, não havia nenhuma narrativa para isso. Havia uma atitude de manter a calma e continuar indo em frente. Mesmo na guerra, o bombardeio era considerado uma humilhação. Tudo isso era terrível, mas era tão diferente de nossa resposta ao 11 de setembro – um discurso diferente.
Dhar: Em Uma nação sob estresse, você escreve que as disciplinas-psi se concentram nos efeitos do estresse, em estar sob estresse, e não sempre nas causas. Você escreve que nossa cultura individualista desempenha um papel. Você poderia dizer mais?
Becker: Fazendo uma ponte entre o trauma e o estresse, ambos os conceitos agora compartilham o mesmo tipo de problema. A causa e o efeito são conjugados de uma forma que os torna um só, mas é na resposta emocional em que nos concentramos. Portanto, o que o estressa e sua reação a ele são ambos ‘estresse’, mas nós nos concentramos na sensação de estar estressado.
No livro, eu falo sobre esta louca ideia americana de equilíbrio. As mulheres são alvos deste discurso de estresse. Por exemplo, você é uma mãe trabalhadora que faz trabalho sem vínculos trabalhistas ou uma mulher profissional. Este discurso de equilíbrio se aplica a todas igualmente, mesmo que os estressores sejam bem diferentes. A mulher profissional que é CEO pode ter uma babá e não está na mesma posição que a mulher que trabalha em turnos loucos, sem aviso prévio e, portanto, não podendo cuidar das crianças. Mas devemos alcançar um equilíbrio entre o que estamos fazendo lá fora, o que estamos fazendo na família, e cuidar muito bem de nós mesmos, não importa quais sejam os estressores externos, qual seja o contexto de nossas vidas. A idéia é que, se pudermos fazer isso, não seremos estressados e irritados e seremos capazes de cuidar de tudo.
O cuidado tem sido uma província feminina neste país, particularmente desde a industrialização. Como as mulheres de classe média inundaram o local de trabalho nos anos 80 e posteriormente, a expectativa de cuidados não mudou. Mas agora, a expectativa de equilíbrio se tornou outro peso sobre os ombros das mulheres.
Eu posso me usar como exemplo. Eu nunca me chamei de estressada o tempo todo. Eu não tinha dinheiro. Eu era uma mãe solteira. Eu estava fazendo meu doutorado e cuidando do meu filho, de um cachorro, de uma tartaruga, de tudo o mais. E minha expectativa era de que eu fazia tudo perfeitamente. Assim, passamos a esta idéia de equilíbrio, de que deveríamos ser capazes de fazer malabarismos com várias coisas. Se não conseguirmos, a culpa é nossa. Culpamo-nos a nós mesmos e deveríamos comprar mais commodities para nos ajudar. Se você é pobre, você não tem tempo, dinheiro ou apoio para fazer as coisas de cuidado que a cultura de classe média nos diz que devemos fazer.
Dhar: É aí que entra a narrativa do autocuidado. Tenho que contar aos meus alunos que as velas em um banheiro não vão resolver os problemas que emergem da pobreza.
Becker: E quando chamamos isso de estresse, nós então achatamos isso. Se dizemos que estamos estressados, então é meu problema resolver.
Dhar: Então, o estresse é uma maneira de individualizar isto? E então o diagnóstico do limite para o TEPT também são maneiras?
Becker: Muitas das mulheres que são diagnosticadas no limite são mulheres que sofreram abuso extremo, negligência e invalidação. O estresse é uma ferramenta não-diagnóstica para aquelas mulheres que, como muitas de nós, tomam nossas deixas da cultura popular.
Dhar: Sim, eu tenho um bebê de três semanas, e sempre que me sinto sobrecarregada a minha mente vai para a depressão pós-parto. Tenho lido tantas críticas ao diagnóstico. Além disso, tenho um tornozelo quebrado, estou longe de casa, e preciso ir ao trabalho. Mas apesar de saber sobre estes importantes fatores externos, mesmo como psicóloga crítica, a depressão pós-parto é o conceito que continua voltando à minha cabeça. Mesmo se você estiver ciente deles, o poder destas narrativas é forte!
Becker: Se estamos apenas estressadas, nós nos culpamos por não cuidarmos melhor de nós mesmas. Então não há necessidade de ir lá fora e perguntar: “Por que ainda somos a única nação industrializada ocidental que não tem qualquer licença familiar remunerada”?
E as mulheres mais estressadas não têm tempo para o ativismo. Esta é outra parte do problema: “Estou muito estressada para ir lá fora”. Não tenho tempo para chamar o meu deputado”. É uma forma de aliviar as nossas consciências. Podemos dizer: “Estou estressada; vou colocar algumas velas, tomar o banho de espuma, tomar mais suco de couve”. Há mulheres em nosso país que não têm a opção de fazer essas coisas ou de ter qualquer ajuda. E como você sugere, não estamos olhando para a comunidade como você faria se estivesse de volta à Índia.
Dhar: Há uma conversa recente sobre os determinantes estruturais da saúde mental, sobre como coisas como pobreza, violência, racismo podem ser psicologicamente prejudiciais. Pergunto-me se isso será cooptado e absorvido – se for apenas um discurso simpático, e a resposta for novamente a terapia individual. O que você acha?
Becker: Isso é o que me preocupa. Veja o que aconteceu nos bairros pobres do sistema escolar público. Nós entendemos a discriminação, os efeitos da pobreza, do bullying. Sabemos que estas coisas contribuem para que uma criança não se saia bem na escola ou aja bem. O que fazemos? Chamamos a mãe, apenas a mãe.
É o problema da mãe. Ela tem que levar a criança à terapia, que muitas vezes não é uma terapeuta familiar. Então, a criança está com o terapeuta, que é muito compreensivo durante 45 minutos por semana e depois volta para o mesmo ambiente. Portanto, a mãe não tem apoio ou compreensão do que está acontecendo na terapia porque ela não está incluída nisso.
Ao estudar o estresse, encontrei alguns artigos populares realmente loucos sobre pobreza e depressão. Isto me preocupou muito ao ver como estas coisas estão sendo cooptadas pelo estabelecimento médico – “Vamos tratar a depressão. Tantas pessoas que são pobres estão deprimidas”. É o mesmo que o trauma e os problemas de estresse – a causa externa passa para segundo plano para os efeitos emocionais posteriores.
É muito mais fácil lidar com os efeitos. Não temos que lidar com discriminação, pobreza, racismo, com diferenças nos dólares dos impostos que vão à escola em bairros pobres. Isto cria um ambiente perfeito para individualizarmos estes problemas.
Dhar: Já que estamos falando em ignorar questões sistêmicas maiores, passemos à psicologia positiva, que costumava ser muito popular. Você tem levantado preocupações sobre a psicologia positiva. Você poderia elaborar?
Becker: Assim como com o TEPT, inicialmente com a psicologia positiva, você pensaria que a psicologia estaria se voltando para o contexto. Jeanne Marecek e eu argumentamos que a psicologia positiva reforçou a profissão de psicologia em um momento em que grandes avanços estavam sendo feitos através de cuidados administrados, assistentes sociais se tornando terapeutas, a profissionalização do aconselhamento etc. O problema era que a psicologia positiva é tão acontextual como qualquer outra forma de psicologia individual.
A psicologia positiva é mais uma das muitas “psicologias de ajuste” que amamos nos Estados Unidos. Por psicologia de ajuste, quero dizer aqueles movimentos como o movimento de higiene mental no qual o objetivo era de produzir estes indivíduos felizes, saudáveis e “bem ajustados”. Por exemplo, uma mulher que pode cuidar de si mesma e de sua família sem muitas reclamações e raiva. Isso seria um ajuste ideal.
Então o problema é que se você falar sobre “que tipos de famílias resultam em crianças que florescem”, e essa é a citação de Seligman sobre psicologia positiva, você não pode fazê-lo sem pensar no meio ambiente, nas instituições e no contexto social. A família nuclear é um ambiente muito pequeno demais para ser analisado.
Fui treinada em terapia familiar multidimensional, que olha para o contexto muito maior das famílias e suas conexões com instituições mais amplas. Não podemos simplesmente nos concentrar na dinâmica de uma família e depois dizer: “Vamos ajudar essa família a criar bem-estar entre as crianças”.
Outro exemplo é o enorme contrato de Martin Seligman com o governo dos Estados Unidos para trazer psicologia positiva para os militares. Por exemplo, você tem um soldado que vai para a guerra, que tem medo de ser morto, que presumivelmente vai matar outras pessoas e vê-las morrer. Você vai inoculá-los de alguma forma com psicologia positiva contra estes horrores. Mas não falamos de guerra ou socialização masculina e de como criamos guerreiros. Vamos apenas treinar pessoas para serem mais resilientes.
O conceito de dano moral é outra internalização de um problema muito maior. Quando os militares falam de dano moral, é individualizar um problema que é criado porque há a existência da guerra e essas decisões políticas. Falamos apenas do dano moral aos soldados, e qualquer coisa que use a linguagem medicalizada do dano nos traz para a terra do trauma. Mais uma vez, toda nossa discussão, em muitos aspectos, apenas se curva sobre si mesma.
Um artigo recente publicado na revista World Psychiatry advoga por uma psicoterapia “de volta ao básico” que prioriza a expressão emocional. Contra o potencial de terapias baseadas na “exposição”, como a TCC, para se tornar demasiado intelectual, tecnicamente forte e esvaziada de emoções, o psiquiatra John Markowitz explora a eficácia clínica e a importância da Psicoterapia Breve de Apoio.
“As pessoas se deixam levar por aquilo que é funcional, porém às vezes é o básico o que importa”. Os psicoterapeutas, como seus pacientes, enfrentam o desconforto e podem se esquivar diante de emoções fortes. No entanto, o foco nas emoções fortes está no cerne da psicoterapia. Isso é o que uma boa terapia, e particularmente uma boa psicoterapia de apoio, deve fazer”, explica Markowitz.
Apesar da influência crescente das terapias cognitivo-comportamentais ( TCC), alguns profissionais ainda acreditam na eficácia terapêutica de abordagens centradas na pessoa ou humanistas, até mesmo criticando o status da TCC como o “padrão ouro”.
As formas de terapia centradas na pessoa ou humanistas tendem a privilegiar a autonomia e a dignidade do cliente, a relação terapêutica, a expressão emocional e a sua validação – atuando, essencialmente, como um guia de cuidado para a auto-exploração do cliente.
O artigo atual, do psiquiatra John Markowitz, defende um retorno a esses valores e práticas terapêuticas fundamentais. Markowitz examina as evidências para a eficácia da Psicoterapia Breve de Apoio (PBA) e afirma que abordagens mais “técnicas-pesadas” como a TCC podem drenar a emoção da terapia.
De acordo com Markowitz, de nove ensaios terapêuticos controlados e randomizados que foram feitos ao longo dos anos, sete descobriram que “a PBA funcionou bem como os tratamentos favorecidos”, apesar de ser uma “condição de comparação de baixo custo” usada principalmente para avaliar outras abordagens. Estes ensaios examinaram a eficácia terapêutica para transtornos de humor e ansiedade, incluindo a depressão.
Os dois estudos em que a PBA não funcionou tão bem quanto os tratamentos favorecidos ainda eram um “segundo lugar confiável e quase imperfeito”. Assim, Markowitz argumenta que a PBA deveria ser incluída nas diretrizes de tratamento da depressão.
Explicando os princípios da PBA, Markowitz afirma que ela se baseia em pesquisas sobre fatores comuns e compartilha semelhanças com outras formas de psicoterapia “de apoio”, tais como terapias centradas na pessoa e humanistas, que foram em tempos a forma mais comum de terapia. Carl Rogers e Jerome Frank são discutidos como figuras importantes nesta linhagem.
Pesquisas sobre fatores comuns sugerem que cinco elementos “centrais” diferentes tendem a ser responsáveis pelo sucesso da terapia:
A estimulação afetiva/emocional
Sentir-se compreendido pelo terapeuta e desenvolver uma aliança terapêutica
Fornecer uma estrutura para o entendimento, assim como um ritual terapêutico
Mostrar otimismo em torno da melhoria
Incentivar experiências de “sucesso
Em particular, Markowitz acredita que a psicoterapia deve retornar ao significado da emoção. Ele argumenta a importância das terapias que enfatizam a regulação e expressão emocional.
Em termos de técnica terapêutica, esta abordagem é simples, mas profunda e mais difícil de praticar do que de entender. Ela envolve a escuta ativa, normalizando e validando emoções difíceis, como a raiva, e encorajando a expressão emocional. O objetivo terapêutico é ajudar os indivíduos a se sentirem mais confortáveis e tolerarem emoções fortes.
A crença subjacente é que isto pode melhorar a qualidade de vida e reverter tendências que podem exacerbar coisas como a depressão – por exemplo, pessoas com ansiedade e depressão “frequentemente evitam confrontos interpessoais, tendo dificuldade em afirmar seus desejos e lutando para dizer não”.
Através da normalização e do incentivo à expressão emocional na terapia, os indivíduos podem se tornar mais confortáveis para se expressar e afirmar a si mesmos.
Abordagens baseadas no “efeito”, como a PBA, podem ser contrastadas com abordagens baseadas na “exposição”, como a TCC, que Markowitz acredita que às vezes pode ser problemática:
“Um perigo com psicoterapias mais sofisticadas e mais técnicas é que elas podem se tornar exercícios mecânicos, intelectualizados e com drenos de afeto. Uma razão para o aumento das chamadas “terceira onda” de terapias cognitivo-comportamentais tem sido o reconhecimento da sequela dos efeitos dos tratamentos baseados na exposição”.
Markowitz conclui:
“Existem outros tratamentos focados nos efeitos, incluindo a psicoterapia interpessoal, psicoterapias psicodinâmicas bem conduzidas e terapias baseadas na mentalização. O PBA é o cerne destas abordagens. Ele não tem e não precisa de adornos. Ela apenas se cola aos sentimentos.
Ao deixar o paciente liderar e concentrar-se em suas emoções, ela maximiza a autonomia do paciente. O terapeuta não atribui nenhum dever de casa e não aplica nenhuma estrutura além do foco afetado. Uma PBA transportável, disseminável, intervenção barata, focada no afeto merece um segundo olhar”.
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Markowitz, J. C. (2022). In support of supportive psychotherapy. World Psychiatry, 21(1), 59-60. (Link)
Para desenvolver algumas das questões que nos últimos anos têm sido objeto do meu interesse e investigação, eu resolvi tomar uma matéria recentemente publicada em um famoso veículo da impressa do Reino Unido.
Estamos nos últimos anos sofrendo dos retrocessos do processo de reforma psiquiátrica brasileira. A perspectiva é que a atual política para a assistência em saúde mental não perdure após as eleições de 2022.
Não obstante, as principais forças políticas em jogo, hoje, no campo da assistência em saúde mental, continuarão provavelmente presentes após as eleições.
Estamos nós preparados para enfrentar o modelo biomédico da psiquiatria, que é ontem e hoje o modelo dominante?
Será que iremos considerar que a “psiquiatria pós-asilar”, objeto da minha tese de doutorado na Universidade Católica de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgique), em 1994, é essa com a qual estamos convivendo nas últimas décadas?
É possível haver a atenção psicossocial propriamente dita, mantendo o modelo biomédico como a sua referência hegemônica?
O que é o bio-psíquico-social?
O modelo biomédico da psiquiatria é nefasto, causa problemas incomensuráveis, conforme o que oficialmente é dito.
….
Em tela uma matéria publicada recentemente, em 9 de fevereiro de 2022, no respeitável jornal britânico The New Statesman. Uma matéria assinada pela jornalista Sophie McBain. A seguir, trechos dessa matéria intercalados por comentários meus.
“Numa tarde de dezembro de 2004, Samantha deixou a sua casa no norte da Inglaterra e caminhou até o rio vizinho. Ela tentou não pensar em seus cinco filhos pequenos, ficando sozinhos em casa. Ela queria se jogar nas águas; ela não sabia nadar.
“Alarmada pela ausência de sua mãe, a filha de 11 anos de Samantha discou o 999, e a polícia a encontrou na margem do rio. Ela foi transferida para um hospital psiquiátrico, onde passou quatro dias enroscada em uma bola, chorando. Ela já era conhecida pelos serviços sociais: Samantha teve um ex-namorado violento e havia sido abusada quando criança e aos 12 anos foi atendida. Era difícil saber como ser uma boa mãe quando ela mesma nunca tinha tido a mãe.
“Pouco tempo depois, um psiquiatra, solicitado pela autoridade local para avaliá-la, diagnosticou a Samantha com transtorno de personalidade limítrofe. No ano passado, Samantha leu o relatório para mim, via Zoom. Por essa altura, já estávamos falando há três meses. Ela era calorosa e solícita – ‘Mas de qualquer forma, como você está?, ela sempre me perguntava – mas agora a sua voz era cheia de raiva. O relatório observava a sua ‘falta de senso de responsabilidade pessoal’ e ‘pobre controle de impulsos’; acusava-a de ‘fingir um transtorno mental enquanto se encontrava internada no hospital’.
” ‘Mas eu não sou assim, não sou assim’, ela se lembra de dizer ao seu advogado, aterrorizada. Uma assistente social lhe disse que ela precisava alcançar uma maior ‘estabilidade emocional’. (‘Se você pudesse fechar os olhos por um segundo e imaginar alguém levando os seus filhos embora’, perguntou-me Samantha, ‘como você se sentiria?’) Mas a psiquiatra considerou o seu transtorno ‘intratável’, e os seus filhos foram retirados dela.
“[…] Em 2015, dez anos depois que os seus filhos foram retirados dela, um psicólogo lhe deu um novo diagnóstico: o complexo transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Confirmou o que Samantha estava se dando conta: de que não havia nada de errado com a sua personalidade, que os seus problemas podiam estar todos ligados ao que havia acontecido com ela. ‘Apesar de ter sido um alívio, eu fiquei realmente furiosa’, disse-me ela. ‘Porque aquele rótulo foi usado para me prejudicar e a meus filhos. Ele destruiu as nossas vidas’.
“Por essa altura, ela voltou a entrar em contato com quatro dos seus filhos, que muitas vezes tinham fugido de seus lares adotivos para estar com ela. Ela fazia campanha sobre saúde mental e estava dirigindo um grupo de apoio de colegas. Ela também tinha se juntado ao Twitter, onde é uma presença com opiniões, e entrou em uma conversa – bem, uma discussão no início – com uma psicóloga que lhe deu uma nova visão de mundo. E se o diagnóstico de Samantha sobre o complexo TEPT também não estivesse correto? Ela tinha sido suicida, sim: mas quem em sua posição não teria se sentido desesperada? Alguma vez ela tinha estado mentalmente doente?”
A conversão do sofrimento psíquico de Samantha em doença mental é algo que sabemos ser a lógica da medicalização psiquiátrica. É o que ocorre em nosso cotidiano. Que é acentuada nesses tempos da pandemia do Covid-19. Como bem nos lembra Sophie McBain, a jornalista:
“[…] Recentemente, tem havido uma ampla cobertura de uma crise de saúde mental em desenvolvimento. Dados do governo sugerem que, desde o início da pandemia, o número de adultos com depressão dobrou para um em cada cinco. Os encaminhamentos de crianças também dobraram: 200.000 menores de 18 anos foram encaminhados aos serviços de saúde mental do NHS em Abril-Junho de 2021. Será que a Covid desencadeou uma onda paralela de doença mental – ou será que o sofrimento tão generalizado é uma resposta natural aos meses de isolamento, incerteza e contagem diária de mortes? O debate na psiquiatria é em parte uma discussão sobre como lidar com esta pandemia sombria: alguns argumentam que o que parece ser uma emergência sanitária é melhor entendido como infelicidade em massa.”
“A psicóloga Samantha encontrada no Twitter foi Lucy Johnstone. Ela faz parte de um grupo unido de psiquiatras, psicólogos e pacientes britânicos que rejeitam a ideia de doença mental. Eles/elas argumentam que os diagnósticos são cientificamente inválidos e prejudiciais porque patologizam reações compreensíveis e sugerem falsamente a existência de soluções médicas. ‘Doença mental não é um conceito válido’, disse-me Johnstone – em vez disso, deveríamos estar falando de ‘sofrimento psíquico’. Ela argumenta que a linguagem medicalizada dos transtornos e sintomas cria uma falsa distância entre os sentimentos de uma pessoa e a causa de seu sofrimento, seja trauma, abuso, pobreza, ou mesmo expectativas culturais irrealistas.”
Para que você tenha um melhor entendimento do que Lucy Johnstone está dizendo, recomendo a leitura da manifestação oficial da Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia, um documento de mais de 400 páginas, o Power Threat Meaning Framework (PTMF). Esse documento está fortemente fundamentado em centenas e centenas de evidências científicas.
A abordagem do PTMF tem como background um modo muito particular que psicólogo(a)s e terepeutas do Reino Unido compreendem e abordam os problemas dos pacientes, que é conhecido como “Formulações“. A “formulação” é entendida como um processo dinâmico que explora o significado e a importância do processo colaborativo e reflexivo entre o clínico e o(a) s paciente(s) na construção da narrativa sobre o sofrimento psíquico em questão, dando conta dos contextos relacionais e sociais. Chama a atenção, pelo que eu saiba, ser uma forma de abordar clinicamente o sofrimento psíquico que é desconhecida entre nós. O PTMF é apresentado de forma mais sucinta no livro de Lucy Johnstone em coatoria com Mary Boyle.
“[…] Depois de falarmos pela primeira vez no Zoom, ela [Lucy Jonhnstone] me enviou um link para um artigo relatando o aumento da doença mental entre aqueles que haviam perdido renda durante a pandemia. O governo respondeu afirmando planos de investimento na saúde mental; o ponto de vista de Johnstone é que se deveria enfrentar o problema raiz – a pobreza, não a doença. Ela enfatiza que as pessoas em dificuldade merecem apoio – mas que as doenças mentais não existem da mesma forma que as físicas. ‘Se você diz a alguém, como um fato estabelecido, você tem transtorno bipolar, você tem esquizofrenia, você tem um transtorno de personalidade’, realmente, você está dizendo algo falso. E isso tem consequências para a identidade das pessoas, para a vida, para os seguros, para os relacionamentos. Essa é a maior crise do nosso tempo, em alguns aspectos’ “.
A matéria da jornalista prossegue lembrando o quanto o Reino Unido é uma sociedade que em muitos aspectos é pioneira internacional em saúde mental: tem uma comunidade ativa de sobreviventes (uma rede de pacientes atuais e antigos), uma história de pensamento radical e um sistema de saúde que é receptivo a abordagens não-médicas. E o SUS? É ele receptivo a abordagens não-médicas no campo da saúde mental? Como?
Lá também há como ela diz “uma amarga guerra cultural – entre aqueles que querem abandonar o modelo da doença psiquiátrica e aqueles que usam de todos os meios para conservar esse modelo de abordagem do sofrimento psíquico.” Lembra que a mídia social tem dado aos usuários uma voz proeminente.
Ela lembra que há hoje uma forte polarização: de um lado os que acusam a quem questiona o modelo biomédico da psiquiatria de colocar os pacientes em risco; por outro lado os que acusam os partidários do modelo biomédico de estarem envolvidos em uma falsa ciência e de intimidarem os seus críticos. Muitos foram os que a aconselharam não fazer a matéria jornalística, porque ela estaria mexendo em um vespeiro. Abro um parêntesis para dize que eu como editor do Mad in Brasil sei bem o que é isso!
“[…] Fizemos progressos decepcionantes ao buscar descobrir a base neurobiológica para muitas doenças mentais [afirma a jornalista]. Encontramos explicações para doenças degenerativas como Alzheimer ou Parkinson; mas nenhum exame médico pode confirmar uma condição como depressão ou esquizofrenia. Em vez disso, os psiquiatras frequentemente fazem o que seus pacientes lhes dizem, ou o que eles observam. Eles fazem diagnósticos com referência ao Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, agora em sua quinta edição (DSM-5), ou a um manual similar compilado pela Organização Mundial da Saúde, que ambos agrupam os transtornos de acordo com grupos de sintomas. Os livros são deliberadamente neutros sobre as causas dos transtornos.
” ‘Quando usamos a palavra ‘diagnóstico’, as pessoas imaginam que você está identificando uma causa’, disse-me o psiquiatra Sami Timimi. Timimi é membro da Rede de Psiquiatria Crítica, que foi fundada em Bradford em 1999 e agora conta com cerca de 350 psiquiatras, a maioria dos quais estão no Reino Unido. Identificar uma causa nem sempre é o foco da medicina geral (por exemplo, uma condição como enxaqueca), mas muitas vezes é o objetivo: é por isso que você pode sentir alívio, ao apresentar dor no peito, saber que você está sofrendo de refluxo gástrico em vez de um ataque cardíaco. ‘Mas em psiquiatria, o diagnóstico é apenas um termo descritivo. E é um termo descritivo ruim. Portanto, acho que não podemos fazer nenhum progresso até nos livrarmos do termo diagnóstico’ , disse Timimi.
[…] O fator mais complicado a considerar é o que se sente ao ser informado de que se tem um transtorno mental. Como diz Timimi: ‘O objeto de estudo, que é a mente, não é o mesmo que o objeto de estudo quando se trata de um rim’. O rim não se preocupa com o futuro. O rim não vai me abandonar se eu ler um conjunto de resultados renais’. Ele observou que o uso da linguagem pelos psiquiatras pode ter um enorme impacto na autopercepção de uma pessoa: há uma grande diferença, por exemplo, entre ser-lhe dito que você é ambicioso e ser-lhe dito que você está sofrendo de ilusões de grandeza”.
A jornalista chama a atenção para as diferenças da contestação ao modelo biomédico da psiquiatria feita nos anos 60 e 70 do século passado com o que vem após os anos 1980. Reconhecer essa distinção é muito importante para nós brasileiros, se olharmos para uma parte significativa da literatura dominante que circula entre nós a respeito da reforma psiquiátrica.
A referência dominante entre nós têm sido as lutas por reforma psiquiátrica dos anos antes do DSM-III e da explosão do mercado de psicofármacos. Laing, Cooper, Basaglia, senão o filósofo M. Foucault, eles que não foram contemporâneos da reforma psiquiátrica oficial.
“[…] O modelo da doença psiquiátrica nunca foi incontestável, mas a influência dos movimentos críticos tem flutuado. Os antipsiquiatras dos anos 60 e 70 desenvolveram suas ideias em oposição à natureza opressiva da psiquiatria de então, com seus terríveis asilos. A partir dos anos 80, mais abordagens biológicas se tornaram ressurgentes. Uma nova geração de antidepressivos como o Prozac despertou esperanças de uma ‘cura química’; o Congresso dos EUA declarou a década de 1990 como a ‘Década do Cérebro’, investindo bilhões em pesquisas destinadas a resolver as doenças mentais.
“Os críticos de hoje apontam para o fracasso desta pesquisa e para a forma como as sucessivas edições do DSM continuam ampliando o escopo do diagnóstico. O argumento contra a doença mental é também um argumento contra o crepúsculo da missão da psiquiatria: outrora, apenas os mais desesperados eram vistos como sendo doentes mentais, mas se, como relata a ONG Mind, um em cada quatro britânicos experimenta um problema de saúde mental em um ano, será que agora estamos caracterizando mal os desafios da vida?”
A matéria fala da experiência piloto com o Diálogo Aberto que vem sendo patrocinada pelo próprio National Health System (NHS), o equivalente britânico do SUS. Eis algo para o futuro próximo, que o SUS patrocine experiências como a do Diálogo Aberto.
“[…]Os princípios são simples: a pessoa em crise, aquelas próximas a ela e um pequeno grupo de pessoal de apoio trabalham juntos para resolver o problema. O pessoal não discute os pacientes em sua ausência. E nas reuniões todas as perspectivas têm o mesmo peso. Pesquisas na Finlândia sugeriram que as pessoas apoiadas desta forma passam significativamente menos tempo no hospital, requerem menos medicação e têm menos probabilidade de recaída.”
Quanto ao uso de medicação. A matéria lembra, o que diz a psiquiatra britânica Joanna Moncrieff. As drogas psiquiátricas podem ser usadas, não como medicamentos que tratam supostamente de algum transtorno psiquiátrico, mas sempre como substâncias psicoativas que podem funcionar para aliviar temporariamente o sofrimento.
“[…] Nisto, Johnstone é influenciada pela psiquiatra britânica Joanna Moncrieff, que é fortemente crítica da forma como os psicofármacos têm sido pesquisados e vendidos. Ela acredita que devemos pensar nos psicofármacos não como ‘tratamentos’, mas como substâncias embotadoras que podem ter efeitos úteis (como a melhoria do sono) a exemplo das substâncias nocivas. Neste sentido, os psicofármacos estão mais próximos de uma droga como o álcool: algumas bebidas podem aliviar a sua ansiedade social, mas com um custo. “
Sabemos que a questão da medicação psiquiátrica é um dos componentes mais controversos do atual modelo biomédico de tratamento psiquiátrico. Sophie McBain entrevistou a psicóloga american Nev Jones. O MIB tem um artigo recentemente objeto de nossa resenha do que Nev Jones vem produzindo. Mas retornemos à matéria:
“A medicação continua a ser uma área litigiosa. A psicóloga americana Nev Jones observou que, dentro das comunidades ativistas, a ‘armadilha’ não é incomum. Jones, que está baseada na Universidade de Pittsburgh, sofreu psicose há mais de uma década quando se encontrava no final dos seus vinte anos e estudava para um doutoramento em filosofia, tendo-lhe sido diagnosticada a esquizofrenia. Levou anos para se recuperar, mas quando o fez, Jones decidiu dedicar a sua carreira ao estudo da psicose. Os profissionais de saúde mental não pareciam compreender a sua diversidade e estranheza, pensou ela, e eles presumem que o mesmo tratamento irá funcionar para todos.
“Quando falámos no Zoom, perguntei a Jones o que a tinha ajudado na sua recuperação. Ela não hesitou: ‘empowerment’ [empoderamento]. A pior parte de ficar doente tinha sido tornar-se uma doente psiquiátrica. ‘O problema não era: Você tem esquizofrenia, ou tem psicose … O mais profundo era perder todo o sentido na minha vida, todo o valor social. E a coisa que curava era poder entrar em conversas como um igual’.”
“Não foi a primeira experiência de esquizofrenia de Jones. Um parente também tinha sido diagnosticado com ela, e durante grande parte de sua vida foi incapaz de se comunicar. Jones ficou indignada porque aqueles críticos do diagnóstico e da medicação não consideravam os casos mais difíceis de resolver. ‘É preciso reconhecer que existe aqui um componente biológico. Estes pacientes não estão produzindo a extrema desorganização e associação que os psiquiatras descreveriam como as marcas de um distúrbio do pensamento realmente grave””.
O papel do biológico continua sendo problemático, disso todos nós sabemos. Negar pura e simplesmente o biológico é negar que as experiências traumáticas, por exemplo, literalmente remodelam tanto o corpo quanto o cérebro, comprometendo as capacidades de quem as sofre para o prazer, interações intersubjetivas, auto-contole e a confiança. Porém, uma coisa é afirmar que esse ou aquele transtorno psiquiátrico seja causado por um desequilíbrio químico no cérebro, outra coisa bem distinta é que as experiências de vida afetam positiva ou negativamente no cérebro e no corpo como um todo.
A respeito, recomendo a leitura de um livro que já figurou meses entre os bestseller do New York Times, The Body Keeps the Score [O Corpo Conserva as Marcas]. Como o subtítulo do livro diz: Cérebro, Mente e Corpo na Cura do Trauma. Considero que esse livro é da maior importância, é uma pena que não o tenhamos em português.
Por isso é que tratamentos como neurofeedback, meditação, esportes, artes, yoga, bem como psicoterapias que trabalham com as emoções e sua corporificação, para dar alguns exemplos, que são caminhos para recuperação – com forte base em evidências científicas -, ao ativarem a neuroplasticidade natural do cérebro.
As nossas experiências, muito em particular as primeiras, moldam as nossas vidas, enquanto corpo, mente e espírito, sabemos disso pelo menos desde Freud.
Como é muito bem é narrado pela famosa Ophra Winfrey, apresentando as suas experiências traumáticas na infância, e como elas impactaram todo o seu ser. Recomendo o seu livro em coautoria com o psiquiatra Bruce D Perry.
Mas voltemos à matéria jornalística em tela:
“Muitos psiquiatras concordam que é errado concluir que a biologia nunca é a causa subjacente da doença mental. Mas talvez o que causa mais dano seja quando um profissional impõe a sua visão de mundo a um paciente. Alguns ativistas me disseram [Sophe MacBain] que achavam que a psiquiatria crítica negligenciava (e até mesmo promovia) as pessoas que achavam útil um diagnóstico e tratamento médico; alguns acham que os debates acadêmicos ignoram as grandes questões enfrentadas por aqueles em crise – discriminação, pobreza, a luta para ter acesso a qualquer tipo de cuidado. Alguns psiquiatras já dizem que irão perguntar a seus pacientes se consideram útil um diagnóstico e seguir as suas orientações. O que parece ser uma questão científica – uma investigação sobre a natureza da doença – pode, em última análise, ser mais sobre o poder.”
Retornando ao papel do PTMF para a Samantha, ela com quem foi iniciada a matéria do The New Stateman. Como reconstruir uma narrativa que dê sentido ao que Samantha e os pacientes em geral sofrem? Como explorar os recursos disponíveis nas redes de interações sociais?
O PTMF é um exemplo para todos nós. Relembrando que não se trata de um discurso ideológico, do tipo de algo em moda atualmente entre nós: “ser contra a medicalização da vida”. Abordar o sofrimento psíquico, tendo compromisso com as “evidências cientificas” é da maior importância. O PTMF tem esse compromisso com as “evidências”; não se trata em hipótese alguma de mais um discuros ideológico.
“[…] Logo após a publicação do Power Threat Meaning Framework, Samantha decidiu aplicá-lo a sua própria vida. Foi a primeira vez que ela foi levada a contar a sua própria história. Ela escreveu sobre o abuso que sofreu e como ela havia formado ‘uma relação subserviente com um sistema psiquiátrico controlador a fim de ter acesso a apoio’. Uma das perguntas do PTMF era: ‘O que é que ela tem?’ ‘Quais são seus pontos fortes?’ Ninguém lhe havia perguntado isso. Ela escreveu sobre sua ‘inteligência e resiliência’, e sobre a sua ‘bela família’.
“Quando falávamos, o neto de Samantha estava frequentemente com ela. Ele nasceu em 2010, e ela se lembra que a sua filha o entregou a ela quando ele tinha apenas três dias de idade. ‘Porque meus filhos tinham sido levados, eu tinha pavor de me apegar a qualquer um ou a qualquer coisa. Mas ele apenas olhou para mim e deu este pequeno ‘yap’ e foi isso’. Ele a ensinou a amar.
“Samantha não acredita mais no diagnóstico e rejeita a idéia de que ela tem o transtorno de estresse pós-traumático; o trauma a havia afetado profundamente, ela reconheceu, mas também as suas experiências de desigualdade.
“[…] Clinicamente vulnerável, Samantha raramente saiu de casa nos primeiros 18 meses da pandemia, e quando o fez, muitas vezes se sentiu ansiosa. Ela ainda fala freqüentemente com a sua terapeuta, mas agora elas usam uma linguagem diferente. ‘Eu não tenho sintomas’, disse-me ela. ‘Sou uma pessoa normal que está respondendo e reagindo de forma compreensível. Isso me faz sentir humano novamente'”.
Como editor do Mad in Brasil, eu recebo alguns relatos de experiências de vida de pessoas a mostrar como sobreviver ao modelo biomédico da psiquiatria. Infelizmente, quando se pede para que coloque a sua experiência para o conhecimento do público, a reação é em geral o medo de se expor.
Com certeza que há muitas e muitas experiências dos profissionais em saúde mental, em particular no SUS, que são alternativas ao modelo biomédico da psiquiatria.
A esperança minha é que futuramente apareçam usuários e ex-usuários/sobreviventes organizados, que ajudem a se construir novas condições estruturais para a assistência em saúde mental.
Quem sabe? A palavra de ordem deixe de ser “reforma psiquiátrica” e passe a ser “reforma da assistência em saúde mental”!
Para isso, “placas teutônicas” terão que ser mexidas. Há muitos interesses em jogo para a manutenção do “status quo”.
Que os que hoje são oprimidos pelo sistema criado se rebelem e passem a ter voz ativa. Como a experiência dos que organizaram o suporte entre pares no Inner Compass Initiative ou Surviving Antidepressants. A ciência, atualmente, cada vez mais busca dar conta do know-how dos usuários, como vemos mostrando aqui no Mad in Brasil.
A Conferência Nacional de Saúde Mental irá enfrentar, de fato, o que é o “modelo biomédico” da psiquiatria entre nós? Como ele está institucionalizado?
Estarão os médicos/psiquiatras abertos a perder o seu atual “status quo”?
Estarão os usuários dispostos a mudar a sua condição de consumidores do modelo biomédico?
Que forças políticas contamos hoje para influir positivamente nesse debate?
É isso aí!!
……
Não deixe de ler o artigo da jornalista Sophie McBain.
A pandemia exacerbou a prevalência e a gravidade dos sintomas da depressão em estudantes que frequentam instituições de ensino superior (IES). Para investigar como as mudanças nas expectativas sociais, financeiras, políticas e acadêmicas afetam os estudantes, Sarah Van de Velde e seus colegas estudaram fatores que afetam os sintomas da depressão em estudantes universitários de vários países.
Naturalmente, é incrivelmente comum que os estudantes lidassem com a depressão mesmo antes de a pandemia entrar em ação. Os estudantes que frequentam as IES são empurrados para novos ambientes sociais e experimentam expectativas diferentes, muitas vezes com menos envolvimento dos pais e novos arranjos de vida. Mas então, a pandemia da COVID-19 levou a uma grande mudança para os estudantes – decidir entre o aprendizado remoto, ficar sozinho em um quarto, despedir-se dos amigos, ou não poder voltar para casa quando vivem em casas estudantis, pois eles protegem os entes queridos da exposição potencial.
“A vulnerabilidade dos estudantes a problemas de saúde mental pode ter aumentado adicionalmente durante a pandemia da COVID-19 à medida que os estudantes foram confrontados com medidas governamentais de bloqueio, além das medidas implementadas por sua IES”, escrevem os autores. “Estas medidas levaram a uma reorganização completa do ensino superior, incluindo a conversão de aulas presenciais em aulas on-line, o cancelamento parcial ou total de estágios, de trabalhos nos laboratório e de campo, bem como a adaptação dos métodos de avaliação às medidas de proteção da COVID-19”.
Van de Velde e uma equipe de pesquisadores construída com base em estudos anteriores que apontavam para a vulnerabilidade dos estudantes que frequentavam IES antes e durante a pandemia, comparando a saúde mental dos estudantes entre países através do COVID-19 Estudo do Bem-estar do Estudante Internacional (C19 ISWS). O C19 ISWS foi uma pesquisa realizada em 2020 que viu 99.689 estudantes respondentes de 125 IES em 26 países diferentes.
O que diferencia o último estudo dos anteriores é a discriminação das razões pelas quais os estudantes podem estar deprimidos, chegando ao porquê de sua saúde mental. Isto incluiu fatores socioeconômicos e sociodemográficos como idade, sexo, nível de educação de seus pais, grau de apoio social e sua “origem migrante” (não ser imigrante ou ser de primeira ou segunda geração). Além disso, os pesquisadores controlaram se os estudantes tinham ou não COVID-19 anteriormente ou no momento da realização da pesquisa, para evitar que os resultados fossem completamente distorcidos simplesmente pelo fato de os entrevistados estarem ou não doentes.
O estresse relacionado à COVID-19 também foi contabilizado. Os estudantes foram questionados sobre mudanças na carga de trabalho e pedagogia, expectativas percebidas, preocupação com seu sucesso e satisfação com as reações e apoio de suas instituições. Afinal, ficar doente é/foi apenas uma peça do quebra-cabeça para os estudantes que frequentam a IES – os alunos podem estar pensando em seu futuro em conjunto com o futuro do mundo, especialmente porque a COVID-19 trouxe uma transformação contínua para todos, sem mencionar a perda de entes queridos devido à doença. Dito isto, a pandemia não foi a única força de mudança durante a C19 ISWS. Os pesquisadores apontam a Turquia, o país com o maior nível médio de sintomas depressivos, como um exemplo:
“Por exemplo, na Turquia, onde encontramos os maiores níveis de sintomas depressivos, os estudantes já eram confrontados com as instabilidades políticas existentes e condições econômicas em declínio. Entretanto, a Turquia também estava entre os países onde o governo forneceu a menor ajuda financeira a seus cidadãos durante o período da COVID-19, resultando em um dos mais fortes aumentos nas taxas de desemprego juvenil na Europa. Além disso, as decisões do governo turco quanto ao fechamento do ensino superior foram pouco claras e instáveis, o que pode ter reforçado o sentimento de incerteza entre os estudantes”.
Os países com os mais altos níveis médios de sintomas depressivos foram a Turquia, África do Sul, Espanha, EUA e Reino Unido, nessa ordem. Por outro lado, estudantes dos países nórdicos (Islândia, Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia) e Françarelataram os menores níveis médios de sintomas depressivos.
Mulheres, estudantes com menos de 26 anos de idade, estudantes com histórico migratório e estudantes com maior carga financeira tinham maior probabilidade de relatar sintomas depressivos. Os autores apontam então a consistência com que sintomas depressivos foram encontrados em estudantes antes e durante a pandemia da COVID-19, tanto dentro de grupos socioeconômicos e sociodemográficos como em diferentes países.
“Nosso estudo também confirma a relação entre estresse financeiro e sintomas depressivos como amplamente demonstrado nas populações geral e estudantil. Isto exige atenção às repercussões da COVID-19 e às medidas políticas associadas sobre a situação financeira dos estudantes a médio e longo prazo, particularmente em países com um desequilíbrio pronunciado entre os custos do ensino superior e a capacidade dos estudantes de arcar com o crescente endividamento”.
Após tanta agitação e transformação, os estudantes ainda estão sentindo sintomas depressivos pelas mesmas razões que sentiam antes do início da pandemia. A COVID-19 tem levado a saúde mental de mal a pior para muitos estudantes que frequentam as IES, mas não é apenas a culpa por seus sintomas. O problema é que os estudantes podem estar se perguntando se estarão ou não bem, não apenas no contexto da pandemia, mas no grande esquema de coisas como suas IES e até mesmo seus países atrapalham as respostas de segurança e os esforços para coordenar o apoio a algumas de suas populações mais vulneráveis. Os efeitos secundários da pandemia: o isolamento, o duro estresse financeiro, o grande desconhecimento de seu futuro, em um mundo alterado pela COVID-19, podem continuar a provocar sintomas depressivos na população estudantil.
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Van de Velde, S., Buffel, V., Van der Heijde, C., Çoksan, S., Bracke, P., Abel, T., Busse, H., Zeeb, H., Rabiee, F., Stathopoulou, T., Van Hal, G., Ladner, J., Tavolacci, M.-P., Tholen, R., & Wouters, E. (2021). Depressive symptoms in higher education students during the first wave of the COVID-19 pandemic. An examination of the association with various social risk factors across multiple high- and middle-income countries. SSM – Population Health, 16, 100936. https://doi.org/10.1016/j.ssmph.2021.100936 (Link)
Em um artigo dado à série de Webinars de Filosofia da Psiquiatria da Universidade de Quebec Montreal em janeiro, a professora Nev Jones explica os aspectos políticos das abordagens filosóficas tradicionais da loucura e apela para um ajuste de contas ético com a abordagem dominante. Para Jones, a psicose é mais do que um objeto de teorização abstrata: é uma questão de experiência vivida significativa.
Ela argumenta que a psicose “nunca poderia ser divorciada dos vetores estruturais da pobreza, do encarceramento e de vários esquemas de bem-estar neoliberal, mas que sempre esteve intimamente ligada a eles”.
No entanto, incursões recentes no estudo da psicopatologia ou psiquiatria fenomenológica continuam a retratar os loucos como afetados por uma “moralidade deficiente” ou mesmo por uma “idiotice moral”. Embora talvez surpreendente no século XXI, esta abordagem da loucura certamente não é uma anomalia histórica.
Como Jones observa, tais “afirmações a respeito da moralidade diferente, alternativa ou prejudicada e da orientação existencial das pessoas com deficiência” têm sido, por pelo menos dois séculos, centrais às construções coloniais de raça e “nativos”, que por sua vez foram usadas para justificar inovações europeias como o genocídio colonial e o tráfico transatlântico de escravos (e, mais tarde, a eugenia americana, que influenciou significativamente os nazistas).
Há algo na relação entre loucura e filosofia que explica esta história contemporânea? Baseando-se no trabalho do filósofo desconstrucionista francês Jacques Derrida, Jones argumenta que “quando se trata de psicose mais especialmente, a posição da loucura como não somente uma outra, tanto a outra razão constitutiva ou logotipo”.
Relativamente, vemos na história da filosofia e da psicopatologia fenomenológica uma fetichização da psicose. As condições favoráveis desta abordagem do exótico e excludente da loucura (como outra e como um fetiche) certamente têm algo a ver com o problema de demografia da filosofia acadêmica ocidental, sua abordagem totalizante da verdade e do conhecimento e seu impulso animador para o domínio do desconhecido.
De fato, Jones escreve, numa tentativa de dominar o desconhecido, a prática da psiquiatria fenomenológica frequentemente resulta na “exclusão e subjugação dos próprios indivíduos com as experiências em questão, com exceção, é claro, dos informantes despojados de uma agência epistêmica que só pode pertencer verdadeiramente ao fenomenólogo treinado, com sua distância do assunto, com suas reivindicações particulares à … verdade”.
Tudo isso resulta em uma tradição de estudar a loucura e o louco “sem nunca pensar em [nós] como pessoas”. E, como vimos ao longo da história da psiquiatria – por exemplo, em condições brutais de institucionalização, experimentação médica e esterilização – a psicose fetichista se torna “uma condição e forma de desumanização adicional”.
Como conclui Jones:
“Quando se trata de subjugar historicamente os outros, os riscos morais são, é desnecessário dizer, sempre altos. Mas, no contexto da psiquiatria, eu daria este passo adiante e, como diz a expressão idiomática, chamaria isso de tempo não apenas para uma maior consciência do que está em jogo, mas para um maior acerto moral. E isso não acontecerá sem uma mudança real – estrutural e institucional, assim como individual”.
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Jones, N. (2022). “To do justice to madness: orienting to the politics of phenomenological psychopathology.” Unpublished paper presented at the UQAM Philosophy of Psychiatry Webinar Series. (Link)
Um artigo recente publicado na revista Psychosis procurou entender como o senso de autoestima das pessoas é afetado após a experiência do primeiro episódio de psicose. Os resultados do estudo qualitativo lançam luz sobre a possibilidade de crescimento pós-traumático, destacam os limites das atuais estruturas explicativas da psicose e apontam para abordagens de tratamento que apoiam a recuperação.
“A psicose pode afetar a identidade de forma fundamental”, aponta Phoebe Friesen, a principal autora do estudo e professora de Ética Biomédica na Universidade McGill. “Cada vez mais estão inscritos em serviços de intervenção precoce aqueles que sofrem de psicose pela primeira vez. Procuramos explorar como as pessoas inscritas em tais serviços sentiram que a sua identidade foi impactada por sua experiência de psicose”.
Como a identidade de alguém muda durante e após a experiência da psicose? Ainda se pode ser o mesmo após a experiência da psicose? A relação entre identidade e a experiência da psicose levanta questões filosóficas com implicações no mundo real para a prática clínica e o tratamento da saúde mental.
Serviços de intervenção precoce, tais como tratamentos de primeiro episódio de psicose e abordagens a pessoas em alto risco clínico de psicose, oferecem cuidados especializados para pessoas que experimentam psicose e sintomas de psicose pela primeira vez. Estes serviços estão recebendo mais reconhecimento e frequentemente se concentram em metas pessoais, recuperação e manutenção dos papéis que as pessoas desempenham em sua família, na escola ou no trabalho. Embora existam muitos entendimentos diferentes sobre a causa da psicose, a exploração da identidade com pessoas que sofrem de psicose é muitas vezes essencial para o tratamento.
“A relação entre identidade e psicose pode ser particularmente pronunciada durante experiências de primeiro episódio de psicose”, observam os autores. “Enquanto a maioria das pesquisas examinando a associação entre psicose e identidade tem se concentrado em indivíduos com um diagnóstico de esquizofrenia a longo prazo, alguns poucos estudos têm investigado as experiências das pessoas inscritas em um serviço de intervenção precoce”.
“À medida que nos afastamos de um sistema de cuidados no qual o diagnóstico de esquizofrenia é recebido como ‘um prognóstico de desgraça’ e em direção a um em que aqueles que experimentaram psicoses são encorajados a continuar estabelecendo metas e se engajando em atividades de significado pessoal, as identidades dos inscritos em serviços de intervenção precoce provavelmente serão significativamente afetadas”.
Como o senso de identidade das pessoas é frequentemente afetado pela experiência da psicose, como as identidades das pessoas mudam e como elas dão sentido a essas mudanças precisam ser estudadas. Uma maneira de entender as diferenças de identidade após a psicose do primeiro episódio é através do conceito de crescimento pós-traumático.
O crescimento pós-traumático é caracterizado por pessoas que fazem mudanças positivas após uma experiência de trauma ou tragédia significativa. Através do crescimento pós-traumático, as pessoas podem adquirir novos conhecimentos sobre si mesmas, ver suas vidas de forma diferente, desenvolver novos valores e adaptar novas estratégias para uma vida melhor.
Os autores destacam duas respostas comuns às mudanças que as pessoas experimentam após um episódio de psicose: integração e negação. As pessoas que adotam uma abordagem de integração tendem a acreditar que as suas experiências psicóticas são significativas e tentam entender como suas experiências se encaixam em suas vidas. Por outro lado, as pessoas que adotam o estilo de negação tendem a colocar as suas experiências psicóticas no passado para que possam voltar à sua vida exatamente como antes.
Embora alguns estudos sugiram que o estilo de integração da recuperação tem resultados mais positivos em termos de seus sintomas e qualidade de vida do que o estilo negação, são necessários mais estudos.
Para contribuir para este conjunto crescente de literatura, os pesquisadores realizaram entrevistas aprofundadas com vários indivíduos inscritos nos serviços de intervenção precoce em Nova York “para entender melhor como suas identidades foram afetadas por suas experiências de psicose”.
Os pesquisadores conduziram entrevistas semiestruturadas com dez pessoas com diversidade étnica inscritas nos serviços de intervenção precoce por pelo menos seis meses. Eles foram questionados sobre suas experiências de psicose, identidade e bem-estar.
Foram identificados quatro temas a partir da análise: (1) identidade durante e após a psicose, (2) psicose e significado, (3) conciliando experiências com explicações, e (4) mudanças positivas de identidade após a psicose. Cada tema também incluiu quatro subtemas (sublinhados abaixo).
Com base nestes temas, o estudo discutiu ainda os estilos de recuperação das pessoas, as estruturas explicativas e o crescimento pós-traumático.
Para o tema “identidade durante e após a psicose”, muitos participantes relataram ter uma identidade diferente durante a psicose, mas alguns relataram continuidade de identidade durante a psicose. Um participante sentiu que tinha que esconder quem era enquanto vivia a psicose. Além disso, muitos participantes mencionaram que parte de si mesmos estava faltando após a psicose.
Para o tema “psicose e significado”, como esperado, os participantes responderam ou caracterizando sua psicose como significativa ou sua psicose como sem sentido. Muitos acreditavam que tinham ganho mais autoconhecimento, enquanto alguns ainda estavam lutando para entender as experiências de psicose. Os autores explicam:
“Alguns participantes descreveram a psicose como ‘crucial’ para sua autocompreensão ou como ajudando-os a reconhecer um trauma que carregavam com eles há muito tempo. Outros descreveram a psicose como um tempo em que “eu me deixei e depois voltei” ou como algo que “adiou” a sua identidade, mas que não os havia mudado. Estas diferenças são semelhantes à distinção entre integrar e vedar”.
Entretanto, como as experiências de psicose são frequentemente complexas, os autores sugeriram um estilo de recuperação mista, combinando tanto a integração quanto a negação sobre os estilos. Além disso, o autor principal propôs o uso de narrativas pessoais e o desenvolvimento de uma explicação pessoalmente significativa da própria experiência para a recuperação a partir do primeiro episódio de psicose.
Para o tema “conciliar experiências com explicação”, os participantes tiveram uma variedade de respostas. Por exemplo, alguns participantes questionaram se tinham experimentado psicose, alguns apreciaram a explicação médica da psicose e alguns negociaram a sua própria compreensão da psicose entre as suas experiências e as explicações que lhes eram oferecidas. Além disso, alguns participantes enfatizaram que o diagnóstico de psicose não os definiu.
“Muitos usaram múltiplas estruturas explicativas para compreender as suas experiências, descrevendo a psicose como ‘uma reação química em meu cérebro’, mas também ‘crucial’ para sua auto-entendimento”, escrevem os autores. “Os participantes também se engajaram na bricolagem, utilizando uma variedade de estruturas explicativas, tais como estruturas biomédicas, espirituais e psicossociais, para descrever e compreender suas experiências de psicose”.
Para o tema “mudanças positivas de identidade após a psicose”, muitos participantes endossaram mudanças positivas em sua identidade, tais como maior maturidade, mais empatia e compaixão, e um maior senso de apreciação. Além disso, alguns relataram novos objetivos e prioridades na vida.
“Uma descoberta particularmente pronunciada foi a freqüência com que os participantes relataram mudanças positivas em sua identidade após a psicose. Isto se alinha com um corpo crescente de literatura documentando como as pessoas que experimentaram a psicose a veem como uma oportunidade de mudar e melhorar suas vidas, bem como a experiência de crescimento pós-traumático no contexto da recuperação do primeiro episódio de psicose”.
Os autores concluem:
“Entrevistas com indivíduos inscritos em um serviço de intervenção precoce revelaram que as identidades dos participantes foram impactadas por suas experiências de psicose de diversas maneiras… Alguns participantes pareciam assumir estilos de recuperação tanto de integração quanto de negação em resposta a sua experiência de psicose, enquanto os relatos da maioria dos participantes eram sugestivos de crescimento pós-traumático”.
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Friesen, P., Goldstein, J., & Dixon, L. (2021). A “blip in the road”: experiences of identity after a first episode of psychosis. Psychosis, 1-11. (Link)
Em 2021, pesquisadores liderados por John Read publicaram um estudo constatando que as clínicas que aplicam ECT no Reino Unido não informaram seus resultados e operaram sem qualquer supervisão. Mais de um terço dos pacientes receberam ECT contra a sua vontade.
Em resposta, um breve comentário na Lancet Psychiatry argumentou que era “hora de reconhecer a boa pesquisa em terapia eletroconvulsiva” e acusaram Read et al. de serem tendenciosos contra o procedimento e criar estigma. Eles chamaram a ECT de “o mais eficaz dos tratamentos psiquiátricos”. Esse trabalho foi escrito por Tania Gergel, Robert Howard, Rebecca Lawrence, e Trudi Seneviratne. (Notavelmente, segundo Read, Robert Howard é consultor de uma das clínicas do ECT mencionadas no artigo anterior da Read).
Agora, Read junto com Christopher Harrop e Jim Geekie escreveram uma resposta publicada na Lancet Psychiatry. Tem o título “Time to acknowledge the bias of some electroconvulsive researchers and defenders” (É hora de reconhecer o preconceito de alguns pesquisadores e defensores eletroconvulsivos).
Sobre a alegação de Gergel de que a ECT é “o mais eficaz dos tratamentos psiquiátricos”, Read escreve:
“Na ausência de um único estudo, após 80 anos, mostrando superioridade ao placebo além do final do tratamento… Se a sua afirmação fosse verdadeira, o que diria isso sobre os outros tratamentos da psiquiatria”?
Read observa que a última vez que a ECT foi comparada a um tratamento com placebo foi em 1985. Desde então, todos os estudos do tratamento foram incapazes de controlar o efeito placebo e outros fatores de confusão.
Em outro estudo, Read e outros pesquisadores – incluindo o renomado pesquisador de Harvard Irving Kirsch – concluíram que “não há evidência de que o ECT seja eficaz para seu alvo demográfico – mulheres mais velhas, ou seu grupo alvo de diagnóstico – pessoas com depressão severa, ou para pessoas suicidas, pessoas que tentaram sem sucesso outros tratamentos primeiro, pacientes involuntários, ou adolescentes”.
Eles escreveram que a ECT “deve ser imediatamente suspensa até que uma série de estudos bem projetados, randomizados e controlados por placebo tenham investigado se realmente existem benefícios significativos contra os quais os riscos significativos comprovados podem ser ponderados”.
Eles argumentaram que o ECT precisava ser testado usando o padrão ouro dos estudos médicos, o ensaio aleatório e controlado.
No entanto, Read escreve, Gergel deixou escapar essa conclusão e acusou Read e seus coautores de aumentar o estigma em torno do ECT.
Read escreve que a evidência de Gergel para a segurança da ECT é enganosa. O estudo de Gergel cita um grande estudo observacional com mais de 100.000 participantes – constatou que 1 em 39 pacientes teve problemas cardíacos após o eletrocardiograma.
Gergel se refere a isto como evidência da segurança do procedimento, retirando meia citação do estudo: “Os grandes eventos cardíacos adversos após a terapia eletroconvulsiva são pouco frequentes”, deixando de fora os números reais.
Além disso, Read escreve: “Estamos igualmente preocupados com a persistente perda de memória relatada por 12% a 55% dos usuários, que é monitorada de forma inadequada por muitas clínicas de terapia eletroconvulsiva”.
Gergel não menciona essa descoberta.
O outro estudo citado por Gergel como evidência da segurança do procedimento é um estudo (novamente sem grupo de controle com placebo) que não encontrou diferença nas hospitalizações e mortes não suicidas entre a ECT e aqueles que recebem outros tratamentos. Esse estudo também encontrou uma leve redução nas mortes por suicídio para aqueles que receberam ECT-0,1% ao invés de 0,2%.
Entretanto, Read observa que outros estudos encontraram o efeito oposto e que a base de evidência é manchada por estudos extremamente antigos, enviesamentos em relatórios e metodologia, e falta de comparação após o término do tratamento.
Read observa que, ao invés de acolher a discussão científica em torno do teste de um procedimento controverso, “Gergel e colegas retratam os resultados da pesquisa que são contrários às suas opiniões como sendo de alguma forma estigmatizantes da terapia eletroconvulsiva”.
Em última análise, de acordo com Read, Gergel afirma erroneamente suas conclusões, cita a pesquisa e argumenta que um procedimento que não tem sido adequadamente testado desde 1985 – e que tem efeitos adversos preocupantes – é a melhor esperança da psiquiatria.
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Read, J., Harrop, C., & Geekie, J. (2022). Time to acknowledge the bias of some electroconvulsive therapy researchers and defenders. Lancet Psychiatry, 9(2), e9. https://doi.org/10.1016/S2215-0366(21)00506-X (Link)
Um novo artigo publicado no Journal of Mental Health, os pesquisadores Bethany Garner, Peter Kinderman e Phillip Davis examinam debates on-line sobre o diagnóstico psiquiátrico. O estudo deles explora vários blogs, tanto a favor quanto contra a psiquiatria, e examina as polêmicas que posicionaram os participantes de maneira diferente para fazer avançar o seu lado no debate.
De acordo com os autores, a polêmica deste debate leva os pesquisadores a confiarem em “concessões retóricas” e truques linguísticos em vez de fatos para reforçar os seus argumentos. Esta dependência da retórica impacta negativamente a discussão em torno do diagnóstico em psiquiatria. Portanto, para fazer avançar a conversa em torno do diagnóstico, os pesquisadores pedem que os autores dos blogs se envolvam com fatos em vez de participar de jogos linguísticos mesquinhos.
“Nesses relatos, os tons polêmicos tendem a sobrepor-se aos argumentos fundamentais. Nesta análise, a polêmica entre autores tem impedindo o surgimento de soluções”, escrevem Garner, Kinderman, e Davis. “Esta divisão em oposições beligerantes vem ocorrendo há anos, e o risco é que isto continue. Os diferentes modelos conceituais produzem uma retórica combativa. Os debates on-line ainda são polêmicos”.
A psiquiatria como disciplina tem abraçado em grande parte as convenções de diagnóstico – os proponentes do diagnóstico psiquiátrico apontam para vários fatores benéficos na defesa desta prática. O diagnóstico oferece uma linguagem compartilhada entre usuários e prestadores de serviços, e permite aos usuários de serviços nomear o seu sofrimento. O diagnóstico também pode dar aos usuários de serviços acesso a serviços especializados e ajudar a determinar quais intervenções psiquiátricas podem funcionar melhor para ajudar a aliviar o seu sofrimento.
Mais recentemente, porém, as vozes de dentro da psiquiatria vem se tornando mais desconfiadas do aparelho de diagnóstico, e o modelo biomédico em que se baseia passou a ser fortemente criticado. Os autores chegam ao ponto de chamar o diagnóstico psiquiátrico de uma fraude baseada na “ficção prejudicial” da doença mental enquanto uma doença biológica. Estes autores apontam as circunstâncias da vida em vez de estados e anormalidades cerebrais como a principal causa de transtornos mentais.
Os pesquisadores críticos do projeto de diagnóstico têm frequentemente citado o efeito estigmatizante do diagnósticoe o modelo biomédico da saúde mental tên sobre os usuários do serviço. A experiência dos indivíduos estigmatizados pode comumente se manifestar como preconceito e discriminação. Também é comum que os encontros clínicos de saúde mental resultem em injustiça epistêmica, uma situação em que as preocupações e conhecimentos dos usuários dos serviços são desconsiderados em favor da narrativa dos prestadores de serviços.
Os críticos do diagnóstico psiquiátrico também têm apontado para preconceitos dos prestadores de serviços que afetam o diagnóstico e o tratamento subsequente. Pesquisas têm demonstrado que o preconceito racial provavelmente desempenha um grande papel no diagnóstico psiquiátrico. Os pacientes negros têm o dobro da probabilidade de serem diagnosticados com esquizofrenia do que os pacientes brancos, mesmo quando os seus sintomas são semelhantes. Ter um diagnóstico psiquiátrico também duplica seu risco de sofrer um erro médico.
A pesquisa em tela examina o debate em torno do diagnóstico, analisando seis blogs que tomam várias posições sobre o diagnóstico psiquiátrico. Os autores escolheram blogs que foram tanto críticos do diagnóstico como de apoio, bem como blogs que tomam uma abordagem mais intermediária do debate. Vários temas estavam presentes em cada um dos blogs examinados pelos autores: afirmação de autoridade, concessão retórica, apelos à clareza moral e posicionamento do oponente.
Para promover seus argumentos,uma afirmação de autoridade é uma tática retórica pela qual um autor faz uma afirmação baseada apenas em sua autoridade e não em evidências ou fatos. Os autores encontraram evidências de uma afirmação de autoridade no uso de termos como “simplesmente”, para descrever uma doença mental enquanto “simplesmente” uma doença cerebral, bem como em frases como “eu tenho exercido a prática há muito tempo”. A evidência de uma afirmação de autoridade também pode ser encontrada nos blogs anti-diagnóstico, com o uso de frases como “não tão comumente compreendido”, implicando que o autor do blog sabe melhor do que a maioria dos psiquiatras.
Concessões retóricas são truques linguísticos nos quais um autor oferece uma concessão vestigial ao seu oponente, para parecer mais razoável para o seu público. Por exemplo, a presente pesquisa encontrou evidências de concessões retóricas na afirmação do blog pró-diagnóstico de que “algumas doenças” são causadas por fatores situacionais, “mas” a maioria são biológicas. Da mesma forma, os autores do blog anti-diagnóstico usaram concessões retóricas quando escreveram que têm o “maior respeito” pelos psiquiatras, “mas a medicalização da infância foi longe demais”.
Tanto os autores de blogs pró e anti-diagnóstico se empenharam em apelos à clareza moral quando afirmaram que sua abordagem é o único serviço que os usuários “merecem”. Estes blogs também tentam posicionar os seus oponentes como “moralmente falidos ou cientificamente analfabetos”.
A pesquisa atual argumenta que estes truques linguísticos e posicionamento retórico se desviam de uma conversa importante que deveria estar ocorrendo dentro das ‘disciplinas psi’ em torno da utilidade do diagnóstico.
Garner e seus colegas acreditam que estes blogs poderiam ser um local para criar um “espaço especulativo mais rico” se os autores se engajassem em fatos e não em polêmicas destinadas apenas a fazer avançar suas posições. Eles escrevem:
“Esta análise demonstra o potencial do pensamento matizado e onde ele é sabotado”. Estas peças de escrita deveriam estar criando um espaço para o pensamento, não movido por extremos polêmicos pré-determinados, mas igualmente não apenas dividindo a diferença. A criação de um espaço especulativo mais rico para a investigação permitiu que o pensamento desafiasse a opinião e fizesse dos blogs não necessariamente uma polêmica, mas idealmente um lugar para uma maior disseminação do pensamento e um debate público mais produtivo”.
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Bethany Garner, Peter Kinderman & Phillip Davis (2022): The ‘rhetorical concession’: a linguistic analysis of debates and arguments in mental health, Journal of Mental Health, DOI: 10.1080/09638237.2021.2022631 (Link)