Luta Antimanicomial, Reforma Psiquiátrica e Reforma da Assistência em Saúde Mental

No dia da luta antimanicomial, o imperativo de superação do modelo biomédico da psiquiatria hoje dominante na assistência em saúde mental

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No Brasil, o dia 18 de maio é ocasião para manter na memória da sociedade o que é o modelo manicomial de assistência e dizer não à psiquiatria asilar.

Em nome da saúde mental, a psiquiatria historicamente escondeu por detrás dos muros dos hospitais psiquiátricos toda a sorte de atrocidades que nós humanos somos capazes de produzir. Graças ao processo de Reforma Psiquiátrica, a assistência psiquiátrica vem deixando de ser “hospitalocêntrica” e passa a ser “territorial”. O que tem resultado em significativos avanços, muito em particular no que diz respeito aos direitos humanos.

Não obstante a isso, a assistência em saúde mental continua a ser predominantemente psiquiátrica. O “modelo biomédico” da psiquiatria é hegemônico. E as suas consequências são nefastas, sobretudo para os usuários do sistema de assistência.

Não podemos deixar de formular algumas questões que apontam para uma realidade complexa, plural e avessa às supostas respostas fáceis.

POR QUE A LUTA ANTIMANICOMIAL É SINÔNIMO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA?

Há respostas que estão na ponta da língua. De imediato, é porque temos um histórico de assistência psiquiátrica centrada em manicômios. Sabemos que a assistência psiquiátrica asilar foi historicamente dominante, entre nós, mas igualmente no mundo inteiro. Inspirada por algumas das experiências reformistas internacionais das década de 1960 e 1970, a reforma psiquiátrica brasileira tem sido o deslocamento da assistência em estruturas manicomiais para a assistência no território. A reforma psiquiátrica brasileira foi inspirada sobretudo pelas experiências italianas basaglianas de Gorizia e Trieste. No entanto, foram negligenciadas, senão simplesmente desconhecidas, algumas experiências exemplares que se apresentaram como alternativas ao modelo biomédico da psiquiatria. Como as de Reggio Emília e Peruggia, na Itália, Soteria, nos Estados Unidos, senão a do Diálogo Aberto, na Finlândia.

Trata-se de uma reforma do modelo assistencial, adaptando a psiquiatria aos novos tempos. Tempos da proliferação de categorias de diagnóstico psiquiátrico, pelo menos desde os anos 1980, a partir do DSM-III.

Seria possível hoje prestar assistência em manicômios àqueles que nos tempos atuais da assistência pós-asilar são diagnosticados com transtornos depressivos, transtornos de ansiedade, transtornos obsessivo-compulsivos, transtornos alimentares, transtornos de ansiedade, transtornos da eliminação, transtornos do sono-vigília, disfunções sexuais, disforia de gênero etc.?

Lembrando do conto O Alienista, de Machado de Assis, seriam necessárias muitas Casas Verde para internar todos os loucos, quer dizer doentes mentais, da cidade e da região! Dr. Bacamarte conseguiria internar 75% da população. Sabemos que psiquiatria de hoje em dia não necessita de manicômios para o seu exercício. Com tanta gente com algum diagnóstico psiquiátrico, apenas no “território” é que torna-se viável o tratamento psiquiátrico hoje em dia.

O duplo mandato de cura e controle social pode ser melhor realizado no próprio território.

A luta antimanicomial não diz respeito à grande maioria dos que hoje estão psiquiatrizados. Que são tratados nos CAPS, na atenção primária, nos ambulatórios, pelos planos de saúde, na clínica privada propriamente dita etc.

Por sua vez, as drogas psiquiátricas funcionam, em geral, muito melhor do que as grades, as camisas-de-força, a lobotomia, enfim, dos dispositivos que caracterizam a assistência manicomial. A quantidade de usuários de drogas psiquiátricas é incomparável aos que outrora eram vítimas das terapêuticas psiquiátrica em manicômios. Hoje em dia são usuários da psiquiatria desde crianças na mais tenra idade, adolescentes, jovens, adultos e idosos. E essa população muito provavelmente não se identifica com “luta antimanicomial”. A violência da qual são vítimas não é feita em manicômios.

REFORMA PSIQUIÁTRICA NO TERRITÓRIO E A VIOLÊNCIA SISTEMÁTICA

As evidências nos sugerem que no território a violência e suas vítimas são inerentes à própria psiquiatria com o seu “modelo biomédico” de tratamento.

Tratamento psiquiátrico para a esquizofrenia e psicoses em geral:

  • As evidências comparam os sujeitos que são tratados a médio e longo prazo com antipsicóticos e aqueles que não estão fazendo uso de antipsicóticos. Aqueles que não estão utilizando antipsicóticos têm a tendência a ter muito menos rehospitalizações do que os que estão sendo tratados com antipsicóticos.
  • O percentual de pacientes diagnosticados com esquizofrenia com sintomas de ansiedade é muito maior entre os usuários de antipsicóticos. Isso ocorre ao longo de períodos de follow-up de 2 anos, 4 ½ anos, 7 ½ anos, 10, 15 e 20 anos, conforme os resultados da pesquisa de Martin Horrow. O mesmo se pode dizer com relação às funções cognitivas.
  • A respeito dos sintomas específicos da esquizofrenia, a suposta razão principal para tratamento com antipsicóticos, se verifica em médio e longo prazo que o tratamento psicofarmacológico não elimina ou reduz esquizofrenia ou psicoses em geral.
  • E com respeito a estar ou não em um emprego laboral? Há uma crença de que iniciativas como “economia solidária” criam condições para que pacientes diagnosticados com esquizofrenia ou psicose possam se integrar à vida laboral. Mesmo que apenas em meia jornada de trabalho. As evidências sugerem que quem está em antipsicóticos tem significativamente menos chances de se manter de alguma forma no mercado de trabalho.
  • Em termos globais, as evidências sugerem que com relação às diversas funções, quem está em antipsicóticos têm muito menos chances de se recuperar.
  • Quer dizer, as chances de remissão sintomática e funcional são muito piores entre aquelas pessoas submetidas ao tratamento psicofarmacológico com antipsicóticos. Conforme o que foi publicado na Jama Psychiatry.
  • Que o uso continuado de antipsicóticos leva ao encolhimento do cérebro.

Estas são algumas das evidências pinçadas entre as inúmeras publicações existentes. Quem acompanha o nosso site Mad in Brasil (MIB) pode encontrar outras e outras mais evidências.

E com relação aos antidepressivos? 

Poderíamos apresentar evidências para quem é tratado por um transtorno bipolar, TDAH e assim por diante. A lógica é a mesma. Quem tiver interesse a respeito desses transtornos, vale a pena fazer uma busca aqui em nosso site.

REFORMA PSIQUIÁTRICA OU REFORMA DO MODELO ASSISTENCIAL

As evidências nos sugerem que a questão central da assistência em saúde mental não é o modelo manicomial de assistência. É sim a própria psiquiatria. A não ser que se espera que a psiquiatria renuncie ao modelo biomédico que sustenta a sua ação institucional. O que nos aponta para algo incontornável: a Reforma Psiquiátrica não pode ser confundida com luta antimanicomial. Aqui como em diversas outras sociedades em geral.

Porque uma coisa é criticar a lógica “manicomial” e outra bem diferente é reconhecer que o modelo biomédico” da psiquiatria é que está no DNA da violência que os usuários da assistência em saúde mental sofrem.

É o próprio “modelo biomédico” da psiquiatria que permite que ocorra:

  • Que haja o “ato médico” e suas consequências na organização da assistência;
  • Que o diagnóstico siga critérios biomédicos;
  • Que o diagnóstico seja dado necessariamente por uma autoridade médica;
  • Que a “internação involuntária” seja decidida autocraticamente por um médico;
  • Que drogas psiquiátricas sejam prescritas quase que necessariamente a quem tem um diagnóstico psiquiátrico;
  • Que o tratamento psicofarmacológico seja a linha de frente do tratamento;
  • Que formas psicossociais de abordagem contem com pouco suporte financeiro e institucional;
  • Que o know-how dos usuários esteja subordinado ao modelo biomédico de abordagem;
  • Que não exista o “consentimento informado e esclarecido” como ponto de partida para as prestações de serviço;
  • Que os profissionais de saúde pensem e ajam conforme o “modelo de doença” da psiquiatria;
  • Etc.

POR UMA REFORMA DA ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL

Documentos oficiais internacionais vem reivindicando que a assistência em saúde mental deixe de ser feita baseada no “modelo biomédico” da psiquiatria. Recentemente, o representante da ONU Dainius Pūras argumentou ser hora de se abandonar o modelo biomédico e mudar para uma abordagem baseada em Direitos Humanos à saúde mental. A OMS se junta a ONU, fazendo apelo por mudanças radicais na saúde mental global. Não é o modelo maniciomial, e sim o “modelo biomédico” da psiquiatria o que está no foco para as mudanças necessárias.

Tomemos exemplos do que há fora do Brasil. Referências alternativas ao “modelo biomédico” da psiquiatria. Como Soteria, nos anos 1960. Ou Soteria atualmente, como por exemplo em Israel. Senão, a experiência do Diálogo Aberto, inicialmente na Finlândia, nos anos 1980-1990, e até hoje viva e atuante. Senão, para dar mais um exemplo, a experiência na Noruega, garantindo serviços de assistência em saúde mental sem drogas psiquiátricas.

São experiências que nos sugerem ser possível não se fazer o uso do “modelo biomédico” como a primeira linha de tratamento.

Décadas de experiência de Reforma e o modelo biomédico da psiquiatria continua hegemônico na assistência em saúde mental. As diversas abordagens psicossociais para as variadas formas de manifestação do sofrimento psíquico estão em geral subordinadas à lógica da “doença”, portanto subordinadas ao “diagnóstico psiquiátrico” e ao “tratamento psicofarmacológico”. Não se construiu alternativas ao diagnóstico psiquiátrico, a exemplo do que é proposto pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia. Tampouco se abandonou o mito da cura química, substituindo o modelo centrado na doença para o modelo centrado na ação das drogas. Quando existem alternativas eficazes e seguras ao modelo de doença, essas experiências não conseguem visibilidade suficiente para se tornarem referência nacional e internacional.

O direito ao “Consentimento Informado e Esclarecido” na assistência em saúde mental provavelmente é hoje um direito humano essencial para os usuários e familiares. Um direito que sendo reconhecido pode ajudar a promover uma radical reforma da assistência em saúde mental. É necessário que sejam tomar medidas para garantir que as pessoas prescritas com antipsicóticos estejam plenamente informadas, especialmente sobre os efeitos adversos e alternativas existentes. O conhecimento sobre os problemas com a retirada dos medicamentos psiquiátricos é fundamental para a tomada de decisões e a orientação do processo de tratamento.

O Consentimento Informado e Esclarecido para o usuário da assistência em saúde mental, enquanto direito humano e de cidadania reconhecido pela sociedade, pode levar a algo no Brasil como o que está ocorrendo na Noruega, onde é direito de todo cidadão a escolha por um tratamento livre de drogas psiquiátricas, e é obrigação do Estado disponibilizar serviços adequados para facilitar a escolha do usuário.